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Caminho para o mar...

Published by EDITORAS.COM, 2015-10-25 16:21:58

Description: Ao longo de nossas vidas, deparamo-nos constantemente com diversas oportunidades de aprendizado e de crescimento. Na maior parte das vezes estas oportunidades nos passam dasapercebidas. Outras só são assimiladas muito tempo depois, quando adquirimos maturidade suficiente para compreendê-las. E poucas, muito poucas conseguem imediatamente atingir nossas almas. Assim é a mensagem de "Caminho para o mar...".

Escrito com extrema docilidade, "Caminho para o mar..." é uma história de amor - condição primordial para se completar qualquer caminhada.

Keywords: Ficção

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Caminho para o mar... FERNANDO VIEGAS MARINHO



A uma mulher de fibra, raiz e tronco daárvore da vida, que jamais se vergou diantedas intempéries do mundo – NILDA.A quatro bênçãos, frutos de um amor su-blime, que ao tempo de iniciarem sua for-mação como homens já sabiam ensinar econstruir – FERNANDO, SÍLVIO, FLÁVIO eCRIS.A esses e outros RIOS – cuja declinação denomes seria excessiva – que formaram o cau-dal de experiências que, adiante, se relata.

\"Agradecimento especial a dois anjos da guarda: MÁRCIA SOARES – poder místico que realiza sonhos; IASID BEDRAN JÚNIOR – poder fraterno que sustenta conquistas.”

A WILSON TRÓPIA, Mão que me abriu janela para ser instrumento desta singela mensagem.

SumárioPrólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .071. Minha infância... minha história... . . . . . . . . . . . . . . . . . . 092. Seguindo novos rumos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193. Os acordes da natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284. O grande mergulho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

Prólogo Conta-se que ele havia alcançado a iluminação. E o seu conceito dehomem que vencera o mundo extrapolou os limites da sua pequena epobre aldeia. Em pouco tempo, tanto alguns habitantes locais, quanto outroschegados de algures, foram rodeando o Mestre, buscando encontrarorientação em suas palavras e atingir a verdade que liberta. E o Mestre deixou-se possuir por natural entusiasmo: em sua voz eem suas mãos se encontravam os meios que poderiam conduzir aque-le povo sofrido a uma melhoria de vida. Por isso, a seus discípulos fala-va do caminho... e do amor maior que a ele conduz; gratificava-se como que conseguia revelar; relembrava e comentava a sua própria expe-riência, dando-a como exemplo a ser observado; citava atos e palavrasde outros consagrados mestres; ditava práticas ascéticas. Tentava,enfim, estender aos que dele se aproximavam as mesmas bênçãos querecebera do Pai. Sua humildade em apenas servir, no entanto, não o impediu deouvir os conselhos de alguns fiéis que o cercavam e que, a pretexto deauxiliá-lo no desempenho de tantos e tamanhos compromissos,induziram-no a organizar sua nova vida: tempo de meditação; tempode pregação; tempo de atendimento aos necessitados; tempo de des-canso; tempo de cura; tempo de reunião com a cúpula coordenadora,etc., etc. Para tanto, os que lhe eram mais chegados tramaram, pro-puseram e obtiveram delegação de poderes e de responsabilidades. OMestre cuidaria do principal: a iniciação esotérica daqueles de boavontade. A equipe cuidaria do secundário: administraria a nova comu-nidade religiosa; disciplinaria os atos; distribuiria tarefas; arrecadaria 7

fundos de manutenção; limitaria e controlaria o comércio; reservariaos melhores setores para o comércio próprio dos objetos sagradospelo Mestre: suas relíquias, fotos, objetos de uso pessoal, água benta,amuletos, etc; interferiria junto ao poder temporal, para obtenção demelhoramentos da infra-estrutura urbana setorial -ainda que a custode comprometimento eleitoral; faria a triagem dos fiéis e dos pre-tendentes a discípulos, e coordenaria tudo o mais que merecesse aespecial atenção da organização. A aldeia ganhou corpo. Estendeu seu perímetro. Cresceu. Empouco tempo era Vila. Mais algum tempo já assumia ares de cidade...pequena, porém, cidade. O comércio ia de vento em popa. A população tinha febril ativi-dade. A riqueza circulava e aumentava... especialmente paraalguns. O Mestre, embora à margem da quase totalidade dos aconte-cimentos; embora sem conhecimento pleno de tudo quanto à suavolta sucedia, se frustrava. De seus discípulos, grande maioria envolvi-da na administração do hasram, poucos, muito poucos apreendiam oconhecimento transmitido... raros o acolhiam no coração... somenteno intelecto. O conhecimento não era saboreado... poucos, muitopoucos, raros alcançavam o íntimo saber. Dentre seus seguidores apre-sentavam-se repetidores de suas palavras; MAS, RAROS OSDISCÍPULOS COM RESPOSTAS PARA O DESCONHECIDO. A superficia-lidade do compreender e do intelectualizar sufocava a profundidadedo conhecer e do saborear. Tudo o que pretendera deixar para a pos-teridade achava-se achatado na limitação humana. Tudo o que pre-tendera transmitir a todos os integrantes daquela comunidade nãoencontrava ressonância, a não ser no íntimo de alguns poucos discípu-los: nos corações daquela maioria de seguidores tudo não passava deestudada retórica e de requintadas palavras..., porém, vazias, semsabor, sem substância, sem profundidade – tudo não passava de abso-luta artificialidade, resultante da ausência da experiência viva. Poucosseguidores, apenas aqueles raros abnegados, estavam dispostos ao 8

crescimento vertical - do SER. A grande maioria achava-se envolvidacom o crescimento horizontal - do TER. A revolução social a que se submetera a aldeia – e que todosrotulavam de progresso – se tornara uma guerra entre mascates, umadisputa de poder, tudo manipulado pela organização político-religiosa,sempre em nome da ordem e da disciplina. Tal situação, aos poucos, parcialmente, chegou ao conhecimentodo Mestre. A tristeza, gradativamente, corroeu e, afinal, abateu o seuânimo. Não que algo de fora pudesse perturbar-lhe a serenidade deespírito, a paz interna. Mas, tristeza ao perceber e constatar que aganância e o egoísmo dos homens não respeitam nem mesmo a sub-limidade da evolução inspirada na Energia Suprema. Uma madrugada fria, escura, nevoenta, sem estrelas ou luar, foiúnica testemunha de três ou quatro furtivos vultos que, silenciosa-mente, afastaram-se da cidade, tomando rumo ignorado. Nunca mais se ouviu falar do Mestre. Sua voz emudeceu. Jamais, em qualquer lugar da terra, foi recon-hecido. Andarilho, sem pouso ou proteção, errante, incógnito, oMestre passou a distribuir as bênçãos recebidas do Pai - experiênciaque vivenciara, fonte de sua sabedoria milenar – apenas através deatos de caridade, ofertando gratuitamente lenitivo para as dores doshomens. Apenas seu silencioso e incógnito exemplo existiu. Nenhumapalavra... E o objetivo do ensinamento e as metas deixaram de existir,... perderam sentido. Somente o caminho predominou. E sua vidatransfigurou-se em água. Revelou-se em corrente que abrigava vidas,fertilizava o conhecimento, alimentava a harmonia e produzia o amor- porque todos seus atos se resumiam apenas no cumprimento dossagrados desígnios de Deus. Por fim transformou-se em majestoso riode silêncio e produtividade. E fertilizou e enriqueceu o mundo. O seu caminho, a partir de então, tornou-se um caminho para omar! 9



CAPÍTULO 1 Minha infância... minha história De repente a queda! Altura? Nem sei dizer. Sei apenas que não parecia ter fim. A velocidade era crescente.O deslocamento de ar provocava um turbilhão... e meu corpointeiro se quebrava nas pedras e se espargia em gotas multicolori-das, vazadas pela luz iridescente do sol. O vento arrastava-me noar e lançava-me numa cortina de fumaça diáfana sobre o arvoredocompacto que me cercava. O barulho que eu provocava era ensur-decedor, originado do meu embate contra a muralha de rochassobre a qual me despencava. Eu não temia a queda. Eu não resis-tia ao desconhecido. Pelo contrário: senhor do meu destino, pelaminha disponibilidade para a vida, eu permitia que toda a potên-cia do meu corpo batesse firme e forte sobre as pedras, e corresselivre, revolto, formando uma esteira de espuma branca. Havia umfascínio na queda e na corrida. Ambas desenfreadas, livres, natu- 11

ralmente belas. Eu me divertia com tudo aquilo. Fui criado para afelicidade... como todos os seres e todas as coisas o foram. E asquedas e as corredeiras fazem parte da minha vida e da minha feli-cidade. Não havia medo na queda. Há muito aprendera que a realidadeda vida não enseja o medo. Somente a mente humana é capaz decriá-lo. E é capaz de transformá-lo em obstáculo intransponível, emcausa de desespero e agonia, mesmo quando não existem funda-mentos concretos para temer. O homem é capaz de criar a ilusãodo medo, e é capaz de senti-lo como sendo algo palpável, visível,sufocante, real e irremovível. E sofre. E se esquece da felicidade deviver, muito embora nascido para ser feliz. Minha queda livre, logo após o grande embate com a muralhade pedras, teve prosseguimento por um longo trecho de corridasfortes, de agitação violenta, de força indomável. Não era a primeiravez que eu despencava de muito alto, numa manifestação de ener-gia e responsável busca do meu caminho. Já anteriormente, pordiversas vezes, havia experimentado aquele mesmo frenesi que asurpresa causa, quando se sente, no âmago, todo o poder dodesconhecido. Todo desconhecido é geralmente temido. Menospara quem tem respostas para ele. Respostas que vêm do âmago;que vêm da serenidade interior. Como de hábito, logo a seguir eu retomava o meu caminho depaz, de adaptação à vida, em busca dos meus objetivos maiores esublimados, que se cristalizariam na minha realização. Mais umavez a natureza me dizia, na plenitude de sua sabedoria, que asquedas não são o fim. São, apenas, simples lições demonstrativasda perenidade da vida, a ensinar persistência, obstinação nos obje-tivos, caminho que conduz à felicidade. Queda é, tão só e como jádito algures, alavanca para o sucesso. Eu sempre fui o retrato da vida. Transmito nas minhas quedas asdores; nas minhas corredeiras os temores; nas minhas curvas as 12

buscas; nos meus remansos a meditação; nas minhas relações coma fauna e a flora os amores. Tudo o que a vida dá e tudo o que elarecebe retratados em mim. Desde cedo entendi que as dores sãoatalhos que nos repõem no caminho da evolução. Também já haviaentendido que os temores só existem no consciente humano, assu-mindo a proporção que se lhes quiser emprestar. Esfumam-se, seencarados de frente. Desde cedo entendi que a busca da minhaevolução estava na introspecção dos meus remansos e na atençãoaos meus amores. Cumprir minha missão, meu trabalho, dandovida à fauna subaquática, e fertilizando a flora ciliar seria a subli-mação do amor. E assim agindo, meu caminho estaria abençoadopelo Pai e a minha realização estaria completa. Meu objetivo, soube-o desde tenra idade, era o mar... e o meucaminho era divino e único: somente eu poderia percorrê-lo.Somente eu poderia aprender a criá-lo e com ele aprender a viver.Somente eu poderia experimentá-lo e saboreá-lo. Somente eupoderia crescer e evoluir... desde que soubesse aproveitar minhasvivências. Este o ensinamento que eu guardava e alentava desdemuito. Desde pequenino... desde minha infância. Minha infância... minha história... Eu era um simples olho d'água... nada mais. Nasci como nasce um sem número de coisas na natureza: semalarde, sem aparatos, sem festas... Apareci em uma grota de verde-musgos, numa encosta de montanha perdida em mata densa, cer-cado de flores da primavera. Nasci no berço da vida, onde a paz éo silêncio, e onde o silêncio grita pela serenidade, e esta se expres-sa na leve brisa que vem farfalhar a densa vegetação que me abri-ga. E uma das primeiras coisas que aprendi foi a lição de que eraabsolutamente importante adaptar-me à minha realidade; nuncacriar ilusões; aceitar o meu curso como ele realmente é. Mais tardevim a saber que os homens, modo geral, não entendem e nãoaceitam adaptar-se à realidade. Criam ilusões e sofrem por elas. O 13

homem, individualmente, disseram-me pescadores, sempre pensaser o centro do mundo. Tudo gira ao seu redor. Se ele erra, deveencobrir o erro para preservar sua imagem. Se ele acerta, devealardear o acerto, para que todos possam reconhecer-lhe os méri-tos. E assim, iludindo-se a si mesmo, passa a viver uma vida artifi-cial de ilusões que o massacrarão a qualquer tempo, em qualquerlugar. O homem se esquece de ser autêntico, de ser verdadeiroconsigo mesmo. Esquece a lealdade – princípio-mãe e único desustentação das relações humanas. Soubesse o homem ser leal,não se trairia e jamais o faria a outros. Para mim, todavia, foi este um dos primeiros ensinamentos.Nunca criar ilusões. Os obstáculos intransponíveis assim devem serreconhecidos, sem gerar mágoas ou culpas. Há sempre uma alter-nativa... onde uma porta se fecha, sempre há uma janela comosolução. Por isso que o meu caminho era de paz – porque origina-do de simples aceitação das realidades da vida. Nasci cantarolandominha corrida, na simples alegria de viver. Comecei a percolar,lentamente, aceitando o solo como ele era. Pingo a pingo... gota agota, fui escoando, conhecendo o musgo verde e o solo sedento.Caí... corri... estagnei. Engordei em alguns pontos. Desci algunsdegraus. Escorri. Caminhei por trilhas desconhecidas, formandoem alguns lugares poças onde pequenos animais da floresta vi-nham saciar sua sede. Recebi outros irmãos que se integravam emmim e me tornavam maior. Cresci. Onde formara simples poçaspassei a formar poções. E, caminhando, sempre caminhando, des-bravei campos, rochas e matas. Aproximei-me de aldeias e vilas. Eme surpreendi com a forma com que algumas crianças mergu-lhavam em mim, nas primeiras aventuras de seu aprendizado deflutuarem no meu corpo. Havia muita energia em mim. Sabia que eu não poderia parar. Interromper, temporariamente,a marcha, sim; isto é da natureza. Há sempre o momento do des-canso. Parar, nunca! Parar é ter medo do amanhã. É perder a opor- 14

tunidade de desfrutar a beleza do desconhecido, por medo da sur-presa. Parar é involuir, quando tudo tende a avançar, a crescer, aevoluir e a se realizar. E meu destino era minha realização. Não pareiem momento algum. Tive dificuldades de avançar, sim. Mas, nen-hum obstáculo teve força bastante para fazer-me desistir do meucaminho. Nunca agredi o chão para caminhar. Pelo contrário, sacieisua sede e sua aridez e, contornando ou alagando obstáculos,cumpri meu dever de fertilizar o solo, realizando os desígnios do Pai. Cada instante tinha a beleza do momento desfrutado. Nuncachorei o ontem, porque era passado. Nunca temi o amanhã,porque era futuro. E a minha felicidade estava no presente. Estavano conhecimento de cascalhos soltos, fáceis de serem abraçados,e em rochas quase intransponíveis, que exigiam minha determi-nação de superar ou minha habilidade de contornar. Minha felici-dade estava no desafio do momento que eu sempre entendi comoalento para crescer, e não como fonte de lamúrias inúteis e incon-seqüentes, ou razão de críticas à má sorte. Nunca me dei por sa-tisfeito com as conquistas do caminho que eu criei e no qual metemperei; por isso, sem chorar ou vangloriar-me do passado, sem-pre me ocupei do presente para solucionar os impasses, na buscado meu objetivo maior: o MAR. Beijei flores; fui sugado pelo sol. Sempre agradeci a ambos os fatos como se fossem bênçãos.Beijar flores pelo caminho deixou-me perfumes e a gratificantesensação de harmonia resultante do compartilhamento da vida.Vaporizado pelo sol, não me senti atacado, agredido ou violenta-do. Na verdade, compreendi-o logo, estava alimentando minhaprópria fonte de nascimento e de crescimento. Agressão, paramim, é apenas fonte de reflexão, busca da razão do ser. Não é basede disputa ou de revide. E isto deveria dar-se também com oshomens, embora a quase totalidade deles não o entenda. Valenteé aquele que não briga; covarde é quem se deixa cegar pela ira epratica atos irrefletidos que certamente irão pesar-lhe mais tarde, 15

na consciência. O primeiro é vencedor de si próprio. O segundoestá derrotado pelos baixos instintos de sua natureza animal.Agressão não exige revide. Só a mente humana é que torna insu-portável a ofensa sofrida. Revida-a e perde a razão. E arrepende-sede seu excesso, porque não há revide sem excesso. Se não a revi-da, julga-se um fraco. Em qualquer caso a mente humana alimen-ta e revive as imagens do infortúnio ocorrido lá atrás no tempo, ereabre, a cada novo instante, a ferida da agressão, como se estafosse atual, ocorrendo no momento da recordação. E sofre ohomem, mais profundamente, a vergonha do abuso sofrido. Echora a culpa pelo eventual excesso do seu revide, ou a lacerantedor pela sua presumida fraqueza, ou pressuposta covardia em nãorevidar, realçando seu orgulho ferido na falta de virilidade demons-trada. O homem é escravo da mente. A grande maioria não sabe perdoar e não sabe esquecer. Vivero presente é a solução. Viver o passado ou o futuro é ilusão. Eu não posso retornar à alegria ou à tristeza que me ocorreramna última curva do meu caminho. Se assim é, por que devo revivero passado? Por que chorar suas tristezas? Por que me empolgarcom suas alegrias? Tudo está perdido, passado. Tudo está na curva,lá atrás, do meu caminho. Guardar lembranças mortas é carregarpesado fardo inútil. É viver no passado e é perder o presente. E é,obnubilado pelas cinzas do ontem, renegar a felicidade que o hojeme oferece. Usar a experiência do ontem para não repetir erros,sim... O crescimento de cada um exige que ele guarde as lições eas aproveite. Isto não significa, no entanto, ruminar o passado. E como todo ser que vive a ingenuidade e a confiança total dainfância, eu fui crescendo: fui engatinhando meus passos pelocaminho que eu abria, que eu desbravava na medida da minhacapacidade e no continente dos meus limitados conhecimentos. Talcomo uma aranha. Eu abria a minha estrada e a percorria, tal comouma aranha lança sua teia e por ela avança. E aprendi uma outraverdade em minha vida: o caminho de cada um somente ele cria e 16

somente ele percorre. E a sua vivência não se transmite a ninguém,porque somente quem vive a experiência, somente quem saboreiaa experiência, a absorve e com ela se edifica. As informações querecebemos na vida trazem o conhecimento; mas, não trazem,cumulativamente, a sabedoria. Sabedoria somente chega depoisque nós aplicamos aquilo que ficamos conhecendo. Mas, é semprenecessário ter ouvidos de ouvir e olhos de enxergar, para acolher ainformação, e transformá-la, mais tarde, em conhecimento. Nãobasta acumular informação. O intelecto é capaz do arquivamento.Mas, só a vivência, só a experiência direta, só o saborear enriquecea consciência e traz sabedoria. O arquivamento é erudição; aconsciência é sabedoria. Falando sem modéstia: na minha infância eu já guardava muitaslições de vida que, soube-o mais tarde, eram essenciais para aminha evolução e para a minha realização. E, dessa forma, eu ia vivendo a minha fase pueril com a mesmanaturalidade com que nasci. Despretensiosamente, sofrendopequenas quedas que me pareciam grandes; correndo em veloci-dade por longos trechos; acomodando-me em amplos remansos.Beijando flores e balançando galhadas. Irrigando a terra e vendocrescer, nas margens do meu leito, arbustos e arvoredos que setornariam mais tarde frondosos espécimes. Eu me aventurava por caminhos desconhecidos, às vezes semsaída. Retrocedia... buscava o que me fosse natural. Nunca afrou-xei o denodo com que devia buscar meus objetivos; nunca aceiteio desânimo. Mas, também, nunca teimei, por orgulho, vencer umobstáculo nitidamente intransponível. O equilíbrio da vida está nobom senso. Assim como o bom senso está no equilíbrio. Qualquertendência para um ou outro lado de uma questão é escolha. Emtoda escolha está o julgamento. E em todo julgamento está apreferência. Na preferência se encontra o desequilíbrio, porquefundada nas distorções da luta pela vida. O bom senso sempre merecomendou a aceitação da vida. Satisfiz a sede de animais sil- 17

vestres. Protegi, envolvendo arbustos, ninhos de pássaros.Reconheci as barrancas como limites do meu leito. Abriguei afauna subaquática. Formei nuvens e fiz chover. E sempre medeslumbrei com tudo isso – novidades que, por pequenas que fos-sem, continham as lições da vida. E eu estava ali para aprender. E eu me fortalecia. E eu crescia em volume e força, na medidaem que, de forma aprazível e sem qualquer compromisso, desco-bria novos membros do meu meândrico corpo que vinham, comoirmãos menores, integrando-se em mim, partilhar as mesmasexperiências. Vi misérias humanas em minhas barrancas. Ouvichoros e lamentos. Entendi a revolta do homem e sua constanteinsatisfação pelas limitações que lhe são impostas pelos descom-passados regramentos sociais ou por seus próprios temores. Roleipor regiões agrestes. Mas, apreciei paisagens de incomum beleza.Ouvi risos e também louvores ao Criador de todas as coisas.Crianças fizeram barulhentas algazarras em mim. Borboletas feste-jaram minha passagem. Pássaros fizeram vôos rasantes por sobremeu corpo; tocaram-me, freqüentemente. De colorido variado,aves habitavam minhas margens, intuindo em mim fonte de ali-mento e no arvoredo circundante a segurança de suas vidas. Cedo entendi que viver é assim: é estar consciente do presente.Não é voltar ao passado e nem esperar pelo futuro. Viver é estar aquie agora, mantendo a consciência de que a felicidade não dependede qualquer fato externo. Nada de fora pode fazer ninguém feliz ouinfeliz. Pode alegrar ou entristecer o momento. Nada mais que isso.Jamais busquei efemérides da paixão – sonhos vãos dos sereshumanos. Bastava-me viver. Que significam poder, riqueza ou glóriadiante da felicidade? Aquelas prendem; esta liberta. Por isso quedevemos exaurir os momentos da vida, sugar os ensinamentos eaplicá-los para que eles se tornem naturais e se transformem emsabedoria. Isto é viver. Isto também é sorte – disse um pescador, umdia, que sorte é quando a competência se encontra com a oportu-nidade. Acreditei nele. A sorte, e eu a tenho, me faz feliz. 18

O meu mundo era de simples beleza e de absoluta confiança...porque eu sabia que os desígnios do Pai são sempre e afinalcumpridos. E se meu destino era o mar, cumpria-me executar omeu trabalho, fertilizando o solo, formando chuvas, multiplicandoa flora, maturando frutos, abrigando e alimentando a fauna su-baquática, transportando riquezas, e muito mais. E assim,cumprindo minhas tarefas, sem esperar gratidão ou recompensas,eu caminhava em paz e em harmonia com a minha consciência e,por conseguinte, feliz. Porque é felicidade realizar, sem ambicionarqualquer recompensa, aquilo que devemos ou aquilo que nospropomos executar. Experiência notável eu tive ainda na minha infância. Naqueletempo eu já ouvira falar de mim de vários modos. Aliás, os homenstêm mania e necessidade de rotular tudo que vêem. Somenteassim é que pensam conhecer os objetos e outros seres. Vêem umaflor e logo perguntam o nome. E assim que lhes respondam, elesse dão por satisfeitos, como se já lhes tivessem aspirado todo operfume, tivessem se deslumbrado com a maciez aveludada desuas pétalas e tivessem se extasiado diante da absoluta perfeiçãoda sua textura e formação elementar. E, no entanto, a respostanada diz, nada informa. O nome serviu para rotular, mas não paraconhecer. Repito: naquele tempo eu já ouvira falar de mim de váriosmodos: chamaram-me fonte, arroio, regato, córrego e riacho.Deram-me nomes, na medida em que eu crescia. Ninguém, contu-do, eu suponho – ou apenas alguns poucos, presumo – buscou co-nhecer-me a alma e receber o ensinamento das verdades que eu,desde pequenino, vinha acumulando. Perdoem a digressão. Na verdade eu queria falar de uma expe-riência notável que tive ainda na minha infância: a vida dentro demim. Na medida em que eu tomei um pouco de corpo, inúmerosseres passaram a habitar-me. 19

E era, e é gratificante saber que dando sem esperar gratidãoeu me realizava em ser útil e em poder servir. E a vida em mimera, como de resto a vida de todos os seres animados ou inani-mados, simplesmente divina. E eu percebia, integralmente, quetodos os seres que em mim habitavam eram puros e naturaiscomo a própria vida nos ensina a ser. Observando-os concluí quetodos esses seres vivem em paz. Não se deixam levar por reaçõesinsensatas. Saciam sua fome, quando famintos, sem ódio; nãomatam outros seres pela volúpia do ato. Não é o matar o fim queos impele. Suas atitudes são de preservação própria: matamquando se sentem acuados ou quando famintos. Nunca se dei-xam conduzir pela ambição mesquinha do ter. Somente o homemé que, ainda, não aprendeu a viver... talvez por sua própria inca-pacidade de ser natural, resultado de sua presunção de serinteligente. Por isso a sua violência. Por isso a necessidade de ter,reservadamente, tudo. Por isso sua disposição de matar paraenriquecer; porque não consegue ser apenas natural. Uns,grande maioria, se ocupam em ser ricos, pensando que a riquezamaterial é condição intrínseca da felicidade. Outros, pequenonúmero, se ocupam em ser felizes – contentando-se com o quetêm, embora trabalhem para outras conquistas materiais –seguros de que a felicidade produz a riqueza, tanto a interior,quanto a exterior. Eu, todavia, me impunha a obrigação de aprender com a vida.Para alcançar meu objetivo maior – minha realização: o mar – eudevia estar preparado para nunca deixar escapar a oportunidadede aprender qualquer lição. Por isso a minha disponibilidade.Sempre estive disponível com a necessária humildade para tudo,aceitando os fatos como realmente são, e não como eventual-mente eu poderia desejar que fossem. Tendo aprendido a tudoaceitar, integralmente, sem julgamento ou distinções, minha vidacorria com absoluta naturalidade. Eu me abalava livre, aberto,solto, sem qualquer ambição, sem buscar ou pretender riquezas ou 20

poder. Por isso a minha felicidade. Nada de fora me afetava. E afelicidade estava dentro, porque fui sempre conduzido e ensinadoa viver apenas o momento presente. O ontem estava longe, nacurva lá atrás, e não poderia ser vivenciado hoje. O amanhã nãoera chegado... e eu não poderia conhecer, hoje, as terras, o ca-minho, o leito, as margens do amanhã. O ontem era lição; o ama-nhã é ilusão. Vivendo o aqui e o agora, eu não me deixava abaterpelo fardo morto, alegre ou triste, do ontem; e não me deixava en-levar por ilusões vãs do amanhã. E, correndo livre, recebia o que se conceituou designar “irmãosmenores” – que nada mais são que membros do meu longo corpo– que vinham partilhar comigo a felicidade da vida simples ecomum. E os homens que, como já disse anteriormente, gostam e neces-sitam de rotular tudo o que vêem, chamaram-me RIO. 21

CAPÍTULO 2 Seguindo novos rumos Chovia muito em minhas cabeceiras. O meu volume crescia. Eeu rugia, amedrontando homens e animais. Meu corpo se lançavasobre pedras, carreando materiais e espargindo gotas por força dosventos. Eu lambia as raízes das árvores e das matas ciliares, arran-cava o solo, derrubava barrancas, engolia a vegetação... o meu ras-tro era de destruição e morte. Meu rosto, avermelhado e turvadopela lama que eu próprio erodia, estava transfigurado. Dois pescadores que haviam se aproximado de mim recuaram,atemorizados. Desistiram do seu intento inicial de pescar em min-has águas, e fugiram, em seguida, amaldiçoando minha revolta.Para eles a minha violência continha vingança. Era como se eutivesse a capacidade de reagir aos maus- tratos que muitos doshomens me infligem, a cada dia e, em parceria com a borrasca, mevingasse dos homens numa onda avassaladora de destruição e 22

morte. Para aqueles arredios pescadores eu rugia de ódio, e proce-dia como se pretendesse vingar-me de tudo e de todos, por razõesque guardava no meu recôndito. Não me conheciam aqueles homens. Chamavam-me pelo nomerotular: RIO. Mas, não me conheciam e não me conheceram. A natureza não reage, não se revolta e nunca se vinga. Essas ati-tudes só se contêm na mediocridade do ego humano. Eu nuncatrago ódio em mim. Não acolho um ser vivo em minhas entranhase o mato, asfixiado, por vingança ou pela simples maldade dematar. Apenas nunca nego a realidade. Eu não escolho; eu nãoprefiro; eu não discrimino. Eu não sou manso ou turbulento; nãosou forte nem fraco; não sou bom nem mau; não sou belo nemfeio; não sou bruto, não sou suave – pois que todos esses qualifica-tivos se situam na dualidade criada pelos homens apenas para dis-putas acadêmicas. Eu sempre fui tudo isto, e muito mais. Ou ainda:nunca fui tudo isto e nem o serei. Na verdade, simplesmente nãosou... sim, exatamente assim: não sou. Da mesma forma que nãotenho princípio e nem tenho fim – pois que meu princípio não éaquela grota fria de musgos verdes em que brotei, assim como omar não representa o meu fim – nenhum ato meu sou eu que opratica... o ato existe. Mas, nunca está maculado pelo dolo, pelavontade mesquinha, pela má intenção, pela ira, pelo ódio, pelodesejo de vingança ou pela revolta. Nunca me rebelo. Sou, apenas,natural. Nunca me revolto... nunca. Nunca nego a realidade. Eunão escolho. Na escolha sempre está o julgamento. E eu não julgo.Apenas aceito tudo como é. Na aceitação está um dos segredos dafelicidade. Os que estão disponíveis para a realidade não exigem atransformação do mundo; agem naturalmente, praticando os atosque lhes são próprios... não se ocupam dos atos que somente ou-tros possam praticar ou que não possam ser praticados... e aco-modam-se na sua paz. Ouvi de um ainda jovem capitão da Aeronáutica, piloto desupersônico, reformado por cegueira advinda de um pequeno aci- 23

dente aéreo, e que, um dia, lançava iscas em minhas águas, delei-tando-se com o prazer daquela solitude, a seguinte reflexão comu-nicada ao companheiro de bordo: \"Deus escolheu-me, dentre os pilotos da Força Aérea Brasileira, para a cegueira total. Tantas vezes concedeu-me a glória de ultrapassar a barreira do som e, agora, enseja-me a oportunidade de vencer a barreira da luz.\" O jovem piloto, na sua paz de espírito, seguramente não se ocu-pava, no momento daquela confissão, apenas da pesca de umpeixe... ato físico. Certamente já se tornara, também, há muito,como discípulo livre dos ensinamentos do Cristo, um pescador dealmas. Pois somente a Energia Superior pode dar a um jovemtamanha resignação, tamanha capacidade de perdão. Ele soubeperdoar a vida, perdoar a agressão sofrida e, principalmente, soubeperdoar-se - poucos homens teriam tamanha aceitação do destino.Ele, seguramente, nunca precisou de consolo. Ser vítima, paramuitos, é desesperador; menos para aqueles que conhecem aexata dimensão do SER. Eu também, como disse, nunca me revolto... nunca. Revoltar-me poderia quando os homens lançam em minhas barrancas o lixoque produzem, ou quando me impingem a obrigação de engoliresgotos sanitários, no acobertamento da desídia política que insisteem ignorar a essencialidade das estações de tratamento. Revoltar-me poderia quando ignoram a flora – fonte de purificação do arque respiram, e ceifam matas, especialmente as ciliares, e as trans-formam em carvão e em dinheiro. Revoltar-me poderia quando mevejo atravessado por redes e, impotente, constato que a ganânciados homens aniquila peixes pequenos, não-comercializáveis, quese debatem, presos em malhas finas, na desesperança de vidasférteis, comprometendo a perpetuação das espécies. Revoltar-mepoderia quando rasgam meu leito, à cata de riqueza morta, nogarimpo criminoso, lançando-me substâncias químicas tóxicas queme alteram a composição e envenenam a fauna. Revoltar-me,enfim, poderia, em protesto grandiloqüente, para que os homens 24

compreendessem que as agressões contra a natureza são energiasque ecoam, refletem-se, e retornam à origem e causam maioresprejuízos e males a eles próprios. O assoreamento das águas cor-rentes; a extinção das matas; a diminuição das espécies que aindahoje constituem alimento salutar para a raça humana; a poluiçãodo ar; a esterilidade da terra; as alterações climáticas e tantos out-ros males poderão ser, lamentavelmente, no futuro, a causa e arazão da extinção da humanidade. Permita o Grande Construtordo Universo que uma raça mais inteligente de homens sobreviva,ou outra venha habitar este planeta, respeitando a natureza. Revoltas, todavia, não fazem parte da minha vida. Meu camin-ho é de paz, é de amor. Meu caminho é de doação, e o meu sernão se macula com misérias. Já aprendi a perdoar – que se resumeem não guardar mágoas ou ressentimentos contra quem ou o quequer que seja que me agrida ou ofenda. Por conseqüência, jáaprendi a me perdoar – que se resume em não alimentar, namemória, a agressão ou a ofensa sofrida, enterrando-a na curva dorio, lá atrás, onde não mais voltarei. Por isso não me revolto... e não guardo revoltas. Eu não ofen-do... e não guardo ofensas. Não me sinto agredido... e não guar-do agressões. Igualmente, não canto sucessos... e não guardo ale-grias. Não me ufano de eventualmente praticar o bem... e nãoguardo orgulho. Na verdade, não carrego peso morto do passado,bagagem estéril e inútil porque já realizada. Apenas tudo vejo esempre me calo. E sigo meu rumo, no silêncio dos meus remansosou nas canções das minhas corredeiras, ocupado em servir,cumprindo minhas tarefas, meus deveres, carregando apenas feli-cidade. Felicidade farta, disponível para quem quiser dela beber emminhas águas. Chuvas mais intensas fazem-me crescer. Nessas ocasiões eu meaventuro por caminhos diversos, que não aquele de paz, delimitado, 25

que caracteriza a minha vida. E, aí, eu me avolumo. Salto fora domeu leito. E crio lagoas marginais ao longo do meu curso, nelasjogando alevinos de todas as espécies, ao mesmo tempo em quebusco peixes maiores, criados naquelas represas desde a última aven-tura. Este é o processo natural de perenidade da vida subaquática,embora os homens sempre varram as lagoas marginais, à cata deriqueza fácil. Mas, cuidar da perenidade da vida subaquática é, ape-nas, mais uma das minhas missões; missão que cumpro com alegria,sentindo-me gratificado pelo simples fato de participar da vida, econtentar-me com o dever cumprido. Missão que, como todas asoutras que o Todo- poderoso me confiou, desempenho com afinco,com determinação e com vontade definida de sempre produzir maise melhor, sem esperar qualquer recompensa, qualquer aplauso,qualquer gratidão ou qualquer reconhecimento. Na verdade, lamento ater-me a fertilizar terras, apenas numaestreita paralela ao longo do meu curso. Gostaria de fertilizar omundo inteiro, ensejando às mãos calejadas dos agricultores umaprodução permanente e maior. Desejaria ver crescer, em solidez eperfeição, sem pragas ou doenças, todas as árvores dessas terrasque do meu leito avisto, pois que representam alimento e abrigopara os pássaros e animais silvestres; significam ar puro, vida paratodos os seres; espalham beleza no agreste e enternecem oscorações dos homens. Desejaria fortalecer todas as fontes de águapura, alimento essencial à vida sobre a terra. Desejaria transportarmais e mais riquezas, realizando as ambições dos homens que,assim, satisfeitos pela dignidade de vida conquistada, deixariam delado a prática de atos de violência entre si e outros predatórios danatureza. Gostaria de poder servir além, muito além daquilo que meestá reservado – mesmo porque, outra verdade inconteste, quantomais se dá mais, se recebe. Por outras palavras: ir além de qualquerreconhecimento, ou de gratidão, ou de remuneração, ou de simplesaplauso, é o verdadeiro enriquecimento do homem. O conhecer e osaber são mais importantes que o simples receber pelo que se faz. 26

Gostaria, por isso, de realizar tudo quanto faço, e muito mais.Gostaria de poder exceder toda minha limitação, ensejando atodos participar de tudo quanto tenho e, especialmente, de tudoquanto sou. Na verdade, esta é uma das mais preciosas lições devida que podemos receber: não dê apenas aquilo que lhe sobra;partilhe, sim, o que você tem... mas, principalmente, PARTILHE OQUE VOCÊ É. E se assim eu proceder, se mais de mim eu distribuir entre osque me cercam, o meu trabalho será abençoado e os seus resulta-dos serão sempre multiplicados, e a fartura será inevitável. Se assimeu proceder, maior será sempre a glória de Deus, porque eu sereio servo inútil que realiza os desígnios do Pai, e poderei, afinal, inte-grar-me ao Todo, consumir-me no mar, identificado com o bemmaior que emana da Energia Suprema. Um folheto correndo sobre mim, lançado pelo vento que ocatou não sei onde, trouxe-me a notícia de convocação de umaclasse de trabalhadores para um movimento grevista, em busca demelhores salários. Tentei entender a proposta. Não consegui; talvezporque nunca tenha comparado as agressões que sofro com ainjustiça social que muitas vezes afronta a dignidade humana. Consigo entender a revolta. O homem é, regra geral, tão egoís-ta e mesquinho, que quando alguém lhe diz que ele está sendoferido no seu direito, ele se revolta. Revoltas fazem parte damediocridade humana. A convocação grevista me fez pensar. Minha experiência medizia que a greve causa, pela improdutividade, prejuízos aoempregador; se o empregador sofre prejuízos, tem diminuída suacapacidade de saldar seus compromissos financeiros e, por decor-rência, pode vir a ter dificuldades de melhor remunerar seusempregados. Se sobrevém uma relativa instabilidade financeira,como poderá o empregador atender às reivindicações de melhoressalários? 27

E aí, nessa linha de raciocínio, concluí que melhor seria traba-lhar mais, muito mais, além do salário que estava ajustado. E eupoderia, honestamente, reivindicar maior salário, porque ele resul-taria da produtividade. Concluí, ainda, que se os homens agissemsegundo leis naturais, aqueles que detivessem maior lucro o dis-tribuiriam, pelo menos em substanciosa parte, entre os que o pro-duziram... e a justiça social se faria com naturalidade. A justiçasocial não depende e não pode estar condicionada às leis elabo-radas pelos homens – porque estas vêm marcadas pelas preferên-cias e julgamentos de seus autores ou, muitas vezes, eivadas pelasfragilidades morais daqueles que as instruem. O casuísmo sempreprevalece sobre os interesses e direitos da comunidade. Antes de ser preparado para “vencer na vida” – neste conceitoincluído, além da busca insana de poder, riqueza e glória, o con-sumismo exacerbado – deveria o homem ser educado para a felici-dade. Felicidade que cada um carrega dentro de si, independentedo que vem de fora. Viver é estar consciente do presente. Não émanter os olhos no passado – lamentando desacertos ou aplaudin-do sucessos. Também não é se projetar no futuro – esperandosucesso ou esconjurando desacertos. Viver é estar aqui e agora. Éaproveitar cada momento para o crescimento próprio. Aprendendocom o que passou (enterrando o fardo) e aplicando o conhecimen-to para ações futuras. É permitir que a experiência ilumine o seucaminho. Sempre consciente de que a felicidade está dentro decada um, e que não se deve permitir que ela seja perturbada porqualquer ato ou fato que venha de fora. Chorar o que nos ofendefísica ou moralmente, ou repudiar as dores comuns do cotidiano,tudo faz parte da vida. Aplaudir e vibrar com os sucessos tambémfaz parte da vida. Ambos, contudo, são fardos que devem serenterrados, para que apenas reste o conhecimento. Conhecimentoque aplaina nossa estrada, e que nos torna mais tolerantes, maisamenos e mais disponíveis para a vida. E que pode, se absorvido,experimentado e saboreado, tornar-se sabedoria de viver. 28

Felicidade se exprime na harmonia com tudo e com todos; onde otrabalho é prática de amor, antes mesmo de ser fonte da própriasubsistência; onde o trabalho é expressão de produtividade, e nãosimples obrigação a ser cumprida. Tudo que se faz na vida há deser feito com amor. Há que se amar aquilo que se faz, assim comohá que se fazer aquilo que se ama. Somente nessa interação com-pleta do amor-fazer é que o trabalho dignifica o homem. E este seimuniza das vãs filosofias que envolvem o TER, porque é capaz dever o vazio das intenções, a falsidade dos objetivos e a desnecessi-dade do abuso. Será tudo isto apenas sonho de um Rio? Serão as estórias dacarochinha, que sempre pregam a vitória do bem sobre o mal, tam-bém apenas sonhos do Rio? Será possível que o arvoredo domundo rejuvenesça? Será possível que a bondade impere entre oshomens? Os dois camponeses caminhavam com a natural displicência dequem nada tinha por fazer. O sol da tarde, tombando sobre ascopas das árvores, projetava seus raios em apenas parte do meucorpo. Eu corria, mansamente, já bastante sombreado, na mesmadisplicência daqueles homens. Eu também nada tinha por fazerque não fosse naturalmente feito; ou seja: os meus atos eram esão inerentes à própria vida. Eu faço, nada fazendo, enquantovivo. E assim, rumorejante, caminhava por meu curso, tranqüila-mente. Eles se aproximaram de mim. Traziam caniços e embornais.Sentaram-se na minha barranca, junto a um remanso que eu for-mara; prepararam suas tralhas e lançaram anzóis em minhaságuas. O retesamento de suas linhas indicavam a presença de peixes.Tiraram de mim alguns espécimes, que reluziram aos últimos raiosdo sol poente. Jantar garantido. Durante todo o tempo conver-savam. Eu ouvia. 29

Defendia, um deles, a tese de que a vida lhe era madrasta. Osolo não lhe respondia em fertilidade. Seu corpo pesava, o esforçoera-lhe árduo, e o trabalho não rendia. A chuva não lhe chegavano momento certo: se vinha, ameaçava melar e fazer perder o fei-jão que já maturara; se não vinha, deixava de germinar a sementede milho recém-plantada. Os pássaros comiam os melhores frutos.A caça era, a cada dia, mais arisca e rara. O rio não lhe dava o ali-mento farto, necessário e melhor. E, por acréscimo, ainda tinhaque tolerar os janotas da cidade que, com barco a motor, rica tra-lha de pescaria, com varas e carretilhas importadas, furtavam-lheos melhores peixes. Seu mundo era sombreado pelas trevas da revolta e da inveja.Seu negativismo atraía as situações que não gostaria de vivenciar. Contra-argumentava o outro, porém, que a inveja e a ambiçãonão conduziam a lugar algum, a não ser ao inferno da inquietação.Cabia-lhe trabalhar com afinco, sem medo e sem preguiça, ale-grando-se com o rio, desfrutando sol e chuva, acreditando nasorte, confiando no sucesso, seguro de que o Pai não abandona ofilho que a Ele se entrega. Cabia-lhe cumprir sua parte, semesmorecimento, certo de que a vida responderia a todas as suasnecessidades. E ainda quando não houvesse resposta, deveriaacreditar no sucesso, começar tudo de novo, sem esmorecimento,porque tudo no mundo somente acontece para o nosso bem.Mesmo que, à primeira vista, pareça-nos negra sorte e extremomal, no mínimo será lição de tolerância e submissão à vontade doSenhor do Universo. Maioria das vezes, contudo, aquilo que con-ceituamos indesejável, revela-se depois fonte de nossa evoluçãoespiritual e enriquecimento moral. Quem assim retrucava, nada ambicionava e nada recusava.Tudo aceitava e agradecia... venturas e tristezas. Seu positivismoatraía tudo quanto de bom lhe acontecia, a todo instante, porquetoda a energia do universo respondia-lhe em amor. 30

Um vivia encharcado de desânimo, carregado de revolta, mas-sacrado pelo pessimismo. O outro tinha seu mundo iluminado pelaconfiança, satisfazendo-se com o pouco, sem se comparar ou seimportar com quem tinha muito. A serenidade de seu comporta-mento indicava paz interior. Celebrei o acontecimento. Empurrei,com minha correnteza, um belo exemplar, de nobre espécie, nadireção do anzol do otimista. A lição de vida se impunha. Eranecessário que mais uma bênção lhe indicasse que o seu caminhoera o melhor. Era necessário que o pessimista sofresse mais umador, aproveitando-a para o seu crescimento... ou para consumir-sena inveja e tornar maior o seu inferno telúrico. Quem não aprendepelo amor, somente pode compreender o mundo, crescer e evoluirpela dor. E quem escolhe o caminho, graças ao livre arbítrio que oPai aos homens concedeu, são eles próprios. Em seguida corri, sorriso matreiro como uma criança travessa,agradecendo ao Todo a minha paz. E me lembrei da \"Ação deGraças\", pronunciada por Michel Quoist, escrita numa página quecorreu sobre mim, e que eu nunca mais esqueci: “É maravilhoso, Senhor, ter braços perfeitos, Quando há tantos mutilados! Meus olhos perfeitos, quando há tantos sem luz! Minha voz que canta, quando tantas emudeceram! Minhas mãos que trabalham, quando tantas mendigam! É maravilhoso voltar para casa, quando tantos não têm para onde ir! É maravilhoso: amar, viver, sorrir, sonhar, Quando há tantos que choram, odeiam, revolvem-se em pesadelos, mor- rem antes de nascer. É maravilhoso ter um Deus para crer, Quando há tantos que não têm o consolo de uma crença. É maravilhoso, Senhor, sobretudo, Ter tão pouco a pedir e tanto a agradecer.” 31

CAPÍTULO 3 Os acordes da natureza Pescador tem cada estória... dizem que mentirosas. Posso afir-mar que, no mínimo, criativas. Engraçadas umas; melancólicas ou-tras. Profundas outras mais. Lembro-me de uma conversa que presenciei: vi e ouvi com esseslargos e informes olhos e ouvidos que o mar, um dia, há de engolir,de três pescadores comodamente aboletados em confortáveiscadeiras, dentro do “Eugenia” – um possante barco a motor pin-tado de azul. Naquele dia o sol se impunha em toda sua exuberân-cia, não obstante o clima temperado. A paisagem, esplendorosa,criava matizes de variadas e harmônicas cores: o verde da florestacircundante se incrustava no azul celeste; e o horizonte exibia levesnuvens afogueadas pelo sol, num quadro de incomparável e fasci-nante beleza. O mundo ali respirava paz. 32

O diálogo era descontraído. Falavam sobre as ocupações nor-mais da vida. E, afinal, concordavam que o julgamento que todosos homens estão habituados a fazer, de todos os atos e fatos coti-dianos, sempre resulta em intranqüilidade e inquietação. Já se achaarraigado na mente humana, ainda que eventualmente nãotraduzido em palavras, o julgamento de tudo. E, concordavam ospescadores, nada mais perigoso que julgar. Nada mais perigosoque discriminar. Afirmar o que se julga ser bom e o que se julga sermau conduz, inevitavelmente, à preferência. E, ao preferir, pre-tende o homem afastar o que presume ser ruim, e só aceitar o quepresume ser bom. Na verdade, todavia, o mundo é feito de atos, fatos, objetos,valores, enfim tudo o que existe, tudo vem sem a qualificação debom ou ruim. Nada é bom e nada é ruim; tudo é ruim e tudo ébom. Ruim é tudo aquilo que se pré-qualifica como condenável ouindesejável; bom é tudo aquilo preconceituado como agradável edesejável. E o erro não está no objeto. O erro está no sujeito quejulga; ou seja: o erro está no PRÉ-CONCEITO criado. Ocorre, noentanto, que o bom é apenas o reverso da medalha do mau. Mas,são ambos a mesma medalha. Após longo diálogo, em que os pescadores formaram consensode que todas as ocorrências se perdem na poeira do tempo; que oque hoje se conceituou como bom, nem sempre assim se revela noamanhã; e, inversamente, nem tudo que hoje se conceituou comoruim, nem sempre assim se revela no futuro; que a aceitação detudo, sem discriminações ou preferências, é o caminho para a pazinterior; que ninguém deve carregar os fardos – felizes e leves, outristes e pesados – pela vida afora; que o ontem somente servecomo lição para o amanhã, e não como bagagem a ser permanen-temente carregada, contou um deles uma breve estória, que leraem um livro de lendas orientais, e que fez descer silêncio dentro dobarco: 33

\"No fundo de densa floresta, entrecortada por poucos e perigosos cami-nhos, incrustada ao pé da Cordilheira Nan Chan, existia uma aldeia habita-da por um povo pobre e sofrido, embora trabalhador e religioso.De uma das famílias realçava, por seu porte atlético, musculatura rija einteligência aguda, um jovem esperto, que desde a puberdade era o arrimode seus pais e irmãos menores, liderando os trabalhos de sustentação dolar, na cultura agrícola familiar, nos cuidados com os animais domésticos,na caça e na pesca.Seu ideal, contudo, cotidianamente alimentado, não se limitava à labuta eao sucesso do seu dia-a-dia: sonhava subir a montanha, em cuja meia-encosta se erguia um mosteiro, e ingressar no serviço religioso, em home-nagem ao seu Dalai Lama.Uma fria manhã, afinal, completados vinte e cinco anos de idade e obtidaa licença de seus pais, transferiu seus afazeres aos seus irmãos já crescidose serviçais da casa, e começou a subir a montanha. Pesava-lhe o coração,e os olhos se enchiam de lágrimas, ao constante pensamento de afastar-sedas pessoas amadas e de tudo quanto, com sacrifício, com elas construíra.Recebido por um monge, expôs o seu sonho acalentado por longos anos.Revelou-se: falou de seus pais, do seu amor, do seu trabalho; falou da suavontade de aprender, de servir e de evoluir.Afinal, terminada a entrevista, ouviu do monge:'— Volte no próximo outono... mas, venha só!'Olhou, atônito, em volta de si mesmo e não viu qualquer outra pessoa.Desceu a montanha.Retornou no outono seguinte, e os mesmos rituais se repetiram. Por fim, overedicto:'— Volte no próximo outono... mas, venha só!'Não desistiu, porém. A cada ano subia a montanha, mantinha a entrevistae ouvia a mesma recomendação. 34

Na enésima vez que subiu a cordilheira seus olhos estavam secos; a saudade de seus pais, de seus irmãos e de seus amigos, não lhe doía o coração. Tinha a consciência de haver cumprido seus deveres familiares. Desapegara-se dos bens e riquezas que havia construído ou amealhado – não lhes atribuía mais qualquer valor. Nada mais o prendia na aldeia. Transcendera o amor que sempre reservou e ainda reservava a seus pais, irmãos e amigos, pois que, amadurecido na luta cotidiana, robustecido no desejo de servir ao Todo, a este guardara o amor maior. Foram-lhe abertas as portas do mosteiro. Adentrou o templo sagrado, deslumbrado com o silêncio milenar. Pela primeira vez perguntou sobre as recusas anteriores. Com absoluta serenidade, respondeu-lhe o monge: '— De todas as vezes anteriores em que você esteve aqui, você trouxe seus pais, seus irmãos, seus amigos e seus bens. Sua mente era uma multidão de vozes, de cores e de formas. Somente nos acercamos do Inatingível através do silêncio. Aqueles que car- regam multidões dentro de si – ainda que em nome do amor – nunca alcançam o silêncio. Posse não é expressão de amor. É expressão de egoísmo. Lembre-se: somente se alcança o topo da montanha em que habita o Espírito quando se é livre e despojado dos pesos da matéria.' Após longo tempo de pesado e meditativo silêncio, retomou apalavra um dos pescadores: \"— Tenho um amigo que, há alguns anos, vem fazendo romarias às clíni-cas médicas, a especialistas renomados, a hospitais de tratamento exclusivo,na tentativa de recuperar seu filho, portador de paralisia cerebral, sem qual-quer controle motor. Ele e sua mulher têm carregado pesado fardo, e pensoque sofrem muito. Todos os que se achegam ao casal, pretendendo consolar,sempre repetem palavras de estímulo e esperança, muito embora guardemuma ponta de piedade por ambos, já que se percebe impossível uma cura.” 35

Disse o outro: \"— Não me cabe julgar. Mas, poderia pensar que o julgamento quanto aofardo que se presume carregado pelos pais pode ser falho. Poderia pensar quehá, no caso, um concurso de decisões: o garoto reencarnou assim por decisãoprópria; e seus pais escolheram o carma, como forma e meio de progresso eevolução. É a chance que buscaram para suas evoluções individuais. Acreditoque todos poderão sair, afinal, ganhando com aquilo que os homens, em geral,chamam de infortúnio e, preconceituosamente, indesejável. Acho que os trêsestão no caminho do próprio crescimento e, salvo o livre arbítrio mal-aplicado,estão no caminho da felicidade.” Mais tarde – e somente bem mais tarde – o silêncio foi quebra-do pelo ronco forte do motor, arrancando o barco que levou ospescadores para o seu rancho. Eu ouvi... e continuei na tranqüilidade dos meus remansos. Mas,no fundo, eu senti a verdade: o mundo é feito de contrastes e demaldades e, no entanto, nada afeta o aprendizado daqueles quequerem aprender. Hiroshima e Nagasaki são monumentos vivos,tanto da crueldade insana, quanto da resignação, da aceitação, eda capacidade de perdão do homem. \"— Sou acordado, lá no nosso rancho de pesca, todas as manhãs, poruma orquestra fantástica. Os pássaros parecem convocados para uma apre-sentação oficial, sob a batuta de Deus; as melodias que gorjeiam são semprericas de harmonia e de extrema variação e beleza; cada um canta o que sabee, não obstante, não há dissonância.\" \"— Você sabe que meu sono é tão pesado que eu nada ouço?\" \"— Pena. Não se pode perder a audição! O que mais me atrai é o cantoda Corruíra. Mesmo quando os demais componentes da orquestra se disper-sam, a Corruíra vem para a varanda, perto das luzes que estiveram acesas nanoite anterior, catar insetos. E redobra o seu trinado.\" \"— Ela chega na varanda?\" \"— Confiança, meu irmão! A Corruíra parece que acredita no que faz; 36

acredita no seu canto; acredita no alimento farto; acredita que está imune àmaldade dos homens... e o êxito está naquilo que se acredita! Acho que aCorruíra confia nela, na sua agilidade, nas suas asas – muito embora a cati-vante sonoridade do seu canto lhe traga potenciais aprisionadores. É aquelahistória: quem confia em si próprio tem meio caminho andado para o sucesso.O resto se completa com talento, trabalho intenso e amor a tudo o que se faz.Na verdade, penso eu, os seres valem o que sabem.” Pausa na conversa. Os pescadores estavam há algum tempo norio. Faziam pescaria de fundo, na tentativa de fisgar surubis. O solcomeçava a declinar, já sombreando grande parte da floresta e domeu corpo. A noite não tardaria. O horário era considerado nobrepara a pesca do pintado. E os pescadores, com a devida enecessária paciência, não obstante os incômodos pernilongos,aguardavam. \"— Meu filho deseja iniciar curso superior de música. Quer ser regente deorquestra\", retomou a conversa o apaixonado pela Corruíra. \"— E você? Vai consentir? Você sabe que a profissão de músico não dádinheiro, aqui no Brasil. Aqui nem bons instrumentos musicais são fabricados.E as orquestras têm um mundo de obstáculos para se apresentar em público.E, quando se apresentam, quase não há ouvidos que as aplaudam.\" \"— Eu e a mãe dele somos de opinião que é preferível um filho eventual-mente pobre, mas feliz e realizado, trabalhando nos seus ideais, naquilo emque ele acredita, que um filho eventualmente rico, incentivado apenas paravencer na vida, porém, de semblante sombrio, machucado pela desilusão denão ter tentado o caminho de seus sonhos.\" \"— Penso que a obrigação dos pais é orientar os filhos, indicando-lhes osmelhores meios para as conquistas do mundo. Ninguém é feliz, quando nãodispõe de condições financeiras para alcançar conforto material e gozar asboas coisas da vida. O jovem precisa ser conduzido pelos pais e impedido deaventurar-se por caminhos difíceis. Primeiro vencer na vida.\" \"— Achamos que o jovem precisa ver despertadas, por orientação dospais, as suas potencialidades. Precisa caminhar seus caminhos, enfrentar seus 37

obstáculos, decidir seus rumos, temperar seus ânimos na experiência pessoal,para saber o que é melhor para ele. Os pais não vivem as vidas de seus filhos.Devem-lhes, por isso, no mínimo, respeito às suas individualidades.\" Silêncios intermitentes. A conversa se prolongou. A noite caiusobre o barco, e o céu se encheu de estrelas. Não obstante aquelemanto de pequeninas luzes dependuradas lá no alto, a escuridãoera acentuada. A lua minguante já passeava pelo céu, como umanesga de luz insuficiente, incapaz de romper as trevas. Entre umae outra fisgada, os pescadores se manifestaram sobre o tema. Afinal, a pergunta: \"— Você não se preocupa com o futuro dele?\" A resposta veio pronta: \"— Quem de nós tem a garantia de ver o sol do amanhã? Se eu não seise viverei ainda esta noite, por que devo ocupar-me com o amanhã? A felici-dade é o momento. Não é o futuro. E o futuro dele somente a ele pertence.Não... não nos preocupamos com o futuro dele. Apenas confiamos na suadecisão, na sua capacidade e aptidão reveladas, sempre na esperança de queo Pai lhe tenha reservado talento.” De novo o silêncio. Um puxão mais forte retesou a linha de um dos pescadores. Avara, encurvada na direção da água, balançava vigorosamente. \"— É dos bons!\", gritou. A força do peixe, surpreendido ao se sentir preso, era grande. Ea carretilha, um pouco afrouxada na sua embreagem, deixou cor-rer a linha. A luta se desenhava igual. No fundo, o peixe forçavauma carreira desabalada. No barco, o pescador, matreiro e experi-mentado, dava-lhe corda, ao mesmo tempo em que, apertandogradativamente a embreagem, exigia do peixe crescente esforçopara fugir. O tempo foi passando. A luta continuava. Aos poucos opescador veio rebocando o \"grandão\". Ao aproximar-se do barco, 38

subindo por força da carretilha, o loango tentou a reação.Reiniciou sua fuga. Mergulhou com todas as suas forças, abrupta-mente, na tentativa de romper o nylon que o prendia. Esperto, opescador afrouxou a embreagem. A linha correu, não muito livre.Voltando a prender, gradualmente, a embreagem da carretilha,conseguiu o pescador parar a corrida de sua presa. Retomou alinha... lenta e vigorosamente. O peixe foi cedendo. Ao alcançar aflor d'água tentou uma última reação. Debateu-se, lançando águaem todas as direções. Mergulhou. Fugiu... parou. Não tinha maisforças. Entregou-se. Subiu à tona... “pranchou”. O pescador,lanterna acesa, veio conduzindo-o até a lateral do barco. Focalizouo facho de luz no seu costado. Viu seu corpo luzidio. Seguramentemais de doze quilos. Pegou-o pelo rabo, mantendo retesada a linhaque o prendia pela boca. Imobilizado o peixe, foi fácil “bicheirá-lo”. Ainda assim, foi difícil embarcar o belo espécime. Comemoração formal e habitual: pequena golfada de vinho nagoela do peixe e uma talagada para cada um dos pescadores.Muitas pessoas se regalariam com aquela carne branca e saborosa,fonte de proteínas. Eu seguia o meu curso, silenciosamente, entendendo tudo deuma forma natural: a vida, a luta por ela e a morte. E, especialmente, entendendo que, na vida, há sempre a opor-tunidade de mudanças. O homem, principalmente, por seu livrearbítrio, tem o direito de optar pelo que melhor lhe convém. E temque ter coragem bastante para renunciar a tudo que já construiu,e partir para novos rumos, abrir novas portas, empreender novasbatalhas por seus ideais... desde que a motivação não afete aserenidade interna, que se traduz em felicidade. Ninguém pode enem deve se acomodar no casebre construído à margem da estra-da da vida ao pressuposto de lhe ser abrigo seguro, se este não lheoferecer o principal: a felicidade. Ninguém deve se contentar coma efemeridade da satisfação imediata. Não deve se satisfazer como riso do momento fugaz. Deve o homem sempre ter audácia bas- 39

tante para saber abandonar o que foi construído, e recomeçar acaminhar pela estrada da vida até encontrar o essencial: a evoluçãode espírito que lhe garanta a paz e a serenidade interiores. Aí, nãoserão necessários abrigos, confortos materiais, riquezas ou poder.Ele se bastará... porque “Solidão não é estar só. Solidão é estar vazio.” Ah! O filho do pescador que queria estudar música? Soube, tempos depois, que havia ingressado na Universidade, eque fizera um curso bem orientado e bem aproveitado. Tivera bonsmestres e bons conselheiros. Crescera em amor pela música e faziadela a razão de viver. E seu amor era correspondido. Soube que setornara regente de orquestras – o que sempre desejou ser. E neletodos reconheciam cultura musical e talento artístico. Soube tam-bém que vinha sendo requisitado para apresentar-se à frente devárias orquestras. De uma feita, quando regressava ao Brasil, apósbem-sucedida apresentação na Itália, recebeu de um de seusirmãos, que comprometido com uma viagem não pôde esperá-lono aeroporto, a seguinte mensagem: “Maestro Poucos são os privilegiados que podem partilhar suas vidas com a de seres iluminados que surgem por aqui de vez em quando, já certos da missão que têm que cumprir aqui em baixo! Mas, quando um desses seres nasce de pais que, sem se importarem com mais nada a não ser com a própria felicidade dele, o apóiam e o incenti- vam a percorrer o caminho que ele sempre soube que era seu, ele passa a fazer pelo mundo muito mais do que foi previsto em sua missão. Ele passa a espalhar alegria e felicidade; a irradiar amizade e companheirismo, e passa a ser uma pessoa ajustada e rebelde ao mesmo tempo. Ajustada no momento em que está sempre em sintonia com a vida; e rebelde no instante em que quebra todas as regras, buscando seu caminho de felici- dade, que sempre leva à realização e ao sucesso – em um mundo onde as pessoas acham que somente a realização do sucesso pode-lhes mostrar 40

seu caminho e lhes dar felicidade. Você, meu irmão, é um desses seres iluminados, e eu estou feliz com o pri- vilégio de poder partilhar do seu caminho. Parabéns pelo toque mágico que você dá à sua missão, à sua música. Nunca, em momento algum, ela foi tratada com um carinho tão grande quanto o seu. E é por isso que, quando você está regendo, ela agradece e vai ao seu encontro, para que vocês possam tocar um ao outro e fazer da cada nota um ato de amor. Obrigado pela lição de vida, de coragem e de competência. Perdoe eu não estar aí para poder recebê-lo; mas, saiba que estou morrendo de saudades. Do seu irmão, orgulhoso, e que o ama demais, Fernando.” As latinhas corriam sobre meu corpo, ao sabor da correnteza.Dois pescadores, anzóis no fundo do meu leito e varas nassecretárias do barco, bebiam suas cervejas e, inconscientemente,jogavam n'água as latinhas. E brincavam. E riam. A alegria era umaconstante. Desfrutando aqueles momentos de lazer, de intimidadee de paz com a natureza, o procedimento de ambos aparentava sernatural. Tão natural que os arremessos de latinhas eram automáticos:esvaziada... lançada. E eu sofrendo as conseqüências Os \"abas-largas\" subiam o rio na rotina de seu trabalho de poli-ciamento. Abordaram o barco dos pescadores. Conversaram.Conferiram documentos. Examinaram a tralha de pesca.Perguntaram sobre o uso de material defeso em lei. Satisfizeram-se com as respostas e com o sumário exame da tralha. Um dos policiais, cautelosa e educadamente, perguntou sobreas latinhas que vira descendo o rio. Mais cautelosamente aindaconversou sobre a poluição e dos males que os homens, maioria 41

das vezes inconscientemente, causam à natureza. Despertou aconsciência de ambos pescadores. Pediu-lhes para não fazerem dorio despejo de seus lixos. Despediram-se, amistosamente; haviam cumprido, como dehábito, sua principal missão: prevenir, ao invés de remediar; edu-car, ao invés de punir. Os \"abas-largas\" continuaram subindo o rio. Os pescadorespermaneceram no seu lazer, na sua alegria e despreocupação. Nãomais lançaram, porém, objetos sobre mim. Guardaram no barcotudo o que usaram. Consciência despertada, passaram a ser maisdois soldados na legião dos defensores da natureza. Eu agradeci. Agradeci por mim e pela natureza. Por que o homem é tão nobre e sofisticado em determinadoscomportamentos, e tão agressivo e mesquinho em outros? Por queele pensa que o rio não se polui com o lixo que ele produz? Porque ele é incapaz de prevenir o futuro? Por que ele se julga nodireito de lançar em águas correntes detritos de que ele quer selivrar? Por que o homem não soluciona, racionalmente, os seusproblemas, ao invés de transferi-los para a natureza indefesa,criando outros e mais graves no futuro? Ele sabe que o rio seenfraquece com as agressões que recebe. Ele sabe que o rio defi-nha, e morre, em razão do desprezo com que vem sendo sempre(mal) tratado. Por que age, então, inconseqüentemente? Ah!... se os homens entendessem o que os rios falam. De alguns de meus tributários, dentre tantos que se incorpo-raram em mim, ouvi muitas lamúrias e queixas. Unânimes em dizerque haviam nascido para a felicidade... como tudo que nasce nestegrande mundo de Deus. Mas, as agruras da vida haviam tornadodifícil a caminhada... por isso que chegavam a mim às vezes jádesesperançados, esfalfados, desiludidos, esgotados e tristonhos.Muitos quase sedentos. A fauna subaquática quase inexistente. Ediziam a realidade: em seu curso, o que deveria ser mata ciliar, não 42

passava de uma vegetação rasteira e improdutiva. A maior partedas barrancas formada por cascalho estéril. Num ou noutro pontoalguns arbustos mirrados tentando, insistentemente, tingir deverde o marrom lamacento das margens sujas. E em todos os can-tos a marca do homem: latas, plásticos, papéis, cimento, louças,vidros e quanta porcaria mais se pode lançar. E a mata? Decepada ao som irritante da serra elétrica ou ao gol-pear insultante do machado, ou ainda ao barulhento arrasto detratores insensíveis. E assim, limpando terreno para a exploraçãocomercial – implantação de pastarias, com a incontrolável esteril-ização dos campos – avança o homem até às margens dos rios,abrindo comportas para o assoreamento e a morte. Minimiza-se aoxigenação. Morre a água: morrem os elementos essenciais davida. Por isso que, a par de pescarias predatórias e gananciosas, ospeixes ficam a cada dia mais raros. Por isso que os animais cami-nham para a extinção. E assim o homem demarca seu caminho dedor, de sofrimento e de desesperança... Triste fim que se avizinha.Ao destruir as barreiras naturais, baluartes de preservação dasriquezas minerais do subsolo; ao abrir canais de assoreamento dosrios, afastando a rede de retenção dos sólidos carreados, abrem-seas portas da morte. E, ao lançar detritos não-degradáveis nas bar-rancas dos rios já desnudados, o homem trabalha para o mal, dete-riorando a pureza das águas, abafando o seu leito e matando afauna subaquática. Não vê ele que, com esse procedimento, estátornando impuro o ar que respira e que é essencial à vida. Não vêele que a cada agressão está diminuindo o alimento substancioso?Não vê ele que causa prejuízo a si próprio, tanto quanto ànatureza? 43

CAPÍTULO 4 O grande mergulho Ele estava só. E eu percebi todo o seu sentimento. Ele temiaestar só. Palavras não eram necessárias. Todo o seu corpo expres-sava o seu sentimento de intranqüilidade e medo. Seus olhos nãoviam a beleza da noite; seus ouvidos não escutavam a sinfonia dafloresta. Seu corpo não estava livre. Sua mente estava nebulosa. Já estivera aqui, comigo, várias vezes, acompanhado de um oumais amigos. Sempre falante, suficiente, intrépido. Hoje, só, eletemia. Por quê? Nada mudara naquelas plagas. Nada de novo acontecera. Eucorria como sempre, mansa e silenciosamente. A mata era amesma: somente cantando à voz do vento. Os ruídos da noiteeram os mesmos: o pio do curiango, os guinchos dos macacos, oestabanado rabear de um cardume de curimbatá ou o mergulhoarfado de uma capivara. O céu era o mesmo: embora sem luacheia, a noite tinha aquela toldada luminescência das estrelas. E, se 44

tudo era igual a antes, por que o medo? Por que ele se sentia tãosó, tão desamparado? Só porque afastado dos outros homens? Senada mudara ao seu redor, por que tão inseguro, pequeno, insufi-ciente, incapaz? Por quê? Durante o dia, seguramente, ele se sentiria suficiente parasuperar qualquer obstáculo. Por que aquela ansiedade, aquelapequenez? Por que aquele temor? Minhas águas corriam tranqüilas. Não havia turbulência emmim. Estava calmo e sereno. O céu era um esplendoroso mantoestrelado. Sem nuvens... sem ameaças. Eu entendia, por mim e por ouvir de velhos pescadores: ohomem que não se conhece, que nunca se encontrou consigomesmo, não sabe viver só, não sabe estar só. Ele precisa de alguémque lhe responda as perguntas, por tolas que sejam, ou que lhepergunte perguntas, ainda que impertinentes. E, aí, ele se senteútil, participativo, inteligente; ele sente o calor humano. Ele sesente presumidamente feliz. E não teme! Na realidade o homemvazio não pode aceitar, compreender ou buscar a imersão noremanso. Estar consigo próprio é ventura para poucos. O homem que não se conhece não sabe estar só. Não sabeouvir o silêncio e os gritos da natureza. Não sabe ver as trevas e asluzes da noite fechada. Não sabe como se conhecer e não sabeentrar dentro de si mesmo. Não sabe ser só. Apenas sabe quandotem alguém que reflita suas ansiedades e seus desejos. Só sabeouvir o clamor da sua própria voz refletida nos outros homens,porque precisa do eco para se sentir seguro e se sentir vivo. Ele estava no rio... no silêncio do rio; na serenidade do rio; noexemplo do rio... e não aprendia com o rio. Não aprendia a ser só! A ser ele mesmo: criatura de Deus. Sersuperior que dispõe do livre arbítrio para os erros e para os acer-tos; para o inferno ou para o perdão; para a serenidade ou para odesespero. 45

O homem devia achegar-se a mim, altas horas da noite, nosilêncio do mundo, na escuridão da floresta! Devia conhecer-me naminha solitude. E entenderia que o Universo não é eco daquilo quese quer ouvir. O Universo é a expressão da serenidade... do silêncioe do grito; da luz e das trevas; da alegria e da tristeza. O Universoé a expressão da paz. Deus meu, Todo-poderoso! Como esse frio da noite calada meaquece! Como esse silêncio da noite fria Te expressa!!! Eles chegaram ao rancho de pesca bem antes de declinar o sol.Fiquei observando a azáfama. Estavam cansados da longa viagem.Certamente já haviam almoçado, pois, logo após retirada abagagem dos carros, passaram a preparar os barcos ancorados nopequeno porto, e começaram a armar suas varas, a separar omaterial de reserva, as roupas para enfrentar o frio sereno danoite. O calor da tarde era forte. Nenhuma brisa balançava a copa doarvoredo, e nada diminuía o abafamento que a alta pressão atmos-férica causava. Na varanda do rancho ninguém se dispunha a per-manecer; e poucos se aventuravam a atravessar... vítimas semperdão que eram dos mosquitos sanguessugas. Embora sombrea-da, a varanda não era o local mais desejado do rancho. Ninguém se movimentava em minha direção. Aos poucos foicaindo silêncio no rancho, como se todos fizessem a sesta. E oentardecer avançou, quase buscando o silêncio da noite. De repente uma mudança radical e absolutamente imprevisível.O céu azul se turvou. Um vento forte começou a soprar. E foiaumentando em força e constância. As árvores começaram a sedobrar. Nuvens negras avançaram com incomum rapidez. O céu,antes límpido e claro, fechou-se em preto, toldando inteiramenteos últimos fulgores do sol poente. Raios começaram a traçar dis-tâncias entre as nuvens e a terra; e o ribombar dos trovões calou afloresta. As forças da natureza alcançavam sua mais alta expressão 46

aterradora. A fragilidade de tudo e de todos estava patenteada norugido dos ventos e no fragor dos relâmpagos. A chuva não tardou. Torrencial. Tombado pelo vento forte, oaguaceiro fustigava todo o meu corpo; e eu me encapelava, insti-gado pela aparente fúria da natureza. O espetáculo era ate-morizante. Os pescadores, saindo da toca, já haviam acorrido àvaranda para presenciar, desde seu início, o quadro dantesco. O tempo foi passando. Caiu a noite. A chuva não cedeu em intensidade, por largo tempo. Passadoslongos minutos, cessou. Nem sequer diminuiu. Simplesmenteparou. Da mesma forma que havia chegado, o vento se foi. E comele a chuva. E com ela os raios e os trovões. E o céu se abriu emvários rasgões, mostrando, intermitentemente, a lua crescente,quase cheia, que passeava lá em cima, ignorando todo o fragor datempestade aqui em baixo. Nenhum dos pescadores se aventurou nos barcos molhados ecom meia-água no fundo. Um único deles desceu ao porto e,embevecido com a calmaria reinante, nenhum inseto ou mosquitosanguessuga no ar, lançou suas iscas em meu corpo e, solitário,desfrutou de toda a paz e harmonia daquela bonança. Pareciaextasiado diante de toda aquela placidez. O céu continuava commuitas nuvens, que na sua pressa e recortadas aberturas, deixavamentrever o manto de estrelas; a lua passeando entre elas. O arvore-do gotejando água e agora silencioso com a calmaria. Meu corpotranqüilo, sem a agitação de antes. Eu mergulhei em mim. Busquei maiores profundidades e meacomodei. Tudo era silêncio. Nada de fora poderia atingir-me.Silenciei minha mente. Encontrei a minha própria alma. Extasiei-mediante da grandeza daquele instante, em que nada existia. Eu eranada. Era a água e a vida. Eu era as trevas e a luz do rio; era peixee pedra; barranca e árvore; eu era tudo e nada. Eu era o templosagrado onde somente existia a manifestação cósmica da Energia 47

Suprema. Senti a minha inteira existência física. Num átimo vapo-rizei-me ao sol da noite escura e desci à montanha em forma dechuva. Brotei nos grotões agrestes, lambendo as raízes das árvores,e me transformei em tudo. Eu era também raiz, caule, folhas, flo-res e frutos; eu era sombra e luz; eu era o próprio sol que me su-gava, a nuvem que desabrochava em chuva, a lua que adormeciano meu passo. Eu era o calor que abrasava e fazia explodir a vida.Eu era tudo. Eu era o que sou: instrumento de Deus; mensageirode paz e de amor; servo inútil que jamais me recusei a cumprir, comafinco e dedicação, a missão que me foi confiada. Vivi aquele transe por longos sumaríssimos instantes. Fortaleci-me na harmonia superior que habita em mim. E, aos poucos,agradecendo a Deus a glória daquela contemplação, retornei àsuperfície, seguro de que jamais poderia ficar desamparado peloPai. “Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro acorda.” (Carl G. Jung) Eu estava bastante acelerado. Já há algum tempo, por força daconstante declividade do terreno, eu vinha crescendo meu ritmo. Uma curva à direita. Uma longa... quilométrica reta! De repente, uma queda abrup-ta e, em seguida, várias outras menores. Logo após o meu corpose transformava em corredeira forte e traiçoeira. O arvoredo marginal era frondoso, vegetação luxuriante,magnificamente trançada. Certamente nenhum ser humano pisaraaquele trecho. Uma variedade enorme de aves, de coloridos ale-gres e sutis, e animais silvestres pouco comuns, faziam umaalgazarra tipicamente domingueira... tudo, cenário e sons, deindizível beleza... numa saudação festiva ao raiar do dia. Aos poucos fui refreando meu ímpeto. Acomodei-me ao leito,cuja declividade já era muito mais suave. As profundidades foram 48

crescendo... cada vez maiores. Gradativamente fui desacelerando acorrida. Logo adiante o avistei. Pela primeira vez o vi assentado na bar-ranca. Eu já o conhecia de várias outras pescarias... sempre acom-panhado de bons amigos... barco a motor... tralha completa...tudo o mais. Desta vez, no entanto, estava só. Próximo do seu rancho depesca – ao qual se chegava através de uma precária e estreitaestrada de chão batido – e sem descer ao ancoradouro onde seachavam atracados vários barcos. Aboletara-se ele numa peque-na clareira da mata, num barranco, espécie de mini-promontórioque declinava até uma praiazinha rasa de águas claras e areiabranca. Lançara iscas em minhas águas. Embora sofisticado em quali-dade, usava leve material de pesca: varas finas, não obstanteresistentes; linha trinta, nitidamente imprópria para espécimes demaior porte; carretilhas pequenas. Fisgava um peixe e, calma-mente, o trabalhava, recolhendo e liberando linha, até trazê-lo àraseira, costado fora d'água, barriga roçando a areia clara. Desciado barranco controlando a presa. Apreciava-o. Detinha-lhe osmovimentos prendendo-o pelo rabo; retirava-lhe o anzol da bocae, lentamente, o soltava. O peixe ainda ficava ali... na raseira...parado... presumindo-se de alguma forma preso. Até que, commovimentos suaves – o instinto alertando-o contra o perigo, em-bora já agora ultrapassado – avançava um pouco... um poucomais... e, livre, deslizava nas águas límpidas e transparentes, paralogo desaparecer nas profundidades maiores. Esse procedimento repetiu-se várias vezes. Inclusive comespécimes nobres e de bom porte. Um único “pintado\" – belo\"moleque\" de uns oito quilos – foi sacrificado: alimento para afamília. “Bicheirado”, arrastado para fora d'água, foi preso pelaboca num galho forte de árvore; corte longitudinal no rabo, para 49

esvair o sangue e deixar a carne branca e pura. Tudo isto após oritual de sempre: vinho tinto aberto, batismo do peixe com umabreve golfada por sua goela abaixo e, depois, a dose do pescador:prazer de degustá-lo, ele próprio. E a partir daí, todos os demais fisgados, por mais belos e supe-riores espécimes, eram acariciados e, cuidadosa e prazerosamente,devolvidos ao seu \"habitat\". Havia serenidade no rosto daquele pescador. Perguntei-lhe qualera a sua verdade. E ele, em absoluto silêncio, respondeu-me: \"— Eu não acredito na dor do ontem. Acredito na dor, assim como na sa-tisfação do hoje. Não acredito no riso ou no choro do amanhã. Não sei se tereia oportunidade de desfrutá-los ou sofrê-los. Acredito na energia cósmica do Todo, capaz de reformar o Universo e tudoquanto nele se contém. Acredito na serenidade interior, a mesma que você sabe saborear, quandomergulha em você mesmo e se identifica com a alma do rio. Acredito naevolução do homem e na de todos os seres vivos. Penso que o homem da idade da pedra disputou, sem o uso da razão e semmaiores vantagens, lugar com os animais. Penso que, mais tarde, despertada ainteligência, aproveitou melhor os instintos que desenvolvera, e sobrepujou osirracionais. Penso que, gradativamente, ainda por força da inteligência embrio-nária, distinguiu o homem os seus sentidos. E usou-os para manter e aumen-tar sua supremacia sobre os demais seres vivos. Formou núcleos familiares;criou normas e preconceitos. Ampliou seu relacionamento além do núcleofamiliar – criou mitos. Saboreou o comando tribal – criou embrionariamente oEstado. Inebriou-se com o poder – criou a política. O que era da terra, porém, não lhe bastava. Evoluiu; criou explicações quevisavam justificar seu poder de vida e de morte sobre os outros seres e atésobre seus semelhantes, fundadas na sua natureza superior de ser inteligente. Cresceu mais e mais. 50


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