Evoluiu além das religiões. Alguns, muito além: do Lúcifer (portador daluz)* alcançaram o Logos (sabedoria pela razão)*. Penso que o homem, assimcomo todos os demais seres vivos que habitam este pequenino planeta Terra,são consciências em evolução, em busca de sua integração com o Todo.Integração que somente se alcança através do amor. Acredito que nada... absolutamente nada no mundo acontece por acaso.Um cascalho não rola da barranca para dentro do rio sem que haja o coman-do e o desígnio da Energia Superior. A não ser as ações do homem, que possui o dom de usar (e, às vezes,lamentavelmente, de abusar) do seu livre arbítrio – sempre sofrendo ou gozan-do as conseqüências dessa faculdade – nada mais no mundo acontece poracaso. Eu creio nisso. Creio na Energia Cósmica, que alguns chamam Todo, outros chamam Deus,e alguns poucos chamam Pai. Por isso que acredito no amor, que é a única forma, para nós inteligível, deexpressão da Energia Superior. Amor desinteressado, puro, universal, quenunca exige ou pede retribuição ou recompensa. Amor que se dá... porque estaé sua única forma de expressão: doação total. Amor que não escolhe, não dis-tingue, não ofende e não se ofende. Amor que não se vangloria. Amor, sinô-nimo de Energia Suprema que governa o Universo. Isto é o que eu penso... é o que eu creio.” Eu já estava quase no fim da reta quando aquele pescadorencerrou o seu silencioso e inarticulado credo. Eu entendia, agora, por que ele não transformava sua pescariaem indiscriminado sacrifício de peixes. Eu entendia por que ele sebastava, sozinho, no barranco do rio. Eu entendia por que seu lazere a sua alegria eram naturais, contidos e quase silenciosos. Euentendia por que em cada sofrimento de sua vida (não há quemnão os tenha), ainda que lhe custasse lágrimas, ele se mantinhadiscreto, reservado e sereno. Nós dois sabíamos que TUDO na vida passa. Não há mal que 51
nunca acabe; nem bem que sempre dure – mas, há sempreevolução para quem a ambos aproveita. Minha próxima curva era à esquerda. Segui meu caminho na calmaria... em paz! Meus remansos eram cada vez maiores. As profundidades tam-bém. Por isso, talvez, a lentidão dos meus passos... a vagareza domeu caminhar. Estava ficando velho? Com certeza, sim. Este é maisum dos registros da vida: sempre há que se envelhecer. Dois dias depois do primeiro encontro e da primeira inarticula-da conversa, eu revi meu amigo: comodamente instalado numbarco, à sombra de uma frondosa gameleira. Voltara a pescar comum companheiro. A manhã era radiante. O sol forte. A brisa morna. Havia silênciono ar, como se tudo e todos estivessem possuídos da pachorrentamodorra da natureza. As folhas das árvores farfalhavam com in-disfarçável preguiça e discrição, na mesma preguiçosa decisão dovento em não acelerar seus passos. O dia prenunciava-se, já tãocedo, indolente, arrastado e quente. Envolvendo o barco dos pescadores, aquietei-me e passei aobservá-los: barco equilibrado e confortável; tralha sofisticada; atécnica variada que usavam para pescar; a forma com quetratavam os peixes fisgados; os cuidados com que respeitavam avida; o carinho que me dispensavam, não me lançando, nem emminhas barrancas, o que quer que fosse que pudesse degradar-me,tornar impuro o meu corpo ou deteriorado o meu leito. Eu já havia visto tanta maldade humana. Gratuita.Inconseqüente. Já havia visto um sem-número de pescadores sa-crificando larga quantidade de peixes, de todas as espécies etamanhos, lançando-os fora, mais tarde, sem qualquer aproveita-mento. Fisgam, matam e, no final da jornada, lançam a miuçalhano rio, sem qualquer constrangimento ou uma ponta de dor nas 52
consciências. Já havia visto tantos atos inconseqüentes que, a parde uma simpatia natural por todos quantos sabem fazer dapescaria uma celebração, vi crescer em mim um sincero e especialapreço por aquele pescador hoje reencontrado. Não apenas pelosvários encontros anteriores ou por tudo quanto me dissera doisdias antes. Mas, por seu comportamento livre, respeitoso, sereno,consciente. Especialmente consciente. Decidi, todavia, testá-lo. Conduzi um peixe maior para a vara ea linha mais fracas. De início quebrou-se a primeira para, logo emseguida, arrebentar-se a segunda. Seu amigo soltou algumasimprecações. Ele sorriu. Trocou a vara quebrada por outra igual-mente leve, aproveitou a linha fina da pequena carretilha e feznovo lançamento. Coloquei-lhe um peixe pequeno. Ele o fisgou e,com o mesmo cuidado sempre dispensado às espécies conside-radas nobres, o libertou. Conduzi outro espécime de bom porte auma outra isca, presa também por linha fina. Iniciada a disputa, eapós mostrar-se por duas vezes em saltos ornamentais de indes-critível beleza, rebrilhando à luz do sol, o Dourado mergulhoujunto a uma galhada submersa e, enroscado, estourou a linha queo prendia. Não senti ou percebi qualquer mágoa como reação dopescador. Ele, apenas, sorriu... recompôs seu equipamento elançou isca n'água. Nenhum outro peixe tocou suas iscas. Seu colega embarcou umbelo pacu. Ele participou da alegria do amigo como se ele próprioo tivesse fisgado. O tempo passou. Só miuçalha era fisgada... e solta. Nenhumpeixe bom. A conversa era informal. Temas variados. Ao soltar um serrudo(que em água clara não deveria ter aparecido ou ter sido fisgado),ouviu de seu companheiro a pergunta-julgamento: \" — Que azar, heim? Nunca vi nada igual. Perde o que é bom, e até o ruimimpossível é fisgado! Maré baixa, sô!\" 53
Outro sorriso. E, com nítida sinceridade, o comentário-resposta: \" — Aproveitei o essencial. Desfrutei o momento. Respirei o ar puro. Ouvi amúsica da natureza. Partilhei, amigo, do seu companheirismo. Vivi a mansidãoe o repouso do rio. Escutei a mensagem de paz que me sussurra o arvoredo. Que mais posso desejar? Como é possível aborrecer-me quando há tanto para serenar-me? Lembro-me, agora, de uma noite de Natal... já se passaram alguns anos.Natal, você sabe, é aquele instante em que os homens, modo geral, ignoramas mazelas do mundo, fazem ouvidos moucos aos clamores do sofrimentoalheio, fecham os olhos para não ver a pobreza que os cerca e se esforçam nosentido de nunca perceber a fome que grassa ao seu derredor. Pelo contrário,ocupam-se em fartar suas mesas, preparam-se para a embriaguez da noitad,ae fazem questão de manter viva a imagem discriminatória, mercantilista, insen-sível, elitista de um Papai Noel sem coração, sem alma, sem amor. E, não obstante tudo isso; mesmo tendo em conta que a maioria das men-sagens de boas festas sejam impessoais, inexpressivas e estéreis; apesar dequase ilegíveis as rubricas daqueles que remetem votos impressos de \"feliznatal e próspero ano novo\"; não obstante tudo isso, a noite de Natal aindatem um ar de mistério, um quê da infância perdida no tempo, um tremulartitubeante com que a chama da vela da esperança ainda luta por sobreviver;e alguns poucos homens permitem que o espírito do Deus-menino lhesamenize as rugas e os calos do coração. Numa dessas noites de Natal estávamos todos atribulados com os afazerese preparativos da ceia. A campainha do apartamento tocou. Meio a contragos-to abri a porta. O porteiro da noite trazia a correspondência. Rasguei, com na-tural displicência, os envelopes contendo alguns comerciais, e outros contendoas prosaicas mensagens impessoais de boas festas. Dentre estas, todavia, uma chamou-me a atenção. Especialmente porqueremetida por um grande amigo que as atribulações da vida afastara do con-vívio diário. Abri o envelope. Nada impessoal. Pelo contrário, manuscrita, nelahavia o carinho e o calor da sinceridade amiga, que me recomendava a revisão 54
dos meus atos e a elevação do meu espírito na busca do verdadeiro sentido doNatal: aproximar pessoas e guardá-las na harmonia de viver. Reli a mensagem.Reuni a família... e todos lemos: \"Caro amigo S.B. Se você se aquietar... se toda a sua esperança de vida se resumir, no máximo, a um sorriso; se, ausente qualquer julgamento, nada lhe for bom e nada lhe for ruim... sem distinções; se você se permitir ser, simplesmente, um pau oco, sem ambições... disponível para que o Pai, num sopro, possa criar através de você a mais bela e incomparável canção de amor; se você aceitar a vida em sua absoluta realidade... disponível para cumprir, sem qualquer esperança, a missão que o Pai lhe reservou; se você nada desejar e nada rejeitar... tendo aceitação total e sem julgar o bom ou o ruim; se assim for, seguramente o espírito do Todo terá iluminado o seu cami- nho... e todos os dias de sua vida terão a fragrância da noite de Natal. Celebre isso!\" Sentimos, todos, que a ansiedade e as atribulações a que nos havíamossubmetido não tinham razão de ser. Entendemos que o Pai sempre nos proveraalém do essencial, quando muitos irmãos, lamentavelmente e por força de umaestrutura social canibalesca, fagedênica, não têm o que comer. E a paz desceuem nosso lar. E o sorriso das crianças iluminou todos os rostos. E a alegriavoltou, como luz devassando trevas, expulsando a tensão anterior que,vibrante, massacrava nossos semblantes. E eu me senti como um abençoadopescador que tinha o privilégio de estar num rio, aproveitando a harmonia queele transmite. Não me importam, pois, a cor da água, a nobreza dos peixes, a força dosventos, a luz do sol ou o peso das nuvens; não me interessam as falhas domotor de popa, ou o rompimento da linha, ou a perda dos anzóis, dosdestorcedores, das chumbadas e das iscas. 55
Importa-me a alma do rio, o espírito da floresta, o calor do sol, a riquezada chuva, o cheiro da terra... e, principalmente, importa-me a paz do mundoque aqui se respira.\" E eu, que aprendera a acumular experiências desde tenra idade,fiquei silente diante da palavra daquele pescador, porque senti nelao estado de espírito que há muito me possuía. O tempo passou. Quantos anos? Não sei dizer. Sei que há muitoeu continuava naquela mesma rotina de viver. Vivendo intensa-mente e nada fazendo, a não ser o pouco-tudo que me era desig-nado pelo Pai. O belo “King Air” passou rente ao meu corpo. Pescadores, comcerteza. A forma como, lá das pequenas janelas, alguns pares deolhos me fitavam, dava-me a convicção de tratar-se de pescadores.O avião desapareceu do meu ângulo de visão. Passadas algumas poucas horas, seis novos pescadores embar-caram, dois em cada lancha, e correram sobre meu corpo; dentreeles, revi o meu amigo. Ele chegou com um largo sorriso no rosto,olhos brilhando de felicidade, como os de uma criança diante damais fascinante guloseima. Estava mais velho, óbvio. Acho que umpouco mais magro. A tralha de pescaria, contudo, era a mesma:varas finas, linhas pouco resistentes, carretilhas “Abu” leves. Seuolhar estava vivo, saltitante, ansioso por rever tudo quanto haviamuito não contemplava: o arvoredo frondoso recortado contra océu azul; os jacarés pachorrentos; as capivaras roliças e expec-tantes; os pássaros de incomum policromia e de maviosos cantos;as garças e jaburus de desengonçado caminhar; o regougar tene-broso e assustador das ariranhas; e o rio... caudaloso e sereno. Depois de algum tempo percebi que, não obstante toda aquelafelicidade, havia uma crescente ponta de decepção em seu sem-blante. Minhas barrancas estavam castigadas pela agressividadedos homens; as matas ciliares não fechavam muralhas verdes comoantigamente; meu corpo não tinha a mesma pureza de outrora, 56
maculado pelos detritos, restos usados, que eu carregava ou que,eventualmente, acumulava junto a tranqueiras; eu sentia o castigoque me infligia a inclemência do homem. E ele compartilhava omeu sofrer. Senti o amigo. São tão poucos e tão raros. A gente sempre osdistingue com facilidade. Muitos homens são tão superficiais emantêm ligações tão interesseiras que não permitem o enraiza-mento de suas relações no coração. Outros não precisam estar pre-sentes no dia-a-dia para garantir a força da amizade. Senti o amigo. Amigo é aquele ser especial que supera oslaços de sangue e torna a vida mais risonha nos nossos momen-tos felizes; e mais amena nos nossos momentos tristes. Senti oamigo. Amigo é aquele que, quando a vida nos reserva um cáliceamargo, sem que tenhamos pedido, ele vem com o mel. E nãonos pergunta nada; e não nos fala nada. As palavras, embora agente nem sempre o reconheça, são sempre dispensáveis nomomento de dor. O olhar é bastante. O silêncio diz tudo. Quandoa dor é forte, ninguém quer ouvir consolo nas palavras que sesituam em lugar comum. O silêncio é mais eloqüente. O abraçoé bastante. E assim motivado, revendo aquele amigo que, ao contrário demuitos outros pescadores que conheci, ocupava-se da felicidadeprópria, e procurava induzir a felicidade de quantos dele se apro-ximavam; que nunca negava o riso fácil e franco; que nunca ocul-tava um olhar de paz, imergi em pensamentos sobre a vidahumana. Apesar do meu despreparo para entender a passagem doser racional sobre a terra, vieram-me questões para as quais minhaexperiência, enquanto natureza, tinha dificuldades de discernir. Por que o homem não pode parar e pensar, ainda que umpouco, na sua felicidade? Acudiram-me respostas: ele é preparadopara a luta do cotidiano, ao invés de ser preparado para a paz deespírito. Ele faz de suas relações pessoais um evento transitório. 57
Não se apega aos outros homens, a não ser quando presente ointeresse do ter. A amizade, por se situar na verticalidade do ser, é um sentimen-to em decadência. Tenho ouvido constantes reclamações depescadores, no sentido de que cada um se ocupa de si próprio,deixando-se levar na onda livre e forte do egoísmo. Poucos, muitopoucos, têm tempo para o semelhante. Raros se dispõem ao gra-tificante e doce sacrifício de dar-se aos necessitados. “CAMINHOSPARA JESUS”, por exemplo – entidade filantrópica que, nas mãosde alguns poucos abnegados e sem qualquer ajuda oficial, cuidade crianças portadoras de hidrocefalia – é instituição a cada diamais rara. Porque raras são as pessoas que aceitam sacrificar olazer, a comodidade, o conforto, as transitórias, superficiais eefêmeras alegrias sociais, em benefício de irmãos que não nasce-ram para esta vida, mas que aqui vêm para lembrar aos que têmconsciência deste mundo que cada um de nós tem irrecusável eindefectível compromisso com o Todo. Não somos células isoladas,independentes e alheias a tudo que nos cerca. Somos átomos quegravitamos em torno de átomos e constituímos o universo. Nadaacontece a um átomo sem que os outros sofram reflexos. Nenhumbem e nenhum mal se perdem no universo. Tudo se reflete e retor-na; tudo afeta a todos. Cada um de nós que orar, isolada e silen-ciosamente, estará orando por todo o Cosmos. Cada imprecaçãonossa será a imprecação do mundo. Imperioso, pois, extremocuidado com o que se cria em pensamento, com o que se sente nocoração, e com o que sai de nossas bocas, pois que tudo é ener-gia. E como energia, sempre se multiplicará e se irradiará em todosos sentidos. Não sei se tornaria a ver aquele amigo. Senti, no entanto,que ele não retornaria. Pareceu-me que a realidade por mimapresentada doía-lhe no coração. Não sei se nossos caminhosfísicos, ele enquanto homem e eu enquanto natureza, secruzariam ainda, algum dia, em algum lugar. Enquanto energia 58
estaríamos sempre juntos... aqui ou alhures. Mas, eu sabia queele tivera enorme importância em minha vida. Sabia, também,que eu tivera incomensurável sentido e valor em sua vida. Nósnão seríamos os mesmos se não tivéssemos nos encontrado.Mesmo porque todas as ocorrências são motivadas e semprevêm em nosso benefício... basta ver e saber discernir. Nossasvidas não seriam a paz e a serenidade se não nos tivéssemosconhecido, na profundidade do nosso relacionamento. Ele pre-tendia refletir-se no caminho do rio. Eu pretendia a inteligênciae o livre arbítrio do homem como fonte de crescimento, deevolução, de realização. Aprendemos muito, um com o outro. Assim como todas as pes-soas que têm olhos de enxergar e ouvidos de ouvir sabem crescerumas com as outras ou com as coisas do mundo. Não se pode repetir o ano... não se deve perder a lição O dia amanheceu como amanhecem todos os dias. Pelaprimeira vez, todavia, o vi com olhos diferentes. O azul do céu esta-va mais celeste; as nuvens mais belas; o arvoredo mais verde, emtodas as suas tonalidades. As barrancas do meu leito estavam maisamigas, mais identificadas comigo. O sol era risonho... como riso-nha seria a chuva, se porventura chovesse. O que havia de difer-ente, na verdade, não era o que me cercava. Diferente estava eu.Eu via tudo com mais amor. Então compreendi. A serenidade absoluta se aproximava. Não que a visse... seriaimpossível. Mas, a sentia. Por longo tempo da minha vida cami-nhei, acompanhado pelo sol, pela lua, pela chuva, pela brisa.Conheci pássaros e animais silvestres. Convivi com os homens.Com tudo e com todos aprendi muito. Nunca manifestei cansaço ou ansiedades. Apenas caminhei ocaminho que me estava reservado, aproveitando as lições da vida. 59
Mas, eu sentia que minha hora se aproximava. Meus remansoseram maiores e meu corpo se alargava, na medida em que as pro-fundidades do meu leito cresciam. De repente, aconteceu. O turbilhão que me envolveu, batendo-me e rebatendo-me, em nada abalava a minha paz, a minha tran-qüilidade. Continuei andando. E fui envolvido por uma atmosferade absoluta serenidade. Nada do passado. Nada do futuro.Somente aquela sensação de felicidade total, de não-relaciona-mento com o que quer que fosse. O silêncio era absoluto. E euparei... não uma parada de remanso, a que já me acostumara emtoda a minha vida – momentos em que eu mergulhava no fundode mim mesmo e desfrutava a plenitude do conhecimento e dacontemplação e saboreava a paz. A parada, eu a senti definitiva. Não era o fim, todavia. Era a morte, mas não era o fim. Era amorte para tudo quanto eu conhecia: corredeiras, remansos,raseiras, praias, barrancas, montanhas, arvoredos ciliares. Era amorte para tudo quanto eu me acostumara ao longo do meu per-curso... ao longo da minha vida. Era a despedida para o brilho dosol ou para a clara suavidade da lua; era o não mais retornar aoperfume das flores ou aos sons maviosos dos pássaros; era esque-cer o convívio com os animais da terra e os obstáculos do meuleito. Mas, eu sentia todo o conforto na transição. Eu mergulhavae mergulhava. E me fortalecia. Era a integração total; era o saborda felicidade plena, quando eu me via inteiro, desde o dia em quebrotei entre aquelas pedras cobertas de verde-musgo, cresci,engordei, corri, caí, superei obstáculos, engoli seres viventes,enfrentei desafios, me debati, fui criticado e elogiado, sofri injúriase agressões – e a tudo isso, fatos tristes ou alegres, respondi coma serenidade de quem cresce, evolui e se realiza. E a felicidade pelocumprimento dos deveres que me ditara o Pai transfigurou-me. Jálançado em maior profundidade no mar, eu me via inteiro. Seriacapaz de descrever cada curva do meu caminho. Eu repassava, 60
num átimo, o conhecimento acumulado. E sentia que a melhorverdade que eu aprendera era o perdão. Não o perdão a quantosme fizeram males físicos, aos agressores da natureza. Mas, o prin-cipal, o único, o essencial: o perdão a mim mesmo. Tudo quantoacontecera na minha vida não tinha qualquer significado. Só temsentido o que eu sou! Tudo quanto a mim me perdoara – e estavaenterrado no ontem – contribuíra decisivamente para a minha feli-cidade. Infeliz quem não se perdoa. Erros todos cometem. Mas, oerro não é bagagem a ser carregada pela vida afora. Assim comoos sucessos também não o são. Veio-me a segunda grande verdade: o caminho é a vida. O fimé apenas sublimação. O caminho é o crescimento, é o aprendiza-do, é a evolução. O fim é apenas a integração. Por isso não deve-mos ter pressa. Por isso não devemos buscar metas. Estas devembalizar, como objetivos de vida, o caminho. Não se pode esquecer,todavia, que todo sonho fica sepultado na realização. Alcançar ofim é tão-somente satisfazer o objetivo. Experimentar e crescer sãoas lições do caminho. Neste se encontra o verdadeiro sentido davida, porque enriquecido pela alegria, pela dor, pela ira, pela bon-dade, pela revolta e pela harmonia. As metas não são a felicidade.A vida está no caminho que se cria e que se percorre... não no fimdele. Felicidade é experimentar, é aprender, é evoluir, é saborearcada instante na sua plenitude. E percebi que o mar fluía do meu corpo etéreo, na medida emque perdia consciência da unidade para adquirir o conhecimentoda integração. E nessa indefinível transmutação, ressoou minhavoz que dizia a oração da minha vida: \"Pai, Senhor do Universo Você que me concedeu nascimento, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes de crescer, idealizar e intuir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade. 61
Pai, Senhor do Universo Você que me concedeu vida e crescimento, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, cumprindo minha missão, identificá-la com os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade. Pai, Senhor do Universo Você que me concedeu conhecer o bem e o mal, verso e reverso da mesma medalha, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes do discernimento entre as duas faces da medalha, cumprir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade. Pai, Senhor do Universo Você que me concedeu o livre arbítrio para a escravidão telúrica ou para a evolução do espírito, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, antes de qualquer opção, cumprir os seus altos desígnios, satisfazendo sua santa vontade. Pai, Senhor do Universo Você que me concedeu a morte, resplandeça o Cristo que em mim habita, a fim de que eu possa, depois dela, integrar-me na Suprema Energia, por haver cumprido os seus desígnios e satisfeito a sua santa vontade.\" Aí, então, compreendi o amor. Entendi, na sua inteireza, na sua totalidade, o que é o amor.Tudo o que eu fizera na minha vida, todo o meu percurso, toda afertilização... tudo; tudo não passava da mais simples e puraexpressão do amor. Eu sempre estivera disponível. Eu sempre fora, 62
desde o nascimento, doação total. Jamais fui maculado pelo egoís-mo. Tudo o que fizera na vida, desde aquela grota de pedras cober-tas de verde-musgo, era amar. Amei inteira e amplamente, numadoação plena a todos e a tudo. Amei espinhos, assim como ameiflores. Jamais possuí, em nome do amor. Amei as pedras, os arbus-tos, as minhas barrancas e minhas praias. Amei o sol e a chuva.Amei o orvalho da manhã, o calor do sol, a suave claridade da lua.Amei naturalmente; porque o amor não é emoção... é muito mais:alcança o zênite da contemplação e a sublimidade do servir. Ameisem distinções, sem escolhas, sem preferências. Amei semrestrições, sem limitações, sem preconceitos e sem medos.Entreguei-me ao mundo, à minha missão, ao meu dever, ao meulazer... entreguei-me à vida. Amei. E por isso fui amado igualmente, com a mesma intensi-dade... sem limites. Porque o amor é energia pura, é energia cós-mica que se propaga em todas as direções; e se multiplica emescala geométrica; e ecoa; e volta. E cresce ainda mais. Ilumina omundo. Se os homens pudessem entender minha vida, possivelmentenão me rotulariam RIO. Ou, talvez, teriam este nome como sinô-nimo de amor. Era chegado o momento da última revelação: o renascer. Eu poderia, se não aproveitadas as lições de todo o curso daminha vida, renascer fisicamente. E então, sugado pelo sol, trans-formado em nuvens e chovendo sobre a montanha, poderia brotarnaquele lindo e agreste olho d'água. Ou em qualquer olho d'águado mundo, para deslizar sobre a mesma terra, reconhecer barran-cas, criar novas curvas, abraçar outros cascalhos, cantar outrascanções de correr ou ouvir o silêncio profundo dos remansos. E, seassim fosse, eu guardaria a semente de toda a evolução anterior, epoderia crescer ainda mais em conhecimento e amor e, um dia,alcançar novamente a integração com o Todo. 63
Ou poderia renascer pelo espírito, sagrando-me no sal daságuas do mar, desde que o meu amor superasse as fronteiras dospreconceitos e das limitações físicas, e se tornasse cósmico. Aí, sim,desobrigado do círculo do renascimento físico, poderia baixar àsprofundezas abissais, poderia elevar-me a alturas inimagináveis,poderia conhecer outras moradas do Pai e, a seu serviço, poderiacontinuar a transformar, pelo crescimento, não apenas a Terra...mas todo o Universo. Assim tentou o Rio traduzir o exemplo do Mestre que, nãoobstante toda sua dedicação e conhecimento, não havia alcança-do a compreensão dos homens. 64
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