Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore LIVRO FINAL

LIVRO FINAL

Published by leocostaabraao, 2022-06-24 03:02:16

Description: LIVRO FINAL

Search

Read the Text Version

Alunos: Gabriela Sthefany, Júlia Silva, Leonardo Costa e Tayuane Lima 1

Dia 10 de fevereiro de 2018 Hoje eu acordei ótimo. O sol estava bem fraco, então fui regar e conversar com as minhas plantas. A Judite, minha flor de petunia, parecia meio desanimada.Tadinha! Então li as notícias (só as boas!) para ver se a cara dela melhorava. Amanhã atualizo você sobre ela, diário. Minhas outras plantinhas estão ótimas. Meu pé de acerola só cresce, graças a Deus! Converso com ele todos os dias.Dizem que a planta escuta o que a gente fala, por isso sempre troco uma boa ideia com elas. Na parte da tarde, fiz um almoço bem simples: arroz, feijão, carne de boi e muita salada. Depois disso, me arrumei e fui para o ponto de ônibus, aqui de frente pra casa. É um ponto bem novo até, muito bem feito, com uma sombra boa e um banco firme para sentar. Sempre que posso, fico vendo a movimentação das pessoas, indo e voltando dos seus compromissos. Alguns cansados, outros com um sorriso estampado no rosto. Eu acho muito interessante ver isso. O melhor é quando param seus compromissos e conversam comigo. Falam da vida, de suas conquistas, dos seus medos. Cada dia que eu fico no ponto, volto com uma história e uma amizade diferente. Hoje não foi diferente! Estava no banco quando uma moça chegou, apressada. — O ônibus para o hospital já passou? - Ela me perguntou, bufando. — Ih moça, acabou de passar…- eu disse, já me compadecendo por ela. — Nossa, não to acreditando! - ela disse, secando o suor - A vida não é fácil mesmo! — Não é? Mas logo, logo chega outro para o hospital, fica tranquila. Ele demora um pouco mais, mas passa. - eu afirmei. — O senhor vai pegar ele também? — Não, eu estou aqui só pra pegar o solzinho da tarde - eu disse, sorrindo para ela. — Que inveja! - ela disse, sorrindo de volta.- Hoje eu vou precisar dobrar no trabalho. A moça estava com o uniforme e crachá do hospital da cidade, além da mochila cheia em seu colo. — Você é enfermeira? - perguntei, curioso. — Sim, do Hospital São Luiz. — Deve ser bem puxado para você - Eu disse, reparando nas olheiras embaixo dos olhos castanhos da moça. — É sim - ela suspirou fundo - O pior é que eu não posso dar muita atenção para o meu filho. Ele sempre está com minha mãe. E o pai…nem tá nem aí pra ele. — Eu sinto muito. - Eu disse. Coitada dessa moça, diário! — Não, não sinta! Vou ralar pra caramba para dar uma vida digna para o meu filho, pra ele não precisar daquele idiota. Acredita que nem pensão paga? - ela disse, o tom de voz dando indícios de raiva. 2

— O seu filho tem quantos anos? — Ele fez sete anos há dois meses. Ela pegou o celular e me mostrou uma foto na tela. Uma mesa com um bolo no centro e cheia de docinhos em volta. Não reconheci o tema, mas parecia ser um desenho. Atrás da mesa, um menino em cima de uma cadeira, com um sorriso enorme no rosto gordinho. — O nome dele é Augusto. Essa foto é a do último aniversário dele - ela diz com um sorriso caloroso. Ah, mães…! — Ele é bem sorridente! - eu disse, sorrindo para ela. — É sim. Mas recentemente está sendo bem complicado. Com o trabalho, eu não tenho dado muita atenção pra ele. Sempre que eu posso, faço hora extra,sabe? — Entendo. — Eu já expliquei para ele o motivo de trabalhar tanto. Ele fala que entende, mas eu sinto a tristeza dele quando eu saio de casa. A mulher começou a se encolher e voltou com o celular para o bolso. Com a cabeça baixa,ela levemente abraçou sua mochila. Eu só consegui ficar em silêncio e esperar. — Falam que os pais deveriam ficar em casa e ver o filho crescer, mas eu não tenho esse luxo. Mal consigo ter dinheiro no fim do mês para pagar todas as contas. Sempre ouço das pessoas que ele vai ficar revoltado quando crescer e que eu sou uma péssima mãe. Mas eu não sei o que eu posso fazer. — Vi seus olhos lacrimejarem quando ela terminou de falar. — Você não é uma mãe ruim. Está dando duro para conseguir uma vida boa para ele... sei que no fundo ele deve entender.Parece ser um ótimo menino. - eu disse pra ela. — Ele é perfeito. - Ela pegou o celular de volta e encarou a foto de Augusto em sua tela — Bom..me desculpa por ficar desabafando minha vida para você. - ela se voltou para mim, envergonhada. — Não precisa se desculpar.- Sorri para ela.É muito bom conversar com as pessoas. — Tem razão. Muito obrigada por me ouvir. - ela sorriu para mim. — Olha, é o seu ônibus! - eu me levantei e fiz o sinal para ele parar. — Nossa! Nem vi a hora passar. - ela disse, levantando também. - Já vou indo, obrigada de novo! — Eu que agradeço por compartilhar sua história comigo. Ela continuou sorrindo e entrou no ônibus, seu semblante um pouco mais feliz do que quando ela tinha chegado. Fiquei feliz por isso. É bom perceber que escutar alguém faz a diferença. Acabei esquecendo de perguntar o nome dela, mas não tem problema. Vou desenhar mais ou menos como ela parecia. Não sou tão bom quanto a minha esposa, mas aprendi algumas coisas. Depois dessa conversa, eu voltei para casa. Lembrei da minha filha quando era bem pequena. Faz dias que ela não me liga, mas tudo bem. Ela deve estar ocupada. Enfim, diário, já está tarde. Farei um chá e irei dormir, também tenho sempre que me lembrar dos remédios. Já não estou tão jovem como antes! Boa noite,até logo! 3

Dia 11 de fevereiro de 2018 Boa noite diário! Hoje acordei bem de novo, e fiz o de sempre: reguei e conversei com as minhas plantinhas. A Judite estava com uma carinha melhor. Quase pulei de alegria,mas lembrei que não tenho idade para isso. Passei na padaria hoje cedo, comprei broa e muito pão de queijo para tomar café da manhã. No almoço, eu não quis comer tanto, então eu fiz uma mistura de arroz, feijão, farofa e ovo e comi na panela mesmo. Não deixe minha médica saber disso! Como o sol estava muito quente no começo da tarde, acabei ficando em casa mesmo.Aqui não tem muito o que fazer, então liguei a TV e tentei arrumar algumas coisas. Varri o chão, tirei a poeira dos móveis e arrumei a minha cozinha. Hoje eu recebi uma mensagem da minha filha, diário! Ela e minha neta estão muito bem. Ela mandou até uma foto da pequena. Depois vou na ótica fazer a impressão dela. No final da tarde, resolvi sentar no ponto de ônibus e encontrei um grande amigo. — Seu João, você por aqui?- Eu disse com um sorrisão no rosto. — Seu Geraldo! Há quanto tempo, ein? Vem senta aí! Sentei ao lado dele e demos um tapa no ombro um do outro. — Como que vai a vida, Seu João? Fiquei sabendo que você se mudou para o final aqui da rua. - Eu disse, puxando assunto. — Mudei. Uma casinha linda e espaçosa! Cícero estava doido por ela, então mudei para lá - Ele disse como se não tivesse outra escolha, mas dava para notar sua empolgação com a mudança. - Se o Cici põe algo na cabeça, nem Deus tira. — Verdade, não é? E como ele está? Está bem? — Está ótimo! Nunca vi um velho arrumar tanta coisa para fazer! É academia, é costura, é cerâmica…um tanto de coisa - João disse enquanto conta nos dedos os hobbies do marido - E quem tem que acompanhar ele nessas coisas? — Você, claro! - eu completei. — Pois é! Mas eu acabei gostando de cerâmica. Minhas canecas ficam mais bonitas que as dele. - Ele disse orgulhoso - Bom, eu não quero só falar de mim- João se virou para mim com uma expressão séria. — Aconteceu alguma coisa? - perguntei, assustado. — Faz tempo que a gente não se fala. Alguns vizinhos dizem que você sempre vem conversar com as pessoas.Passa a tarde inteira aqui. Está tudo bem? — Está. Você sabe que a velhice é solitária. Eu fico aqui para pegar um solzinho da tarde e ver as pessoas. — Entendi. - Ele me olhou, desconfiado. — Sabe que você pode conversar comigo, certo? — Claro! E digo o mesmo, ainda mais agora que somos vizinhos. - Eu disse, olhando os carros passando na rua. — Como vai a sua filha, Amanda? Trabalhando como sempre? — Sim. Olha só,ela me mandou uma foto dela com a Ana hoje. - Peguei o celular e mostrei a foto para ele. — Que lindas! O nome da sua neta é Ana?- Ele perguntou, sorrindo. 4

— Sim, ela homenageou a mãe. João deu um leve sorriso e olhou para frente. Fiz o mesmo. — Sei o que você vai perguntar e sim,estou bem. — Se você diz, então fico mais tranquilo - Ele deu uma leve pausa. - Sabe, esses dias eu estava olhando a minha agenda e vi que o seu aniversário está chegando. Nem para me avisar! - Ele disse, me cutucando no ombro. — Nem eu estava lembrando. Já é sexta que vem, né? Acho que a minha filha vai passar aqui. — Que bom. Faz tempo que ela não te visita? — Deve fazer dois anos, eu acho. - eu disse, tentando me lembrar da última vez. — Isso tudo? - João perguntou, surpresa. — Ela viaja e trabalha muito, então eu a entendo. Já falei que eu posso visitá-la, mas mesmo assim ela não encontra tempo. Ficamos sem falar por um tempo. — Você não se sente solitário nessa casa? - João disse,sério. — Solitário? - perguntei. — Geraldo, desde que a Ana faleceu, você não conversa mais com a gente. Não viaja, está na mesma rotina de sempre. Não se sente sozinho? — Eu não posso sentir essas coisas, João. Seria rude da minha parte falar que estou sozinho, quando ela continua sempre do meu lado - falo isso enquanto mexo no meu anel de casamento. — Gosto da minha casa e da minha rotina. Pode parecer solitário, mas é o que me dá forças. A Ana viveu comigo aqui, nesta casa. Também é o lugar para onde minha filha sempre pode voltar. Ele não disse nada, só me encarou com o sorriso bondoso de sempre. Após cinco minutos, Seu João se levantou do banco do ponto. — Bom, o sol já está quase se pondo. Acho que já deu a minha hora - Ele disse, olhando para o céu alaranjado. - Mas antes… Ele se levantou e abriu a sacola que estava ao seu lado. De dentro, tirou uma caixa de presentes azul. — Um presente para você. - ele me entregou. - Abra em casa. — Não precisava, nem é o meu aniversário ainda. — Não é de aniversário. É apenas um presente de reencontro. Eu preciso ir, meu amigo. Vou jantar com o Cícero agora. Boa tarde - Ele saiu andando e acenando. Eu acenei de volta e entrei em casa, ansioso para abrir o presente. 5

Quando abri a caixa, vi duas canecas de cerâmica. Era perceptível a diferença de qualidade. Uma era mais grossa e irregular, amarela com tons de azul, criando um degradê. a outra de cera lisa e branca com pequenos desenhos de flores vermelhas. Sinceramente, eu amei as duas. Tentarei desenhá-las para você, diário. Ver o João novamente foi muito bom, me lembrou os velhos tempos… Cícero João Diário, você acha que eu sou solitário? Avisei minha filha sobre meu aniversário e perguntei se ela viria aqui me visitar. Sabe o que ela falou? Ela vem! Ela vem! Estou muito feliz, tão feliz que nem consigo dormir. Mesmo assim, vou tentar, diário. Boa noite! 6

Dia 12 de fevereiro de 2018 Bom dia, diário. Sei que normalmente eu escrevo para você a noite,mas quero deixar registrado um sonho que eu tive hoje: sonhei com a Ana,minha esposa! No sonho, eu acordava e ela estava na cozinha, fazendo café da manhã. Ela estava radiante, seu sorriso sempre lindo,sua pele morena brilhando com a luz do sol. Na sala estava a minha filha com a nossa neta,brincando com bonecas enquanto esperava o café. Eu acordei e estava sozinho, não tinha café e ninguém me esperando.Mas elas estão comigo,no meu coração. Eu sinto! Já que acordei mais cedo, vou tentar aproveitar melhor o dia. Fiz meu café e vi as notícias pela TV. Hoje o clima está ótimo, típico de sexta-feira. Olhei pela janela a movimentação das pessoas. Na sexta, sempre parecem bem mais tranquilas e aliviadas. Me senti nostálgico durante um momento, lembrando dos velhos tempos, de quando eu era criança e amava os finais de semana. Por falar em criança, diário, hoje eu tive uma conversa interessante no ponto da tarde. Enquanto eu observava o fluxo de pessoas e automóveis, ouvi o rangido do banco ao meu lado. Quando olhei, quase caí pra trás. Uma criança de cabelos loiros e olhos enormes me encarava. Não deveria ter mais de 4 anos. Ela chupava o polegar com a firmeza de uma pessoa faminta, enquanto segurava com a outra mãozinha a alça da mochila azul que, de tão cheia, parecia ter o dobro do seu tamanho. — O que faz aqui, menino? - Perguntei logo, preocupado. O garoto tirou o dedo molhado da boca para me responder. — Estou fugindo de casa! Vou para Disney ver o Mickey, tio. Olhei ao redor da rua, tentando localizar alguém que poderia estar procurando a criança, mas não vi ninguém olhando em nossa direção. — E sua mãe já sabe do seu destino? Ele se aproximou um pouco mais de mim, e acreditei que fosse um bom sinal. Deveria ter confiança em mim, apesar de não me responder. Um ônibus passou em direção ao centro da Cidade, seguindo em frente quando não damos o sinal. — Acho que não passa ônibus para a Disney por aqui. - Eu disse, chamando sua atenção. O menino suspirou, arregalando os olhos azuis. Deu para notar que não possuia noção do que estava fazendo. Esperei alguns minutos antes de me dirigir a ele novamente. — O que aconteceu para você estar aqui? - Perguntei. — Minha mamãe prefere a minha irmã do que eu. - Ele disse, batendo a mãozinha nas pernas, raivoso. — Então eu fugi de casa. Segurei uma risadinha. — Claro que sua mamãe não prefere a sua irmã. Porque acha isso? 7

Ele olhou ao redor antes de fazer um gesto com a mão para que eu abaixasse a cabeça. Quando abaixei, ele fez uma concha com as mãos no meu ouvido, como quem conta um segredo. — Tio, ela disse que a Laurinha é o amor da vida dela! - Senti seu hálito quente na minha orelha. Me afastei, dando um sorriso caloroso. — E quando ela disse isso, menino? - Perguntei. O sol agora bate em nossas pernas, e soube que já eram quase três da tarde. A velhice nos permite saber de coisas assim. — Quando a Laurinha disse a primeira palavra dela, tio. Olha só! Nem é tão difícil assim! - O menino fala, quase gritando. Por que crianças falam tão alto?— E ela nem disse a palavra inteira. Ela disse só ‘’mama’’. Acho que ela não é muito inteligente, tio. Eu soltei uma risada que não consegui conter. A criança também segurou um sorriso ao me ver rindo. — Que isso, garoto! A sua mãe apenas ficou feliz pela sua irmãzinha. Você também é o amor da vida dela. Sua mamãe te ama! Você não ama a sua mamãe? - Perguntei, já preocupado. Fazia certo tempo que ele estava ali comigo e me questionei o quão preocupada já devia estar sua mãe. Ele evitou contato visual comigo e respondeu bem baixinho — Claro que amo, tio! Mas ela ama mais a Laurinha. Eu sei. Sei que sim. - Ele insistiu, passando os dedos na mochila cheia.— É por isso que eu vou para a Disney. Ela não precisa mais de mim. - Ele disse tentando parecer decidido com suas palavras, apesar de parecer triste. Eu suspirei. — Sabe, a sua mamãe vai ficar super preocupada se você for para a Disney sozinho. Imagina só, nunca mais ver sua mãe ou sua irmãzinha, sabendo que elas te amam tanto, menino. O menino pensou por um minuto. — Eu vou me dar bem sozinho, não se preocupe! - ele disse, bufante. Está sendo teimoso. — Estar sozinho não é tão legal assim como parece, criança - eu disse. olhando mais um ônibus passando. — Por quê, tio? - Ele me olhou com aqueles grandes olhos azuis. Parecia concentrado no que eu falava. — Bem.. o que você acha que é estar sozinho? — Assistir desenho até tarde, comer o doce que quiser e jogar a hora que quiser sem ter ninguém para reclamar- Ele disse, sonhador, como se esse fosse o seu objetivo de vida. — Isso parece bom,mas, você não vai ter alguém para cuidar de você quando precisar. — Eu não preciso de ninguém! Já tenho quatro anos.- Ele mostra sua idade com os dedos. — Mas você não vai ter ninguém para fazer o seu lanche, contar histórias para dormir e te dar um abração quando necessário. O menino ficou pensativo. Ele olhou para frente, observando o trânsito. Eu continuei falando. — E sem você em casa, a sua irmãzinha não vai ter com quem brincar, sabia? - perguntei para o menino. 8

— Verdade, eu sempre brinco com ela. A criança continuava com um olhar pensativo,mas dessa vez virado para mim. — Tio, você tem alguém para brincar? - ele me perguntou, me arrancando uma risada. — Eu já passei dessa idade. Tenho as minhas plantas e memórias. Já é o suficiente. Ele me olhou triste. — Eu amo minha mãe e irmã! Não quero fugir mais! - Ele disse, decidido. — Que bom que pensa assim, garoto. Eu me levantei do banco, já disposto a encerrar aquele assunto. — Você sabe o telefone da sua mamãe? - Perguntei, ansioso. A criança abriu a mochila azul e tirou um caderninho pequeno. — Tá aqui tio, na minha agenda. - Ele disse, apontando o dedo para uma folha. Eu peguei a agenda, digitei o número escrito em meu telefone e esperei chamar. Quando dá o primeiro toque, ouço uma música vindo em nossa direção. Quando me virei, uma mulher de cabelo loiro e os mesmos olhos do menino me encara. Ela estava na esquina e veio correndo em nossa direção. — Pedro! - ela gritou, segurando a cabeça do menino sentado no banco e dando um beijo em sua testa - Meu amor, eu estava tão preocupada com você! — Mamãe, eu te amo mais que o Mickey. Mais que o Mickey, mamãe! - Pedro grita de volta, abraçando sua mãe pelo pescoço. Quando o encontro de ambos acabou, a mãe do menino se dirigiu a mim. — Senhor, muito obrigada, de verdade! Estive procurando por ele por mais de uma hora! - ela disse, sorrindo pra mim. - Que bom que ele estava aqui com o senhor. Sei que é de confiança! Sempre te vejo por aqui. Eu sorri de volta. — Cuida bem desse menino! - Eu disse, já me virando em direção à minha casa. — Tio, espera! Quando olhei pra trás, Pedro estava na minha frente com duas folhas de papel em mãos. — Para você não se sentir sozinho, tio. Eu peguei as folhas. Uma era uma cartela de adesivos e outra estava com o número da mãe dele. — Quando você ficar triste pode ligar que eu, minha mãe e irmã vamos vir aqui brincar com você. - Ele continuou. Olhei para a mãe dele de relance e ela sorriu com a atitude do filho. Parecia bem orgulhosa, diário. — Muito obrigado, Pedro. Vou guardar com carinho. - Eu agradeci, enquanto Pedro ia embora pendurado no pescoço da sua mãe. Hoje foi um dia bom, diário. A pontada no peito que eu sentia está mais fraca. Ganhei figurinhas novas para te decorar, mas não vou usar todas! Talvez eu guarde as grandes de lembrança. Mandei uma mensagem para minha filha sobre o dia interessante que eu tive hoje. Queria que ela tivesse visto a criança. Será que a Ana é igual? A última vez que eu vi minha neta foi quando ela tinha 1 ano.Ela mudou bastante. Sinto uma saudade enorme, mas vou vê-las no meu aniversário. Isso me faz dormir tranquilo. 9

Dia 13 de fevereiro de 2018 Bom dia, diário! Acordei cedo de novo. São 6h da manhã de sábado e está bem fresco aqui no quarto. Tenho que admitir que estou com preguiça de sair da cama, então peguei você e algumas bugigangas e decidi decorar. Espero que você goste. Prometo que vai não deixar tão chamativo. Fiquei muito feliz com as figuras que ganhei ontem e isso me deu a ideia de decoração. Tenho vários lápis de escrever e flores secas guardadas por aí. Então recolhi tudo e aqui estou: fazendo arte no diário. Me deseje sorte. Dei o meu melhor na decoração, diário Como é sábado, precisei aproveitar melhor meu dia.Fiz uma comida simples, misturei o que tinha sobrado do almoço da semana. Eu sentei no banco do ônibus mais tarde e fiquei vendo a movimentação. Não é muita se comparada aos dias de semana. Sempre passava alguém para me cumprimentar na rua, até que um jovem bem simpático sentou no ponto. — Boa tarde, você viu se o ônibus para o Bairro Alegre já passou? — Nossa, acabou de passar. - eu afirmei. — Sério? Poxa, que saco. — Ele colocou as mãos no rosto. Parecia bem frustrado. — Você está atrasado? — Eu perguntei,curioso. — Na verdade não. Só estou indo para casa de uma amiga. — Ele disse,meio sem jeito. — Que legal! Pode ficar tranquilo que daqui a pouco passa outro ônibus para o bairro. — Obrigado — Ele sorriu e pegou o seu celular. Ficamos um tempo sem falar nada. Ele estava conversando com alguém no telefone, talvez com sua amiga. O garoto parecia bem feliz, não parava de sorrir enquanto digitava. Depois de um tempo, ele guardou o celular. — Sua blusa é muito bonita. O que significa? — Eu tentei puxar um assunto com o garoto. Devo admitir que queria saber mais sobre o que ele ia fazer. Será que é coisa de velho querer saber da vida dos outros? A blusa tinha um sol bem desenhado dentro de um quadro, com uma escrita embaixo. Todo o visual dele era bem original: tinha o cabelo grande amarrado e estava cheio de pulseiras e anéis. Deve estar na moda entre os jovens de hoje. — Obrigado. É a carta do sol de Tarô, o senhor conhece? — Acho que já ouvi falar. - eu disse, mesmo sem saber nada. — Então, normalmente é uma carta boa que traz coisas positivas. — Isso é muito legal! — Eu disse, animado. 10

— Você acha? — Ele disse, envergonhado, mas com um sorriso no rosto. O garoto tirou de sua bolsa um saquinho roxo. De dentro, tirou um baralho de cartas muito bonitas e brilhantes. Ele as estendeu e me mostrou. — Eu meio que faço essas consultas sobre o futuro através do Tarô — Ele disse, super ansioso. Parecia estar com medo da minha reação. — Isso é incrível! Você vê o futuro então? Que legal. — Eu peguei as cartas que ele me mostrou. — Não é bem assim, tio! Não sou tão bom assim ainda. Minha amiga que está me ensinando. Ela que é incrível. — Minha esposa amaria conhecer isso. Ela gostava muito de coisas místicas — eu disse enquanto via as cartas. — Eu tinha que sair olhando em todas as bancas da cidade se a revista mensal de horóscopo havia saído, além das pedras que sempre chegavam lá em casa. Me lembrar disso fez com que meu coração se aquecesse um pouco. — Ela parece ser uma pessoa incrível. Me lembra muito a minha amiga, na verdade. Eu devolvi as cartas para ele. — Como a sua amiga é, meu jovem? — Bom, ela é ...bem ...sabe né? — Ele se embolou todo e deixou suas cartas caírem no chão. No susto para tentar pegá-las, ele deixou algumas coisas de sua bolsa caírem também. Ele reparou que eu teria dificuldades e agradeceu minha ajuda, dizendo que ele mesmo pegaria as coisas. Observei os objetos que haviam caído: uma carta, uma barra de chocolate e uma pequena caixa de anel. Diário, acho que foi a primeira vez que eu liguei os pontos tão rápido. Fiquei emocionado por estar presenciando um amor adolescente. O menino parecia querer explodir de tão vermelho. Porém, minha curiosidade foi maior e não aguentei. — Olha só, você vai pedir sua amiga em namoro? Ele tinha acabado de pegar tudo do chão e quase deixou cair de novo. — Tá tudo bem se você não quiser falar, não se preocupe — Tentei tranquilizá-lo, pois eu já estava ficando ansioso por ele. — Tudo bem.Eu estou pensando,mas estou com receio de dar errado — Ele disse, triste. — Errado? Por que? Ela não gosta de você? - perguntei. — Não é isso. A gente gosta um do outro, isso eu tenho certeza! O problema é que eu tentei ver o nosso relacionamento através das cartas e não deu algo bom. — O que as cartas te disseram? — Eu perguntei, atento a cada palavra. — Disse que teremos muitas dificuldades, e que tudo era incerto. Mas estaríamos juntos. — Mas por que você acha que isso é ruim? — Não quero fazer ela sofrer. Não iria aguentar. - ele disse, olhando pensativo para o céu. — Bom, todo relacionamento é assim. Haverão dificuldades e incertezas, mas você tem a resposta aí: vocês estarão juntos para vencer essas adversidades. Ele me olhou assustado, mas logo sua expressão se transformou em um sorriso 11

aliviado. — Eu não havia pensado dessa forma. — É assustador mesmo, mas vai dar tudo certo. - eu disse, sorrindo para ele. - Relacionamentos são coisas incríveis e assustadoras. Haverão dias complicados também, mas quando você menos espera, você vai se divertir como nunca se divertiu na vida. - Eu acabei ficando um pouco melancólico — Obrigado, senhor, pelo seu conselho.— Ele colocou a mão no meu ombro, agradecido.- Eu nem perguntei o seu nome, me desculpa. — Eu me chamo Geraldo — Respondi com um sorriso fraco. — Prazer, me chamo Gustavo! Você mora por aqui? — Eu moro nessa casinha atrás da gente. — Eu apontei em direção a minha casa. — Ela é bem bonita! — Ele olhou encantado para a minha casa. Eu agradeci e ficamos em silêncio de novo. — Eu posso te pedir uma coisa? — Eu perguntei, meio receoso. — Claro! Pode falar. — Poderia olhar o meu futuro? Na verdade, o meu aniversário…queria saber se minha filha e neta virão aqui me visitar. — Beleza — Ele tirou as cartas e se virou em minha direção, super concentrado.— Quando o senhor nasceu? — 19/02/48 — Está bem perto. Parabéns! Ele começou a embaralhar as cartas rapidamente. Algumas cartas caiam e essas ele as separava. Isso aconteceu uma, duas, três vezes. Eles as organizou e foi virando de uma a uma, parecendo um pouco triste. — Sua filha vem te visitar às vezes? — Faz anos que eu não vejo ela. - eu disse. —Entendi - respondeu o rapaz. Ele pegou as cartas novamente e fez tudo de novo até caírem três cartas. Quando virou a primeira,sua cara não estava boa. Na segunda, seu rosto estava menos tenso e finalmente, na terceira, seus olhos brilharam e sua face ficou aliviada. — Ei, o seu ônibus — Eu me levantei rapidamente e fiz o sinal para o motorista. — Obrigado, obrigado — Ele se levantou rapidamente e arrumou suas coisas para entrar no ônibus. Antes de entrar, ele se virou para mim. — Vão haver dificuldades, mas você não estará sozinho, senhor. Lembre-se disso. - o rapaz completou. Ele entrou no ônibus e foi embora. Fiquei um tempo sentado no ponto, aproveitando a tarde e a brisa que estava ao redor. Como estou escrevendo isso mais tarde, espero que ele tenha pedido a amiga dele em namoro (e que ela tenha aceitado também!). Rezei para que isso se realizasse, apesar de não ser muito de orar. A última frase do jovem está passando na minha cabeça. Claro que não posso concluir nada, mas estou preocupado. Boa noite, diário. 12

Dia 14 de fevereiro de 2018 Bom dia diário! Hoje é domingo. O único dia que eu não vou lá fora pegar um solzinho. Vou aproveitar e cuidar um pouquinho de mim e da casa. Faz tempo que eu não te atualizo sobre as minhas plantas, certo? Quero estar mais atento a essas informações.Elas estão bem. Até peguei um banquinho de madeira para me sentar e atualizar elas de todas as conversas que eu já tive essa semana. Meu pé de acerola finalmente deu alguns frutos, então farei um suco mais tarde. A Judite está linda também, melhorou muito. Vou arrumar a casa agora, aproveitar que estou animado. Olá, diário. Acabei esquecendo de te atualizar durante o dia, mas não fiz nada de novo. Hoje à noite eu fui até a varanda para aproveitar a brisa e o silêncio da noite. Perto das 21h, bem tarde. Mas como eu estava sem sono, fiquei olhando o céu iluminado pelas estrelas até ver uma garota sentando no ponto de ônibus. Ela parecia estar chorando. Eu fui até lá para ver se ela precisava de ajuda. — Você está bem,menina? — O que? Ah…estou sim - ela disse, limpando as suas lágrimas. Eu reparei bem em seu rosto e a reconheci. Acho que se chama Joana, uma jovem que trabalha na padaria do bairro. Ela é uma menina sorridente e simpática, e vê-la assimme doeu. — Por que você está no ponto a essa hora? Aconteceu alguma coisa? - perguntei, preocupado. Me sentei na outra ponta do banco, esperando que ela me respondesse, sem deixá-la desconfortável. — Eu quero sair daqui - ela disse, com a voz trêmula. — Mas você vai para onde? — Eu não sei…tanto faz. Só quero fugir. ‐ ela disse enquanto seus olhos enchiam de lágrimas. — Minha jovem, eu não sei o que aconteceu, mas você não pode sair por aí nesse estado. Está abalada, se acalma. - eu disse tentando dar suporte para ela — Olha,se quiser, pode conversar comigo. Vou ficar aqui até você melhorar. Não precisa fugir. Fiquei em silêncio, esperando ela se acalmar. Isso deve ter demorado cerca de 10 minutos. — Obrigada.- Ela disse enquanto limpava seu rosto coberto de lágrimas. Ela soluçava enquanto agradecia, até que a jovem finalmente se acalmou. — Está melhor? - perguntei, ainda preocupado. — Eu não sei…Não sei o que sentir. - ela disse, engasgada. — Por que está triste, Joana? Ela me encarou por um tempo, até que me reconheceu também. — Seu Geraldo, eu não consigo aguentar mais essa dor que eu sinto. Está sufocante! É muita tristeza sem motivo. Eu tento o máximo me animar, trabalhar direito, estudar, mas eu não consigo fazer nada direito! Não consigo me concentrar, não me sinto motivada. - Eu sentia a dor dela em cada palavra que dizia. 13

— Já falou para alguém sobre isso? — Sabe, quando a minha esposa faleceu há dois anos, eu não conseguia fazer mais nada. Não comia, não bebia, não saia de casa. Era como se estivesse em um estado de vegetação, esperando a minha hora chegar também. O meu amigo João me puxou pela orelha e me ajudou a sair daquele estado. Me acompanhava em consultas, ele e seu marido. Sempre que podiam, me visitavam. Não estou cem por cento, porém estou aqui por causa deles. Ela me olhava com compaixão. — O que eu quero dizer é que isso acontece, não precisa ter um motivo. Mas você tem que lembrar que sempre tem alguém que vai prezar por você e te dar suporte. - eu completei. — Eu não sei se consigo falar sobre isso com as pessoas. Tenho medo de não me entenderem. - ela secou o nariz com as costas da mão. — Você já falou comigo, certo? Já é um ótimo começo. Ela me olhou com um sorriso sincero. Sua tristeza estava desaparecendo aos poucos. Fiquei um bom tempo conversando com ela. Se sentir solitário é algo horrível, diário. Tento ao máximo me desviar desse sentimento, porque ele nos paralisa e nos deixa sem chão. Fico feliz por ter ajudado ela, mesmo que pouco. Quando ela se sentiu melhor, foi para casa, algumas quadras daqui. — Obrigada, Geraldo! Muito obrigada mesmo - ela disse enquanto me dava um abraço bem forte. — Qualquer coisa, pode vir conversar comigo.- eu disse, acenando enquanto ela ia embora. Já é madrugada e estou bem cansado. Vou dormir agora diário. Eu não estou mais sozinho, sei disso. Até logo! 14

Dia 15 de fevereiro de 2018 Hoje eu acordei bem cansado devido ao dia de ontem. Sabia que hoje é aniversário da nossa cidade, diário? Acho que não vai ter muito movimento na rua, mas ficarei no ponto para pegar um sol,já que ontem não fiz isso. Me sentei no começo da tarde lá no ponto. O movimento estava fraco: não via ninguém na rua, não passava ônibus, nem sequer o carro do gás. Quando resolvi entrar em casa, aconteceu algo inesperado: veio um cachorro, subiu e sentou no banco. Ele ficou me olhando com a língua para fora. Era bem feinho o coitadinho. Mas parecia ser gente boa. — Ei amigo, como você está? — Au! Não sei a língua dos cachorros, mas parecia um sim. Você pode estar me achando doido, diário, mas aquele cachorro estava conversando comigo. — Você tem dono? — perguntei enquanto me aproximava de seu pescoço, verificando se havia alguma coleira. Não havia nada. Ele tinha jeito de cachorro de rua mesmo. — Au au! — Você é um cão de poucas palavras, não é? — Eu comecei a fazer carinho em sua cabeça. Diário, você acredita que o danado deitou no meu colo? Todo folgado, de barriga pra cima, querendo carinho. E eu fiz, claro. — Você é bem folgado, sabia?- perguntei, acariciando sua orelha amarela.- Eu nunca te vi por aqui. Ele ficou mexendo a cabeça de um lado para o outro. Não sei se é a velhice, mas eu estava conseguindo ter uma conversa com o cachorro. — Então você é novo por aqui. Tudo bem! Eu moro aqui faz anos, sabia? Posso te mostrar o bairro um dia desses. — Au! - ele me respondeu. Acho que ele gostou da ideia. Fiquei encarando ele. Parecia ser um cachorro adulto. Tinha cor de mel e pelo bem curto e macio. — Você não parece mal tratado. Que bom! Na verdade, parece estar até gordinho. - Bati em sua barriguinha. O cachorro se levantou e saiu do banco. Eu fiquei observando ele andando para longe do ponto, até que ele parou, me olhou e abanou o rabinho. — Au!Au!Au! — Quer que eu vá com você? Tô velho para isso, meu filho! — Au!Au! Ele voltou e ficou na minha frente, esperando eu me levantar. Que dia estranho, diário! Um cachorro me levando para passear. Quem diria! Fui andando com ele. Fazia tempo que eu não andava pelo bairro. Não sentia vontade de sair de casa, o máximo era ir na padaria ou no mercadinho. 15

Fui acompanhando ele bem devagar até a pracinha do bairro. Faz anos que eu não vou lá. Antigamente,eu e a Ana íamos lá para conversar. O cachorro me guiou até um banco que ficava debaixo do pé de manga e sentou lá. — Au! — Ele latiu enquanto girava para se sentar confortavelmente. — Já estou indo! - eu disse. -Diferente de você, estou velho para esse tipo de coisa. Eu me sentei ao lado do cachorro e observei a árvore de manga, que ainda estava dando frutos. — Sabe, eu e a Aninha sempre vínhamos aqui para ver se as mangas estavam maduras. Nunca vi alguém gostar tanto de manga quanto ela. Sempre que a gente pegava, ela fazia suco, fazia salada…chegava num ponto que eu até enjoava. O cachorro me encarou atento, como se realmente estivesse me escutando. — Sabe, cãozinho, que saudade que eu sinto da Aninha! Tenho saudade dela, da minha filha e da minha neta. Tenho que admitir que a casa fica grande demais sem elas do meu lado. - eu suspirei - Mas eu fico melhor quando eu estou no ponto, onde sempre tem alguém para conversar. Eu dei uma pausa e o cachorro veio para o meu colo. Eu o abracei levemente e continuei. — Também tem pessoas que precisam ser ouvidas, e fico feliz em ser esse ouvinte, sabia? Às vezes a gente faz a diferença só sendo presente. Aprendi isso com a minha esposa. Ela sempre me falava isso. Hoje é você quem está me ajudando, cãozinho. Obrigado. — Au! Au! Ele saiu do meu abraço, desceu do banco e pediu para eu o seguir de novo. Caminhamos de volta até o ponto de ônibus. O cachorro latiu e abanou o rabinho. Parecia uma despedida. — Até logo! - acenei para o cachorrinho,que foi embora em seguida. Entrei em casa meio confuso com o que aconteceu. Conversei com um cachorro, que me levou para a pracinha e depois me deixou de volta em casa. Se um dia eu encontrar o menino que lê o futuro de novo, vou perguntar sobre isso para ele. 16

Dia 16 de fevereiro de 2018 Querido diário, como você está? Espero que tenha descansado bem como eu. Hoje acordei 10 minutos mais cedo do que o normal por causa do barulho da chuva. Quando saí na varanda, o céu estava nublado e a água descia do céu com muita força e em muita quantidade, formando lagos na rua antes de chegar às bocas de lobo. Diário, você pode me achar louco, mas sai correndo para a chuva. Me molhei inteiro, diário! Pulei e dancei na água da chuva por alguns minutos. Afinal, diário, só se vive uma vez. Depois de tomar um banho reforçado, fui para o meu lugar habitual no ponto de ônibus. Já marcava 8h da manhã, então quando cheguei, estava lotado. Após uns 5 minutos, eu estava sozinho de novo. Os ônibus passavam cheios e, as pessoas da rua, bem apressadas. Quando menos esperei, uma pessoa se sentou ao meu lado. — Bom dia! - ele disse. Encarei o homem. Ele estava vestindo uma camiseta social e calça jeans, com óculos quadrado e uma mochila na costas. Sua barba por fazer denunciava que ele tinha mais de 35 anos, apesar do jeito jovial. — Bom dia, tudo bem garoto? - perguntei. Ele me olhou e me deu um sorriso, convencido pelo meu cumprimento. — Tudo joia, seu Geraldo! Não percebi que era o senhor! - ele disse, abrindo ainda mais seu sorriso - sou eu, Carlos! Filho da Dona Lola. Sorri pra ele de volta. — Oh que bom te ver, Carlinhos! - eu disse, apertando sua mão estendida. Dona Lola era a antiga costureira da minha mulher, que mora a três quarteirões da minha casa. Quando íamos levar encomendas para ela, eu sempre brincava com seu menino branquinho de olhos curiosos. — Quanto tempo! - ele disse. - Como o senhor tem andado? — Estou indo bem, garoto. A velhice chegou, mas eu continuo tentando viver mais. Vale a pena, não é? - eu disse, pensando na minha manhã na chuva. Ele suspirou. Seu sorriso sumiu. — Acho que sim. Eu acho. - ele abaixou a cabeça, segurando a mochila. Olhei para o céu. O dia já estava mais ensolarado. As pessoas continuavam andando rapidamente na rua, sem olhar para os lados. — O que você tem feito da vida, Carlinhos? — Me formei em geografia ano passado. Agora sou professor. - ele disse, voltando a dar seu sorriso branco. Sei que muitas vezes, diário, eu escrevo muitas conversas aqui. Pessoas que contam da sua vida pessoal sem titubear. Mas nem sempre as pessoas estão dispostas a partilhar tudo da sua vida, mesmo com pessoas conhecidas.Percebi que o Carlos 17

levava uma melancolia nos olhos, mas eu não cutucaria sua ferida. — Carlos, você vê aquela senhora empurrando aquele senhor na cadeira de rodas? - eu aponto com a cabeça para o casal que passava na rua. Ele encarou o casal e voltou o olhar para mim. — Sim, o que tem eles? - ele me perguntou. — Sei que a vida vale a pena quando vejo eles. Sabe aquele garotinho pulando na poça d’água? - eu apontei para o garoto atrás dele.- Olhar pra ele me faz pensar que a vida vale a pena. Tá vendo o ônibus lotado? - perguntei novamente, quando o ônibus passou voando pelo ponto. - Olhar a quantidade de pessoas indo para o seu destino me faz achar que a vida vale a pena. Olhando para você, sei que a vida vale a pena. Ele me olhou, meio que desentendido. — A vida só vale a pena por causa da esperança. Aquele casal está junto há 30 anos. Aquele garotinho foi esperado pela manhã por muito tempo, desde que ela casou. Aquele ônibus está indo para o hospital, e mesmo sem saber o que as pessoas irão fazer, sei que há esperança no coração delas. Assim como há no seu. A esperança de que as coisas serão melhores. Ele sorriu. — Sim, eu tenho esperança. - ele disse, apontando um dedo para o ônibus parar. Ele se levantou e me deu um beijo na careca. - A esperança de que a vida valerá ainda mais a pena. Tchau, seu Geraldo. - ele disse, correndo para alcançar o ônibus. Eu sorri e fui para casa, tomei um suco e fiz meu almoço do dia. Agora estou aqui, de barriga cheia, pensando em como a vida vale a pena. Porque ela realmente vale, diário 18

Dia 17 de fevereiro de 2018 Bom dia diário. Hoje é um dia atípico. Vou ao supermercado comprar ingredientes para fazer um almoço de aniversário para mim e minhas convidadas. Estou pensando em fazer um macarrão com queijo e presunto, pois é o preferido da minha filha. Também vou comprar doces e sobremesas para a minha netinha. Será que a Amanda vai achar ruim? Tenho uma novidade: você vai comigo hoje. Vou escrevendo no caminho, esperando que minha letra não fique estranha. Enfim, vou fazer um lanche reforçado e me arrumar para minha jornada. Estou no ponto. Acabei perdendo o ônibus para o centro. Ele sempre atrasa,e quando eu preciso pegá-lo, resolveu sair no horário. O que me resta é esperar. Oi diário. Assim que escrevi a última linha,chegaram três senhoras conversando e sentaram do meu lado. — O ônibus para o centro já passou? - uma delas me perguntou. — Passou sim. Estou esperando outro também - eu respondi. — Viu, Maria? Você demorou para se arrumar! Perdemos o ônibus. - A senhora que tinha me perguntado explodiu, virando para as suas amigas. — Qual Maria? Eu me arrumei e cheguei na sua casa na hora certa - A senhora mais alta retrucou. — Tô falando da Maria Helena, se “emperiquitando” toda para bater perna no centro. - A primeira moça respondeu, apontando para a senhora ruiva de brincos vermelhos. Ela parecia a mais estressada das três. — Sou vaidosa mesmo! Não dizem que tem que cuidar de si mesmo?. - A senhora ruiva com cabelo bem chamativo falou, com confiança. — Na próxima vez, vamos deixar você aqui. Vamos só eu e a Maria! A Maria ruiva pareceu ignorar e elas ficaram em silêncio. Eu havia entendido que duas das senhoras se chamavam Maria.Sei que é feio ouvir a conversa dos outros, mas eu não tenho mais nada para fazer.O que me resta é escutar e escrever para você. — Vocês viram Amor e Ferro ontem? - disse a Maria, a mais alta. — Eu vi menina! O Márcio traiu a Fernanda! ‘’Tô’’ sem acreditar - disse a Maria vaidosa. — Mas eu já sabia! Esse Márcio não vale nada! Ele deve ter casado com a Fernanda só por dinheiro - disse a senhora estressada. — Ah, Maria Lúcia, eu acho que tem alguma coisa aí. O Márcio não trairia a menina desse jeito - A Mª Helena disse, defendendo o tal personagem da novela. Como eu sei que era um personagem? Diário, vá cuidar da sua vida e preste atenção! Nesse momento percebi que todas as três senhoras no ponto se chamavam Maria. Maria Helena, Maria Lúcia e…? — Que coisa o quê? Isso é fogo,Maria! Desde que ele apareceu naquela novela, 19

eu suspeitei dele. Pra mim é por dinheiro, e ponto final. ‘’Tô’’ achando que ele vai dar um golpe na coitada da Fernanda. — Ah, mas eu ainda confio no Márcio.Tem coisa por trás sim! Não é, Maria Flor? - disse a senhora, cutucando a outra mulher. — Ah Heleninha, eu vou ter que concordar com a Lúcia. Esse Márcio é golpe, ainda mais traindo a pobrezinha! As três compartilham o primeiro nome. Achei interessante, mas bem confuso. — Desculpa perguntar, sobre oque é Amor e Ferro? - Tentei me enturmar no assunto, apesar de já saber muito sobre essa novela. — Como assim você não vê essa novela, seu Geraldo? Ela passa às 18 horas. - A Maria Helena disse para mim. Muito interessante todas essas pessoas saberem meu nome sem eu as conhecer tão bem. — É sobre uma família rica que,em pleno século 21,quer que a filha deles, Fernanda, se case com um homem rico, o Márcio, só por negócios. - A senhora Flor completou. — A Fernanda é meio besta, tadinha. Toda meiguinha e ficou toda boba com esse Márcio. E ele é um golpista! Foi romântico com ela no começo, mas agora está traindo ela.. - A Lúcia finalizou o enredo. — Parece ser bem dramático - eu comentei. — Mas tem seus momentos engraçados! Eu to achando que a Fernanda vai ficar com a Rebeca no final, ein! - A Flor comentou. O ônibus chegou antes das duas senhoras comentarem sobre o final da novela. Quando eu chegar em casa, vou aproveitar e assistir o episódio de hoje. Eu acabei sentando na frente delas. Faz tempo que eu não pego um ônibus. Fiquei hipnotizado, olhando as paisagens através da janela do ônibus.É meio libertador. Estou muito feliz, diário, muito feliz mesmo! As Marias ficaram fofocando a viagem inteira, mas infelizmente não consigo escrever para você,diário. Pelo menos, estou bem atualizado de tudo que está acontecendo no bairro. Olá de novo diário. Agora estou em uma praça aqui no centro. Fiz as compras: comprei doces, macarrão, presunto e mussarela, além de alguns lápis e cola para decorar você,diário. Aqui na praça tem várias pessoas, uns senhores conversando, um moço andando de um lado para o outro e uma mulher pregando para as pessoas. Faz tempo que eu não saio assim, então estou um pouco ansioso e cansado. Talvez eu devesse andar no centro mais vezes. Já cheguei em casa, tomei banho e preparei um pão para comer. Já são quase 18h, então vou aproveitar para assistir a novela. (É nosso segredinho, diário).. Minha filha não vem mais, diário. Ela acabou de me mandar uma mensagem, dizendo que tem um compromisso importante e que não daria tempo de vir aqui. Ela é ocupada.Está sempre ocupada. Estou muito triste. Muito mesmo. Estou sentindo um aperto enorme no peito. Desculpa, não vou poder te contar sobre a novela hoje. Não estou conseguindo escrever direito. Boa noite. 20

Dia 18 de fevereiro de 2018 Não fiz nada hoje para registrar em você diário. Sinto muito. 21

22

Dia 19 de fevereiro de 2018 Bom dia! Hoje é meu aniversário. Parabéns para mim né? Parece que só vai ser eu e você, diário. Obrigado por vir 23

24

Boa noite diário! Você não vai acreditar! Estou escrevendo isso às 23 horas, eu acho. Lá para às 18h, alguém tocou a campainha da minha casa. Quando abri,várias pessoas gritaram “Surpresa” para mim! Veio o meu amigo João, seu esposo Cícero, a moça que trabalha no hospital com o seu filho, o pequeno Pedro com a sua mãe e irmã, o professor e dona Lola, o menino das cartas com a sua amiga (na verdade os dois estão namorando agora!), a menina que eu conheci a noite e até as 3 Marias e o cachorro estavam lá. Eu não estou acreditando até agora. Quando vi eles na minha porta,fiquei em choque. Nem tinha tomado banho, mas eu deixei que todos entrassem e ficassem confortáveis na varanda. Eles trouxeram bolo, uma torta de pão deliciosa, salgadinhos da padaria e bebidas. Tive sorte que o João ficou organizando e interagindo com as pessoas para colocar as coisas na sala, assim eu pude me arrumar melhor. Vesti a minha melhor roupa. Eu fiquei muito feliz e me segurando para não chorar. — Obrigado por virem - eu disse, voltando para a sala. — Olha só, está todo arrumado.Vem cá conversar com a gente - disse seu João enquanto pegava uns salgadinhos Todos vieram me desejar parabéns, perguntaram como eu estava e me serviram os salgadinhos e tortas. Estava divino, diário. Fazia tempo que eu não comia algo tão gostoso assim. A torta de pão foi feita pelas Marias. Elas vieram conversar comigo, um pouco estressadas — Por que você não falou que o seu aniversário era hoje, ein? A gente teria feito as coisas mais cedo - a Maria Lúcia falou enquanto as outras confirmaram com a cabeça. Eu não sabia o que responder e não podia admitir que não me lembrava delas! Graças a Deus, uma delas continuou a falar — A gente descobriu pelo João e o Cícero - Maria Flor disse. — Nós acabamos espalhando para o bairro inteiro. Sem querer, é claro - disse Cícero, com um sorriso enorme. — E aí resolvemos fazer uma surpresa! - exclamou João. A Joana, pelo fato de trabalhar na padaria, ouviu de uma das Marias sobre o aniversário e disse que ajudaria. O professor Carlos descobriu sobre a festa por sua mãe, Dona Lola que é uma amiga próxima de Cícero. — Minha mãe também descobriu pela dona Lola. Ela quem faz os vestidos dela - disse o pequeno Pedro no colo de sua mãe. — E eu descobri o aniversário pela sua mãe, Pedro - disse a enfermeira,cujo nome é Viviane com o seu filho Augusto, também no colo. O Gustavo disse que já sabia do meu aniversário,mas descobriu a surpresa através da Joana, que é uma amiga próxima da Beatriz. — E o cachorro ali? Quem o chamou ? - perguntei, curioso. Todos olharam para ele com dúvida. Ele estava quietinho perto da porta. — Acho que esse veio por conta própria então - disse o professor, fazendo carinho no bichinho. Todos nos divertimos bastante, diário.As crianças não paravam de correr. O João e o Cícero ficaram competindo qual caneca era a mais bonita, mas deu empate. As 25

mães e as Marias estavam se atualizando sobre as novelas e realmente só a Maria Helena que gostava do Marcio. Eu me sentei no sofá perto de Gustavo, Beatriz e Joana. As duas estavam conversando bem animadas. — A sua filha veio, seu Geraldo? - disse o Gustavo. — Infelizmente não, garoto. Você já sabia, certo? — Sim.Me desculpa por não avisar - ele parecia bem triste. — Tudo bem, não precisa ficar triste. No final, esse é o melhor aniversário que eu já tive! Eu só tenho a agradecer a vocês por virem aqui. — Acho que é a gente que tem que agradecer ao Senhor. Sempre conversando e ajudando as pessoas no ponto. O senhor com certeza me salvou! Sou muito grata. - disse a Joana, entrando na conversa. — Eu também tenho que agradecer a você por me ajudar e dar coragem,senhor - disse o Gustavo olhando para a Beatriz. Realmente, os dois combinavam muito. — Seu Geraldo, eu não te conheço, mas se todas essas pessoas se mobilizaram para estar aqui festejando com o senhor, com certeza você é importante para elas. E a sua aura é muito boa e gentil, faz com que as pessoas queiram ficar ao seu lado. - Disse a Beatriz, olhando nos meus olhos. Nunca me esquecerei dessas palavras, diário. Nessa parte, vou admitir que caíram algumas lágrimas do meu rosto. Todos estavam ali, se divertindo e conversando comigo, perguntando sobre minha vida, contando histórias felizes e tristes. Contei a história do cachorro para o Gustavo e a Beatriz. Eles sorriram e disseram que eu deveria adotar o cachorro. Vou pensar na ideia. Antes de todos irem embora, eu pedi um favor para eles diário, queria que todos assinassem você e todos aceitaram sorridentes. Não quero me esquecer desse dia nunca, diário. Sei que a vida vale a pena. Ela vale, diário. Estou feliz diário, muito feliz 26

O livro é de um senhor aposentado que gosta de ficar no ponto de ônibus na frente de sua casa e escutar as histórias que as pessoas compartilham com ele, todas essas conversas são registradas em seu diário onde ele também compartilha a felicidade de sua filha e neta está vindo visitar ele para passar o seu aniversário junto depois de tanto tempo separados.


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook