Copyright © 2023 by Os autores Todos os direitos e responsabilidades, reservados e protegidos pela Lei 9.610. É permitida a reprodução parcial desde que citada a fonte. Editor literário: Linaldo B. Nascimento Capa, projeto gráfico e diagramação: Papel da Palavra Produzido e registrado por © 2023 Papel da Palavra - Prefixo na Agência Brasileira desde 2015 - papeldapalavra.com - CNPJ 23.325.026/0001-05 M3573c - Marques, Mateus Leite | Crime de Stalking: uma análise sobre a subjetividade do tipo penal / Mateus Leite Marques; Vanessa Érica da Silva Santos – 1. ed. – Campina Grande, PB : Papel da Palavra, 2023. ISBN 978-65-85626-11-8 DOI: doi.org/10.5281/zenodo.8132914 1. Direito. 2. Stalking. 3. Crime de perseguição. I. Título. CDD 340 - Direito
SUMÁRIO Prefácio 9 11 1. INTRODUÇÃO 15 16 2. ASPECTOS CONCEITUAIS E HISTÓRICOS DO 18 DELITO DE STALKING 21 2.1 A conceituação do delito de Stalking 2.2 O fenômeno de Stalking ao longo da história 31 2.3 O perfil típico dos stalkers e das vítimas 32 36 3. UMA ANÁLISE DA NOVA LEI DE STALKING NO 43 BRASIL 3.1 As características presentes no tipo penal 51 3.2 Um estudo relativo à prática do cyberstalking 52 nas redes sociais 3.3 A importância da lei de Stalking como 59 instrumento de prevenção à violência de gênero 64 73 4. OS DESAFIOS DA SUBJETIVIDADE DO TIPO PENAL 77 E SEUS REFLEXOS NO CASO CONCRETO 83 4.1 Análise sobre a subjetividade do delito de perseguição reiterada 4.2 A importância da produção probatória como mecanismo indispensável para punição do stalker na esfera cível e criminal 4.3 A possibilidade de efetivar o Artigo 147-A do código penal 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Referências Os autores
Every breath you take And every move you make Every bond you break Every step you take I'll be watching you (THE POLICE, 1983)
PREFÁCIO O livro Crime de Stalking: uma análise sobre a subjetividade do tipo penal, de Mateus Leite Marques e Vanessa Érica da Silva Santos, é uma produção necessária, atual e urgente para observa- dores e observadoras do Direito e quaisquer áreas do pensamento humano. Desenvolvido no âmbito da pesquisa científica promo- vida pelo Centro Universitário de Patos (UNIFIP), compõe-se de documento jurídico rico e com vasta fundamentação de suas posições. O avanço das tecnologias tem quebrado os paradigmas sociais e criado novas formas de compreender a sociedade atual. Tal avanço também traz seus problemas sociais, que em termos normativos e legais, causam prejuízos, danos e infrações cíveis e penais. Dentre os novos fenômenos sociais humanos, o stalking chama a atenção não só do Direito e seus sujeitos processuais, mas, também, de outros agentes sociais, que estão a cada dias mais atentos às consequências desse fenômeno. A partir de uma linguagem simples e adequada a qualquer leitor, mas com suas características jurídicas e científicas, os autores discorrem sobre a conceituação do stalking, em nível global, e no Direito brasileiro, além dos desdobramentos e dificul-
10 PREFÁCIO dades de sua aplicação, como crime, no ordenamento jurídico nacional, principalmente, diante da subjetividade que o tipo penal exige. Ganha o mundo jurídico com esta excelente obra, que busca contribuir ainda mais com as observações científicas e as proble- máticas da difícil relação entre Direito e mundo global virtual. Patos, Sertão da Paraíba, junho de 2023. Tiago Medeiros Leite Professor do Curso de Direito da UNIFIP, Doutor em Ciências Jurídicas (UFPB).
ICNAPTITRUOLOD1UÇÃO INICIALMENTE, enfatiza-se que diante da recente criminalização da prática do stalking, também conhecido como perseguição reite- rada, com a entrada em vigor da lei nº 14.132/21, que incluiu o artigo 147-A no Código Penal, o presente trabalho científico tem como objeto tratar sobre a efetividade do crime em questão no caso concreto, analisando a subjetividade do tipo penal. A problemática desta pesquisa está no fato de que o fenômeno em estudo é eminentemente subjetivo e em muito se assemelha com outros tipos penais correlatos, de maneira que se discute se existe a possibilidade ou não de se efetivar a punibilidade do crime de stalking no caso concreto. O estudo tem como objetivo geral analisar a nova lei de stalking com relação especialmente ao seu aspecto subjetivo, buscando formas de como lidar com essa ampla subjetividade em cada caso, desde a tarefa árdua de como identificar a conduta de stalking, destacando também acerca dos desafios presentes na etapa de produção probatória e ao final responder a problemática se é possível efetivar a punição ao delito em estudo. Pontua-se de igual modo que a pesquisa apresenta como obje- tivos específicos, traçar uma evolução histórica acerca do surgi-
12 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… mento da conduta de perseguição reiterada ao redor do mundo, destacando o conceito da prática criminosa, expondo o perfil dos stalkers e das vítimas, como também busca analisar o texto da lei 14.132/21, evidenciando as características do crime em questão, incluindo sua modalidade virtual por intermédio do cyberstalking e reforçando o caráter importantíssimo da lei como mecanismo de prevenção de crimes mais graves. Nesse sentido, este trabalho científico tem a hipótese de que é possível sim efetivar a punibilidade do novo tipo penal no Brasil, embora diante de uma inconteste subjetividade, visto que são inúmeras as situações que a depender do caso concreto podem caracterizar a conduta de stalker, de modo que limitar a sua previsão também poderia trazer o risco de tornar determinadas condutas impunes, buscando ao final confirmar ou negar a hipó- tese ventilada. No tocante a justificativa a presente pesquisa é significativa- mente relevante ao se propor estudar até que ponto a conduta prevista em lei é efetiva, da forma como foi posta, sendo essencial buscar entender o texto legal acarretando assim em uma posterior aplicação prática mais eficaz no combate a conduta do stalker. Com relação a metodologia, se utilizará dos métodos de abor- dagem hipotético dedutivo uma vez que o estudo parte do conhe- cimento genérico do que se entende por stalker, analisando a caracterização do delito a partir do que está expresso no código penal, para assim depois poder chegar à conclusão se é possível efetivar ou não a punibilidade do crime em estudo no caso concreto. Já no tocante aos métodos de procedimento, o estudo lançará mão dos métodos histórico, analítico e interpretativo. No que concerne ao método histórico a pesquisa busca traçar uma evolução histórica do surgimento da conduta e a criminalização do stalking no cenário mundial, já o método analítico e interpreta- tivo estará presente ao longo de todo trabalho, que se destina sobretudo a analisar o novo tipo penal de stalking, a partir da pers-
CRIME DE STALKING 13 pectiva da subjetividade evidente do delito. Por fim, com relação às técnicas utilizar-se-à da bibliográfica e documental, uma vez que é utilizado o conhecimento proveniente de diversas bibliogra- fias e documentos que tratam da temática. Nesse sentido o presente estudo iniciará tratando acerca da dificuldade de conceituação do delito de stalking, se propondo posteriormente a traçar uma evolução histórica da conduta ao redor do mundo, pontuando em seguida sobre o perfil do autor do crime, seu modus operandi, bem como as diversas classifica- ções inerentes às vítimas. Ademais, a referida pesquisa também abordará a respeito das características associadas ao crime de stalking, a partir de uma análise atenta do texto da lei 14.132/21, discorrendo de igual modo sobre a ocorrência da perseguição empregando-se do meio virtual, o chamado cyberstalking, aludindo ainda sobre o impor- tante papel da nova lei como forma de prevenção de crimes mais graves, como o feminicídio e o estupro. Por fim, a presente observação dissertará sobre a subjetividade evidente do delito em estudo e destaca formas de como identificar a conduta do stalking na prática e ainda como diferenciá-lo de outros tipos penais correlatos como a ameaça, a falsidade ideoló- gica, entre outros, ressaltando de igual modo sobre a dificuldade também atrelada ao processo de produção probatória e como superá-la. Ao final os autores buscarão responder ao questionamento inicial associado a possibilidade de se efetivar ou não a punibili- dade do crime de stalking, através da nova lei 14.132/21, trazendo ainda formas de como promover uma maior efetividade do dispo- sitivo legal no caso concreto.
ACASPPITUELCOT2OS CONCEITUAIS E HISTÓRICOS DO DELITO DE STALKING ESTA SEÇÃO ABORDA a conceituação do que se entende por stalking, analisando o significado da palavra estrangeira que se difundiu bastante nos últimos anos com a popularização das redes sociais e cuja definição é complexa, haja vista a falta de consenso entre os doutrinadores e a subjetividade do tipo penal. Será exposto em seguida um estudo acerca da prática da perse- guição reiterada ao longo da história, que resultou na tipificação expressa da conduta no ordenamento jurídico de vários estados internacionais que atentaram para a problemática, inclusive no Brasil, embora de forma bastante tardia, a partir da entrada em vigor da lei 14.132/21 que tratou de revogar o artigo 65 da lei de contravenções penais, que discorria superficialmente sobre o tema, e incluiu o artigo 147-A no código penal. Por fim, a seção ainda se propõe a traçar o perfil do stalker e das vítimas, compreendendo o modus operandi do stalker, as carac- terísticas específicas dos vários tipos de vítima do delito, bem como as consequências da conduta nas mais diversas esferas da vida do perseguido, de modo a possibilitar a melhor compreensão do fenômeno, sobretudo pelos operadores do direito, no caso concreto.
16 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… 2.1 A CONCEITUAÇÃO DO DELITO DE STALKING Para Gennarini (2021), a prática de stalking, que decorre do verbo em língua inglesa to stalk, em muito se assemelha ao ato de caça, em que o stalker literalmente persegue reiteradamente sua presa, ou seja, a vítima dessa intensa obsessão. Enfatiza-se que o tipo penal pode ser efetuado tanto de forma física, ao perseguir seu alvo na saída do trabalho por exemplo, como também pelo meio virtual, utilizando-se das mais diversas tecnologias e valendo-se da popularização em massa das redes sociais para praticar a conduta, que nessa situação específica recebe a nomenclatura de Cyberstalking (GENNARINI, 2021). Por sua vez Ferreira (2016, p.10) ao refletir a respeito da defi- nição deste fenômeno, expõe o seguinte: Consideramos o stalking, no seu significado mais comum ou social, uma forma de violência interpes- soal, que consiste numa campanha de comporta- mentos reiterados e obsessivos, de assédio e perseguição, indesejados pelo alvo, e que se prolongam no tempo, sendo susceptíveis de criar na vítima um clima de medo, temor e desconforto, podendo-lhe provocar graves lesões físicas e psicoló- gicas. São vários os comportamentos que se podem integrar no conceito, podendo compreender acções rotineiras e à primeira vista inofensivas (enviar mensagens de forma insistente) ou acções claramente intimidatórias (perseguir o alvo, ameaçá-lo, agredi-lo física ou sexualmente, etc.). A partir dessa definição, entende-se ainda mais a dificuldade de conceituar de forma clara a prática da perseguição reiterada, haja vista ser um fenômeno sociológico, muito subjetivo e que abarca desde ações que inicialmente podem parecer comuns e
CRIME DE STALKING 17 desprovidas de qualquer perigo, até condutas graves de persegui- ção, que podem até mesmo resultar em agressão física ou sexual e em alguns casos ocasionar a morte do stalkeado. Sendo desse modo fundamental a compreensão do conceito de stalking em todos os seus variados aspectos, para assim ser possível agir de maneira mais efetiva na solução da problemática no caso concreto. Nesse panorama, aduz ainda Matos et al (2011), que o termo stalking trata- se apenas de uma nova maneira de caracterizar comportamentos de perseguição reiterada que já existem a muito tempo na história, de modo que corresponde a uma problemática antiga, todavia com nomenclatura recente. Compreendido as discussões acerca da dificuldade de enqua- dramento do delito de perseguição reiterada, infere-se conforme aduz Haile (2020), que apesar de não haver um consenso doutri- nário sobre o tema, existem características inerentes a prática de stalking, sempre presentes em sua conceituação, entre elas estão, primeiramente, uma multiplicidade de condutas conectadas umas às outras, uma vez que a perseguição deve ser reiterada, não sendo suficiente que um único ato já caracterize a conduta como stalking. É válido citar no presente capítulo, a título exemplificativo, algumas ações rotineiras conforme expõe Greco (2021), entre elas, enviar inúmeras mensagens de texto por aplicativo em um período considerável de tempo, ligar de maneira insistente para determinada pessoa por meses, abordar alguém de forma contínua em ambiente que a vítima frequenta semanalmente, como seu local de trabalho, dentre outras. Percebe-se que estas ações acima mencionadas em um primeiro momento podem parecer inofensivas, contudo, a depender do caso concreto podem ensejar na tipificação do delito de stalking. Nesse sentido, infere-se que compreender detalhadamente o significado da conduta de stalking e além disso aplicar esse conhe- cimento teórico no caso concreto é uma missão complexa, haja vista ser uma palavra de origem estrangeira, que expressa uma
18 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… prática muito subjetiva e demasiadamente presente na atualidade. Haile (2020) ainda aduz outras características indispensáveis, que incluem comportamentos do stalker contrários à vontade da vítima, e em razão disso capazes de gerar nas pessoas perseguidas sentimentos de aflição, pânico e perturbações de ordem psicoló- gica e física, sendo por fim tais condutas direcionadas a atingir uma finalidade específica, seja ela vingança, ódio, iniciar ou retomar um relacionamento íntimo, entre outras motivações. Desse modo, diante do contexto analisado, levando em consi- deração a subjetividade da conduta, a dificuldade de conceituação e aplicação no caso concreto, é fundamental que os operadores do direito estejam atentos a esta realidade muito antiga, apesar da nomenclatura recente e bastante frequente na sociedade atual, significativamente tecnológica e virtual. Ademais, conforme destaca Gennarini (2021), apesar da falta de consenso entre os estudiosos do assunto, e as muitas vertentes que o tipo penal pode apresentar, é plenamente possível buscar identificar características essenciais e inerentes ao crime de perse- guição reiterada, a partir da análise minuciosa do caso concreto e assim agir de forma correta na proteção das vítimas desse fenômeno. 2.2 O FENÔMENO DE STALKING AO LONGO DA HISTÓRIA Nesse contexto, uma vez entendido em que consiste o fenômeno em estudo, necessário se faz analisar que a conduta em questão não é recente e já existe há milhares de anos, sendo prudente pontuar brevemente alguns casos emblemáticos de stalking ao longo da história ao redor do mundo, acontecimentos que foram determinantes na tipificação expressa do delito em diversos países. Conforme alude Gomes (2016), desde o Império Romano já existem relatos acerca da prática da conduta de stalking. Todavia, foi somente em 1990 no estado da Califórnia nos Estados Unidos
CRIME DE STALKING 19 que foi criada a primeira lei anti-stalking. O estopim para criação da lei foi a morte da atriz de Hollywood, Rebecca Schaeffer, assas- sinada por um fã que já a stalkeava a cerca de 3 anos. Pouco menos de um mês após o triste episódio, foi divulgado na mídia que outras três mulheres foram mortas pelos seus ex-maridos, depois de longos períodos de perseguições reiteradas. Ferreira (2016) também pontua que em 1993 todos os outros estados Americanos já tinham suas próprias legislações anti-stal- king, de modo que diversas outras nações passaram posterior- mente a punir condutas de perseguição reiterada, como é o caso da Alemanha, Austrália, Canadá, entre outros. Na Europa, conforme dispõe Caldeira (2021), pode-se citar como exemplo o Reino Unido, que desde o ano de 1997 tratava sobre a matéria, muito embora não a chamava com a nomencla- tura de Stalking, estando mais relacionado à prática do assédio, de maneira que a norma se divide em duas seções, uma que se refere ao próprio assédio e a outra que engloba as condutas compreen- didas como stalking. Ademais, ressalta-se que a lei do Reino Unido estipula não só a pena de prisão, como também permite que sejam feitos requeri- mentos de ordens de restrição, bastando apenas que se configure no caso concreto a prática de condutas de perseguição de forma contínua (CALDEIRA, 2021). Na Itália, a punição expressa dos atos persecutórios, como é chamada as condutas de stalking pelos Italianos, ocorreu em feve- reiro de 2009, com a inclusão do art. 612-bis no código penal Italiano, que determina que qualquer pessoa que assedie outra, reiteradamente, gerando na vítima um estado de ansiedade ou medo grave e contínuo, será punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos, dependendo o procedimento criminal de queixa (DAVID, 2017). Já na Alemanha, de acordo com Silva (2015), a legislação anti- stalking já havia sido criado desde 2002, todavia apenas no âmbito civil, de modo que em 2007, a perseguição reiterada, chamada
20 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… pelos legisladores alemães de assédio severo, passou a ser prevista penalmente com a inclusão do artigo 218 no Código Criminal Alemão. O referido código prevê que quem assediar alguém, de forma contrária à sua vontade, a partir de uma das condutas listadas no artigo, será punido com pena de prisão de até 03 anos ou multa, entretanto a pena pode chegar até 10 anos, quando a conduta do stalker ocasionar ferimentos graves para a vítima ou a pessoa que tenha proximidade com o assediado (SILVA, 2015). Nesse sentido, prosseguindo com as análises das previsões do ordenamento jurídico internacional acerca do stalking, utilizando- se do direito comparado, Rocha (2017) afirma que no continente Europeu, Portugal foi o país que mais tardiamente criminalizou a conduta de stalking, a punição expressa da chamada perseguição pelo legislador, se deu com a inclusão do art. 154-A no código penal Português, somente em agosto de 2015. O respectivo artigo lusitano determina que quem prejudica no direito à liberdade de determinação de alguém, gerando uma sensação de inquietação na vítima, pode ser punido com pena de prisão de até 03 (três) anos ou multa, sendo cabível a tentativa, além de que o procedimento criminal depende de queixa (ROCHA, 2017). No Brasil a prática da perseguição reiterada apenas passou a ser expressamente criminalizada em 31 de março de 2021, com a entrada em vigor da lei 14.132/2021, que adicionou o artigo 147-A no código penal. O mencionado dispositivo legal estabelece o seguinte: “Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, amea- çando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade” (BRASIL, 2021). Nesse sentido, resta cristalino, que apesar da preocupação do ordenamento jurídico internacional em tratar sobre o tema desde a
CRIME DE STALKING 21 década de 90 e início dos anos 2000, o Brasil somente despertou de maneira tardia para essa realidade. Nesse contexto, Cunha (2021) alude que anteriormente a entrada em vigor da lei 14.132/2021, grande parte dos atos de stal- king eram punidos conforme a previsão do artigo 65 do Decreto-lei 3.688/41, que estabelecia a pena ínfima de prisão simples no período entre 15 dias e dois meses, claramente insuficiente para proteger um bem jurídico tão importante como a liberdade pessoal. O referido artigo 65, da Lei de contravenções penais abordava o seguinte: “Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquili- dade, por acinte ou por motivo reprovável: Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa” (BRASIL, 1941). Atualmente, o artigo 147-A do código penal impõe pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa, podendo ainda ser aumentada caso se enquadre em alguma das majorantes que serão analisadas em seção posterior, tendo a Lei 14.132/2021 revogado o artigo 65 da Lei de contravenções penais, buscando assim impedir interpretações duvidosas na aplicação da lei penal. Portanto, infere-se que apesar do atraso na tipificação do delito no Brasil, evidente a partir da análise histórica de punição da conduta no ordenamento jurídico internacional, a entrada em vigor da Lei 14.132/2021 sem dúvida foi um grande avanço para o país, entretanto, por ser demasiadamente recente, necessita de maiores estudos doutrinários e entendimentos jurisprudenciais acerca do delito, de modo a possibilitar a efetiva aplicação do crime no caso concreto. 2.3 O PERFIL TÍPICO DOS STALKERS E DAS VÍTIMAS Ressalta-se que após a compreensão da conceituação do delito de stalking e sua tipificação no ordenamento jurídico dos mais diversos países ao longo da história, é fundamental entender o perfil dos stalkers, seu modus operandi, motivações e classifica-
22 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… ções, assim como compreender acerca das características inerentes às vítimas dessa intensa obsessão. Diante disso, conforme relata Gentil (2019), stalker nada mais é que o sujeito que estando no polo ativo do delito, pratica os atos de perseguição reiterada, prejudicando assim a esfera física e psicológica das vítimas. Ademais, Ferreira (2016, p.13), ao traçar o perfil do stalker comum, pontua o seguinte: O stalker pode ser oriundo de qualquer contexto social e económico. Normalmente o “stalker comum” corresponde a um homem na casa dos 30 anos de idade, com níveis de inteligência e educação superio- res, solteiro ou divorciado, e muitas vezes desempre- gado ou sem trabalho estável. Ao longo dos anos foram várias as classificações de stalkers formuladas pela literatura científica. A mais seguida por investi- gadores da área é a avançada por Mullen e seus cola- boradores. Nesse sentido, Teixeira (2017), fez uso da classificação proposta por Mullen, P., Pathé e Purcell, que agrupa o stalker em cinco grupos: rejeitado, em busca de intimidade, inapropriado, ressenti- do/rancoroso e predador. Para a autora, o stalker rejeitado decorre em sua maioria de um término de relacionamento, todavia, nada impede que também ocorra em relações de amizade ou profissionais. O stalker nessa situação apresenta uma visão deturpada dos fatos, acreditando ainda serem íntimos da vítima, destaca-se de igual modo que por nutrirem fortes sentimentos de posse e não aceitarem o término da relação, a probabilidade de violência é alta (TEIXEIRA, 2017). De acordo com Abreu (2019), ao tratar sobre o stalker em busca de intimidade, determina que diferentemente do tipo anterior não existe uma relação prévia entre o autor e a vítima, no entanto, o
CRIME DE STALKING 23 stalker cria uma percepção fantasiosa de que ambos são verda- deiras almas gêmeas e faz de tudo para que seu desejo se realize. Dessa maneira, um caso que ganhou bastante notoriedade na mídia brasileira nos últimos anos, envolvendo inclusive o stalker em busca de intimidade, foi o da apresentadora Ana Hickmann. No vertente episódio, conforme alude Freitas (2016), Rodrigo Augusto de Pádua, em maio de 2016, invadiu o quarto de hotel da apresentadora e a atacou a tiros. Para o autor, resta cristalino que a situação evidencia um típico caso de stalking por intimidade, uma vez que Rodrigo era fã da apresentadora, tentando inúmeras vezes ter contato através de mensagens no Twitter, estando claros a existência de intensa obsessão, a reiteração dos atos e a busca de estabelecer intimidade com alguém que nunca teve um relacionamento prévio com o stalker. Já no tocante ao stalking inapropriado, aduz-se que o stalker prática a perseguição reiterada almejando iniciar uma relação com o seu alvo. Por serem em sua maioria sujeitos com restrição inte- lectual e enfrentarem muitas adversidades de socialização, o stalker tem consciência que seu interesse afetivo não é recíproco, todavia, são bastante insistentes e acreditam fortemente que podem reverter este cenário (SILVA, 2015). Em se tratando do stalker ressentido ou rancoroso, conforme aduz Haile (2020), o perseguidor almeja por vingança, uma vez que, segundo a sua visão delirante da realidade, a vítima merece sofrer em razão do “dano” que supostamente causaram ao stalker. Ressalta-se que devido a este desejo de vingar-se a qualquer custo, são muito perigosos, acreditando que estão agindo legitimamente, pois, para eles a vítima “motivou o seu próprio sofrimento”. Por último, mas não menos importante, no que respeito ao stalker predador, ao discorrer sobre a referida classificação, David (2017, p.25) prevê o seguinte:
24 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… Por fim, podemos identificar o stalker predador como aquele que utiliza os comportamentos de perseguição tendo em vista a preparação de uma agressão sexual, conseguindo, através de tais atos, recolher informação sobre a potencial vítima. Normalmente o stalker é desconhecido da vítima e age de forma dissimulada, para não a alarmar. Infere-se desse modo que o stalking predador caracteriza-se como um dos tipos mais violentos, pois em geral é desconhecido da vítima e é o que mais se aproxima do agressor sexual. Ademais, o seu modus operandi consiste em agir de forma disfarçada, encobrindo seus atos, calculando seus movimentos, visando sobretudo não criar alardes e não afastar a vítima, para somente no momento ideal agredi-la sexualmente. Sendo assim, esse tipo em específico apenas reforça a impor- tância de se efetivar a punibilidade do delito de stalking, como forma de evitar a concretização de outros delitos diretamente associados, como no caso do stalker predador, o estupro (ALMEIDA NETO, 2017). Destaca-se que além da principal classificação proposta por Mullen, P., Pathé e Purcell, e que foi detalhada na presente seção, os stalkers ainda podem ser agrupados quanto a relação que possuem com a vítima, em conhecidos, sendo o caso do parceiro íntimo ou ex-parceiro, em próximos, incluindo nessa categoria, os familiares, colegas de trabalho, vizinhos, entre outros e em desco- nhecidos, sendo estes autores anônimos o caso dos stalkers preda- dores, englobando também fãs que perseguem reiteradamente os seus ídolos (COQUIM, 2015). Dado o exposto, uma vez compreendido as diversas classifica- ções acerca dos Stalkers, seus principais traços característicos e modus operandi comumente usados no caso concreto, crucial se faz compreender acerca das vítimas, que são seriamente afetadas tanto fisicamente, como também psicologicamente, sendo os alvos
CRIME DE STALKING 25 diretos dessa perigosa obsessão, que pode resultar até mesmo na morte do stalkeado. Nesse sentido, pontua-se que as vítimas podem ser classifi- cadas em primárias, que são os alvos principais do stalker e secun- dárias que em um primeiro momento não seriam atingidas diretamente pelo stalker, todavia, em razão da proximidade que possuem com a vítima principal, acabam se colocando em risco, podendo ser enquadradas nesse grupo os familiares, atual compa- nheiro e amigos da vítima (FERREIRA, 2016). Ademais, Matos et al (2011), a partir da classificação proposta por Mullen, P., Pathé e Purcell, apresenta uma divisão que agrupa as vítimas em sete grupos, que são respectivamente: vítima de ex- parceiros; vítima de conhecidos ou amigos; vítimas em contexto de uma relação profissional de apoio; vítimas em contexto laboral; vítimas por desconhecidos; celebridades vítimas e por fim, falsas vítimas. Inicialmente acerca das vítimas de ex-parceiros, frisa-se que Rocha (2017, p.21) expõe o seguinte: Normalmente a vítima é do sexo feminino, perse- guida por um ex- namorado ou ex-marido, mas os casos inversos, ou com parceiros do mesmo sexo também se enquadram neste grupo. Estas vítimas experimentam um maior número de comporta- mentos abusivos, que se prolongaram por mais tempo, sendo também mais frequentes ameaças e agressões físicas. Nesse grupo também é maior o risco de homicídio e de reincidência e persistência dos comportamentos cometidos pelo stalker. O stal- king pode representar um prolongamento da violência existente na relação conjunta anterior e, neste sentido, a vítima põe fim à relação acreditando que se livrará da violência sofrida.
26 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… Nesse contexto, compreende-se que a maioria das vítimas de ex-parceiros são mulheres que já sofrem atos de violência desde antes do término da relação e que acreditam que após o rompi- mento ficarão em paz, no entanto, a violência persiste através dos atos de perseguição reiterada praticados pelo ex-companheiro. Entretanto, embora o alvo maior desse grupo sejam mulheres, que sofrem atos de stalking pelo ex-companheiro, nada impede que as vítimas sejam homens stalkeados pelas ex-mulheres, ou ainda, que ocorra a incidência desse tipo nas relações homoa- fetivas. No que diz respeito à vítima de conhecidos ou amigos, David (2017) alude que a maior parte dos homens que são vítimas de stalking se enquadram nessa categoria. Normalmente os stalkers desse grupo possuem dificuldades de socialização e objetivam desenvolver uma relação com a vítima. Em geral os atos de perse- guição perduram por um curto espaço de tempo e apresentam baixo risco de violência, sobretudo em razão da falta de profundi- dade da relação. No tocante às vítimas em contexto de uma relação profissional de apoio, englobam-se aquelas que em virtude das profissões que exercem, normalmente caracterizadas por estabelecerem relações contínuas e com um certo nível de proximidade, correm um risco maior de sofrerem com atos de perseguição reiterada. Entre estes profissionais estão os advogados, professores, profissionais de saúde, entre outros (MATOS et al, 2011). Pontua-se que os perseguidores sentem se descartados, uma vez encerrada a relação profissional e passam a agir tomados por um sentimento de vingança ou desejo de criar uma relação de inti- midade com a vítima, podendo ainda os stalkers apresentarem traços de perturbações psicopatológicas (MATOS et al, 2011). As vítimas em contexto laboral, consoante dispõe Pereira (2014), são em geral subordinados, chefes, clientes, entre outras pessoas que convivem no ambiente de trabalho do stalker, que age nessa situação comumente almejando a satisfação do seu desejo
CRIME DE STALKING 27 de iniciar um relacionamento íntimo ou se vingar da vítima, podendo apresentar altos índices de violência. Já se tratando das vítimas por desconhecidos, trata-se daquelas pessoas que nunca tiveram nenhuma aproximação ou interação social com o stalking, porém são alvos, uma vez que despertaram o interesse do stalker por inúmeras razões, que podem variar entre condição financeira, aparência da vítima ou até mesmo por ter chamado a sua atenção em um encontro inesperado (SILVA, 2015). As celebridades vítimas são dentre as categorias de vítimas, a mais lembrada pela sociedade, em decorrência da constante expo- sição na mídia, nesse contexto, Matos et al (2011, p.23), determinam: Celebridades vítimas: devido à exposição mediática, as celebridades são um alvo apetecível para os/as Stalkers. Assim, frequentemente celebridades ou figuras públicas como apresentadores de televisão, artistas, desportistas e políticos, entre outras, são perseguidas com o intuito de estabelecer uma relação de intimidade, vingança ou obtenção de favores. Em alguns casos, a conduta é perpetrada por um/uma Stalker predador. Raramente ocorrem situ- ações de violência, fato que poderá ser explicado pelas medidas de segurança que rotineiramente encetam (ex: guarda-costas). Sendo assim, integram esse grupo a título exemplificativo, conforme anteriormente mencionado, a atriz americana Rebecca Schaeffer, assassinada por um fã em 1989, tendo sido o grande marco para criação das leis anti-stalking nos Estados Unidos, a apresentadora Ana Hickmann no Brasil, que foi atacada por um fã que invadiu o seu quarto de hotel, dentre outros inúmeros exemplos. Entretanto, é importante mencionar acerca, primeiro, do stalker
28 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… entre estranhos, no caso das vítimas por desconhecidos, que dife- rentemente do que muitos pensam, possuem ocorrência rara e dificilmente terminam em agressão física (AMIKY, 2014). Além disso, importante pontuar que o stalker de celebridades, apesar de constantemente serem veiculados pela mídia, não correspondem nem de longe a maioria dos casos, de modo que o que ocorre comumente são os casos de stalkers que perseguem reiteradamente pessoas anônimas, sem qualquer tipo de fama, sendo o perseguidor conhecido da vítima (AMIKY, 2014). Por fim, ainda é necessário tratar sobre as falsas vítimas, cuja ocorrência é muito incomum, e inclui muitas circunstâncias. Uma delas é a do stalker que finge ser vítima da situação e atribui a vítima real como responsável pela perseguição reiterada, havendo uma verdadeira troca de papéis. Destaca-se também os casos em que ex- vítimas, por já terem adquirido traumas em decorrência de terem sofrido perseguição, acabam compreendendo uma situ- ação normal como sendo uma conduta de stalking, além da situ- ação das pessoas que em virtude de problemas psiquiátricos, acreditam veementemente que estão sendo perseguidas (FERREIRA, 2016). Ainda acerca das vítimas do delito em questão, necessário se faz pontuar, consoante alude Gentil (2019), que a classificação das vítimas em diversas categorias, não corresponde a um rol taxativo, de maneira que nada impede que com a evolução da sociedade, outros tipos venham surgindo. Ademais, a autora aduz que as vítimas, por muitas vezes, não conseguem compreender que estão sofrendo perseguição reite- rada e que a conduta contra elas praticada configura um crime. Desse modo, em muitos casos as vítimas carregam toda essa angústia em silêncio, acreditando que a situação se resolverá rapi- damente, todavia, a conduta do Stalker pode se alastrar por sema- nas, meses e até anos, ficando evidente que não só a saúde física da vítima será afetada, como também o seu psicológico, diante de toda essa pressão emocional (GENTIL, 2019).
CRIME DE STALKING 29 Ainda no tocante a ampla extensão dos efeitos negativos do stalking na vida vítimas, é válido expor o relato de Caldeira (2021, p.29), que destaca o seguinte: Ora, inevitavelmente a vítima sofre algumas consequências em resultado da perseguição, e, ainda que essas não se manifestem da mesma forma em todas, poderão dar-se a vários níveis: econômico, pois muitas vezes deixam de poder trabalhar por incapacidade de poder comparecer ao local de trabalho em virtude do ato persecutório ou devido ao transtorno de que são alvo, vendo diminuída, severamente, a sua produtividade; social, quando se vêm inibidas de frequentar locais de lazer por estarem a ser constantemente interpeladas pelo “Stalker”; e, não menos importante a nível físico, contando que em certos casos a perseguição poder- se-á consumar em violência, afigurando-se várias consequências físicas que afetam o bem-estar da vitima. Não menos importante, reforce-se, e porque este efeito é relevante à determinação da prática do crime ainda que não seja o único necessário à sua consumação, poderão assistir-se consequências a nível do psicológico, atendendo a que as vítimas vivenciam multíplices sensações desde: medo, desconforto, preocupação, stress, ansiedade entre outras igualmente graves. Logo, conclui-se a tamanha importância da efetividade da aplicação do crime de stalking no caso concreto, haja vista as inúmeras esferas da vida do stalkeado que são gravemente comprometidas, entre elas, a esfera econômica, social, física, psicológica, entre outras. De maneira que a correta e tempestiva aplicação da lei no caso concreto evitará resultados catastróficos,
30 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… como um possível estupro, homicídio, suicídio, entre outros desfechos trágicos. Dado o exposto, a presente seção, inicialmente, ao apresentar os conceitos teóricos da conduta de stalking, ressaltando a subjeti- vidade e falta de consenso doutrinário e jurisprudencial sobre o tema, acaba evidenciando a árdua tarefa de conceituação do fenômeno. Ademais, o presente capítulo ao realizar uma análise histórica da criminalização do delito em diversos países e os traços caracte- rísticos dos stalkers, seu modus operandi, bem como expor os perfis das vítimas e a extensão dos efeitos negativos na vida do perseguido nas mais diversas esferas, propõe possibilitar um embasamento teórico básico acerca do fenômeno em estudo. Diante disso, compreende-se por fim que é crucial que não só as vítimas, como também os operadores do direito, entendam acerca das circunstâncias básicas que envolvem este fenômeno, para que assim, os stalkeados saibam o que estão enfrentando, bem como possam buscar ajuda e por outro lado os operadores do direito tenham a capacidade de aplicar o delito de forma correta no caso concreto, evitando assim a violação de vários direitos fundamentais, diretamente atingidos pela prática da perseguição reiterada.
UCAMPITAULAON3ÁLISE DA NOVA LEI DE STALKING NO BRASIL O PRESENTE CAPÍTULO discorre acerca das principais características que envolvem o fenômeno em estudo, a partir da análise na íntegra do texto da lei 14.132/2021, embasando tal análise na visão de renomados doutrinadores penalistas que se dispuseram a discutir sobre a temática, visando assim tornar ainda mais evidente o entendimento do que consiste a conduta de stalking na prática, possibilitando dessa forma que as vítimas saibam como agir da melhor maneira possível diante da prática da perseguição reiterada, bem como permitir que os operadores do direito ajam de maneira mais eficaz no combate a esta realidade. O capítulo também aborda discussões relativas à prática da conduta de stalking utilizando-se do meio exclusivamente virtual, o chamado cyberstalking, bastante frequente na sociedade atual, em virtude principalmente da popularização do uso das redes sociais, se propondo a verificar em especial a gravidade da modalidade de stalking através dos dispositivos eletrônicos e sua capacidade, assim como o stalking no meio físico, de lesar diversos direitos fundamentais. Por fim, o referido capítulo traz uma reflexão acerca da impor- tância da Lei nº 14.132/2021 como instrumento de prevenção a
32 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… violência de gênero, partindo de um estudo que conclui que as mulheres são as maiores vítimas da perseguição reiterada, que em diversos casos pode resultar na ocorrência de crimes mais graves, como até mesmo o feminicídio, inferindo desse modo a tamanha importância da Lei que pune o stalking como mecanismo de prevenção de maiores tragédias. 3.1 AS CARACTERÍSTICAS PRESENTES NO TIPO PENAL Inicialmente é válido ressaltar conforme já introduzido breve- mente em capítulo anterior, que a tipificação do delito de stalking no Brasil se deu de forma demasiadamente tardia, mais especifica- mente em 31 de março de 2021, com a entrada em vigor da lei 14.132/2021, que tratou de adicionar o artigo 147-A no código penal. Como visto, a referida lei se incumbiu de revogar o artigo 65 do Decreto lei 3.688/41, que enquadrava a conduta de stalking como uma mera contravenção penal, sendo a criminalização da prática da perseguição reiterada um importante marco na proteção de diversos direitos fundamentais das vítimas, sobre- tudo, os direitos a liberdade individual, intimidade e privacidade do stalkeado. Dessa forma, para que a lei em questão seja de fato eficaz no combate a prática do delito em estudo, é primordial compreender as principais características que envolvem a conduta de stalkear, de maneira a possibilitar que os operadores do direito, as vítimas e a sociedade em geral saibam como agir no caso concreto, evitando assim a ocorrência de tragédias. Diante dessa premissa, necessário se faz analisar a lei 14.132/2021 na íntegra, conforme exposto a seguir:
CRIME DE STALKING 33 Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. § 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido: I – contra criança, adolescente ou idoso; II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código; III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma. § 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. § 3º Somente se procede mediante representação. (BRASIL, 2021). A partir da leitura do dispositivo legal é possível destacar diversos pontos relevantes. Primeiramente, vislumbra-se que a lei se utiliza da palavra perseguir, de modo que se pode compreender que não basta um evento isolado para caracterizar a conduta de stalking, é necessário sempre analisar o contexto geral, o somatório de condutas que implicam na caracterização do delito. De acordo com o doutrinador penalista Greco (2021), ao exem- plificar essa temática, discorre a seguinte situação hipotética, determinada pessoa em uma festa pretende se envolver intima- mente com uma mulher, insiste várias vezes durante a noite, sendo rejeitado em todas as tentativas, apesar do desconforto para a mulher, não configura a conduta de stalking, podendo se enqua- drar a depender da análise específica do caso concreto em outro tipo penal como assédio. Contudo, se a mesma pessoa que fez as inúmeras abordagens
34 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… indesejadas na festa, passe a enviar inúmeras mensagens para a mulher que o dispensou, mesmo diante da negativa evidente, nessa situação já seria possível caracterizar o stalking. Ademais, conforme prevê Cunha (2021), trata-se de um crime comum não exigindo nenhuma qualificação específica do sujeito ativo nem tão pouco do sujeito passivo, todavia caso a vítima seja criança, adolescente, idoso ou mulher perseguida por razões de condição do sexo feminino, a pena será aumentada da metade, conforme previsto no § 1º do artigo 147-A. Considera-se criança as pessoas que possuem até doze anos incompletos e adolescente aqueles que têm entre doze e dezoito anos de idade, conforme pontua o artigo 2º da lei 8.069/90, já idoso para a lei 10.741/03, em seu artigo 1º, é todo aquele que tem idade igual ou superior a sessenta anos. Já no tocante a perseguição por razões de condição do sexo feminino, a lei do feminicídio incluiu o § 2º A, no artigo 121 do código penal, estabelecendo mais uma qualificadora para o crime de homicídio. A referida lei aduz que ocorre razões de sexo femi- nino quando o crime envolve violência doméstica ou familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Sendo assim a perseguição contra a mulher terá a pena aumentada caso envolva alguma dessas hipóteses (BRASIL,2015). No tocante às majorantes, ainda destaca-se a majorante do inciso III, que aumenta a pena da metade se o crime for cometido mediante concurso de duas ou mais pessoas ou com emprego de arma, a respeito da parte final do inciso, Greco (2021) entende que como a lei não faz distinção, a utilização de qualquer arma seja ela própria ou imprópria são suficientes para ensejar no aumento da pena. Pontua-se ainda ser um delito cujo objeto jurídico a ser prote- gido é a liberdade individual e a tranquilidade pessoal da vítima, tendo sido inclusive adicionado no capítulo VI do código penal que trata sobre os crimes contra a liberdade individual. Além disso, só pode ser cometido na modalidade dolosa, não havendo
CRIME DE STALKING 35 punição a título de culpa e não exigindo nenhuma finalidade específica. Ademais, por se tratar também de um crime habitual, sendo obrigatório a reiteração dos atos de perseguição para sua consumação, não admite a tentativa (CUNHA, 2021). O parágrafo segundo destaca que as penas serão aplicadas sem prejuízo da correspondente a violência, sendo plenamente possível o concurso de crimes. Nesse ponto existem ainda diver- gências doutrinárias, alguns autores como Greco (2021), defendem que existe na verdade um concurso material de crimes, já que se trata de um crime habitual e o agente pode, de forma reiterada ou isolada, usar de violência, ao passo que outros doutrinadores entendem existir um concurso formal impróprio, previsto no artigo 70 do código penal, como defende Garcez (2021), ao entender que não existem duas condutas distintas e sim uma só conduta, em que o agente com desígnios autônomos gera dois ou mais resultados, devendo nesse caso cumular as penas. O parágrafo terceiro do artigo 147-A do código penal ainda aduz que o delito somente se procede mediante representação, desse modo trata-se de um crime de ação penal pública condicio- nada à representação da vítima (BRASIL, 2021). A pena atribuída ao tipo penal é de reclusão de seis meses a dois anos, cabendo, em regra, caso não tenha sido aplicada nenhuma das majorantes previstas no parágrafo primeiro, a utili- zação da transação penal, bem como da suspensão condicional do processo, sendo a apuração do delito feita por termo circunstan- ciado e competência do Juizado especial criminal. Entretanto, caso ocorra a incidência de alguma das majorantes previstas no pará- grafo primeiro, a infração já passa a ser de médio potencial ofen- sivo, havendo nessa situação a instauração de inquérito policial (GARCEZ, 2021). Portanto, diante das características principais inerentes ao tipo penal apresentadas, infere-se que é fundamental que os opera- dores do direito, as vítimas e a sociedade em geral que pode vir a ser afetada pela perseguição reiterada, tenha o conhecimento
36 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… teórico básico acerca da temática, possibilitando assim que ajam da forma mais efetiva no combate a esta realidade frequente. 3.2 UM ESTUDO RELATIVO À PRÁTICA DO CYBERSTALKING NAS REDES SOCIAIS Primeiramente, para análise devida no presente tópico, é preciso ressaltar que o caput do artigo 147-A, ao destacar o que se entende por stalking, pontua que a conduta caracteriza-se por perseguir alguém de maneira reiterada e por qualquer meio, logo, conclui-se que a prática da perseguição não se restringe ao meio físico, sendo perfeitamente possível que o delito seja praticado através do ambiente virtual (BRASIL, 2021). É a partir dessa perspectiva que surge o fenômeno do cyberstal- king, considerado uma espécie de stalking, que é praticado utili- zando-se exclusivamente a modalidade virtual, conduta bastante frequente atualmente, sobretudo em razão da popularização das redes sociais (KNUPP, 2019). Ainda no tocante à conceituação do que se compreende como sendo a prática do cyberstalking, aduz de forma pertinente Carvalho (2017, p.63): Por essa linha raciocínio, depreende-se que o Cyberstalking será a prática de perseguição por meio do uso da tecnologia, ou seja, utilizando-se do meio digital para a sua ação de perturbação e perseguição contra alguém. Além disso, a prática da perseguição virtual pode se dar juntamente com a perseguição física, tendo em vista que uma conduta não exclui a outra, pelo contrário, ambas podem ser realizadas concomitantemente. Nesse sentido, infere-se que a prática do cyberstalking trata-se de uma espécie de stalking que ocorre somente no meio virtual,
CRIME DE STALKING 37 todavia, assim como o stalking em meio físico, gera um intenso sofrimento na vida do perseguido, seja na sua vida pessoal, social, laboral, entre outros aspectos. Ademais, como frisado pelo autor, nada impede que a conduta em estudo ocorra simultaneamente com o stalking presencial, podendo inclusive o stalker se beneficiar do meio virtual para conseguir informações acerca do stalkeado, que o permite intensi- ficar sua perseguição no meio físico. Já no que concerne à origem histórica dessa espécie de stal- king, seu nascimento está associado ao final do século XX, conforme expõe Santos e Tagliaferro (2020, p.5): Contudo, somente no final do século XX é que a democratização dos meios de informação, por meio da rede mundial de computadores, começou a ser difundida. Paralelamente a isso, as redes sociais surgiram como um novo espaço de relações huma- nas, em que informações pessoais passaram a ser expostas de forma que os indivíduos ficaram vulne- ráveis a situações de invasão à vida privada. Os avanços tecnológicos trouxeram, da mesma forma, mudanças impactantes para a coletividade, o que fez com que tais ferramentas fossem tanto utilizadas em termos benéficos quanto maléficos. Assim, com o advento da era da informática, o stalking adquiriu uma nova configuração que foi a perseguição por meio digital. Por conseguinte, essa nova maneira de relação social na rede mundial de computadores permitiu às pessoas maior exposição de suas vidas, tornando-se, deste modo, alvos vulneráveis dessa nova modalidade de perseguição denominada de cyberstalking. Sendo assim, compreende-se que os avanços tecnológicos inici-
38 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… ados de maneira mais tímida no final dos anos 90, e chegando ao seu ápice atualmente com a evidente popularização das redes sociais, foram determinantes para consolidação dessa nova moda- lidade de stalking exclusivamente virtual. Constata-se nesse viés, que apesar dos inúmeros benefícios que o avanço no campo da informática proporcionou à sociedade, do ponto de vista negativo, essa intensa exposição virtual permitiu aos stalkers o fácil acesso a diversas informações relativas às suas vítimas em potencial, bastando apenas para isso a utilização de um computador ou smartphone conectado à rede mundial de computadores, sendo desnecessário o contato direto com stal- keado para efetivação do delito. Com relação ao fenômeno contemporâneo do Cyberstalking, Sousa (2020) ainda aponta outras características importantes acerca do delito, entre elas, o fato do stalker não somente utili- zar-se dos dados pessoais das vítimas, facilmente encontradas nas redes, para praticar o stalking em si, mas também para praticar outras infrações penais diversas, como a falsidade ideológica. Além disso, a conduta criminosa pode recair não apenas sobre uma pessoa, como também uma instituição inteira, sendo inúmeros os fatores que desencadeiam essa perseguição, dentre os mais comuns estão questões financeiras, necessidade de satisfazer um sentimento de vingança, entre outros (SOUSA, 2020). Ademais, acerca desse fenômeno em análise, Almeida e Zaganelli (2021) pontuam que o fato da prática do Cyberstalking ocorrer virtualmente, não significa que a conduta não seja capaz de lesar seriamente a vítima, podendo acarretar na grave violação de diversos direitos fundamentais garantidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em especial a segurança, a intimidade, a liberdade, entre outros, sendo tão prejudicial quanto o stalking tradicional. Sendo assim, antes de se analisar como esta espécie de stalking exclusivamente virtual lesiona múltiplos direitos fundamentais,
CRIME DE STALKING 39 necessário se faz verificar o texto presente no artigo 5º, caput e inciso X, da CRFB/88, que estabelece: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu- rança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decor- rente de sua violação (BRASIL, 1988); Desse modo, no que concerne à segurança, resta evidente que este direito é diretamente afetado, uma vez que o perseguidor faz uso das informações privadas que descobriu da vítima para afetar sua esfera pessoal e consequentemente outros direitos fundamen- tais como a liberdade de autodeterminação do stalkeado, que fica temeroso em praticar atividades antes rotineiras por conta do cyberstalking, prejudicando assim a sua saúde mental, conforme exposto por Almeida e Zaganelli (2021). Por sua vez, com relação a intimidade, tão destacada no inciso X, do artigo 5º, da CRFB/88, encontra-se seriamente prejudicada, visto que os meios digitais facilitam indiscutivelmente o acesso a dados referentes à vida íntima da vítima. De acordo com Santos e Tagliaferro (2020), tal violação é alar- mante, visto que, é na esfera privada que o indivíduo costuma expressar mais intensamente sua cultura, ideologias, além de ser no exercício da sua intimidade onde ocorre o fortalecimento e desenvolvimento das suas interações com familiares, amigos, inte- resses amorosos, ficando todos estes aspectos da vida afetados pela prática do cyberstalking. Desse modo, infere-se que a repercussão negativa da prática da conduta do Cyberstalking na saúde mental das vítimas é tão signi-
40 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… ficativa, que por meio de pesquisas Matos et al (2011) concluíram que a saúde psicológica e o estilo de vida foram as áreas mais lesi- onadas das vidas das vítimas, sendo consequências preocupantes dessa realidade, os inúmeros casos de depressão, ansiedade, entre outras patologias que muitos dos stalkeados desenvolvem após presenciarem a perseguição reiterada. Ainda no que diz respeito à gravidade do fenômeno em análise, é importante mencionar um caso bastante emblemático que aborda a prática de cyberstalking e resultou inclusive na morte da stalkeada. Trata-se do assassinato Christine Belford e Laura Mulford, que foram mortas tragicamente, após serem bale- adas pelo ex-sogro de Christine. O cyberstalking resta evidente no vertente caso, que se deu nos Estados Unidos, uma vez que nos três anos que antecederam a sua morte, Christine se desentendeu com o ex-marido em razão de conflitos relativos a guarda dos filhos, por conta dessa situação, seu ex-companheiro determinou que seu pai, sua mãe e sua irmã, perseguissem reiteradamente Christine, de modo que todos os seus passos foram monitorados virtualmente, permitindo que o assassino se antecipasse, tendo o cyberstalking ocasionado na sua morte e na da sua amiga Laura Mulford (SOUSA, 2020). Já em se tratando de um caso brasileiro de Cyberstalking, ou seja, do stalking em sua modalidade virtual, Feitosa Junior (2021), ressalta a situação vivida pela streamer Haru, que publica vídeos sobre jogos em seu canal do youtube, a jovem narrou que em 2014, um stalker começou a mandar inúmeras mensagens por meio das redes sociais, buscando saber de maneira insistente onde a vítima morava, almejando que se encontrassem pessoalmente. Ocorre que embora tenha sido bloqueado pela jovem, continuou abor- dando seus familiares nas redes socias, chegando até a criar perfis fakes para tentar entrar em contato com a streamer. Destaca-se que Haru não conseguiu abrir um inquérito na delegacia de crimes virtuais em razão das autoridades terem comunicado que só atuavam nos casos em que as vítimas sofriam
CRIME DE STALKING 41 perda de patrimônio, de modo que somente em 2015, conseguiu que fosse aberto um inquérito policial, tendo o caso chegado ao judiciário em 2016 e só chegado ao fim em 2019, todavia o perse- guidor não chegou a ser punido, haja vista que na época a conduta era vista como mera contravenção penal, razão pela qual ocorreu a prescrição da conduta do stalker. Desse modo, é possível compre- ender ainda mais a importância da criminalização da prática do stalking que somente se deu com a lei nº 14.132/2021, no intuito de evitar que outras situações de impunidade como esta ocorram (FEITOSA JUNIOR, 2021). No brasil, recentemente em agosto de 2022, conforme ressalta Fuccia (2022), ocorreu um caso de stalking em meio físico, uma vez que um homem foi condenado por stalking após perseguir reiteradamente a ex-mulher. A decisão foi proferida pelo juiz da primeira vara de Jacupiranga/SP, tendo o magistrado afastado a tese de abandono afetivo alegada pela defesa, que enfatizou que o acusado apenas queria saber o motivo do término do relacio- namento. Em sua decisão o juiz entendeu que o fato do homem perse- guir a ex- companheira por diversas vezes, da casa da vítima até o seu trabalho, tendo inclusive em uma das vezes avançado com o carro em direção a ex-mulher, quase ocasionando o seu atropela- mento, configuraria de forma clara o crime de stalking, uma vez que a intimidade, a segurança e a liberdade de locomoção da vítima haviam sido atingidas, podendo ainda, caso a situação se perdurasse, ocasionar na morte da vítima. Desse modo, o perse- guidor foi condenado a nove meses de reclusão em regime aberto, bem como ao pagamento de R$ 1 mil reais a título de indenização por danos morais, além do adimplemento de 15 dias multas, devendo a execução ficar suspensa por dois anos (FUCCIA, 2022). Nesse sentido, apesar de diversos autores por meio de pesqui- sas, estudos, além da análise de casos concretos, constatarem o qual grave é a modalidade virtual do stalking, muitas autorida- des, sobretudo os operadores do direito, entre eles, magistrados,
42 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… advogados, além das forças policiais, lamentavelmente não encaram a situação com a seriedade devida. De acordo com Ferreira (2016), não é raro o relato de diversas vítimas que alegam que as autoridades costumam agir com certo desinteresse com relação à temática, em razão principalmente da perseguição ser exclusivamente no meio virtual, todavia, muitos profissionais não possuem o embasamento teórico acerca do fenô- meno do cyberstalking, por ser algo relativamente recente, e acabam por não perceber o tamanho do dano que aquela conduta está gerando para vida do stalkeado, em especial o quanto a saúde mental da vítima pode estar abalada. Outro ponto relevante, que ainda costuma não ser levado em consideração pelas autoridades competentes, é o fato de que apesar do cyberstalking ocorrer de forma exclusivamente virtual, nada impede, como já anteriormente ressaltado, que a conduta ocorra concomitantemente com o stalking no meio físico, ou seja uma forma de preparação para o stalking tradicional, de modo que o descaso com que muitos profissionais lidam com a situação pode resultar em consequências graves para a vítima, em certos casos até mesmo na sua morte, tragédias estas que poderiam ser evitadas, caso os agentes encarassem mais seriamente a situação, agindo de maneira mais preventiva no caso concreto (FERREIRA, 2016). Logo, diante de todas as análises feitas no tocante sobretudo ao conceito do fenômeno em estudo, sua origem histórica e a sua gravidade no caso concreto ao atingir diversos direitos fundamen- tais constitucionalmente previstos, pode-se concluir que a espécie exclusivamente virtual do stalking é tão prejudicial para a vida do stalkeado quanto a modalidade tradicional que se dá no meio físico, devendo-se atentar para o fato de que um não exclui o outro. Ademais, infere-se a importância das autoridades competentes estudarem mais acerca do assunto, possibilitando que ajam de forma mais preventiva, evitando desfechos mais graves e conse-
CRIME DE STALKING 43 quentemente contribuindo na diminuição dos danos que a conduta em análise causa na vida da vítima, tanto na sua saúde mental, como nas esferas sociais, econômicas, acadêmicas, dentre outras. 3.3 A IMPORTÂNCIA DA LEI DE STALKING COMO INSTRUMENTO DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO Destaca-se no presente tópico, que após o entendimento das características essenciais inerentes ao crime de stalking, bem como o estudo feito com relação à prática do cyberstalking através da rede mundial de computadores, necessário se faz demonstrar a importância da Lei nº 14.132/21 como mecanismo de prevenção de diversos crimes, pontuando em especial seu importante papel social como instrumento de prevenção à violência de gênero. Para compreendermos melhor a análise proposta neste tópico, primordial se faz reforçar que para Reis, Parente e Zaganelli (2020), as mulheres são as principais vítimas da perseguição reite- rada, muito embora nada as impede de figurar como stalker no caso concreto. Dentre os vários motivos que buscam explicar essa questão, está o fato de que as mulheres lamentavelmente em muitos contextos ainda são vistas como mero objeto, por muitos homens com ideias misóginas, de forma que o polo passivo do crime funciona como espelho da sociedade atual. Neste panorama, destaca-se que em estudos feitos por Matos et al (2011) decorrentes de diversas entrevistas presenciais com investigados vítimas de stalking, que trataram acerca da predomi- nância da vitimação por stalking na sociedade portuguesa, ficou constatado entre outros dados que 68% dos stalkers eram homens que perseguiam sobretudo vítimas mulheres, 40.2% das pessoas envolvidas no estudo foram vítimas de stalking conhecidos e o mais preocupante foi o fato de que apenas 26% das vítimas procu- raram as autoridades policiais e somente 21.9% dos atingidos pela
44 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… perseguição reiterada procuraram ajuda dos profissionais de saúde. Desse modo, resta cristalino que o fenômeno em estudo ainda é pouco discutido, de maneira que muitas vítimas ainda não sabem bem como proceder diante da ocorrência do delito, recu- sando-se em sua maioria a procurar ajuda das forças policiais e dos profissionais da saúde, que por sua vez necessitam de um maior preparo técnico para lidar com a questão. Sendo assim, uma vez compreendido que as mulheres são as principais vítimas do delito em análise, necessário se faz compre- ender como a nova Lei nº 14.132/21 que pune a perseguição reite- rada, acaba por funcionar como importante instrumento preventivo no combate à violência de gênero, para isso, é funda- mental a busca na legislação internacional e nacional no tocante ao que se entende por violência de gênero. Ocorre que na legislação internacional não se tem um conceito definitivo do que se entende por violência de gênero, de forma que muitas vezes é utilizado como sinônimo de violência contra a mulher, como se pode perceber no artigo 1º da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher de 1979, promulgada pelo Brasil por meio do decreto de nº 4.377/02, que dispõe que discriminação contra a mulher pode ser entendido em suma como qualquer forma de tratamento que visa excluir a mulher e que consequentemente a prejudique de exercer as suas liberdades fundamentais nos mais diversos aspectos, seja na esfera política, social, entre outras, (BRASIL,2002). Também neste sentido a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, também chamada de Convenção de Belém do Pará, promulgada no Brasil pelo decreto de nº 1.973/96, conceitua violência contra a mulher como sendo: “entender-se-á por violência contra a mulher qual- quer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera
CRIME DE STALKING 45 pública como na esfera privada” (BRASIL,1996). Já no tocante ao conceito mais específico acerca da violência de gênero, utilizado pela legislação nacional, de acordo com Lisboa et al (2009), trata-se de uma forma bastante específica de violência contra a mulher, que pode apresentar-se de diversas maneiras, seja a violência física, psicológica, sexual, entre outras e que se origina nas ocasiões em que a posição natural de poder masculina imposta pelo regime patriarcal, sente-se ameaçada de alguma forma, compreendendo-se assim que nem toda violência contra mulher é necessariamente uma violência de gênero, sendo a primeira o gênero e a última uma das suas espécies. Ainda nesse sentido, de acordo com Sousa (2020, p.22), a respectiva violência consiste no disposto a seguir: Visto o descrito, podemos inferir algumas das princi- pais características da violência de gênero. Primeiramente, que ela decorre de uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher, relação esta que se origina do próprio conceito de gênero: uma construção social que impõe papéis a mulheres e homens. Com a consequente valorização do papel do homem em detrimento do papel dado à mulher, influenciada pela ideologia patriarcal, se cria uma hierarquia de poder que induz a relações violentas entre os sexos. Outra caracterís- tica importante a se destacar é que a violência não se limita a relações interpessoais entre homens e mulhe- res. Como os papéis sociais impostos se propagam por toda a sociedade, esse desequilíbrio de poder pode ser encontrado também nas instituições, nas estruturas, no cotidiano, nos costumes -- essencial- mente, em tudo que constitui uma relação social. Desse modo, infere-se que a violência de gênero decorre em
46 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… razão de toda uma construção histórica que sempre atribuiu aos homens papéis de mais destaque. Ademais, pontua-se que essa hierarquia criada entre homens e mulheres, acaba por influenciar diversos homens, que acreditam ter legitimidade para impor sua vontade em detrimento da mulher, mesmo que para isso tenham que se utilizar de uma das diversas formas de violência, seja ela psicológica, física e até mesmo sexual. Ressalta-se de igual modo que essa violação ao princípio cons- titucional da igualdade presente no artigo 5º, I, da CRFB/88, acaba atingindo para além da vida pessoal da mulher, o seu ambiente de trabalho, como também instituições públicas e privadas a qual eventualmente venha a frequentar, que apenas reproduzem essa problemática bastante complexa de caráter social. Diante disso, a título exemplificativo de dispositivo no plano nacional que combate à violência de gênero, temos a Lei nº 13.104/15 que trata acerca do feminicídio, conduta que consiste no homicídio contra mulher levando-se em consideração o fato de ela ser mulher, menosprezando claramente o gênero feminino (BRASIL, 2015). Ademais, a Lei Maria da Penha de nº 11.340/06, legislação nacional que também trata da temática, discorre em seus artigos 5º e 6º, que a violência de gênero pode ocorrer tanto no âmbito da unidade doméstica, no ambiente familiar e inclusive em qualquer relação íntima de afeto, sendo vista como uma grave afronta aos direitos humanos (BRASIL, 2006). Dado o exposto, foi possível compreender em que consiste a violência de gênero, a partir da análise da legislação nacional e internacional sobre o tema, além do fato de que diversos crimes decorrem em razão de questões de gênero, sendo ainda por esses papéis de gênero, frutos de uma longa construção histórica e social, que decorre o fato das principais vítimas de stalking serem mulheres. Compreendido essas abordagens iniciais, necessário se faz pontuar a respeito da importância da lei que pune o stalking como
CRIME DE STALKING 47 instrumento de prevenção e combate à violência de gênero e de que maneira essa proteção ocorre na prática. Acerca desse papel preventivo do stalking no combate a prática de outros crimes relacionados a violência de gênero, inclu- sive mais graves como o feminicídio, Esteves (2019, on-line) pontua: Estudos indicam que medidas jurídicas, como a criminalização do stalking, reduzem as possibili- dades do agente praticar um crime de sangue, como o feminicídio, visto que ele já vem sendo obstado, judicialmente, causando a desistência do fato primário e mais gravoso. Nesse sentido, infere-se que na medida que o agente já tenha cometido a ameaça à integridade física ou psicológica da vítima, de maneira reiterada e obsessiva, já resta configurado o crime de stalking, evitando assim que o crime fim mais grave se concretize, como o feminicídio por exemplo, de maneira que inúmeras tragé- dias podem ser evitadas graças à nova lei de stalking que funciona como importante mecanismo de prevenção a violência de gênero. Ademais, de acordo com Sousa (2020), não é raro casos de stal- king que resultam em tragédias como o feminicídio, de maneira que a inexistência da lei acarretaria em um grande obstáculo no combate às múltiplas formas de violência, sendo crucial que as autoridades atuem de maneira preventiva, uma vez que o Brasil é lamentavelmente o 5º país que mais mata mulheres no mundo, levando se em considerações questões de gênero, ou seja, o simples fato das vítimas serem mulheres, sendo fundamental que o estado se utilize de todos os mecanismos possíveis no combate a esta realidade, sendo a Lei nº 14.132/21, de extrema importância nessa luta. Nesse mesmo sentido Pereira (2021), aduz que a punição efetiva do stalking na sociedade funciona como uma arma impor-
48 MATEUS LEITE MARQUES & VANESSA ÉRICA DA SILVA S… tante na diminuição da criminalidade, principalmente nos delitos que envolvem violência doméstica, uma vez que as mulheres são as maiores vítimas dos stalkers. Em outra análise pontua-se que de acordo com Serra e Reis (2021, on- line), ao analisarem os pontos positivos da nova lei de stalking e seu papel social como instrumento de prevenção à criminalidade, as autoras frisam o seguinte: Além de imputar penas mais severas aos que competem a prática de stalking, a nova tipificação tem a finalidade de ser também um instrumento preventivo de prática de delitos mais graves. Esse fato pode ser atestado através dos dados obtidos na pesquisa Stalking Resource Center, visto que 76% das vítimas do crime de feminicídio foram perse- guidas e tiveram sua tranquilidade violada por terceiros, como também 54% das vítimas reportaram a entidade policial que estavam sendo stalkeadas antes de serem assassinadas por seus perseguidores. Desse modo, a partir da análise exposta, resta cristalino que muitas mortes podem ser evitadas com a aplicação efetiva da nova lei de stalking, todavia, para isso, é necessário que as autori- dades saibam combater esta realidade de forma eficaz e tenham mais conhecimento teórico acerca das circunstâncias que envolvem o delito, uma vez que um stalker detido, significa em inúmeros casos vidas inocentes poupadas, dado a correlação direta do stalking com outros delitos mais graves, conforme foi trabalhado na presente seção. Dado exposto, a presente seção ao tratar inicialmente sobre as características da Lei 14.132/21, que pune a perseguição reiterada no Brasil, busca destacar os principais desdobramentos deste novo dispositivo legal, de modo a proporcionar um maior conheci- mento teórico acerca da matéria em estudo.
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