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Tereza18

Published by Paulo Roberto da Silva, 2018-09-20 21:06:15

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JFMachado 25.07.1929 a 31.12.2003 Terezinha uma lição de fé!“Segura na mão de Deus...”



Terezinha uma lição de fé!



JFMachadoTerezinhauma lição de fé! Florianópolis 2018



Para afamília e os amigos... Jfmachado



Uma lição de fé!



 “Eu Tereza Almeida Machado, nasci no dia vinte e cinto de julho de 1929, às 9 horas. Minha parteira foi Virgínea Nonato, parto normal, mas só fui chorar as 16 horas do mesmo dia após um banho “esperto” com chás de folhas de laranja e gotas de Aconi- tum – remédio homeopático; e desde então, falo a valer...” Faz parte das recordações mais remotasda minha infância a Terezinha, nossa irmã,já doente. Sua doença foi contemporâneacomigo; ou seja, presenciei seus sofrimen-tos de perto e de longe por sessenta anos;mas ela já se via enferma antes mesmo queeu viesse ao mundo; adoecera na aurora dosseus cinco anos de idade, segundo consta no

12 Terezinhaseu diário... Uma dor aguda, repentina, natíbia da perna direita. Não se soube a cau-sa. Soube-se, mais tarde, tratar-se de umaosteomielite – inflamação da medula óssea.No início dos seus sofrimentos ela aindaresidia lá na roça, município de Recreio,MG – duas léguas de distância da cidade.Na urgência daquele sintoma incomum, foilevada a um lugarejo de nome Campo Limpo.O farmacêutico que a atendeu foi taxati-vo – “Não é caso do meu conhecimento”.Assim, foi transladada para Leopoldina,onde foi atendida; lá, constatada a gravida-de do caso, o médico propôs o tratamento depraxe – medicamentos e drenagem cirúrgicada inflamação. Não havia outra alternativa,naquele ano de 1934. Em seguida, retornouà cidade de origem.. Mas, daquele dia emdiante nunca mais sarou... “... andei e falei com onze meses. Até os cin- co anos eu era saudável; brincava, passeava na casa dos vizinhos. Foi quando começou a minha dor – presente de Cristo. Era véspera de Natal. Eu gritava e chorava de dor – não havia remédio que desse alívio. Fui levada a Campo Limpo (Ribeiro Junqueira) e lá fui atendida por um farmacêutico de nome

JFMachado 13 Enéas Miranda. Chovia muito naquele dia, razão por que, fui levada de carro de boi. Batizei no dia 10 de setembro do mesmo ano que nasci; os meus padrinhos foram os meus avós, Jacinto, pai de papai, e sua esposa Maria de Oliveira, madrasta de papai; minha madrinha de representação foi tia Ritinha. Crismei com 3 anos; o padre que me batizou, Aristides Porto, ordenou-se Bispo...” Como precisava de assistência espe-cializada e o trajeto roça cidade fossesofrível, foi recomendado aos pais a per-manência dela em Recreio. Criança ainda,foi residir com uma tia, tia Ritinha, irmã depapai, residente na cidade. Situação que,se por um lado lhe favoreceu freqüentarmelhor escola, bom convívio social, novasamizades, por outra, separou-a da família.As dificuldades próprias da doença fre-qüentemente lhe tirava da sala de aula – anecessidade de tratamento, curetagemóssea, curativos... Embora houvesse oscuidados terapêuticos de praxe, a secre-ção icorosa não lhe cessava de escorrer.Assim, ia crescendo à medida que o seuproblema de saúde também se agravava, aperna doente sempre engrossando... Época

14 Terezinhaàquela em que os recursos terapêuticosainda eram limitados. Depois de permanecer um certo tem-po na cidade voltou ao nosso convívio (daroça), mas precisando habitualmente láretornar para acompanhamento médico.Nessas idas e vindas, aproveitou o ensejopara aprender a arte da costura. Entrenós, parecia mais instruída, mais sociável,mais inteligente. Assim mesmo, nós zom-bávamos dela. Muitas vezes, num momentode raiva, a gente a chamava de “mula man-ca”, em alusão a sua manquês, a dificulda-de de se locomover, sempre arrastandosua perna inchada; a ferida aberta, o pusfluindo – inconveniente que em parte aajudava, pois quando a ferida ameaçavacicatrizar ela sentia dores horríveis. Maso sentimento maior era a dor de ver suavida drenando por ali, os dias passando,a criancice, a mocidade, os moços quegostavam dela e acabavam decidindo ousendo instruídos a não se comprometeremporque sua doença significava um peso amais; não foram poucos os candidatos quedesistiram, em razão disso...

JFMachado 15 “... não sou de reclamar. Quando digo que estou sentindo alguma coisa, é porque está demais... Sou alegre, comunicativa; para mim não tem tempo ruim. As vezes, se estou chorando de dor, tomo um remédio, a dor passa e a tristeza vai embora. Sempre eu falo com a minha irmã Tercília, casada, que sempre vem a nossa casa, pois mora perto. Lembramos dos tempos dos bailes que íamos aos sábados; baile de sanfona e lamparina. Era uma beleza! Dançava a valer, mesmo com a minha perna doente. No dia seguinte, ríamos dos acontecimentos da noite. Tínha- mos os rapazes certo para dançar, os meus amores; se não era eles, dávamos ‘perú’ nos outros. Uma coisa eu não gostei, não foi do meu agrado: eu não casei. Se não desse certo com o marido, tinha os filhos. Se tivesse me casado, o meu marido ia se danar, pois gosto de homem asseado, sapatos engraxados...” Numa certa ocasião, ela teve um namo-rado; eu começava a ter noção das coisas,daí lembrar fatos daquela época. A famíliajá havia mudado para próximo de Recreio,sítio São Sebastião, dois quilômetros dedistância da cidade. O tal moço chegavalá em casa, vindo de longe, montado numgarboso cavalo. Desmontava lá no curral,amarrava o animal, despia-se de uma calça

16 Terezinhavelha que vestia sobre a debaixo para nãose sujar durante a viagem e chegava lá navaranda, impecavelmente vestido e muitocortês; o chapéu Panamá, um chicote decouro bem trançado na mão, educado, cheiodas boas intenções... Tetê, o coração palpi-tante. Mas, a perna, cada vez pior. Até queum dia, o moço não mais voltou... Contudo,nem em situações tão adversas ela perdiao encanto da vida.. “... como éramos de família remediada, não andávamos ‘chiques’; mas também ninguém botava defeito; os vestidos eram bem fei- tos! Os primeiros quem fazia era mamãe, depois a costureira e por fim, era eu; por sinal, muito bem feitos. ‘Coruja que não gaba o toco, pau nela’. Aprendi a costurar as primeiras coisas com minha mãe; ela era esperta e fazia de tudo um pouco, como dizem: ‘para as despesas’. Aprendi o corte com a dona Júlia Albuquerque. Mais tarde eu fazia roupa de homem, mulher, criança e até vestido de noiva...” Das camisas aos mais elegantes vesti-dos, ela costurava para todos nós, momentoque a gente lhe fazia agrados, para que elapriorizasse a nossa roupa; éramos tantos

JFMachado 17que a malandragem era imprescindível. Maisatarefada se via nas véspera de baile e casa-mento; os interessados não saiam de perto,aguardando o momento da prova. Ficávamosali apreciando aquele ritual: ela tirava asmedidas do nosso corpo, desenhava no papel,cortava o tecido, alinhavava as peças e porfim, as costurava; aquela agilidade manualde invejar... Nos tempos mais remotos usa-va, com certa habilidade, uma máquina decostura, simples, tocada a mão; mais tarde,uma máquina mais moderna, tocada com ospés; com a perna boa, naturalmente. Haviaépoca em que costurava dia e noite na ânsiade atender as encomendas, de casa e defora. Como artesã que admira sua obra, elapedia que a gente provasse a roupa e ficavaobservando os detalhes; se não estivessedo seu gosto ou do gosto do freguês, eladesmanchava e refazia. A gente saía parao baile e ela ficava em casa; nós levando nocorpo a sua obra-prima; era o mínimo quepodíamos fazer por ela – a única forma deela estar presente também na festa! “... quando mais nova, a gente ainda morava no sítio São Sebastião. Nós tínhamos ido a

18 Terezinha “rua” para assistir à reza do mês de maio. Armou uma chuva forte e pegamos um galo- pe até em casa; a gente morrendo de medo da chuva e ainda um barulho estranho nos acompanhando. Chegando em casa verifiquei que era o meu brinco de argola; quanto mais eu corria mais ele batia. Rimos a valer do epi- sódio. As rugas que começam a aparecer em minha face me deixam um pouco preocupada com os anos; espero viver bastante, quero deixar boa fama. Fiz uma novena, do Sagrado Coração de Jesus, e quando fez três dias voltei a escrever e a fazer crochê. Chorei de emoção. Cristo sabia do que eu precisava. Obrigado, Senhor!...” De um tempo que não posso lembrar,eu bebê, ela enferma, ainda assim ela mepegava no colo, balançava o meu cesto detaquara (abaulado em baixo), para que eudormisse; era, por compaixão, além de irmã,minha fiel baba. Eu, nem sequer fiz o mesmopor ela; nem como irmão, nem como médico– as limitações (minhas e da ciência!). Comoirmão, eu estava sempre longe, embora noscomunicássemos com bastante freqüên-cia; antes, por carta, naqueles tempos deoutrora. O telefone veio anos mais tarde;muitos anos depois de a família mudar para

JFMachado 19a cidade. Quando ela não pôde mais escre-ver, na mesma época que também se viuobrigada a parar o crochê (o braço direitoinutilizado da radioterapia), nos comunicá-vamos de uma forma inusitada: gravávamosuma fita cassete de áudio, a família falandodas experiên-cias pessoais, das novidadesque havia por lá, onde residíamos, no Pr, emandávamos via correio para ela. Temposdepois recebíamos a resposta; ela gravavauma fita (uma delas eu tenho guardadacomigo ainda hoje), em que ela falava dacidade, das pessoas. Podia! Conhecia todomundo da cidade, a árvore genealógicade cada família, quem casara com quem,quem tinha ido embora; falava do padre, dapolítica, das comadres, dava notícias dosirmãos, contava dos enterros, falava de simesma, quase sempre sem reclamar – comose tivesse incorporado a doença a sua vida,como uma coisa normal! Nessa época jáestava acamada, conseqüência das tantasmutilações e agravamento da doença. “... tenho grandes amizades. Isto me aju- da um pouco a viver. Minhas amigas são pessoas pobres, ricas, pretas ou brancas;

20 Terezinha não tenho distinção. Palavra amiga é coisa forte e rara, mas ainda temos bastante. Obrigada, Senhor! Sinto bem em ajudar quem precisa; isto faz bem para o corpo e a alma. Hoje estamos bem de situação, mas nunca nos faltou nada. Morávamos no sítio Santo Antônio. (o casamenteiro), mas, para mim, não funcionou. Minha mãe fez queijo por quatorze anos. Meu pai tinha um carro de boi; puxava lenha para a Recreio, cidade do meu coração. Recebíamos visitas de todas as classes. Mamãe oferecia café com queijo, broa de fubá, biscoitos, arroz doce...” . Quando não pôde mais andar, achou quelogo iria morrer; que nada! A vontade deviver fez com que vivesse mais vinte anos,dando uma verdadeira lição de vida a muitagente; inclusive a nós, irmãos. A perseveran-ça e o exemplo dela nos dava força. Tenhocomigo que esse tempo a mais de vida queela sobreviveu deveu-se a irmã Tercília –seu verdadeiro baluarte nos tempos maisdifíceis, quando não podia mais andar. Oscuidados recebidos, fizeram com que elanunca perdesse o brilho próprio, o orgulho;a cabeça, sempre afinada com o tempo. Em-bora acamada, ainda assim impunha ordeme respeito a casa, depois que papai faleceu.

JFMachado 21O orgulho mantido, embora a carne esti-vesse ferida, e, muitas vezes, fedida. Ela jáconhecia o cheiro da secreção, o odor carac-terístico da osteomielite, nos seus períodosde piora. Papai nunca imaginou que fossemorrer antes dela; tinha ele a resposta naponta da língua, quando era convidado paraalgum passeio. – “Não posso. A Terezinhapode falecer a qualquer momento.” Quemsabe da hora? Ele, se foi e ela ficou. Acha-mos que ela superou-se com o falecimentodele – a necessidade de permanecer comoum esteio na família, alguém que dessebronca e unisse a família. Mamãe, coraçãoboníssimo, não era do feitio, mandona! De-pois de passar longo tempo nos cuidados dafilha, sem ver melhora, só lhe restava rezarpor ela... “... quando cheguei ao médico ele disse que precisava cortar, ou melhor, amputar, a minha perna. Chorei e perguntei por qual motivo. Eu não tinha feito mal a ninguém! Sou igual a uma criança que se entretém com ba- las, aceito bem as coisas, sou compreensiva, não sou de desesperar; era o ano de 1960, dia 12 de julho. Pedi para confessar; confessei e recebi a extrema-unção; dizem que isso

22 Terezinha ocorre quando a pessoa está morrendo ou foi mordia de cachorro louco. Não era ainda a minha hora...” Eu, ainda vivendo o conflito da minhaadolescência quando, no Rio de Janeiro,o médico (que a vinha acompanhando doproblema há algum tempo), recomendou aamputação da sua perna doente; temia-seque o mal atingisse outras partes do corpo.Decisão penosa. Mas creio, não em tempo...Quando ela voltou do Rio, sem a perna, agente chorou muito; parte dela havia ficadolá onde fora operada. No lugar, a perna me-cânica. Aquele ritual de tirar a perna paradormir e colocar novamente no dia seguintenão diminuía o seu apego à vida; ao contrário,após essa época, ela se sentiu mais viva –livrara-se do incômodo que a acompanhavadesde a infância. Assim, ela continuou nalida, na cozinha, fazendo seus doces, cos-turando, fazendo crochê, impondo-se... Asvezes brincávamos, escondendo a perna delaquando ela tirava para descansar; outrasvezes, roubando seus doces antes de elaacabar de cortá-los; intromissão que ela de-testava. Precisava ver o doce bem arrumado

JFMachado 23na bandeja, para admirar a própria obra.Na verdade, aproveitávamos a infelicidadedela de não poder deslocar-se rápido; mas,bobeávamos, e ela dava o troco – as unhas,sua melhor arma, levando junto o couro dagente... “... a pior situação foi no dia que recebi a perna mecânica; nunca tinha visto coisa igual; pensava que fosse diferente. Ajudai-me, Senhor! Achei horrível, chorei, fiquei triste, mas logo passou. Minhas amigas lá do Rio: Eni, Silvia Pinho, Glória Lopes e meu irmão José, que morava lá na época, dizia que a perna era linda; podia até passar esmalte nas unhas. Então, fé em Deus e pé na tábua. Dizem que a morte é descanso, então prefiro viver can- sada. Tenho horror à morte, acho ela ingrata. Sou pra frente, o que mais me preocupa são as pessoas não querendo aprender nada; se eu pudesse enfiava (o saber) dentro das cabeças delas. Meu avô Francelino, pai de mamãe, era habilidoso, inteligente...” Se alguém precisava informação deuma pessoa, ela abria a enciclopédia de suamente e contava detalhes; esmiuçava his-tórias daquela família que a própria pessoadesconhecia; a primazia da memória, que adoença nunca lhe roubou. Do seu leito de

24 Terezinhasofrimento sabia mais dos acontecimentosda cidade que o próprio carteiro; a lucidezda idéia e o carisma. Diariamente amigosiam visitá-la, quando ela aproveitava parasaber de tudo: parentes, filhos, vizinhos,até do trabalho daquela pessoa; gostavade estar a par dos acontecimentos sociais,preferindo a conversa, a afinidade com aspessoas de seu convívio que dos atores denovela. Se alguém tinha dificuldades elajá prometia uma oração; orar, era quaseuma obsessão. Quem a conhecia e acom-panhava o seu sofrimento, sabia da sua féem Deus... “... em 1974 eu tinha sido operada do seio di- reito, tiveram que tirar o meu peito, o útero e ovários. Foi muito triste e aí comecei uma nova luta. O Dr. Rafael e o Dr. Bira fizeram a cirurgia, na Casa de Caridade de Leopol- dina; foram ótimos para mim. Devo parte da vida a eles; e também a Deus. Fiz quarenta aplicações de radioterapia em Juiz de Fora, no Hospital Oncológico, com o Dr. Juracy e o Dr. Agildo; lá estive por 2 meses. Sempre sentindo mal, com o uso de remédios; meu enfermeiro, por muito tempo, 9 anos, foi o Jadi; devo obrigações a ele. Nesse meio tempo aconteceram coisas alegres e tristes.

JFMachado 25 Costurei bastante, bordei a mão, para diver- sas noivas, crochê nem tem quantidade do tanto que fiz; fiz duas colchas de casal para a Leila Magalhães e para cada irmão e irmã (de presente). Ao todo, dezessete colchas ou mais... Quando soube do seu falecimento, umahora antes de o ano 2003 ir embora, euestava no salão de festa de um edifício àbeira-mar, em companhia da família e deamigos; eu sabia do seu estado terminal, masela passara tantas vezes por aquele quadroque achei que venceria mais aquela etapa;embora eu, na minha vã covardia, rezassefreqüentemente para acabar todo aquelesofrimento: o dela e de todos nós. Principal-mente de quem cuidava dela – ela gritandode dor, sem que nada mais se pudesse fazer.No vazio do seu adeus, eu fui para um cantoe chorei; não sei se de tristeza ou de alívio...Naquele momento o céu se punha iluminadopelos fogos de artifício, as pessoas se des-pedindo do ano velho e dando boas- vindas aoano novo; parecia mais que todos saudavama ela. As luzes feito lágrimas caindo do céu,estrelas cadentes; até o céu chorava por ela;não podia ter morrido em dia e hora melhor.

26 TerezinhaO mundo todo festejando a vida, pedindopaz, agradecendo... Ali, agradecíamos a elapor ter existido, ela e sua extraordináriavontade de viver e capacidade de suportar ossofrimentos com galhardia; éramos um pontode luz na grandeza de sua constelação. Eracomo se todos, numa sintonia universal, fi-zessem reverencia a ela, e a gente estivesseali para assistir a sublimação de sua alma... “... minha vida é até um pouco engraçada. Dá até para fazer uma novela. Foram ao todo, treze operações. Dez em Leopoldina, duas no Rio de Janeiro e uma em Juiz de Fora. Os meus primeiros médicos foram o Dr. Poujálio e do Dr. Álvaro, já falecidos. Deus lhes dê um bom lugar. Tive e tenho uma vida bem sofrida. Levo a vida como ela é; não como eu quero...” Um mês antes de seu falecimento eutinha ido visitá-la. Contra qualquer lógicacientífica ela sobrevivia em lastimável es-tado: no tórax do lado direito uma feridaprofunda, as bordas coroadas de levedurasde onde exalava um odor insuportável; nemsequer agüentei olhar com detalhe a suaferida onde supus ter visto um segmento

JFMachado 27do seu pulmão lá no fundo; fosse do ladooposto, veria seu coração. Impressionante!A irmã Tercília e suas ajudantes faziam oscurativos; terminavam a tarefa, atordoa-das; a irmã, essa, então, era acometida defortes cólicas intestinais, embora pare-cesse habituada a todo aquele sofrimento:anos a fio ali na função dos seus curativose retirada de fragmentos ósseos, restosda clavícula direita; por certo, conseqüên-cia da osteomielite ou da radioterapia;tratamento a que ela fora submetida porlongo período depois da retirada da mamadireita. Alguns anos antes tinha sido ope-rada do útero. Ainda assim, muito mutilada,ela estava ali, lutando pela vida... De moçaalta e faceira resumia-se a um esqueletona cama; não a mente – essa, sempre impe-cavelmente sadia. “... minha vida é um pouco difícil. Para dormir preciso tomar remédio. As pessoas às vezes pensam que é fácil, mas para mim que faço tudo para vencer na vida, quando digo que es- tou com dor é porque não estou agüentando mais. Já fiz tudo, hoje dependo dos outros; dependo que abotoem até o meu sutiã. Acho Deus ótimo. Não há ninguém que se possa

28 Terezinha comparar a Ele. Se vou tomar banho, preci- so tirar a roupa, o peito (postiço), a perna (mecânica), os óculos, o relógio... Que vida! A Maria minha irmã, disse: você que é feliz, tem todas estas coisas para tirar e colocar. A gente ri e muda de assunto...” Na última semana de sua existênciavinha tendo hemorragias; sangramentosprofusos através da ferida. Foi em conse-qüência de uma dessas, mesmo na urgênciade uma transfusão sanguínea, que faleceu;deu por encerrada a sua missão. Mas foicom galhardia. Minutos antes, estava lúcida,falando com a maior naturalidade, tão acos-tumada estava aos sofrimentos... Costumavadizer que havia morrido algumas vezes evoltara a viver; chegava a contar detalhesdo seu momentâneo passamento, onde en-contrava com pessoas amigas já falecidas.Conversava com elas. Algumas vezes éramoschamados às pressas e reunidos ali em voltado seu leito, orávamos para que ela fosseem paz; ela já expirando o sopro da vida.Que nada! Ainda não era o seu dia! Pareciaque quando estava morrendo lembrava departe da missão ainda não cumprida e voltara viver; era assim, imprevisível! O amor pela

JFMachado 29vida trazendo-a de volta ao nosso convívio,ao seu sofrimento. Mamãe sofria, do altodos seus noventa e três anos de idade, avida toda acompanhando aquele sofrimentode perto. Todos sofríamos. Não só sofría-mos como não entendíamos o porquê daquelador, daquela agonia. Qual a força supremaque a mantinha presa à vida por um fio deesperança. Talvez quisesse morrer de ve-lhice (morreu com setenta e quatro anos)e mostrar a todos que podia superar a do-ença; algumas vezes, até a morte. Um feitoque todos podemos! Para isso, basta quegostemos da vida; embora nem tudo na vidasejam flores... Mas, o peso do fardo podetornar-se mais leve, se estamos “segurosna mão de Deus”... “... a última vez que fui à varanda foi numa quinta-feira santa. Assisti à procissão do en- contro, bem em frente a minha casa. No ou- tro dia não agüentei mais levantar. Uma dor terrível no braço direito, uma inchação, não havia remédio que desse alívio; vivi muitos dias em prantos. O Dr. Carlos vinha todo dia me ver; aquele remédio não adiantava, passa outro. Sei que dor não mata; se matasse, já estaria morta há muito tempo. Mariângela,

30 Terezinha minha sobrinha, morou conosco nove anos, para estudar e dar uma ajuda. Como gosto dela! Há tempo que não posso trabalhar. Meu divertimento era crochê, para os meus e para fora. Fico triste, disfarço com uma alegria forçada; tristeza não paga dívida...” Dias após o seu passamento, foi lido oseu testamento. Num pequeno relato dei-xara para a irmã Tercília, sua amiga e en-fermeira, o pouco que lhe restava de bensmateriais. Muito mais que isso, deixara de si,uma grande lição de vida e de fé: podemossuperar as dificuldades da vida. É bem certoque nenhum sofrimento pode comparar-sea sessenta e nove anos de dor; só alguémde muita garra pode suportar coisa igual.Aqueles que presenciaram o seu sofrimentosabe o quanto ela foi especial, na sua fé emDeus e na luta pela vida. A força da mentepode superar o sofrimento da carne... ... hoje, oito de abril de 1989, tenho de parar de escrever. Minha mão já não me ajuda; mas agradeço a ela por ter feito tantas coisas gostosas e bonitas. Tenho muitos sobrinhos, cada um mais lindo que o outro; gosto muito deles... Obrigado, Senhor, pela minha famí- lia. Jesus me ajude e me dê uma boa hora

JFMachado 31de morte, pois estou cansada.... Agradeço aminha mãe, meus irmãos e irmãs pela com-preensão nas horas alegres e tristes. Querodizer aos meus médicos, Dr. Carlos Afonso efamília, Dr. Silvio e esposa e o meu irmão, opessoal da farmácia, que lutaram pela minhasaúde; mais foi tudo em vão... Deus abençoeas mãos que lidaram comigo. Adeus, Recreio,cidade querida. Se eu vim a este mundo, tal-vez foi para deixar saudades, ou um exemploao povo. Recreio, 9 de abril de 1989. TerezaAlmeida Machado. ‘Terezinha’.” Obrigado, Tetê! Em nome da família e dos amigos... JFMachado 

Este livro foi editorado com as fontes Comic Sans MS e Chaparral pro. Publicado on-line.



“Eu Tereza Almeida Machado, nasci nodia vinte e cinto de julho de 1929, às 9horas. Minha parteira foi VirgíneaNonato, parto normal, mas só fuichorar as 16 horas do mesmo dia apósum banho “esperto” com chás de folhasde laranja e gotas de Aconitum –remédio homeopático; e desde então,falo a valer...”


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