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A lenda do homem dourado

Published by Paroberto, 2020-04-29 19:26:23

Description: A lenda do homem dourado

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Jairo Ferreira Machado  51 frescor da água ao seu dispor e imediatamente o cão se assanhou e sem pestanejar, mergulhou, Oh! Maria Rita!, lembrou-se da primeira vez que estivera com ela – sob a efervescência de uma ducha quente, a vergonha de se mostrar de corpo inteiro, já priápitico, mas o apelo da “moça” fora tão convincente que não resistira à tentação – nunca mais esquecera aquela vez, aquele gozo esfuziante desaguando seu sêmen nela, sabe-se lá se para ela fora igual, quem sabe, a inocência o fazendo crer que sim Fizera amor (ou sexo?) com ela, sob o chuveiro, esfregando-se volúpia um ao outro, a fragrância daquele corpo cálido e perfumado de sabonete, oh meu Deus, se dera ao descuido de pensar que Deus lhe daria o merecimento de Maria Rita, ali, no calor daquele lago, o pensamento longe, no passado, o cão trigueiro igualmente se esbaldando nas águas do lago, as frestas dos arvoredos deixando os últimos raios solares se despedir daquele dia, e ainda que tivesse os sentidos cautelosos, prostrou- se ao sabor do entardecer, agradecido por mais um dia vivo, quando uma salutar calmaria antecedia a chegada da bicharada, que vinha da densidão da floresta – uns, para o banho do dia, outros, para o sacio da sede, outros, se aproveitando da abundância das caças e ali vinham saciarem a fome. Já refrescado, o cão saiu da água e deitou a lassidão sobre a grama batida, em seguida já ressonava uma

52  A lenda do homem dourado madorna angelical, como se estivesse no paraíso; estava! olhou o cão como num assentimento de felicidade mútua, agradecido por ele existir, o seu companheiro de muitos dias de andanças e agora ali, assustou-se, percebendo o dorso do trigueiro refletindo incomum dourado – o cão, o bezerro de ouro, dos seus sonhos!, meu Deus, disse para si, sem saber realmente se merecia os conselhos do soberano ou Ele tivesse uma explicação para todo o fenômeno, ele e o cão, bezerros de ouro, ou era simplesmente uma miragem?, não, estava no auge da lucidez, o cão ali como um campo de trigo amarelecido e na intenção de sentir de perto aquele matiz trigueiro e tirar suas próprias conclusões, o acariciou, cuidando de olhar a palma da própria mão, sim, era real e o reflexo fulgente doeu nos seus olhos, tudo por ali cintilava a ouro, inclusive a relva – o reluzir de Maria Rita, num encantamento sem igual, desde a primeira vez que fora lá no meretrício, ela vestia-se de um amarelo-ouro, a seda lhe acentuando o contornado das coxas, a sensualidade à flor da pele, o cinto cor flor de abóbora combinando com os brincos, ademais, tudo nela reluzia a ouro, oh Maria Rita, os bustos insolentes irrompendo do decote do vestido onde seus olhos mergulharam de paixão pela primeira vez e de lá nunca mais saíram, lembrava sentindo àqueles seios lúbricos, plenos, cálidos, no calor de sua boca; então era isso, o que via, pensava, não era a palma de sua mão dourada, nem o dorso do cão que reluzia a ouro, eram os seios, as coxas, a pele dourada de Maria Rita, com aquele olhar carente a

Jairo Ferreira Machado  53 procura de um amor que a vida não lhe dera, só homens que vez em quando passavam por ali, sem deixar nada de si, concluiu. Nada daquilo que vivenciava até então, naquele cenário de luzes, era real, pensava, quem dera o acortinado de seus olhos se abrisse como num cenário de teatro e Maria Rita despontasse no palco, sorridente, bailando nua para os seus encantamentos de capiau, tudo muito confuso para sua mente inocente, concluía, nada daquilo que seus olhos presenciaram existiria, somente aquele espaço sobre a laje, era o que lhe sobrava da vida, um simples abrigo temporário, vez que Deus o deixara vivo até então, conferiu mais uma vez suas vestes antes de fechar os olhos, o coração lhe batendo descompassado no peito, desde aquele fatídico dia, o alforje já com reles pertences – pouco sobrava do que levara para sobreviver nos primeiros dias – já não cabia mais cortes no cabo do facão onde assinalava os dias passados na selva, anoitecia e o silêncio lhe parecia cruel (a qualquer momento algo de ruim aconteceria!) somado a um e outro rugido e piados agourentos vindos dos cafundós da selva, o cão lá embaixo, vigilante, os olhos arregalados, a boca calada na prisão da focinheira. Em certas noites as estrelas não brilhavam como de costume, ofuscadas pelo clarão da lua que, infelizmente, não podia ver do lugar onde estava, embora pensasse

54  A lenda do homem dourado que pudesse alcançá-la com o toque dos dedos, caso se aventurasse chegar ao topo da montanha, o quê em juízo perfeito não faria, a sorte já lhe facultara um paraíso, dali podia imaginar sua estrela preferida, Maria Rita, piscando- lhe os olhos o pretendendo na cama em detrimentos dos outros candidatos, como naquela primeira vez, agora duvidava mesmo se Maria Rita tinha coração, bem certo, no lugar do coração havia uma pedra, tal aquela, sobre a qual construíra seu abrigo, a solidez e a frieza marmórea de uma laje, mas frieza só mesmo no coração, no mais Maria Rita pegava fogo – a libido de um braseiro como aquele que o aquecia naquele momento. A noite o matiz dourado da relva dava lugar ao prateado das estrelas e com mais vivacidade nos dias de lua cheia, com o juízo inquieto, pouco dormiu naquela noite, a aurora da manhã se ensaiava pulcra quando acordou e sem perda de tempo, desamarrou o cão e foi em busca de mais detalhes sobre aquela imensidão, a riqueza da vegetação, da fauna, a direção das trilhas por onde os bichos circulavam ao anoitecer, tudo reluzindo a ouro, devagar seguiu pelas margens dos riachos que ali chegavam trazendo de algum lugar o ruído da cachoeira que entoava cada vez mais forte aos seus ouvidos, enquanto a declividade da correnteza, devagar, ia despejando água no remanso do lago, seus olhos e sentidos atentos, tal o cão, subiu margeando um dos riachos, percebendo que também as folhas das plantas tinham uma tonalidade amarelecida, mais um pouco e se

Jairo Ferreira Machado  55 deparou com o que lhe pareceu um campo de centeio, o brilho áureo das pepitas vagando no seu olhar a luz que refletia do riacho. Não, não estava louco, menos ainda aquilo era fantasia de sua mente conturbada, encontrara sim uma mina de ouro, jurava, Oh! Maria Rita!, as pepitas cintilando do fundo do riacho o dourado do vestido dela, do dia do casamento, a emoção tomando vez no seu coração, no seu corpo inteiro impedindo que se mantivesse em pé, sentou- se ali de frente para o riacho, o ouro era os seios de Maria Rita, entendia por fim, o porque do cão trigueiro ficar amarelo toda vez que entrava no lago, o ar lhe faltando no peito, acariciou a cabeça do cão, falou baixinho, estamos ricos trigueiro, o luzeiro como um caleidoscópio, de fato, tinham descoberto um tesouro (ele e o cão) noutro momento achava que seus olhos o enganava, lembrava a nudez dourada de Maria Rita, embevecendo o seu íntimo, não, não podia ser; animou-se e mergulhou a mão no riacho e retirou de lá uma pedra bruta amarela, custou acreditar que fosse uma pepita, um grão, o maior que sua mão escolheu naquele momento, a rigidez do ouro, os castiçais reluzentes do altar onde firmara alianças com Maria Rita, o pároco, maldoso, de olhos esbugalhados nos entresseios dela... Devaneios?, se perguntava, o cão mais uma vez, como a única testemunha – os olhos compridos no brilho

56  A lenda do homem dourado do metal – a jura do sacramento alumiando os olhos de Maria Rita! (bem podia ter-lhe alumiara também o coração!), os sentidos enlouquecidos, tudo num galope só, a pepita no curvo da mão (como o ovo da galinha de ouro) a emoção lhe embaralhando o olhar, estaria ficando cego?, permaneceu sentado, mais por lhe faltar a firmeza das pernas, que de cansaço (ele e o cão), senhores sozinhos de uma mina de ouro, o que mais poderiam querer na vida, Maria Rita, respondia em silêncio, e já começou a ter medo, valeriam muito mais daquele momento em diante, ao menos enquanto o povo da cidade não soubesse onde encontrara a pepita, pensou, olhando para o cão, esse aí foi a minha salvação, tomara não seja, a minha perdição, falou em silêncio. Restava-lhe algum tempo para sentir a floresta, o respirar das árvores e como se mantinham para sobreviver aos riscos de um relâmpago, do vento ensurdecedor, e a beleza dos gorjeios dos pássaros seus piados de socorro quando um predador maior estava por perto, as vozes dos bichos, o murmúrio dos riachos o calor do cão trigueiro roçando em suas pernas o acaricio de agradecimento pelos nacos de carne que ganha, o cão fora testemunha de todos aqueles dias vivenciando a hostilidade daquela selva e que agora, se tornara um paraíso; a luz do metal ainda abundando nos seus olhos, o cão salivando, decerto, crendo fosse o ouro alguma coisa boa de comer, pensava, ainda embevecido, encheu o alforje de pepitas, tantas, de não

Jairo Ferreira Machado  57 poder carregá-las, percebendo, por fim que não precisava de tantas, aliás, não queria todas aquelas pepitas, do que adiantariam se não tinha o amor de Maria Rita, pensava, não, não era bem assim, poderia construir ali, sobre a laje, no seu abrigo, um castelo, a escadaria, as paredes, janelas e portas, todas voltadas para o leste onde nascia o sol, a lua, e um alpendre de cima do qual veria o sol se despedindo, a lua derramando-se o seu prateado, enquanto nos braços de Maria Rita, e o cintilar da estrela Dalva, quando a lua se escondia, e ficaria ali para sempre, nos braços de Maria Rita, naquele Jardim do Éden, todinho ao seu dispor – quando envelhecido de corpo e sentimento, morreria, mas logo acordou dos pensamentos. Do que adiantaria um castelo de rei e tamanha riqueza, uma vez que nada o amenizaria dos sofrimentos da alma, nada lhe devolveria o calor e a sensualidade de Maria Rita, de imediato foi se desfazendo das pepitas, guardando-os num esconderijo longe do riacho, deixando no alforje algumas poucas, e a maior delas, para encher os olhos de Maria Rita e invejar os olhos dos hipócritas da cidade, em nome da “moral” e dos “bons-costumes” dos cidadãos que o ofendiam quando fugia morro acima e expulsaria daquela zona os frequentadores assíduos, que iam lá servirem-se da Maria Rita, decerto, o povo ainda alardeava aquele acontecimento, quanta hipocrisia!, talvez a meretriz não estivesse mais na cidade e quão órfãos ficarão os homens, o prefeito, o delegado, o médico, o

58  A lenda do homem dourado comerciante, os iniciantes (qual mulher da vida não gostava de ensinar o caminho da zona aos inexperientes, as vezes não cobrava, até o pároco devia estar rezando, pedindo clemência por ela – se Jesus perdoara Maria Madalena, por que ele, o pároco, um “servo de Deus”, não perdoaria Maria Rita? – a coitada da “moça” não tivera culpa, o capiau é que trocara os pés pela – casar com aquela tal! Mas, não é que o desgraçado do pároco tinha mesmo razão, Maria Rita não era confiável, alguma coisa, decerto, o pároco sabia... Ainda sob o efeito da emoção, entre uma e outra palpitação no peito, a angustia de não saber o que fazer, dormiu, e sonhou, no sonho viu lá de cima do morro as luzes da cidade acesas e no ponto mais alto da cidade a torre da igreja, exatamente onde esposara Maria Rita e mais afastada, no fim de uma rua qualquer, sob o lusco-fusco de uma luz de poste, a simplicidade da zona, e pensava, de certeza, Maria Rita estaria lá, naquele momento “dando”, sabe-se lá para quem, se perguntava, o alforje ali, carregado de pepitas, decerto Deus não aprovaria toda aquela riqueza mas as pessoas sim, o adorariam (seria o bezerro de ouro) quando adentrasse a cidade, assim que o povo o reconhecesse, se é que isso fosse possível e se imaginava encarcerado, o delegado sendo cumprimentado pela cidade e já não sabia se obedecia ao cão e entrava na cidade e seria preso ou voltaria dali mesmo para os confins da selva...

Jairo Ferreira Machado  59 Sonhava, mas parecia ser a mais pura das verdades – encontrara o caminho de casa? – no exato momento em que o cão ladrava desesperado, tentando se desvencilhar do laço, e foi o tempo suficiente de ver a onça subindo a laje de pedra, pata-ante-pata, já armando o bote, depressa empunhou a arma e puxou o gatilho, segundos depois viu a felina saltar da laje para o chão, aparentemente ferida, salvou-lhe, desta feita, o rosnado do cão e em tempo o tiro de misericórdia, seu coração agora batendo num galope só, quase lhe saindo pela boca, momento em que o amanhecer se despontava atrás das montanhas, quando por fim tomou a decisão, ali teria sempre a vida por um fio, a onça voltaria mais cedo ou mais tarde, senão aquela, outra qualquer, tinha a certeza que sim, melhor seria que partissem (ele e o cão), o quanto antes, ainda que não soubessem o caminho de volta; talvez o cão descobrisse, com seu faro peculiar quando lembrou do sonho da noite – a visão da torre da igreja, a cidade iluminada, o cão querendo se soltar e correr morro abaixo –, pressagio talvez, podia acreditar na astúcia do cão?, ainda que não tivesse certeza preparou um cesto de taquara modo arrastar dali algumas pepitas de ouro e deixar para trás o abrigo e todo aquele paraíso inconfessável (não diria nem para o padre no confessionário da igreja) mesmo que aquele oferecesse juras etc., mesmo porque nada daquilo que descobrira ali o pertencia; comida, com sorte, arranjaria pelos caminhos, se a onça não os comesse antes.

60  A lenda do homem dourado Quanto à prisão, agora, não era o momento de se preocupar com isso, ademais tinha um segredo, a selva lhe mostrara mais riquezas que as existidas na cidade inteira, era rico, abastado e já passara o tempo do flagrante – decerto, todos já torciam que voltasse daquele inferno – e que não fosse mais preso, invasão de domicílio, isso, aquilo, o povo falando, o juiz, o delegado, sendo pressionados, e melhor, podia contar com a falta de memória do povo (o povo age sob o impulso da emoção!), e aquelas pepitas todas que levava no alforje, de certeza, mudariam a opinião do mais cético dos homens, logo, precisava sair dali o quanto antes, olhou para o cão e disse, em silêncio, estou em suas patas, trigueiro. E partiu, arrastando floresta afora o alforje dentro de um cesto de taquara carregado de pepitas de ouro, o cão ainda reluzindo a ouro, nunca o trigueiro fora tão brilhante assim, desde o dia em que também se enfiara no remanso, para se refrescar, pediu bênçãos aos céus (sabia lá se merecia ou não!) modo a sorte lhe ser benfazeja naquela hora da volta pra casa, ou sabe-se lá onde chegaria vivo ou morto, os cabelos, barbas, inteiramente dourados, até o intimo lhe parecia dourado – o próprio bezerro de ouro – o bafo da onça ainda recente entranhado no seu nariz, o cão na frente preso ao laço de cipó, no farejo do caminho, como quem sabia aonde ia, cão ladino que só ele e Deus ajudasse chegariam vivos, ainda que pecador dos piores, mas o paraíso, a natureza o fizera encontrar

Jairo Ferreira Machado  61 novamente a força da alma, só não encontrara ali o amor de Maria Rita, restava-lhe, tão somente, o dever de voltar e resgatar o que perdera da vida; Deus, quem sabe, tinham reservado algo melhor para si. O cão escolhendo (sabe-se lá se aleatoriamente ou não) os declives da serra, com os olhos e ouvidos bem atentos, ao que parecia, seguia o murmúrio de algum riacho, e em outros momentos com todos os sentidos alertas, assim chegaria a um ribeirão, um rio, talvez o cão soubesse o caminho, talvez não, contra si as adversidades de uma mata selvagem, fechada, e o pior, sua vestimenta já aos frangalhos tendo de enfrentar o frio e todo o tipo de umidade da floresta, as cicatrizes ainda lhe doíam, as botas já em estado precário, o peso que levava (dos pecados e das pepitas), as incertezas do amanhã – a onça tão perto, que o cão parecia sentir-lhe o cheiro – em certos trechos havia de vencer o cipoal, pirambeiras, pedregulhos, indo aos trancos e barrancos acompanhando o murmúrio do riacho que descia serra abaixo vez que dependia sempre da fresca para matar a sede, assim, ia driblando as rochas, troncos, tropeçava, levantava, um pouco arrastando o cesto de taquara, um pouco o alforje, sem descuidar de se manter em silêncio, na escuta dos eventuais riscos de algum bicho malfazejo vindo-lhe no encalço, o cão sempre ao lado, o faro atento no caminho enquanto pedia a Deus que o cão o conduzisse a um lugar seguro, algumas noites pernoitavam nas alturas das árvores, em

62  A lenda do homem dourado forquilhas, amarrados de cipós nos galhos, de forma que se cochilassem não desabariam direto na boca da onça – a felina parecia sempre por perto... A dificuldade maior era erguer o cão para cima da árvore, situação que tampouco o animal apreciava, mas a prudência se fazia necessário, ainda que dormisse, acordaria já com o dedo gatilho, caso contrario, nunca sairiam vivos dali, amanhecia e seguiam em frente, ou quem sabe dando voltas a toa, pela floresta, agora, enfrentando as armadilhas da floresta, eventualmente se alimentavam de alguma caça, outras vezes, de frutas, folhas, rizomas, quando não passavam mesmo a água do riacho, vez que pouco a claridade do sol atravessava as copas das arvores, os pés já aos frangalhos – os remendos das botas já não o protegia dos espinhos, dos tocos, topadas, assim, ia aos poucos tateando o chão, precavido, antes de mudar o passo seguinte, acreditando sempre no faro do trigueiro e na própria intuição, no momento de escolher o sentido mais lógico da encruzilhada, errasse uma única vez, e nunca mais sairiam daquela selva, vez que não tinha a referência do sol ou das estrelas, as quais há muito não via, vez em quando lhe vinha na lembrança o azul do céu, em inolvidável e bonito amanhecer no rancho onde morava antes de esposar Maria Rita, agora, tentava sair daquele labirinto úmido e frio, vendo-se m estado de esgotamento físico e espiritual

Jairo Ferreira Machado  63 O cão no farejo, parava, levantava a cabeça, os olhos atentos a algum possível sinal que na pressa quando fugia da cidade, lembrasse, fugira, sem pensar na hipótese de continuar vivo ou que um dia, voltasse, mas não se entregaria à toa, um galho quebrado, um corte num tronco de árvore, uma pedra aparentemente fora do lugar, o sentido dos riachos, sinais que dariam ideia remota de que ia ao rumo da cidade ou de algum povoado qualquer. Oh! Maria Rita!, o peso do ouro não lhe doía tanto os braços e pernas quanto a mágoa que levava no peito, as chagas dos pés, os arranhões, o sofrimento físico, o desgaste emocional e espiritual, já ligeiramente regastados com o encontro do ouro, mas preocupado, naturalmente, onde aquele achado o levaria, agora haveria de sobreviver àquela mata virgem, tendo consigo uma única certeza: se não chegasse ao destino com as pepitas, era melhor que morresse por ali mesmo! – Não se podia confiar na justiça dos homens, na lei dos homens daquela cidade, os mesmos que o quiseram preso, naquele fatídico dia, logo o saudariam de punho erguido, pelas ruas da cidade, estariam pelos bares da cidade, entre uma cerveja e outra, comentando seu heroísmo e já não se importava em arrastar o peso do fardo – o ouro era o seu salvo-conduto, seu livre-arbítrio, a ressurreição, quiçá o amor de Maria Rita... Amor?! Não!, já era querer demais, sonho de adolescente, logo conformar-se-ia com a beleza física, o corpo, a libido,

64  A lenda do homem dourado o gozo, a sensualidade e o calor ardente de Maria Rita, quem dera algumas vezes mais na vida, quanto custaria o amor de Maria Rita, se perguntava, sabendo que amor não se compra, não há dinheiro que pague, continuou em frente arrebentando cipoal no peito, enganando a si mesmo que de certeza aquele era o caminho de volta, um toco, uma rocha, uma árvore, dizia a si mesmo que sim e já se desmentia, passamos por aqui há dias atrás, estamos voltando ao lago, e já odiava o cão, outras vezes não, o trigueiro conhecia cada recho andado e o levaria à cidade, aos braços de Maria Rita... Dias a fio sem dormir direito, com verdadeiro temor à onça, aos porcos do mato, aos javalis e só eventualmente encontravam algo de comer, já que não podia libertar o cão para caçar sem correr o risco de perder, para sempre, o companheiro, faltavam-lhe forças, energia para a menor que fosse a aventuram embora capiau, acostumado ao trabalho duro, perdia a esperança de novamente ver a luz do sol, de se livrar da umidade daquela selva sombria e fria, das ameaças de animais peçonhentos, dos riscos de se ferir em alguma estaca, de sofrer quedas, o cão, o único amigo, já descorçoado da lida, parecendo querer descansar e dormir a todo o momento, o ambiente se revestindo de uma monotonia sem igual, embora não desse um só passo sem estar diante de alguma novidade, mas cansado, nem se dava ao prazer de curti-las, quem sabe em outro momento, mas levava consigo as lembranças de cada

Jairo Ferreira Machado  65 planta, das árvores frondosas, dos matizes das flores, folhas e encantos mil, as singularidades sem igual de uma floresta virgem... Oh... Maria Rita, compraria aquela floresta inteira só para ela ao tempo que dizia, em silêncio, maldito aquele dia em que levara as alianças e ela, toda faceira, dissera que sim, agora, recolhia um chuvisco de ódio por ela, por causa da maldita ninfomania, aqueles desejos incontidos por sexo, senão ainda estariam juntos, na simplicidade daquela cidadezinha de interior, na sua cama de lençóis perfumados, talvez até tivessem filhos, os pequenos chamando-o de pai, Maria Rita dona de casa, frequentadora de igreja, outras vezes, desfilando pela cidade (com o jeitinho de madame!) e nada daquilo tivesse acontecendo... Vinha dos cafundós distantes um piado incomum, um urro amedrontador, um grito quase profano, mostrando toda a biodiversidade da fauna, da flora, os verdadeiros senhores da floresta, e o cansaço o levava ao desespero, caso precisasse correr dali, não correria, e vinha-lhe a desesperança, a descida do penhasco (ainda que fosse descida) tornara-se impiedosa, doía-lhe o inteiro do corpo, os joelhos, os pés, sem forças, exausto, se deixou tombar sobre um tapete de folhas secas – já dando-se por vencido, se a onça viesse – o olhar no infinito das copas das árvores, em busca da luz do sol, um pouquinho só (como uma luz no fim do túnel) mas nem

66  A lenda do homem dourado sequer uma pontinha de céu, perguntava-se, onde estaria Deus?, se Deus quisesse mesmo perdoá-lo, considerando todos os pecados cometidos; ou, talvez o quisesse vivo, de preferência para lhe impor provações. mesmo porque, não tivera ainda o julgamento dos céus e tampouco da lei dos homens, mas essa, de certeza poderia comprá-la, pensou, olhando de lado, o cesto de pepitas; quanto à lei de Deus... Via-se, literalmente no inferno, era somente uma questão do momento seguinte, e vinha-lhe à mente Maria Rita deslumbrada, linda e formosa, uma perdição de mulher, pura tentação, com quem se casara fora traído e despachara o rival para os confins dos mortos, a razão de num dos sonhos pedir perdão à Deus, mas não sabia se fora atendido ou não, cumpriria então, o seu destino, deitado ali, como num estado de inconsciência, no limiar da fadiga e da fome, entregou-se a sorte, de corpo e alma, o cão também se deitou, aparentemente sabedores do fim daquela viagem. Sonhou novamente que uma borboleta amarela o conduzia a um lugar distante, onde chovia estrelas e Maria Rita, correu ao seu encontro de braços abertos e entrelaçou-se ao seu pescoço, como no dia do casamento em seguida ao pároco dizer amém – ninguém por lá para lhes atirar grãos de arroz ou lhes desejar felicidades naquele dia, quando acreditou que podia ser feliz, agora, num átimo acordou, sem saber o quanto dormira com

Jairo Ferreira Machado  67 a sensação de que desmaiara e por instantes fora levado para o céu totalmente estrelado, seria uma cidade?, o cão ao lado, olhando de esgoela, levantou como se alguém lhe infundisse na veia uma poção mágica de energia, esperou o cão dar os primeiros sinais da partida e seguiram em frente. Horas após deteve-se, impassível, diante de um riacho, sem muito querer interromper os passos, mas, forçado pela lassidão – como se o corpo, as pernas, os braços, já não lhe obedecessem mais – precisava saciar a sede, era como não tivesse mais as pernas, sentou-se despojado de qualquer esperança e triste, fechou os olhos, já obediente a morte; desmaiou, tempos depois, acordou, o riacho corria límpido e murmurante à sua frente, como se lhe falasse, vamos comigo; debruçou-se e tomou toda a água que podia, também o cão o acompanhou, na lembrança, os moinhos que fazia quando menino, a força da bica d’água girando as palhetas do moinho, arremessando para o ar os pingos d’água contra a luz do sol, formando a miniatura de um arco-íris, ele ali próximo à bica, admirando o próprio feito, quando ainda menino... A realidade era outra: já homem, encontrara a mulher dos sonhos – a primeira de sua vida – casou-se, foi traído por ela, pusera fim ao rival, fugira para os confins da selva, encontrara lá um lugar paradisíaco, um lago dourado, um riacho de ouro, fora atacado por uma felina

68  A lenda do homem dourado selvagem, fugira de lá a tempo e agora estava voltando, ele e o trigueiro; olhava o riacho, que parecia reluzir a ouro; mas eram os seus olhos, ainda refletindo a cor do metal e isso lhe deu um ânimo, Deus tinha algum outro propósito para si, era o riacho lhe queria dizer, o cão – o bezerro de ouro –, já não reluzia como antes, já passara muitos dias desde o último mergulho no lago, podia acreditar nos instintos do cão?, talvez sim, seguiram o riacho... A fome, o esgotamento físico e mental já lhe embotava o raciocínio; com receio de se perder caso se afastasse do riacho, não tivera a sorte de se alimentar naqueles últimos dias, preferiu a esperteza do cão, a selva como o infinito, o céu, que há muito não via, as forças se acabando, ele, os olhos perdidos na infinidade da constelação de um vegetação terrena, onde ninguém estivera até então, impossível que qualquer humano, em sã consciência se meteria naquelas paragens, naquela escuridão infinita, naquela umidade maldita, assim, por nada se afastaria do murmúrio do riacho e à medida que recobrava os sentidos, foi se dando conta de algo memorável – aquele riacho tinha algo em comum com o seu olhar, com seu paladar, com sua audição, algo que sua mente ia aos poucos recordando a água que tomara lá atrás de onde vinha, parecia ter lhe resgatado as energias perdidas durante a fuga, agora, sentia-se mais fortalecido de corpo e mente, o cão parecendo apertar o passo...

Jairo Ferreira Machado  69 Abriu bem os olhos, o coração palpitava-lhe mais forte, anímico, como se lhe acendessem todos os cinco sentidos e mais a força do pensamento; emocionado, já não sabia se ria ou chorava, parou, abraçou o cão, e esse retribuiu, lambendo-lhe a face, diria, gritaria qualquer coisa, se soubesse falar, logo à frente viram o frondoso carvalho em cuja casca, pesaroso, entalhara uma cruz invocando perdão a Deus pelos pecados cometidos, e seus olhos sorriam, por fim, o cão já muito manquitolo, também parecia sorrir, o carvalho lhe dava boas-vindas, a selva das folhas lhe sorriam, a selva lhe sorria, tinha por afim, ganhado mais alguns amigos, tanto, que era capaz de abraçar a onça, caso a encontrasse e se essa, em contrapartida, lhe perdoasse pelo tiro, mediu, no pensamento, a extensão daquele lugar até a cidade, e concluiu: estava mesmo próximo da chegada, de adentrar a cidade, arrastando aquele cesto de taquara cheio de pepitas... O sonho, o cão, naquela noite, querendo se soltar do laço e correr morro abaixo, agora, era real, a cidade seria toda sua – as pepitas de ouro, lhe fazendo crer! – e abraçou o cão mais uma vez e chorou o quanto a emoção e as forças lhe permitiram; lágrimas que encheriam o lago, a profusão de um lago dourado à ouro; Oh! Maria Rita; via os olhos dela cheios de brilho, correndo a abraçá-lo, o cão ao lado, seu guia, seu salvador, oh Deus compadecido, que o havia trazido de volta – embora não se julgasse merecedor – lá

70  A lenda do homem dourado no fundo da alma, o peso do pecado maior que o peso das pepitas, ainda assim, acreditava que Deus estivera ao seu lado todo o tempo; nada mais temeria, não estava mais sozinho, todos os deuses estavam consigo; mais um dia ou dois, arrastando-se como se arrastava, os pés cheios de chagas, desnutrido, o peso do fardo, sim, chegariam à cidade... Viram novamente, depois de muitos dias, a luz do sol e o azul do céu, sentindo no olhar o ardor da claridade munida de felicidade, o coração lhe propulsando forte no peito, chorou, e eram lágrimas douradas; sim, mais um dia ou dois chegariam – dizia a si mesmo –, com os olhar de regozijo em um mundo que resplandecia novamente à sua frente; de crisálida a borboleta, e essa era, amarela, restava saber se as pernas aguentariam? chegasse à noite, atreveu- se a imaginar, veria a cidade iluminada, como uma noite estrelada – a abóbada celestial – como manto de luzes alumiando o seu particular Jardim do Éden; fosse durante o dia, veria por primeiro a torre da igreja, onde esposara Maria Rita e já lacrimejava de alegria, ainda desconfiado da sorte, como seria se superar os percalços por vir; lembrou-se do momento com Maria Rita, a igreja iluminada e o pároco dizendo: amém; depois, lá no riacho, o espectro reluzente das pepitas de ouro e aquele imenso santuário perdido de onde saíra fugido de onça, sem nenhuma esperança de chegar vivo; finalmente, acreditava que sim.

Jairo Ferreira Machado  71 Caminhou devagar, tateando o chão, seja, um passo e muito tempo depois outro, tanto vagaroso no andar como no pensamento, ainda que a vida agora não requeresse mais pressa: tinha tudo ou pensava que tinha, somente temia não chegar, considerando o enorme esgotamento física e morrer ali antes de ver novamente o sol surgindo de detrás das montanhas em cada manhã, como o habitual do rancho onde morava, a imensidão do sol, o astro-rei com seu dourado lhe trazendo lembranças do lago, da luminescência das pepitas no fundo do riacho, agora, aquela bola incandescente embebia de luz o seu olhar, resgatando suas forças anímica que o levantou daquele lençol de folhas, friorento e úmido e via à distância a torre da igreja, e mais uma vez chorou, o coração lhe palpitando forte no peito, com receio de lhe faltar forças para chegar e a apreensão de como seria recebido, afinal, era um assassino; parou novamente, olhou mais uma vez a cidade e lá embaixo, no final de uma rua qualquer, de um bairro afastado do centro, a zona de baixo meretrício, iluminada pela penúria de um poste, lá, de certeza, estaria Maria Rita, se dava a obrigação de achar que sim, senão, onde estaria Maria Rita? Mas o que isso importava?, no alforje levava a pepita de ouro, a maior delas, reservada cuidadosamente para o deleite dos olhos do povo, quando lá chegasse, tinha muito mais, as pepitas menores, enterradas num lugar qualquer, onde nenhum cão pudesse encontrá-la, tampouco ser

72  A lenda do homem dourado humano qualquer, a espingarda enterrada ao lado, de caso pensado, sabe-se lá como seria recebido na cidade, talvez precisasse fugir novamente ou não, cuidara antes de manter o cão à distância, amarrado a um tronco de árvore, por precaução – o cão já dera provas da excelente memória e do magnífico faro – era melhor o trigueiro não saber tudo da sua vida, raciocinou e seguiu em frente, agora via a torre da igreja. Deus seja louvado!..,. disse e retirou a focinheira do cão, desatou-lhe o laço do pescoço, beijou-lhe a face, abraçou-o e o deixou livre, para que partisse quando quisesse, mas sequer o trigueiro deu um passo à frente – carne e alma sua! Com muitas dificuldades foi descendo a encosta, evitando os lugares mais íngremes, ainda assim numa sofrível penúria, esquálido ao extremo, capengante, mal tocando um dos pés no chão, arrastando com dificuldades o cesto de taquara, apoiado num cajado; o cão também sofria as dilacerações da carne, tremendo por inteiro, em razão das infecções e da fome, o coitado; à tarde, já num tom crepuscular escuro, quando adentrou a cidade, seguindo por um final de rua solitária, que saía de um matagal, ia desequilibrando-se a todo o momento, de tombos aos solavancos, até pisar nos primeiros paralelepípedos, momento em que o povo mais se aglomerava pelas ruas – pessoas chegando do trabalho, crianças do colégio, as madames sentadas em frente as casas, fofocando, falando da vida alheia....

Jairo Ferreira Machado  73 A mente ainda conturbada, cabelos e barba comprida, pés chagásicos, roupas aos frangalhos, o cão ao lado, manquitolo como sempre, ambos, já sem forças de seguir em frente, acentuava-lhe o par de olhos encovados, já sem o brilho natural, assim, de través olhando para as pessoas o considerando estranho, saído daquela selva dos confins e entrando noutra como uma caveira andante, numa situação de qualquer um se apiedar, sem a certeza de onde estava indo, o povo desconfiado, alarmadas, as crianças se escondendo em suas casas, as madames agora, fechando portas e janelas, mas curiosas para depois alardear pelas vizinhanças como um bando de pássaros agourentos – Viram o andarilho arrastando uma coisa estranha pela rua – diziam outras – tá mais para lobisomem!..., o cão, já sendo, o coisa ruim!, diziam outras, e ele, indiferente, tinha o olhar longe no final da rua, pouco enxergando o espectro luminoso que vinha da torre da igreja, para onde caminhava, ou imaginava chegar lá, hora exata em que os sinos badalavam a Ave-Maria, o cão ali, também cambaio das pernas, rosnando para quem ameaçasse se aproximar, mesmo que fosse por pura compaixão... O tino já lhe faltando, sem saber onde queria chegar, no cesto de taquara improvisado, levava a própria ressurreição: a pepita, a maior de todas!, vultos, muitos vultos ao redor, vozes indecifráveis, bocas escancaradas, presas de onça, então estaria ainda lá na selva, naquela escuridão dos infernos, trombando em troncos de

74  A lenda do homem dourado arvores, em rochas, senão rolando de penhascos abaixo ou caído pelo chão e o cão, pesaroso, vindo lhe lamber a cara, modo ressuscitá-lo; não era alguém lhe trazendo uma vasilha d’água – oferecida de longe – a fulano mais pretendendo matar a própria curiosidade – quem seria aquele? –, do que pra ajudar, mas disso não tinha tanta certeza, mas aceitou, mais pelo desejo de se comunicar do que de beber, e no limiar das forças, a vasilha d’água na mão, tombou lá no chão, feito um tronco de árvore caído, desmaiado; voltou a si, horas após, já no hospital, no latejo da febre, já tinham lhe dado banho, trocado suas roupas, os lençóis limpinhos, as feridas dos pés e das mãos já curadas, o soro lhe correndo na veia, e perto, um bando de curiosos, hienas, a cidade inteira se aglomerando nas imediações do hospital, todos querendo saber da pepita – quanta hipocrisia! – a polícia, no cordão de isolamento, os jornalistas tentando agendar a primeira entrevista, o delegado já tinha reservado uma das celas da cadeia, alguém disse, o prefeito tirava vantagens políticas do caso, ninguém vai prendê-lo, o pároco avaliando a conveniência de uma missa campal – o homem é um enviado de Deus!, o povo num reboliço só, donas-de-casa eufóricas, deixando os afazeres para depois,, esquecendo o assunto das novelas da TV; professoras e alunos discutindo o episódio nas salas de aula – tema de redação, ponto de vista, os cambau! – o fotógrafo da cidade, já nas ruas, vendendo pilhas e mais pilhas de fotografias – aproveitando-se daquele estado de miserabilidade do sujeito, as pessoas comentando – Olha

Jairo Ferreira Machado  75 quanta parecença, gente! É o próprio Cristo crucificado! – Cristo uma ova! – dizia outro, é o “coisa-ruim” encarnado, põe-lhe os chifres e verão!... – falavam alguns (em alusão aos chifres que levara de Maria Rita!). A cidade jamais esquecera aquele episódio e tampouco o capiau – o garanhão lá estrebuchado na cama, – no outro dia, decerto, o seu retrato estampado na primeira página do jornal, a história do assassinato, a fuga, e sua moral e a de Maria Rita, às avessas, mal falada por todos os cantos da cidade, as madames no levante de expulsar Maia Rita da zona, os homens, às ocultas, não concordando; agora, deitado numa cama macia, voltava a si sentindo o odor químico dos medicamentos, preferia antes, a fragrância dos matos, dos arvoredos, das flores, ainda que muito sofresse lá, e já não lembrava onde estava

76  A lenda do homem dourado e no momento seguinte, despertava, olhou sobe a mesinha de cabeceira ao lado e notou o alforje de todo vazio, não se preocupe, disseram, o que havia dentro foi recolhido aos cofres do banco da cidade, obra do gerente com a anuência do delegado e o testemunho de um monte de desocupados, pessoas dAs mais ricas da cidade aos mais coitados, da mais bonita balzaquiana à empregada, do mais sábio ao desinformado, todos querendo ver o vil metal, decerto, muito mais que simplesmente ver, tocá-lo, mas os guardas os afastavam com o rigor da baioneta. Já melhor do raciocínio, perguntou do fiel amigo, o trigueiro, disseram, foi levado ao veterinário e submetido a uma cirurgia de modo extrair-lhe alguns espinhos encravados nas patas, no peito, mas passa bem – então, o cão passava bem, cuidou de tranquilizar-se e dormiu, imaginando a reviravolta que tudo aquilo causara à cidade; contudo, mesmo no conforto de límpidos e perfumados lençóis, continuava preocupado, receoso da insensatez das pessoas a sua volta: quem dera ali, o seu cão trigueiro, distribuindo dentadas em quem quisesse saber demais; ouvia conversas de que o delegado fazia planos de trancafiá-lo na cadeia da cidade, assim que saísse do hospital, por conta do assassinato, mas tinha a seu favor, os advogados – uma penca deles – dezenas de cartões ali sobre a mesinha de cabeceira, acompanhado do bilhete – Senhor, Doutor, vossa excelência matou em defesa da honra, logo, o defenderei com unhas e dentes, assinado:

Jairo Ferreira Machado  77 fulano de tal, beltrano, sicrano, todos uns corvos!, isto mesmo, corvos, e já não conseguia mais dormir, os olhos arregalados naquele montão de gente à sua frente; infelizmente, faltava-lhe o sorriso de Maria Rita!, teve vontade de saber dela, mas tinha receio da resposta que ouviria... Sonhou, à sua frente muito mais que a onças, hienas, lobos, jaguatiricas, suçuaranas, dezenas delas, os bichos atacando de todos os lados, o cão trigueiro, corajoso, lutando bravamente, Maria Rita ali o arrancando das garras daquela gentalha, inda que a experiência do casamento fora desfavorável, preferia àquelas mãos suaves, macias e aqueles lábios carnudos carregados no batom ruge – estava mesmo no tremor da febre – a cama estremecendo, acordou e veio-lhe a imagem do lago dourado, o calor do sol enchendo de ânimo a sua alma, as nuanças das vestes reluzindo a ouro que vinha do fundo do riacho, porém, nada além que o fogo da infecção o queimando por dentro; delirava, chamando pelo nome de Maria Rita, não demorou muito e já alguém foi saber onde a “moça” estaria, muita gente sabia, e no aconchego do hospital, na maciez da cama, recomponha-se da infecção e já com outros ares pediu comida, mais engoliu que comeu, era a primeira refeição desde quando fora embora, passados quarenta dias, os olhos, a boca, o estômago degustavam o sabor da refeição, tanto quanto a sua alma sublimava, desperta, agradecida,

78  A lenda do homem dourado Sentiu que podia sair da cama, levantou-se, amparado por meia dúzia de mãos e braços, como se fosse uma celebridade, pediu que o levassem à janela, levaram, queria ver o sol e certificar-se que estava mesmo vivo, estava, encheu os olhos de lágrimas, e aquilo não era mais um dos seus sonhos, lá da rua, centenas de mãos abanando – o povo aos seus pés! – quisesse, seria Imperador, Rei ou um tirano qualquer adorado pelo povo, jurariam que era o bezerro de ouro, e logo o prefeito da cidade, Maria Rita, a primeira dama; o pároco, mais contido no olhar, os casaria novamente, o povo num requinte só, terno, gravata, vestuários da moda, a igreja toda enfeitada apinhada de convidados, o cão, sestroso, com um laço de fita amarela no pescoço, bem lá no pé do altar, o povo querendo a qualquer custo saldá-lo, quanta hipocrisia!, em quem daquela cidade, acreditaria, o prefeito foi o primeiro a cumprimentá-lo (não seria bobo de perder a oportunidade) acostumado a ir onde o povo está – lá se encontrava, bonachão, chapéu panamá, terno branco, para ver o capiau – agora, toda aquela gentalha o considerava herói – de capiau à homicida, de refugiado a Rei – retornara dos cafundós da selva, rico e de repente homem de sucesso, e aquele político astuto, ali, a sua frente, fazendo planos, podia adivinhar-lhe os pensamentos – eis aqui senhores um ótimo candidato para vice na minha chapa – javali dos piores, já se via com o poder na mão, além do que, o matuto ali era milionário, contabilizando mais pepitas camufladas pelo interior da selva e mais

Jairo Ferreira Machado  79 aquela pepita guardada a sete chaves, que arrastara da fonte, pensava o alcoviteiro, era só uma questão de tempo, logo descobriria a mina – sorria malicioso o sovina – que já tivera um caso com Maria Rita, agora, lhe vinha de lero- lero, dando-lhe boas-vindas e tal... – se depender de mim, não haverá cadeia, e se o delegado insistir será transferido de imediato ou quando pouco, perde o distintivo. Indivíduo cara de pau!, descuidasse, seria engolido por aquele gatuno – reconhecidamente explorador do povo – mas ainda assim o povo votava nele, chegasse ali o trigueiro logo rosnaria e avançaria naquela maldita goela, o cão sabia antever o perigol – acostumado que estava às últimas pendengas lá da selva – farejava de longe o risco, e aquele sujeito ali não valia uma unha sequer do seu cão; os dias passando, visitas, as mais inusitadas, tempo depois veio o primeiro advogado, de terno, gravata, sapatos de couro luzidios, prometendo mundos e fundos – jararaca das bravas – descuidasse e logo tomaria uma picada, oh que falta fazia o cão – Assine aqui esta procuração, me confiando sua defesa e pode esquecer a cadeia. – capaz!, pensou em silêncio, um dia depois foi a vez do gerente do banco (não era flor que se cheire) em outros tempos lhe negara emprestar um tostão – sua pepita está bem guardada, já mandamos avaliar, o seguro exigiu o registro no cartório – e sorria de balançar a pança o pançudo, e já falou do adiantamento de algum dinheiro – o senhor sabe, haverá despesa do hospital, o médico é careiro (precisava

80  A lenda do homem dourado dizer?), falou, falou o mal-intencionado, e em seguida se foi, indignado, sem nada assinado (não era bobo de meter o jamegão no papel dele!), mais tarde veio o barbeiro, todo paramentado, jaleco branquinho, tesoura afiada, navalha nova, um corte de pano azul-claro passado, dobrado e redobrado ao esmero, usaria como guarda-pó para o corte do cabelo e da barba do astro ali, serviço completo, o mais incrível, inacreditável mesmo, era cortesia, serviços contratados pela vizinha, aquela balzaquiana que ajudara na empreitada de expulsar Maria Rita, “aquela puta”, do seu bairro; não é que a cobra coral mudara de ideia da noite para o dia. O cão bem a conhecia, quando ela passava em frente à casa de Maria Rita, olhando de soslaio, já de longe o cão rosnava, mais tarde foi a vez do barbeiro – que tampouco não era bobo – já tinha certa a encomenda daqueles cabelos e barbas, dourados, fora ideia do ourives da cidade que pagaria qualquer preço por aquela juba, já corria longe a fama do homem dourado – Tosei, eu mesmo, o cabelo dele, véspera do casamento, juro que não era dourado, nunca foi! – afirmou o barbeiro, que também saiu dali sem nada prometido, Indignado, não via o momento da alta hospitalar, tinha-se nos nervos com todo aquele requinte de trata- mento, como se fosse Rei de verdade, antes, passava pelas ruas e ninguém notava, era qualquer um, cumprimentava e não correspondiam, se muito olhavam de soslaio, casara

Jairo Ferreira Machado  81 com Maria Rita e ninguém fora ao casamento – Capiau, bocó, burro! – isso, diziam, foi traído pela mulher, atirou no coisa-ruim, estava fugindo e os moleques gritando – Corre chifrudo!, fora caçado como bicho selvagem, pagara por lá seus pecados e agora o queriam num pedestal, por causa do vil metal, aquela grande pepita, sabe-se quanto pesava; pura hipocrisia! e veja que nem sabiam do restante, daqueles tantos ouros escondidos por lá, e daquele imenso lago dourado, as águas banhando na solidez do ouro ao longo do riacho e depois derramando no lago onde habitualmente se lavavam (ele e o cão), desconfiassem do quanto havia de ouro por lá, de certeza aquela montanha viria abaixo, e a cidade onde residia se transformaria num inferno; o pároco, também astuto já se imaginando rezando missa todos os dias e o sacristão passando a sacola e as notas grandes caindo dentro, estava ali, de olhar ambicioso no dourado de sua barba. – Meu filho, em nome de Deus, está perdoado!, e não ficou somente nisso, mal intencionado, recomendava à irmã de caridade que não poupasse esforços nos cuidados, conquanto que em hipótese nenhuma o banhasse no chuveiro – Passe pano úmido nas dobras; e guarde os trapos – já imaginando o resíduo valioso que sairia dali. Decerto, o padre não esquecia o reluzir daqueles cabelos e barba nos seus olhos, desde o primeiro encontro, quando fora chamado para extrema-unção – Seu padre, venha correndo, o homem está morrendo, corra seu padre!

82  A lenda do homem dourado –correu, lá chegando, encontrara-o maltrapilho, caído e desacordado no chão, lá no íntimo se perguntando – De onde terá vindo esta alma dourada, divina?, que Santo dourado é esse cristão!, mas no que tentava se aproximar, o cão, ferozmente latia, mantendo-o a distância, tinha mesmo razão, o sábio cão, a polícia viera de cambão e tudo e prendera o fiel amigo, só dessa maneira o pároco e o médico se aproximaram para os primeiros socorros; naquele dia, o pároco foi o primeiro a notar a pepita no alforje, caído lá no chão, arregalou os olhos, agora esse, estava ali à cabeceira de sua cama, novamente, de terço em mãos, rezando, jogando água-benta, oh! Maria Rita!, teve receio de perguntar pela “moça”, embora somente ela pudesse lhe devolver o ânimo da alma com, aquele calor lascivo, aquela ostentação de seios e coxas – os seus fluidos estagnados desaguando nela... Os dias passando, o médico na contraordem – Ainda há riscos. Devemos considerar o período de incubação de certas doenças, vírus, malária e a exposição ao metal etc, mais uns quinze dias, talvez – refletia lá nos olhos do doutor a luz áurica de sua barba, o doutor querendo, a qualquer custo, saber muito mais: nome completo, local de nascimento – só como disfarce – vida pregressa, lugares, veredas, onde estivera, em que parte da montanha andara: a latitude, a longitude, se a oeste ou a leste, o que vira por lá, o que mais recordava, se tinha mosquitos, se fora picado por aranha, cobra, mandarová?, perguntava

Jairo Ferreira Machado  83 o doutor como ardilosa raposa!, mas não abriu a boca, se muito disfarçava alguma dor, inventava histórias, as mais estapafúrdias, outras vezes simulando amnésia – justificada pelo sofrimento dos dias de inanição, perdido no meio da selva fechada, sabia nada daqueles dias... Embora pouco, mas sabia, o cão, decerto, sabia muito mais, até as trilhas, as encruzilhadas, os riachos, daí, naquele momento a preocupação com o trigueiro, e se alguém lhe roubasse o cão, imaginou, era bem capaz de o trigueiro, sem querer, ensiná-lo o caminho da mina – o faro infalível! – além do que tinha contas a acertar por lá, com a danada de uma onça; precisava, urgente, sair daquele hospital, por certo o trigueiro corria perigo de vida, seria morto, por uma alcateia de lobos, assim que descobrissem a mina – Senhor doutor, devo, não nego, pago assim que vender a minha pepita, coisa de semana, doutor, e saiu, não, não ainda, Maria Rita vinha rebolando corredor a dentro, como toda puta que se preza, os servidores, doentes, de queixos caídos, a “moça” trajava blusa preta e saia amarela curtíssima (deixando transparecer as mesmas coxas de antes), bolsa, colar e brincos combinando, no melhor estilo, Maria Rita; podia ver o reluzir do ouro naqueles olhos, como dois ônix, e o jeito de poderosa apressou-se e tomou nos braços, esquecida que ainda estava frágil e dolorido; um abraço escandaloso, como se ele fosse dela, unicamente dela – nunca tinha sido!, os dois se merecem”, dizia o povo!, mas tampouco isso importava

84  A lenda do homem dourado agora, seus olhos marejaram de lágrimas, soube pelo rádio, disse, quando fazia ponto numa cidade vizinha; o rádio anunciando a toda boca – Homem fugitivo, retorna da selva, dourado da cabeça aos pés! Só podia ser ele, o seu capiau, já por muitos, dado como morto, e agora, de repente ressuscitara dos confins da selva. Ela o deixara desgostoso da vida e agora vinha lhe pedir perdão, estava voltando única e exclusivamente por ele – Mentirosa! – mas o que isso importava? nunca fora mesmo santa, e quem era santa ou santo naquela cidade de traiçoeiros, em quem confiaria, à exceção do cão trigueiro, acenou àqueles que lhe deram assistência, pegou sobe a mesinha de cabeceira o alforje vazio e se foi, pelo corredor do hospital afora, amparado por Maria Rita ali sorridente como nunca (decerto já sabendo da pepita de ouro) ele dando por satisfeito sair vivo daquele recinto reascendo a química, Maria Rita o exibindo e toda espécie de gentalha que o aguardava na porta do hospital, todos querendo dando vivas, quanta hipocrisia!, o povo vive das emoções do momento, seguiram pelas ruas em direção a Clinica Veterinária e lá estava o trigueiro alegre e folgazão – o senhor não acredita, sentiu o cheiro antes de vocês entrarem na rua, levantou-se e começou a abanar o rabo – disse o veterinário, de fato o cão estava bem saudável, coleira nova, um laço de fita amarela no pescoço. – Frescura deles! – dissera-lhe o valente, com os olhos de desconfiança, pudesse, arrancaria o adorno às dentadas, e num pulo, se entregou ao colo do

Jairo Ferreira Machado  85 dono,, lambendo-lhe o pescoço, a face, os cabelos, numa incontida satisfação, tanto, de Maria Rita demonstrar ciúmes; agradeceu e recomendou ao veterinário que pendurasse as despesas, logo, logo passaria ali para acertar as contas; não andou três quadras e o delegado lhe deu voz de prisão, Maria Rita quis desconversar, mas não adiantou – ali, em plena rua, ela não tinha poder de convencimento – na cama, decerto que sim, Instante em que chegavam os advogados, meia dúzia deles, também o prefeito, o vereador, o gerente do banco, o dono da fábrica – de onde ele se despedira naquele fatídico dia –, o pároco, o ourives, o povo e a vizinhança, dizendo – bobagem, solta o homem, ele já pagou seus pecados, não há mais flagrante, pode responder o processo em liberdade – dizia em voz uníssona os “bem intencionados”, diante das circunstâncias, o delegado não era bobo de insistir, abriu a algema; livre daquelas onças, jaguatiricas, javalis, porco do mato, seguiu o seu caminho – o cão de um lado, Maria Rita do outro – as pessoas olhando de longe, outras, tentando se aproximar na intenção de tocá-lo, como se fosse um pop star, bem sabia por quê, o cão reagia, latia, rosnava pretensioso, louco para uma desforra – sabedor de como os cidadãos o tratavam, antes do capiau levá-lo para o sítio, o mais longe que chegaram foi a uma pensão barata, que aceitou de bom grado a permanência do cão no quarto – o cão, ele e Maria Rita – muitas mulheres querendo o lugar de Maria Rita, muitos homens, pretendendo ser ele, o capiau sortudo, que reluzia a ouro.

86  A lenda do homem dourado A cidade inteira interessada no cão, cão não fala, corria o boato de que o veterinário recolhera ouro da bacia onde lavara o cão, o ourives fora chamado às pressas e pesou o metal, quase morrendo de infarto – o cão tinha ouro até nas orelhas – não é que o cão valia em peso de ouro, porém, mais valeria se alguém lhe pusesse a mão com a intenção de chegar à mina, pôs-se a raciocinar, era verdade, o cão valia, quando pouco, uma mina de ouro, olhou o cão, ali deitado junto a sua cama, o primeiro que o tocasse morreria feito o finado – de tiro no peito; precisava redobrar os cuidados, mas naquele momento o que mais queria mesmo era o corpo de Maria Rita, que lhe sugeriu um banho de imersão, reconfortante, disse, embora Maria Rita quisesse mesmo era matar a curiosidade, o que ficaria depois, no fundo da velha banheira – pôr à prova a falação do povo; concordou, não custava nada sujeitar-se a mais um caprichos dela, e deixou-se banhar à revelia, da cabeça aos pés nadou no corpo de Maria Rita, o ouro cintilava como os olhos dela, quanta impudicícia, mas o que isso importava naquela hora, aqueles lábios pedintes pediam mais, dava, depois, entraram juntos sob a água morna do chuveiro, ainda que mal se mantivesse de pé, Maria Rita o ressuscitaria, tinha experiência, aquelas mãos macias lhe ensaboando o peito cabeludo, as curvas, as intimidades, enquanto a água morna do chuveiro escorria-lhe corpo abaixo, Maria Rita nua, inteiramente sua, do exato jeito como ele desejara naquele dia, lá no lago dourado, nos confins daquela selva, sabe-se lá onde?, tinha a quase certeza

Jairo Ferreira Machado  87 que o cão saberia; felizmente, tinha tudo que precisava ali, naquele instante, naquele quarto, o cão trigueiro e toda a sensualidade de Maria Rita, aquela língua quente cheia de malicia insinuando inteira no fulgor do seu corpo, as mãos dela buscando as minúcias há muito contidas, com todo o saber de uma “mulher da vida”, deixou-se conduzir, e já reconfortado desfaleceu, da fadiga e do gozo. Não se importava com o que viria depois, depois que se restabelecesse do cansaço, no dia seguinte àquele momento impar (o povo lá fora, é que decidiria), Maria Rita também ressonava a sua devassidão, o cão, no canto do quarto, digerindo um naco de carne que a dona da pensão lhe dera, de cortesia, o cão, na boca do povo, era um príncipe todo dourado; Maria Rita, a partir daquele dia, era adorada, uma deusa concubina, mas deusa – a primeira dama da cidade, a vida, agora, mudara por completo e entregue aos efeitos da orgia e do cansaço, oh Maria Rita, levado pelo últimos acontecimentos, sonhou, um sonho quase real, estava em pé, sobre um palanque, numa das mãos segurava a pepita de ouro e na outra, um facão; profecia?, naquele momento proferia entusiasmado discurso, sem falar coisa com coisa, mas também o que importava (todo político fala!) qualquer que fossem as mentiras que pregasse, de certeza, as pessoas acreditariam, era candidato a prefeito da cidade. O povo votaria assim mesmo, valia mais o dinheiro e o poder, o ouro, o facão, inda mais aquele ali de cabo

88  A lenda do homem dourado repleto de piques, marcando seus dias passados na selva, uma de suas relíquias, quantos bichos carneara, para o sacio de sua forme e do cão, via as pessoas ajoelhadas à sua frente (ele, o próprio bezerro de ouro!), o povo rogando por ajuda, mas, queriam mesmo era comercializar seus votos; ato seguinte, ainda no sonho, podia ver a natureza devastada, a selva toda nua (serra pelada), a montanha desvestida de sua roupagem natural, os seus olhos perdidos no nada. nenhuma vegetação, nada que lembrasse daquele imenso universo agasalhado da mais pura natureza, com uma infinidade de espécimes animais, agora, a terra revirada ao avesso, nem raízes ou algo que um dia dali revigorasse, tudo mudado pela maldita busca de ouro, pelos gananciosos; pessoas perderiam ali suas dignidades, virariam bicho e o ouro, num instante sucumbiria das mãos ricos de quem, por muita sorte, encontraria sua pepita, enquanto a miserabilidade imperaria pelas ruas da cidade repletas de desocupados, de pessoas enfermas em razão do trabalho árduo de cavoucar e carregar sacos de terras para os altos das pirambeiras, não se alimentarem corretamente e ainda se exporem a todo e qualquer tipo insetos, vermes etc; mais tarde os pedintes se acotovelavam pelas esquinas, pedindo um pão, um prato de comida, dinheiro para isso, para aquilo; entristeceu-se, os sentidos vagando em busca de uma explicação para tudo que fizera, desde o casamento com Maria Rita, passando pelo assassinato, a fuga e agora voltando àquela cidade, embora lhe

Jairo Ferreira Machado  89 consolasse em parte a nudez descarada de Maria Rita, o descabimento daquele momento; Acordou com Maria Rita o sacudindo, impelida pelo desejo de mais uma secção de orgia antes do café da manhã, assustou-se pensando ser a onça, olhou-a através dos entre seios, os olhos embevecidos da paixão, não se conteve e minuto depois foram às vias de fato, como dois adolescentes, logo em seguida, após um banho morno tomaram o desjejum, a mesa posta dos sonhos, quando lá na selva: omelete, pão, pudim, queijos, frutas, sucos naturais, café com leite quentinho e tudo o mais que seu desejo apetecia, o “manjar dos deuses!, Maria Rita sua mulher, mãe de seus filhos, dava-se ao direito

de imaginar, o cão já mastigara, de cortesia, a ração do dia, Maria Rita lindamente produzida e faceira, dizendo – O gerente do banco quer você lá, na agência, hoje, as onze horas, o banqueiro vai estar presente, mandaram avisar, que esperassem, pensou em silencio, saboreou o desjejum como se beijasse Maria Rita – a doçura daqueles lábios de mel, em seguida saíram em direção ao banco, o povo, sempre por perto, importunando, Maria Rita, num rebolado único, o sol da manhã de um brilho áureo, Maria Rita o exibindo rua afora, espetaculosa como sempre, no aprumado vigor de meretriz, ainda mais naquelas circunstâncias, o cão preso à coleira, os pelos eriçados, cara feia, rosnando, mantendo longe quem pretendia se aproximar; os flashes disparados, hipócritas!, os cabelos longos, penteados por Maria Rita que também lhe encomendara camisa branca de mangas compridas, calça azul marinho e um par de alpargatas confortáveis – a loja mandara entregar naquela manhã; depois de todo o mal que lhe causara, sentiu-se na obrigação, bom gosto não lhe faltava! Repórteres de todos os cantos e recantos, não fazia sentido, em outros tempos, não havia nada daquilo, o ouro reluzindo nos olhos dos felinos – onças, jaguatiricas, gatos selvagens, suçuaranas, todas, com mais fome que os bichos selvagem da selva, o cão rosnando, mas de nada adiantava a brabeza do trigueiro, eram muitos, atacavam aos bandos – O que o senhor pretende fazer da pepita? – É

verdade que vai doar à igreja? – Em qual parte da montanha o doutor esteve?... (diabos!, de repente, virara doutor!); a imaginação do povo, tirando conclusões precipitadas. – É verdade que o prefeito o convidou para candidato na chapa dele? (tinha lógica!); naquele dia, lá no hospital, só faltara mesmo o sem-vergonha falar com todas as letras – É verdade que o banqueiro ofereceu uma fortuna pela pepita; o senhor confirma? Gente aluada, bisbilhoteira – Estão dizendo que vai comprar todas as fazendas da região, é verdade? Não havia respondido uma só pergunta quando adentraram o banco – ele, o cão e Maria Rita – lá dentro, as piores raposas, as mais astutas que já tinha visto na vida; Maria Rita sestrosa, sentada numa poltrona cor vinho, aveludada, o torneado das coxas bem à vista, o cão não tinha sido convidado, mas entrou assim mesmo, de pelos eriçados, olhos arregalados, flashes e mais flashes, onças e mais onças, todas por ali; comparados aos infortúnios da selva, lá era café pequeno, para o seu trigueiro, degustou, com desconfiança, o terceiro cafezinho oferecido, depois de muito recusar, acompanhado do melhor biscoito, enquanto um gorducho bonachão lhe debulhava a lábia. – O banco dispõe de advogado próprio para o senhor, se lhe interessa... Se depender de nós, não haverá prisão; conquanto que a pepita fique guardada aqui; tem apenas um senão: o ouro bruto, como se apresenta, não tem tanto valor no mercado; o que importava, se apenas um exemplar fizera uma arruaça

daquelas? – Estamos consultando um especialista, contudo, o banco lhe faz uma proposta irrecusável; é claro, não precisa responder agora, de qualquer forma, de antemão, vamos fazer um adiantamento; precisamos de alguns dados seus: nome completo, identidade, CPF e logo o dinheiro estará na conta; de certa forma, com a pepita guardada no cofre teria sorte se vivesse muito, o ouro atrairia muitas mudanças ao povo e a cidade. – Por razões de segurança, a sua segurança, principalmente, a pepita deve permanecer no cofre; para nós é uma honra; mas, a honra maior é tê-lo como cliente... quanta hipocrisia! Maria Rita ali de ouvidos bem atentos, interessa- díssima, mas lá no fundo já mostrando certo ciúme da recepcionista que se arreganhava toda para o lado do seu capiau; sim, ciúme de verdade, naquelas circunstâncias, qualquer mulher se apaixonaria, embora o moço tivesse o jeitão de matuto, mostrava um porte físico atraente, olhos grandes e azuis como o céu; ficara bonito de repente, lógico que não, mas bem trajado como estava e com a alma reluzindo a ouro, deixava muito ator de cinema nos pés; muitas mulheres implorariam por uma noite com seu capiau, a recepcionista ali, obsequiosa, escolhida a dedo pelos banqueiros, modo persuadia-lo a assinar o papel, nada mais que uma “puta grã-fina”, mas o que importava toda aquela cortesia?, muita pretensão deles, Maria Rita era puta sim, mas não escondia a profissão – a cidade inteira sabia, os homens dali e de outras bandas sabiam

e suas mulheres também sabiam; comerciava seu corpo, mas não explorava ninguém – dinheiro curto, minguado! – sujeitava-se até ao prefeito, aquele barrigudo cara de pau – o mesmo que o visitara lá no hospital, com propósitos políticos; sujeitinho descarado, aquele; a definir pelas duas, ainda que sentisse na pele a traição, e na cabeça o peso do chifre, ainda assim, ficaria com Maria Rita, estava casado com ela, na mente, fazia tudo para esquecê-la, mas o coração se negava a obedecer; saiu do banco levando algum dinheiro no bolso, mas sem muito se comprometer e foi-se, ele, o cão e Maria Rita, já imaginando o jornal do dia seguinte... Na capa do Jornal, Maria Rita, o cão e ele segurando a pepita – a pedra crescera parecendo muito maior que no seu natural – e se perguntava, o que o safado do fotógrafo fizera para a pepita se agigantar daquele jeito, trapaça, decerto que sim!, e o repórter insistindo, implorando a exclusividade da entrevista (não seria bobo de bater com a língua nos dentes!), o silêncio era sua única salvação, a garantia de que continuaria vivo, o risco maior, era o faro e a memória do cão trigueiro, em razão disso, mantinha-o preso à coleira e amarrado à cintura, dia e noite. – Lá vai o homem dourado e o seu cão trigueiro. – a cidade inteira num fuxico só, o vigiando, uns até faziam reverência, outros o veneravam e os mais crentes o santificavam – Tem parte com Deus! – Mais certo com o Diabo – agouravam outros! – pura sandice, nenhuma semelhança com o Divino,

embora, ao chegar ali parecesse, o Deus barbudo da tão propalada crença cristã, ainda que morresse e revivesse milhões de vezes, e não cometesse nenhum pecado – como o de agora – mesmo assim, não chegaria aos pés do altar da santificação, embora pressentisse Deus e toda Sua obra pelos caminhos da selva, mais precisamente naquele paraíso onde permanecera, por quase seis meses – contando também o tempo de ida e volta. Recuperando aos poucos das feridas nos pés, Ia pelas calçadas, devagar, o jeito desengonçado, a face magra, tendo um cajado como apoio até que melhorasse as feridas, o povo o saldando, até então não tinha um nome; ou melhor, tinha sim, apelido, capiau, ainda assim, poucos sabiam, no mais levava a vida no rancho beira- serra, na solidão da simplicidade, e só vez em quando ia à cidade, para as compras triviais, em banco, então, nunca entrara, pensava; fora aquela a primeira vez, estranhou quando o banqueiro disse: – Senhor Lourenço! De hoje em diante, o banco terá advogado a sua disposição... – ouvir o próprio nome, depois de tanto tempo, soou-lhe estranho aos ouvidos; nem sequer lembrava o próprio nome, capiau bastava! Senhor Lourenço, o povo já dera também apelido ao seu cão, Sansão, até aí, tudo bem, a disposição física, a bravura, a luta contra a onça, a sobrevivência, a volta da selva, para ele, era cão, e o chamaria de cão tal qual se acostumara ao apelido de capiau; a rua repleta de gente, gente que nunca vira antes vindos de muito longe,

entidades filantrópicas, pedintes faziam filas em busca de alguma ajuda – Senhor, tenho seis filhos para criar, sou viúva – Senhor! Meu marido faleceu, preciso de ajuda para o enterro – Doutor, me ajude... (Doutor!...). Vejam só o que faz uma pepita de ouro! – É verdade que vai explorar a mina? Meu marido é experimentado em garimpagem. – Senhor! Eu vi tudo, posso testemunhar a seu favor, aquela sem-vergonha... – calou-se no ato, quando o cão vociferou em defesa de Maria Rita... Passou dias se esquivando das aglomerações que se formavam por onde passava, sorte sua, a braveza do cão, o trigueiro se mostrando enojado daquela multidão, assim, avançava, parecendo lhe falar com os olhos – cuidado com essas onças companheiro!, percebia perfeitamente os pressentimentos do cão, Oh! Maria Rita!, quão bonita ela era, desfilando ao seu lado, sapatos altos, esbelta, faceira, cheia de adornos e num instante já nua na cama, agora, já refeito das forças, era páreo duro para ela, sabendo, no entanto, que nunca a satisfazia – tinha a quase certeza disso – mesmo sendo senhor de uma fortuna; com o adiantamento do banco comprara o rancho de volta – servindo-se da hipoteca da pepita, pela quantia muito superior a que vendera, e comprara de volta também a mula, que sempre fora sua, cuidou de melhorar o mobiliário do quarto, uma cama maior para ele e Maria Rita, não custava tentar novamente, afinal, o que faria com todo aquele ouro, se Maria Rita quisesse ir embora

podia ir, nem todo dinheiro do mundo aplacaria aquele cio insaciável, mandou abrir a estrada para quando ela quisesse partir, mais cedo ou mais tarde, ali, no rancho, ao menos se esquivaria daquele povo, pagou o hospital, o veterinário, a pensão – não era homem de lograr ninguém – e aproveitando-se do momento que Maria Rita saiu para as compras na cidade, foram (ele e o cão) para o rancho, entardecia, agora tinha-se sozinho apreciando o sol se por, tendo o cão como seu guardião ali amarrado ao batente da porteira, no seu terreiro ninguém entraria, somente Maria Rita, o cão bem a conhecia, no mais, conjeturava-se sobre o futuro e todas aquelas pepitas, o riacho reluzindo a ouro, o lago repleto de águas douradas... Ansioso, o gerente do banco a todo o momento mandava recados, o ourives querendo negociação, o pároco exigindo confissão e depois presença na quermesse, o advogado (do caso do crime) afirmando poder anular o processo, mas antes queria conversar, uma joalheria de grande porte com propostas interesseiras já estava a caminho, com tudo isso, começou a pensar que melhor seria não ter voltado, ali jamais teria sossego na vida, no rancho teria mais tempo para avaliar as circunstâncias e decidir, sem esquecer-se da segurança, precavido, deitou a foice debaixo da cama, o facão de praxe, sob o cochão, a situação, agora, requeria mais cuidados, sua vida não seria a mesma de outrora, quando ninguém se importava, era apenas um capiau, agora, nem o cão tinha paz, parecendo

farejar longe as onças, as jaguatiricas, e já dera carreira em muitos intrometidos tentando se aproximarem do rancho, no que o cão levantava as orelhas, ele também aguçava os ouvidos e se armava de sentidos e alma alerta, hora em que o sol se escondia no horizonte desenhando um crepúsculo de nuvens áureas no horizonte; naquela noite, o cão ladrava acintosamente e logo ouviu lá fora a voz manhosa de Maria Rita – Meu capiau!... Meu capiau!..., foi ao terreiro, o coração lhe palpitando forte no peito, oh Maria Rita; depressa, meneou a mão modo o cão se calar, mas o bravo insistia querendo avançar em Maria Ria, atitude muito estranha, não era o comportamento habitual do trigueiro, ralhou alto e o cão veio-lhe deitar aos pés, Maria Rita foi chegando, dengosa, toda sorridente, elogiando sua nova morada, pulou já na cama, onde se agastaram aos limites da carne, e se comeram como nunca, aquela boca de lábios rubros, faminta, o vestido de seda tão amarelo quanto uma pepita de ouro, não titubeou... Foi ao último fluido orgástico – não como daquela primeira vez com Maria Rita ainda no papel de meretriz, – pois meretriz de verdade, só faz de conta – se muito Maria Rita fizera foi gemer; porém naquela noite, havia um clima diferente, como se a cabeça estivesse repousada sobre uma pepita de ouro, mas o que isso, importava, não tinha a malicia conjugal para saber o que de fato estava por vir sob os lençóis brancos iluminados por uma luz de lampião, no futuro, decerto, teriam luz elétrica, radio, TV – dissera a ela – Maria Rita ali se doando de corpo,

não tinha certeza se de alma também, mas o que isso importava, estava cego de amor, estafado de tanto gozo, a respiração sôfrega, o coração lhe batendo descompassado, tombou de lado e dormiu; nenhuma fortuna e nenhum ouro saciariam a libido dela, Maria Rita cheirava a cio, resplandecia a cio, por todos os poros, logo, já não sabia se vivia uma realidade ou sonhava, a lua cheia entrando por sua janela, era o brilho dos olhos de Maria Rita e já não sabia o que a lua lhe queria dizer, acorda capiau, acorda capiau, o luar lhe trazendo do fundo do lago a maldição do ouro, alertando-o, Maria Rita era um mulher da vida, e assim, com a cabeça recostada ao travesseiro, acordou, como se não tivesse dormido, sem entender o que se passava, não era noite, nem era a luza, era o sol da manhã, acordando-o, olhou de lado e notou, incrédulo, Maria Rita não estava mais ali, tinha ido embora e levara com ela seu cão trigueiro, e uma dor fina campeou pela veredas do seu coração, oh Maria Rita, o brilho áureo do ouro se esvaindo dos seus olhos, a “puta”, concluiu, dera água de beber ao seu cão assim que ali chegara (não tinha porquê desconfiar daquele gesto de agrado), também lhe dera da mesma água (com algum sonífero dentro), depois daquela inusitada sessão de orgia, logo, estava tudo acabado, a “puta” acordara no meio da noite, de caso pensado, e aproveitando-se da ocasião, engambelara o cão com algum pedaço de carne, de certeza, ajudada por algum outro malfeitor escondido por ali, ajuizou, sem muito imaginar que tudo aquilo

fosse possível; Deus seja louvado! maldita hora em que não dera ouvidos ao cão – o bravo, tinhoso, querendo morder, a todo custo, Maria Rita, assim que ela chegara, naquela noite, seus olhos crispados de dor e ódio; o peito, lá no fundo, mortalmente ferido; pegou do alforje, com os únicos apetrechos que tinha, e partiu, antes, ateou fogo no rancho, com tudo mais que havia dentro, atirou lá a aliança,, a única lembrança daquele fatídico erro, maldita Maria Rita, maldito ouro, maldita cidade... Olhou pela última vez o arrebol cor sangue assoalhando o seu último céu, as chamas tanto queimavam o rancho quanto ardiam no seu peito, nada mais o prenderia àquele lugar, as onças, jaguatiricas, hienas e raposas da cidade, que ficassem com as cinzas, e de recordação, agora, tinham a pepita (eternamente plantadas no cofre), antes, muito antes, preferia os felinos da selva, mesmo que fosse comido por eles, melhor assim, nunca encontrariam o ouro, mas antes precisava resgatar o trigueiro; oh! Maria Rita!, no seu corpo, ainda o perfume dela, na boca o gosto da saliva como um doce de leite, pensava, ao menos uma vez, uma única vez, tivesse conseguido aplacar aquele cio... não olhou para trás – era como se aquele mundo nunca houvesse existido – e novamente adentrou a selva, de onde nunca deveria ter voltado, desta vez, ia sozinho, o olhar atendo aos detalhes, decerto, o trigueiro, engambelado pelo gosto da ração que a dona da pensão lhe dera, iria por ali, de bom grado, já sem o efeito do sonífero, farejando os

seus rastros; o céu, as nuvens haviam despencado em sua cabeça, assim, demorou a encontrar os vestígios da trilha – a mesma por onde retornara à cidade, dias antes – ele e o cão, num lastimável estado de miserabilidade; agora, a cidade inteira estaria num disse me disse, dos infernos, o capiau botou fogo no rancho com ele e tudo que tinha, dentro; tudo se transformara em cinzas!, mas não a pepita, o coitado do trigueiro, decerto, sem querer, farejava a mesma direção, vez que Maria Rita e alguns comparsas, o roubaram para este fim – que nada, acreditava no faro do cão. Oh! Maria Rita, quanta petulância (ser dona de uma mina de ouro!), mas a história ainda não chegara ao fim, talvez Deus, ainda o achasse merecedor, além do que havia aprendido um pouco de astucio com o cão – logo, seguiria o próprio instinto – dias depois encontrou o lugar onde havia enterrado o cesto de pepitas e a espingarda – a trilha, que o levara à cidade, naquele dia e já municiou a arma e seguiu no sentido do jardim do Éden, será?, foi trilha adentro de desfazendo o quando pode dos sinais prováveis do rastro antigo de forma que o cão pudesse somente segui-lo pelo faro, o cão sua alma, sua vida, depois de muito se perder, parou o olhar na cruz entalhada por si mesmo, no carvalho, onde rogara perdão a Deus, naquela primeira vez quando fugia, caso precisasse voltar algum dia, as lágrimas novamente banhavam seus olhos como o riacho que corria em direção à cidade, onde nunca mais


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