ZI, A ABELHA ZONZA zumbidelas CARLOS CANHOTO coreografia & paisagens GRÃO DE PÓ arranjo floral JOANA TORGAL assessoria de ideias avulso ANDREIA ALBERNAZ VALENTE revisão CONCEIÇÃO CANDEIAS gravado a TERMINAL DOSIS isbn 978-989-54274-2-0 depósito legal 460502/19 operculação & cresta DPS eclosão CANTO REDONDO Rua Guilherme Gomes Fernandes, 18B 2700-446 Amadora cantoredondo.eu zi.cantoredondo.eu polinização & distribuição ESPAÇO LIVRO espacolivro.eu [email protected] 1.ª eclosão . setembro 2019 1 500 alvéolos AGRADECIMENTOS A precisão dos conteúdos apícolas deste livro tem o inestimável contributo dos apicultores: André Halak (COOPBEI) . Dulce Alves . Érico Marques . João Neto Joaquim Pífano (ADERAVIS) . Paulo Varela (MONTEMORMEL) Esta edição tem o apoio de: Direção Regional de Cultura do Alentejo . Câmara Municipal de Mora Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros . Apisfilanis – Comércio Material Apícola . Associação Malcata com Futuro Junta de Freguesia de Pavia . União de Freguesias de N.ª Sr.ª da Vila, N.ª Sr.ª do Bispo e Silveiras Apivale – Associação dos Apicultores do Vale do Guadiana . FNAP – Federação Nacional dos Apicultores de Portugal © 2019, autores e Germinário, uma chancela da Canto Redondo Editora. Os textos e imagens desta obra não podem ser reproduzidos por qualquer processo digital, mecânico ou fotográfico sem autorização prévia dos autores e editora.
A ABELHA ZONZA zumbidelas CARLOS CANHOTO coreografia GRÃO DE PÓ
Para a minha neta Amélia: Que a Zi te inspire grandes voos na proteção da nossa terra-mãe.
Uma flor de esteva aquecia-se ao sol da manhã. Dentro dela, uma abelha, zunindo ligeira, entrava e saía, estrebuchando com as patas por entre os estames. A flor, prestes a espirrar com as cócegas que aquele estranho sapateado lhe fazia, gritou-lhe: – Ó abelhinha, pára lá com isso, que me desfolho toda em gargalhadas…
– Não posso! Espera um pouco mais que estou mesmo, mesmo, a terminar… – respondeu-lhe a desembaraçada abelha. – Mas o que é que tu estás a fazer? – Estou a recolher o teu pólen, a fazer umas boas pelotas para levar para a colmeia. – Para que querem vocês o meu pólen? – É para alimentar as minhas irmãs e a rainha… todas nós. Com ele fazemos um pão de abelha muito bom, que podemos comer ou transformar em geleia real. – Vocês têm uma rainha, que giro! – Sim, temos. É a mãe de todas nós… Já terminei. Lamento, mas tenho de ir. Continuamos a nossa conversa noutra ocasião. – Oh! Que pena! Se pudesse voar, ia contigo – lamentou-se a flor de esteva, já a imaginar-se solta ao vento, com asas de pétala.
Depois de muito desejada pelas abelhas, chegara finalmente a primavera. A charneca enchia-se do amarelo da grizandra e dos dentes-de-leão, do branco dos malmequeres, do roxo da soagem, da infinidade de cores de muitas outras flores. Todo esse encantamento deixava as abelhas muito felizes, meio loucas, em desenfreadas correrias entre o campo e as colmeias.
No alto de um monte, do lado que recebe o sol ao nascer, alinham-se em fileira duas dúzias de colmeias, caixas de madeira de diversas cores: azuis, amarelas, verdes, vermelhas… É o apiário, a cidade das abelhas. Em cada colmeia habita uma colónia, uma grande família, às vezes com dezenas ou até centenas de milhares de abelhas.
Na entrada, as eficientes vigilantes guardam as colónias. Ao menor sinal de perigo ligam as sirenes, quer dizer, levantam o abdómen, batem as asas num zumbido e lançam no ar um perfume de alerta, uma feromona que só os membros da sua família reconhecem. Elas verificam também, zelosamente, o que cada abelha carrega, e se são ou não da casa, para que não haja brigas. – Eh, tu aí abelhinha, o que transportas? – Trago pólen de esteva, senhora vigilante, uma delícia! – Bom trabalho, menina. Entra, entra rápido.
E depois zuniu, desconfiada, ao grupo que a seguia: – E vocês, não trazem nada? – Claro que trazemos! Vimos com o bucho cheio de néctar de rosmaninho, tão bom que nem acreditas! Queres provar? – respondeu-lhe uma. Depois, todas as outras, em coro, muito divertidas, gritaram: – Vai ser só trofalaxar!
Outra vigilante questionava uma abelha já velhota, muito escura, sem pelos, das poucas que teriam sobrevivido à falta de comida e ao frio do longo inverno. – Então, amiga, de onde vens tão pesada e cansada? – Daquele choupo alto. Não foi fácil, mas trago uma resina laranjinha, linda, perfumada. Fará um excelente própolis. A nossa rainha vai adorar. – Muito bem, muito bem mesmo. Estamos muito orgulhosas de ti.
Na entrada de outra colmeia havia grande confusão. Várias vigilantes impediam um grupo de abelhas de entrar: – Vocês não são daqui! Zarpem, orientem-se… – Hip! Hip! Somos, somos. A nossa colmeia é esta! – garantia uma delas, entre soluços e risos. – Não é, não. Estão enganadas. De onde é que vocês vêm assim tão zarucas? – Vimos da margem do rio. Zampámos néctar de flor de medronho! – responderam-lhe as outras, dando cabeçadas entre si enquanto tentavam pousar. – Ah, já percebo! Vocês não me enganam. Estiveram foi a lamber os frutos alcoólicos! Por isso vêm zonzas, com a bússola vesga! De facto estavam enganadas. A colónia delas era realmente uma outra, mais adiante. As abelhas têm um GPS natural que, caso não estejam embriagadas, sempre lhes indicará o caminho certo para casa.
Para o senhor Moisés, o apicultor que observava maravilhado aqueles bailados de asas e volteios em redor das colmeias, as suas abelhas eram notas de música, e toda aquela azáfama era a partitura do grande concerto que celebrava a primavera. Ele e o seu filho Francisco tinham vindo limpar as ervas que, crescendo, começavam a tapar as entradas das colmeias. Os dois gostavam muito daqueles momentos em que trabalhavam juntos, porque eram tempos para conversas e trocas de aprendizagens.
– Pai, os meus colegas da escola queixam-se que são picados por abelhas! Eu já lhes expliquei que não são abelhas, mas vespas, que as abelhas só picam aqui no apiário, quando estão a defender a sua colónia. – É verdade, filho. Na maior parte das vezes, as pessoas são picadas por vespas, que, sendo familiares das abelhas, pertencem a espécies diferentes; mas muitas pessoas não as distinguem. As abelhas melíferas não são agressivas. Fora do apiário, só picam se as apertarmos. Por exemplo, se uma delas ficar presa nos teus cabelos e tu tentares tirá-la à força, é possível que te pique. Fora dessa situação, é muito raro… – E depois morrem, não é, pai? – Sim, o ferrão com que nos picam é farpado, tem um minúsculo arpão que fica preso em nós, juntamente com parte do corpo da abelha, e por isso elas morrem.
– Pai, os meus colegas não sabem nada sobre abelhas; não fazem a menor ideia do imenso trabalho que elas têm para fabricar o mel. – Ora, nem eles, nem a maior parte das pessoas. As abelhas são uma extraordinária força da natureza, uma espécie de tsunami bom. Sabes que para produzirem um quilograma de mel elas têm de fazer cerca de cinco milhões de recolhas de néctares! E nesses voos percorrem uma distância equivalente ao perímetro do nosso planeta. – O quê? A sério, pai! É fantástico! – E olha, escuta com atenção: nesses voos, as suas asinhas podem chegar aos duzentos e cinquenta batimentos por segundo! – Isso é inimaginável! É incrível! Posso falar com a minha professora para trazer cá os meus colegas e tu explicas-lhes tudo isso? – Claro que sim, filho. Terei todo o prazer em partilhar com eles tudo o que sei sobre as nossas amigas abelhinhas. – Boa! Vou falar com a minha professora e com os meus colegas. Eles vão- -se passar!
Enquanto decorria aquela animada conversa, na colmeia amarela nascia uma abelha. A abelhinha já roera parte da cera que cobria o pequeno orifício do seu alvéolo e punha agora de fora as suas antenas. Um esforço mais a rodar a cabeça de um lado para o outro, a tentar sair, chama a atenção das outras abelhas, que correm a ajudá-la.
– Olá, bom dia! – zumbiu-lhe a que mais rapidamente chegou junto dela. – Viva! Viva! – zangarrearam muitas outras que entretanto a tinham rodeado. – Que sejas muito bem-vinda, mana! A abelhinha, contorcendo-se, apoiou-se nas patas de trás e, muito empenhada, lá conseguiu sair. Cá fora, ensaiando os primeiros passos, lançou uma pata para cada lado e tentou andar, mas era como se estivesse com receio de escorregar num chão de madeira muito bem encerado. Depois experimentou bater as asas e, PUM!, caiu de cabeça. Sorte não ter nariz, senão teria começado a sua vida já com ele partido. As outras assistiam muito divertidas a tudo aquilo, e uma delas disse: – Que atarantada que ela está! Nunca vi ninguém nascer assim tão atordoado! – Vai recompor-se – zumbou logo outra, que acrescentou: – Temos de lhe dar um nome!
Uma das companheiras, que sorria das dificuldades da sua mais recente irmã, ziziou: – Podíamos chamar-lhe Zonza! – É um nome muito comprido! – zuniu outra. – Todas nós temos nomes mais curtos, mais fáceis de dizer! – Então pode ficar só Zo, a Zonza... – zombou outra, com uma grande gargalhada. Mas a que primeiro tinha chegado junto dela disse: – Não gosto de Zo. Podia ficar Zi. É mais bonito. E as outras concordaram… A pequena Zi sacudiu mais uma vez a sua zonza cabeça, o que foi entendido pelas companheiras como um sinal de que até ela aprovaria o seu melodioso nome.
A Zi tinha saído do seu alvéolo num dia de muitas eclosões. Por isso, ela viria a ter mais de duas mil irmãs gémeas, tantas quantos ovos tinha posto a rainha no dia da sua postura. Quando começou a dar os primeiros passos direitos, uma das irmãs pegou-lhe por uma asa e zumbiu-lhe: – Anda daí, Zi. Vamos comer um pedaço de pão de abelha, que está uma delícia! Vais ver que ficas logo desperta e cheia de energia.
Entretanto duas obreiras, pouco mais velhas que a Zi, limpavam já o alvéolo onde ela tinha nascido e crescido, desde o ovo até se tornar uma verdadeira abelha, o que levara ao todo vinte e um dias. Prontamente chegaram também muitas abelhas-ama e, no meio delas, a rainha, que vinha pôr um ovo no que fora o quarto mágico da Zi. Ao passar por ela, a rainha, sorrindo docemente, questionou-a: – Olá, filha! Nasceste bem? Está tudo bem contigo? Hmmm! Pareces um pouco zonza!
Em seguida, a rainha entrou no alvéolo, para verificar se estava bem limpo e desinfetado com própolis. Como estava tudo perfeito, saiu e voltou a entrar, mas desta vez de costas, para pôr um ovo. Depois prosseguiu a sua missão de semear ovos por todos os alvéolos livres e limpos.
Na grande família apícola, a vida é uma festa, um permanente zafarrancho. Trabalha-se dia e noite, e todas as abelhas têm tarefas muito bem definidas, que desempenham com grande vivacidade e entusiasmo. A primeira tarefa da Zi, como acontece com todas as noviças, foi ajudar na limpeza dos alvéolos. Uma abelha experiente ensinou-lhe os cuidados a ter na preparação dos quartos para as novas manas. – E depois, o que farei a seguir? – zuniu ela à instrutora. – Na tua segunda semana de vida irás para ama da rainha, um grande privilégio!… Para a alimentares, aprenderás a confecionar a nossa deliciosa geleia real, a receita mais complexa e secreta de toda a mãe-natureza – zumbiu-lhe a outra.
Mas a Zi parecia mais ansiosa por descobrir o mundo lá fora. – E quando é que começo a voar? – Tem paciência, pequerrucha. Antes disso ainda terás de aprender a fazer os nossos favos. – Como? O que é isso? A outra, sorrindo, respondeu-lhe: – Quando tiveres por volta de três semanas de vida, na tua barriguinha irão desenvolver-se oito pequeninos motores… São as glândulas cerígenas, que irão produzir a famosa cera com que fazemos os favos onde nascemos e guardamos a nossa comida. É um trabalho muito difícil e que requer muita energia… – E voar, quando é que posso voar? – zuniu de novo a Zi. Com tantas etapas à sua frente, parecia-lhe que nunca mais chegaria a sua vez de bater as asas lá fora. A instrutora, acalmando-a, respondeu-lhe: – Voar, só depois de tudo isso. Voar exige asas fortes, que enfrentem os ventos e suportem os pesos dos carregamentos. Os trabalhos que irás fazer até lá dar- -te-ão essas poderosas asas de que irás necessitar. Ciente de tudo o que teria de fazer para participar no bom funcionamento da colónia, a partir desse dia a Zi azafamou-se, esmerada, nas importantes tarefas que foi tendo em patas, ou em mandíbulas.
Foi tanto o prazer que teve em desempenhar todas as funções, que nem deu pelo passar do tempo, e rapidamente se achou na véspera do tão desejado primeiro voo. Reunidas em assembleia, as duas mil gémeas receberam as últimas instruções. Escutaram atentamente o detalhado rol de explicações das instrutoras: Como recolher o pólen das plantas visitadas, transportando-o em pelotas nas covinhas que tinham nas patas traseiras. Como recolher os néctares e como os regurgitar na colmeia – através de uns beijinhos muito especiais chamados trofalaxia – para as irmãs que as esperavam os transformarem em mel e, depois, os depositarem nos favos. Como reconhecer as resinas para a produção do própolis, com que selavam a colmeia para a protegerem dos invasores. Como trazer habilidosamente para casa a água essencial ao bom funcionamento da colónia. E, finalmente, saber dos perigos que as esperavam fora de casa, como por exemplo os abelharucos.
– Sempre que saírem, tenham muita atenção. Perguntem às vigilantes se há abelharucos por perto. – O que são abelharucos? – zumbiu a Zi. – São aves, uns animais muito grandes e coloridos que se alimentam de insetos, nós incluídas. Com eles, todo o cuidado é pouco. – Que medo! Como poderemos fugir-lhes? – Fugir-lhes é difícil. O melhor é evitá-los! – zuniu uma das instrutoras, com cara de quem morria de medo dos abelharucos. Disseram-lhes também que teriam de ser sempre muito eficazes no seu trabalho, porque, além de alimentarem a numerosa família, teriam de encher muitos favos com reservas de comida para o inverno, quando não houvesse flores. A aula terminou como uma matiné dançante, destinada a aprenderem a divertida e primordial dança da comunicação. Uma espécie de quizomba feita de oitos desenhados, quais pontos cardeais, que tinha a função de informar a colónia da localização das melhores fontes de néctar ou pólen. Foi superdivertido! Uma grande festa…
A Zi ficou um pouco zonza com tanta informação atirada assim de empreitada às suas antenas! Porém, estava tão entusiasmada com o seu primeiro voo, que logo que terminou a dança foi a correr falar com o seu amigo Bá, um zângão. Os zângãos também fazem parte da grande família da colmeia. Nascem na primavera para namoriscar as princesas. São muito corpulentos e não têm ferrão. – Bá, tu sabes alguma coisa sobre os abelharucos? – Claro que sei, minha amiga. Já lhes fugi muitas, muitas vezes mesmo… – zumbiu o Bá. – E como é que fizeste isso?
– Zangarilho muito depressa, enfio-me dentro das copas das árvores, faço umas gincanas pelos troncos, e assim os engano! Às vezes até dão cabeçadas nas árvores! Hi, hi, hi! – riu-se muito o Bá. – Deve ser terrível dar de cara com eles. Que horror! – Não te preocupes. É preciso algum cuidado, mas depressa aprenderás a defender-te. O mais perigoso de todos é o chefe do bando, o Bigodes. O zagorro gaba-se de nunca ter deixado escapar uma abelha… – Só de pensar nisso perco a vontade de sair! Bá, tu gostas de voar lá fora? – Sim, claro. É tudo muito bonito. Tens flores, árvores, muitas outras espécies de animais, inclusive de abelhas. Tu vais adorar!
No dia da saída brilhava um sol lindo num céu sem nuvens nem abelharucos. As abelhas lá partiram muito entusiasmadas para a grande aventura de bater as asas lá fora, sentindo-se livres no ar perfumado da primavera. A Zi estava tão feliz, que zumbia para as outras: – Vejam o que eu já sou capaz de fazer. Até consigo voar de barriga para cima e de marcha-atrás! As outras riam-se dela, da sua felicidade e das suas tontas acrobacias.
A meio da tarde, pousado numa flor de dente-de-leão, a Zi encontrou um inseto muito diferente dela. Era pequenino e, em vez de transportar pelotas de pólen nas patas traseiras, levava a barriga peluda completamente amarela de tantos grãos. Ela, muito admirada, ziziou-lhe: – Olá! Que animal és tu? – Olá! Eu sou a Lásio, uma abelha silvestre! – zumbiu-lhe a outra de volta. – Silvestre? Como assim? – quis saber a Zi. – Silvestre quer dizer que o bicho homem não nos domesticou. Em Portugal, há cerca de setecentas espécies de abelhas como nós, mas, como não produzimos mel, só vocês é que são famosas! – zuniu a Lásio em tom de desabafo. – Oh, não sabia. Que interessante! E onde é que fica a tua colmeia? – Nós não temos colmeias. Vivemos em grutas debaixo do chão, somos trogloditas. – E a Lásio riu-se muito depois de dizer aquela estranha palavra. – É aí que criamos os nossos filhos. Se queres ver como é, vem daí comigo…
Voaram juntas até uma zona de terra compactada e sem vegetação. Ali vivia a família da Lásio, em comunidade com outras famílias da mesma espécie. A Zi observou surpreendida as abelhas que rapidamente desapareciam debaixo da terra, enquanto outras saíam. Era como se toda aquela terra fosse apenas a entrada de uma enorme colmeia. Depois dessa extraordinária viagem, a Zi passou a interessar-se pelas abelhas silvestres e conheceu muitas outras espécies. Algumas faziam os ninhos nos lugares mais incríveis: orifícios na madeira, canas, conchas de caracóis vazias e até em paredes de betão, como as da casa do apicultor Moisés. Outras viviam em grupo, como a família da Lásio ou os grandes abelhões. Mas, curiosamente, a maioria era solitária: em cada casa havia apenas espaço para os ovos que uma mãe, sem ajuda, poria em quartos separados e cheios de pólen. As novas abelhas só nasceriam na primavera seguinte.
O tempo ia passando e a Zi lá continuava muito feliz na sua vida de abelha, aprendendo coisas novas, sempre divertida e entusiasmada com as surpresas que preenchiam os seus voos. Até se esquecera dos abelharucos! Sabia de histórias temíveis, de encontros que as suas companheiras haviam tido com eles, mas ainda não os tinha visto. Uma tarde, de regresso a casa, a abelha que a seguia começou a gritar: – Fujam, fujam! Escondam-se! Escondam-se! São eles! Os abelharucos vêm atrás de nós! Cuidado com o Bigodes! Atarantada, a Zi olhou para trás e viu um pássaro lindo, de cores luminosas, que a perseguia já de perto. Apavorada, sem saber o que fazer, lembrou-se dos conselhos do seu amigo Bá e rapidamente voou em direção às árvores, ziguezagueando por entre os troncos. Atrás de si ouvia o bater forte das asas dos abelharucos, e um deles disse para outro: – Bigodes, aposto que não vais conseguir apanhar essa! É cheia de truques! Este respondeu-lhe: – É o que tu quiseres apostar, pá! Parece que está um bocado zonza, mas, mais um minuto, e estará aqui no meu papo! Até a vou arrotar! – E deu um grande arroto, seguido de uma tenebrosa gargalhada.
A Zi voava o mais rápido que conseguia para os despistar. Mas os abelharucos, mais fortes, conseguiram alcançá-la. Enquanto a cercavam, o Bigodes, já de bico aberto sobre as suas asas, preparava o golpe final. Não tenho a menor hipótese de escapar, zumbiu a Zi para os seus pensamentos. Se não for comida pelo Bigodes, caio no papo de outro qualquer, pensou ela, desesperada.
Foi quando, de súbito, a Zi deixou de ver, de ouvir, de sentir… Quando despertou, deu por si a pestanejar com dificuldade, até conseguir, com algum esforço, abrir os olhos. Ai, como lhe doía a cabeça! À sua volta nada via, tudo era escuro. Lembrou-se então: tinha sido engolida pelo maldito do Bigodes! Mas ele enganava-se se pensava que as coisas iriam ficar assim! Haveria de encontrar maneira de sair do seu papo escuro, ou então ferrava-lhe a moela com uma fúria tal, que o Bigodes nunca mais se atreveria a comer abelhas. Enquanto pensava nisto determinada, a Zi reparou numas pequeninas luzinhas ali perto. Ouviu: – Eh pá! Que grande cabeçada que aquela deu no pinheiro! De certeza que até viu estrelas – disse uma. – Ah, ah, ah, ah! Amanhã deve ter um galo a cantar-lhe logo de madrugada – respondeu outra, entre risos. Depois, todas aquelas luzinhas riram, ah, ah, ah…, em grande festa.
Receosa e desconhecendo o que por ali acontecia, ainda assim a Zi zumbiu alto e bom som: – Olá! Quem são vocês? Também foram comidas pelo Bigodes? Apanhadas de surpresa, as luzinhas calaram-se por um breve instante. Mas, logo de seguida, uma delas retorquiu: – Bigodes tinha a tua avó! E desataram todas outra vez a rir. A Zi, deixando transparecer que estava muito nervosa, disse-lhes: – Por favor, digam-me o que se passa. Onde estou? Estou muito assustada, por favor… Foi então que uma delas a acalmou: – Fica descansada que não fomos engolidas por esse tal de Bigodes! Que raio de conversa. Tu estás bem? Pareces um bocado zonza! – Parem de me chamar zonza, já estou farta! Chamo- -me Zi! – zuniu chateada. – Se não fomos engolidas pelo Bigodes, porque é que está tudo tão escuro? Onde é que estamos? A que primeiro falara esclareceu: – Olha para cima, para o céu, e compreenderás…
A Zi levantou a cabeça e viu que o Sol não tinha luz! Só sobrava um pequeno contorno de luz à volta de um círculo muito negro. Preocupada, ziziou: – Oh! O Sol está apagado! Ardeu todo! E agora? – Calma, não ardeu todo, vai ardendo… Mas agora está só escondido atrás da Lua. – A Lua, mas o que é a Lua? E porque é que vocês têm luz? Roubaram-na ao Sol? As luzinhas explicaram-lhe que eram pirilampos, que só à noite saíam das suas tocas, e que as suas luzes serviam para atrair as princesas na altura do namoro. E o que estava a acontecer era um eclipse solar, ou seja, a Lua, o satélite da Terra, tinha-se posto à frente do Sol, tapando-o temporariamente. E era o mais belo eclipse solar de que os pirilampos tinham memória. Muito surpreendida, a Zi ficou a saber que, ao contrário dela, que só saía de dia da sua colmeia, havia animais que só à noite saíam dos seus abrigos.
Depois, um deles pediu-lhe: – Conta-nos lá bem essa história do teu amigo Bigodes. – Ele não é meu amigo! É um pássaro que come insetos, sobretudo abelhas, e nós não sabemos como nos livrar dele. Uma das luzinhas brilhou com um sorriso malandro: – É muito simples, amiga. Basta encontrares alguém que o coma a ele! E riu-se, recomeçando o coro de luminosas risadas. – E quem é que poderia fazer isso? Nem era preciso que o comesse, bastaria que o assustasse… – Nós sabemos de alguém que te pode ajudar. Espera um pouco. E, dito isto, o pirilampo voou em direção à Lua.
Regressou pouco depois, acompanhado de uma ave muito maior que os abelharucos, com uns olhos enormes, que a hipnotizavam. – Zi, apresento-te o Ubu, o nosso amigo mocho – disse. O mocho cumprimentou-a, estendendo-lhe a ponta da asa: – Muito prazer em conhecer-te, Zi. O Pi contou-me a tua história, mas receio não poder ajudar-te. Se caçasse de dia, eu mesmo arrancaria com gosto algumas penas do rabo desse tal Bigodes. No entanto, por causa dos meus olhos, só posso sair de noite. A luz do sol encandeia-me. De dia, não vejo absolutamente nada. Quem talvez te possa ajudar são os falcões. Os abelharucos têm muito medo deles.
– Obrigada, Ubu. O que são falcões e onde poderei encontrá-los? – São aves de rapina, como eu… Andam quase sempre aos pares e voam muito alto e rápido. Uma das espécies, o falcão-peregrino, pode voar a mais de trezentos quilómetros por hora. É o animal mais veloz do mundo, e um dos mais graciosos. E o Ubu explicou à Zi como eram e onde poderia encontrar as tais aves, por quem ele revelava uma admiração desmedida. Entretanto, lentamente, o Sol libertava-se da sombra imposta pela Lua, e a luz do dia voltava, interrompendo a interessante conversa entre a Zi e os seus amigos notívagos. Os pirilampos voltaram aos seus esconderijos e o mocho voou para a sua toca, no alto de um sobreiro.
No regresso a casa, a Zi foi encontrar a colmeia em grande alvoroço. As irmãs falavam do eclipse solar como se tivessem escapado ao fim do mundo. Muitas vezes aquilo que desconhecemos tem a particularidade de nos amedrontar, mesmo que não haja qualquer razão para isso. A Zi explicou-lhes o que realmente se tinha passado e, muito empolgada, contou-lhes todas as suas estupendas aventuras, até ser interrompida por uma das irmãs que a escutava com mais atenção: – Eu já vi esses falcões. São muito grandes… Fazem uns pios… Uau! Uau!… muito fortes, como se gritassem. Tive muito medo deles… – Não tens de ter medo. Eles não comem abelhas – zumbiu outra. E a Zi acrescentou: – Se eles fossem nossos amigos, os abelharucos nunca mais se metiam connosco! Então, uma das irmãs mais velhas, que estava também muito atenta aos relatos da Zi, zumbiu em tom discordante: – Que coisa mais tola! Sermos amigas dos falcões! O eclipse deu-te cabo do juízo, rapariga… A Zi não disse mais nada, mas ficou a zumbir para os seus botões. Para ela, não havia impossíveis…
Uns dias mais tarde, quando recolhia resina no alto de um choupo, a Zi foi surpreendida por uns guinchos fortes que a assustaram. Rodando a cabeça, avistou, lá bem no alto do céu, duas graciosas aves que planavam nas correntes de ar quente. Eram falcões-peregrinos, magníficos e terrivelmente assustadores. Agora percebia porque os tontos dos abelharucos os temiam tanto. O casal cruzava-se no céu, numa dança sincronizada, uma espécie de bailado que dispensava o bater de asas, e deixava a Zi fascinada. Como deveria ser bom pairar assim sem cair!, pensou. Inspirada, tentou fazer o mesmo e parou de bater as suas asinhas. Mas logo caiu a pique, tendo de fazer um grande esforço para se recompor. Curiosa, decidiu aproximar-se. Queria vê-los de perto, perceber como conseguiam voar assim, com tamanha elegância, sem mexerem uma única pena! Voava decidida na direção deles, quando o Bá se atravessou à sua frente, obrigando-a a parar.
– Eh Zi, onde vais com tanta pressa? – zumbiu-lhe. – Olá, Bá! Vou ver de perto ali aqueles falcões. Queres vir comigo? – Não posso, amiga. Ando à procura de uma beldade que foi vista por estes lados! O que é que tu lhes queres? – Sabes, estive a pensar… Se eles fossem nossos amigos, poderiam assustar os abelharucos! – Tu tens cada ideia! Tem cuidado, moça!… – Oh, porquê? Eles podem atacar-me? – zuniu a Zi assustada. – Não, amiga, podes ir descansada… – zumbou o Bá, afastando-se. A Zi continuou o seu voo até junto dos falcões. Depois, esquecida do tempo, demorou-se a vê-los planar. De súbito, um deles encetou um espantoso voo picado, atacando, com a velocidade de um raio, uma ave que voava quase junto ao solo. A Zi não podia acreditar no que os seus olhos viam! Agora compreendia toda a admiração que o Ubu tinha pelos falcões.
Cheia de ideias, voou rápido para casa. Queria partilhar com toda a família o que tinha magicado sobre os falcões e os abelharucos. Mas, ao chegar à colmeia, teve uma grande surpresa. Foi encontrar a colónia em festa. A uma só voz as abelhas zumbiam: – Viva a princesa! Viva a princesa! Viva, viva, viva!… Perguntou a uma das irmãs o que se estava a passar. – Nasceu uma rainha. Estás a vê-la ali? Olha que bonita! E depois, zuniu-lhe ao ouvido, em confidência: – Na verdade, ainda é só uma princesa. – Eu pensava que só podia haver uma rainha em cada família – respondeu-lhe, incrédula, a Zi. – E pensavas bem. Porque não sabias que na primavera nascem rainhas para fazerem novas colónias. É assim a lei da natureza. A princesa terá agora de sair para fazer o seu voo nupcial, em que irá namorar com diversos zângãos. Encontros amorosos que serão fatais para os seus namorados. Depois, já fecundada, regressará à colónia para tomar conta da casa, e a nossa rainha-mãe sairá com parte do seu séquito, para procurar uma nova morada. – Vamos mudar de colmeia? E vamos para onde? – Ainda não sabemos! Saíram agora mesmo umas irmãs, a quem chamamos batedoras. Foram pelos campos procurar um novo local para nos instalarmos.
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