Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore LIVRO: “HISTÓRIAS DE VIDA DE DOENTES RENAIS”

LIVRO: “HISTÓRIAS DE VIDA DE DOENTES RENAIS”

Published by Miligrama - Comunicação em Saúde, 2022-03-07 15:23:27

Description: A Associação Nacional de Centros de Diálise (ANADIAL) lançou um livro com vários testemunhos de vida de doentes renais.

Ao longo do livro estarão presentes as histórias de 11 pessoas que são uma inspiração para todos os que lidam diariamente com a doença renal crónica.

Keywords: ANADIAL,Diálise,Testemunhos,Doentes Renais,Doença Renal Crónica,Rins,Hemodiálise,Histórias de Vida

Search

Read the Text Version

HISTÓRIAS DE VIDA DE DOENTES RENAIS



INTRODUÇÃO AANADIAL – Associação Na- de Saúde: os doentes só fazem trata- mudança de paradigma, em que a cional de Centros de Diálise mento em unidades privadas quando pessoa doente deixa de ser o sujeito foi constituída em 1985, como as- o setor público não consegue dar passivo da relação terapêutica, para sociação de empregadores, com o resposta ou tem a sua capacidade passar a assumir uma posição cada objetivo de defender os interesses e instalada esgotada. Esta comple- vez mais atuante em todo o seu pro- direitos dos operadores privados de mentaridade tem sido fundamen- cesso terapêutico. hemodiálise e a promoção do respe- tal para que o Ministério da Saúde tivo progresso técnico e científico. possa garantir a cobertura de todo Com este livro de testemunhos de Atualmente, através dos seus asso- o território nacional e aproximar os vida pretendemos criar valor para o ciados, a ANADIAL é responsável cuidados das populações que deles doente e para a sociedade, demons- por cerca de 90% dos tratamentos carecem. trando que a pessoa com doença de hemodiálise realizados, em Por- renal crónica é um exemplo de força, tugal, às pessoas com doença renal Perspetivando o futuro, a ANADIAL coragem e resiliência. Ao longo deste crónica submetidas a esta terapêuti- pretende reforçar a sua qualidade livro podemos conhecer as histórias ca de substituição. A ANADIAL orgu- de parceiro dos stakeholders no se- de 11 pessoas que veem além da sua lha-se da sua história. tor da saúde, demonstrando a sua doença. Lutam todos os dias pela sua abertura para o diálogo e colabora- felicidade, sem nunca baixarem os Em Portugal, concretamente na ção com doentes, Associações de braços perante as adversidades. Sa- hemodiálise, a iniciativa privada é doentes, autoridades, sociedades bem que o segredo é confiar na vida complementar ao Serviço Nacional científicas e profissionais de saúde. e nunca desistir do que ela tem para O setor da saúde depara-se com uma oferecer. HISTÓRIAS DE VIDA // 1

HISTÓRIAS DE VIDA // 2

ÍNDICE 01 INTRODUÇÃO 04 CRISTIANA SILVA: “A HEMODIÁLISE TRANSFORMOU-ME NUM SER HUMANO BEM MELHOR” 08 ELSA MANO: “O TRATAMENTO NÃO É O FIM, MAS SIM O INÍCIO DE UMA VIDA COM MAIS QUALIDADE” 12 FILIPE ALMEIDA: VIAJAR E FAZER DIÁLISE? SIM, É POSSÍVEL 16 JOANA VELOSO: “A MINHA MOTIVAÇÃO DIÁRIA É CONSEGUIR TER UMA VIDA O MAIS NORMAL POSSÍVEL E SER FELIZ COM ISSO” 21 MARIA CRISTINA SOUSA: “LEVO MUITO NA BRINCADEIRA, MAS COM RESPONSABILIDADE” 25 MARIA ELISABETE NUNES: “É PRECISO ANDAR PARA A FRENTE” 28 ROSA CARDOSO: “TENHO CORAGEM PARA DAR, VENDER E DOAR” 31 ROSA ROMÃO: “QUEM SABE SE AINDA IREMOS TER A SORTE DE TER UM RIM BIÓNICO” 35 SABINA ABOOBAKER: “NÃO ME ESQUEÇO QUE TENHO DOENÇA RENAL CRÓNICA, MAS TAMBÉM NÃO FAÇO DISSO O CENTRO DA MINHA VIDA” 39 SÓNIA CARTAXEIRO: “EU ESCOLHO O AMOR E SER FELIZ” 44 VÍTOR DAMIÃO: “CONTINUO COM IMENSOS OBJETIVOS DE VIDA E VONTADE DE OS CONCRETIZAR” 48 DOENÇA RENAL CRÓNICA 51 A VITÓRIA CONTRA A DOENÇA RENAL HISTÓRIAS DE VIDA // 3

HISTÓRIAS DE VIDA // 4

CRISTIANA SILVA: “A HEMODIÁLISE TRANSFORMOU- -ME NUM SER HUMANO BEM MELHOR” Extrovertida, sociável, com em- anos de idade que descobriu ter es- a grande possibilidade de ser uma patia pela dor do outro, preo- clerose tuberosa, tendo sido nessa criança com paralisia cerebral e ter cupada com o bem-estar de todos, altura que teve a primeira convulsão outros danos irreversíveis. Tem ago- protetora, fiel aos seus compromis- epilética. ra um filho completamente saudável. sos, boa mãe e mulher decidida e autoconfiante. É assim que Cristiana Desde a infância que foi sempre Aos 23 anos, quando descobriu que Silva se descreve. Atualmente tem vigiada e alertada para o facto de tinha doença renal crónica, não en- 34 anos, mas foi com apenas oito correr riscos de ficar cega e deixar tendeu bem. Só por volta dos 25/ de falar. Caso tivesse filhos, havia 26 anos é que enfrentou o problema HISTÓRIAS DE VIDA // 5

com a decisão de retirar o primeiro rim, uma vez que estava repleto de um quisto em tamanho avantajado. “Depois retirei o segunda rim aos 31 anos, devido ao desenvolvimento de hormonas na gravidez. O meu rim entrou em falência e tive de salvar a vida do meu filho e a minha”, explicou Cristiana. Durante todo este tempo contou sempre com o apoio incondicional da sua família e amigos, embora não soubessem o que fazer para a ajudar a sentir melhor. No início do tratamento sentiu uma grande revolta, indignação, senti- mento de prisão emocional, física e mental. “A vida teria acabado, desde o momento em que teria de depen- der de uma máquina para sobrevi- ver”. Cristiana sempre quis desmistificar a ideia sobre a hemodiálise e ultra- passar barreiras, sobretudo porque existem poucas informações acerca deste assunto. HISTÓRIAS DE VIDA // 6

Assume que, por parte dos familia- “Debatemo-nos com os nossos can- res, é necessária muita compreen- saços e todas as chicotadas psicoló- são, apoio e companheirismo, res- gicas, sem termos a alternativa de peitando sempre as limitações dos dizer um não. Deixamos de ter o po- doentes de diálise. der de decisão. E somos obrigados e resignados. É a violência de um tra- “É um período de grande transfor- tamento. Não vemos luz no fundo do mação. Todo o apoio, força e essen- túnel”. cialmente compreensão, pode salvar o familiar”. No entanto, Cristiana considera que hoje é uma mãe feliz e realizada, sen- Relativamente aos próprios doentes, te-se muito mais confiante e acredi- Cristiana sabe que “é uma luta inte- ta que a hemodiálise a transformou rior solitária”. num “ser humano bem melhor”. HISTÓRIAS DE VIDA // 7

HISTÓRIAS DE VIDA // 8

ELSA MANO: “O TRATAMENTO NÃO É O FIM, MAS SIM O INÍCIO DE UMA VIDA COM MAIS QUALIDADE” Elsa Mano tem 51 anos, é di- Contudo, aos 26 anos, após ter tido a ida ao hospital, depois de ter estado vorciada e tem uma filha com sua filha, é que se começou a aperce- durante todo o Natal de 2005 doen- 26 anos. Atualmente, encontra-se a ber de alguns problemas. Foi a partir te. Naquela altura, não teve hipótese terminar a licenciatura em Gestão daquela altura que se inteirou me- e foi nesse mesmo dia que fez o pri- de Recursos Humanos, algo que lhe lhor do que era a doença renal e das meiro tratamento de diálise. ocupa bastante tempo. Aos 18 anos consequências que poderiam advir foi diagnosticada com uma Nefro- para o seu futuro. “Foi difícil, muito difícil, não o trata- patia por imunoglobulina, mas como mento, mas o reconhecimento que não tinha grandes sintomas, acabou Iniciou o tratamento em 2006, quan- teria de fazer para o resto da minha por menosprezar a doença. do a sua filha tinha 10 anos, e “foi vida. Contudo, assim que saí do pri- difícil para todos”. Lembra-se da sua meiro tratamento senti-me viva”, HISTÓRIAS DE VIDA // 9

explica Elsa, “Antes da diálise, sen- tudo a ‘preto e branco’. Assim, foi um foi mesmo a reorganização, pois na tia-me cansada, doente, e demasia- regresso à normalidade, em que me altura a sua filha era pequena e al- da apagada para a vida. Dou-vos um senti muito melhor.” gumas vezes tinha que ficar em casa exemplo do que me apercebi quando sozinha. Da parte de Elsa, foi apenas saí. Na A5 de Lisboa para Cascais o Teve apoio total por parte da famí- compreender e aceitar que três dias meu primeiro comentário foi que via lia e amigos, no entanto, “não é uma por semana, à noite, não estava em muita luz, e até brilhavam os can- doença que se veja, até que se come- casa. Agora já é uma rotina como ou- deeiros da A5. Isto porque estava ce a fazer diálise”. Esta nova fase por tra qualquer. já com o sangue tão ‘sujo’ que já via que estava a passar, destabilizou um pouco a sua vida e a maior alteração Apesar das mudanças necessárias, nunca deixou de fazer o que mais gosta: viajar. Quando trabalhava, viajava muito, tanto dentro do país como no estrangeiro e tentava sem- pre ter uma vida o mais normal possí- vel. “Nunca abdiquei de nada”. Agora, tem consciência de que se quer via- jar, tem de se organizar com antece- dência, o que para Elsa é complicado, porque “não gosta de pensar muito à frente”. A sua principal motivação é a família e o gosto que tem pela vida. Pessoa bem-disposta, tenta tirar o melhor partido da vida, tentando fazer tudo HISTÓRIAS DE VIDA // 10

aquilo que lhe dá prazer, não fazendo ainda não entendem que para Elsa, maior liberdade de movimentos, da doença um problema. “A vida é o o mais importante é que não sintam como ir viver para a sua casa no Nor- que fazemos dela” — Fernando Pes- que a doença renal é um problema. te, que neste momento é impossível soa. “Primeiro, tentei explicar o que faço por ficar a 45 minutos da Guarda e na diálise para que sintam que con- não ser viável realizar tantas horas Ainda assim, às vezes, sente que é a trolam e entendem todo o procedi- de viagem para fazer tratamentos. própria que dá apoio à família, pois mento. Em espe- No entanto, para Elsa “o tratamento cial à minha filha, não é o fim, mas sim o início de uma em que todo o pro- vida com mais qualidade”. Aconselha cedimento foi ex- todos os doentes renais a fazerem o plicado, inclusive que gostam, a apoiarem-se na família mostrei imagem da e a considerarem apoio psicológico, diálise, (máquinas, quando necessário. tratamento, sala) e foi comigo visitar a “Senhor dai-me força para mudar clínica e falar com o que pode ser mudado… o meu médico”. Resignação para aceitar o que Como neste mo- não pode ser mudado… mento está a ter- minar a licenciatu- E sabedoria para distinguir uma ra, não tem muito coisa da outra.” tempo para outras atividades, mas São Francisco de Assis assume que gosta de ler, caminhar e dançar. Elsa encara a pos- sibilidade de rece- ber um transplante como um fator que lhe permitiria uma HISTÓRIAS DE VIDA // 11

HISTÓRIAS DE VIDA // 12

FILIPE ALMEIDA: “VIAJAR E FAZER DIÁLISE? SIM, É POSSÍVEL” Trinta e três anos, casado e hospital. Apesar de na altura não foi um choque, sobretudo porque com três filhos. Amante de terem descoberto ao certo do que tinha aberto uma empresa há pouco viagens e surf. Apaixonado pela vida. se tratava (mas desconfiarem), tempo e faltava pouco para ser pai É assim Filipe Almeida, que faz diá- durante toda a adolescência teve pela primeira vez. No entanto, em lise desde os 28 anos. No entanto, de ser acompanhado e vigiado. poucos dias, Filipe percebeu que não a sua vida não se define por esse Durante vários anos foram tentadas era o fim do mundo. pormenor. várias terapêuticas, mas só aos seus 28 anos é que começou a fazer “É muito importante perceber e Aos 12 anos, devido a uma gripe, hemodiálise. Confessa que ao início fazer questões sobre a diálise. Foi esteve uma semana internado no isso que fez com que conseguisse HISTÓRIAS DE VIDA // 13

dar a volta”, disse. À medida que foi Para Filipe, o que impor- pesquisando e procurando saber ta é o presente e não mais acerca da doença, percebeu adianta ficar parado no que as pessoas tinham medo tempo à espera de algo de viajar, devido à necessidade que pode ou não vir a de continuarem a realizar os acontecer. “Se a linha tratamentos. Por esse motivo, em acabasse agora e olhás- 2019, Filipe iniciou um projeto em semos para trás, teria que pretendia dar a volta ao mundo e valido a pena?”. É este o mostrar que mesmo estando a fazer mote de vida de Filipe, hemodiálise, é possível viajar. a vontade de não parar, a força para continuar “Em 2019 visitei mais de 30 países. e a coragem para viajar. A ideia é mesmo pisar todos os Assume que não é fácil continentes e provar que é possível viajar com três crianças fazer tratamentos em todos”. Admite e que é necessário ter que a parte burocrática ainda é tudo organizado com difícil, especialmente na época em a sua mulher, mas tudo que vivemos, mas, ainda assim, as se torna mais fácil com pessoas não devem ter medo e muito o apoio familiar. Teve a menos ficar à espera da chegada de sorte de ter encontrado um rim compatível. Não dá muita uma pessoa que con- importância ao transplante porque tinuasse ao seu lado, ainda não chegou a sua hora. Assume apesar de saber que a que as histórias que ouve são sempre diálise poderia ser um negativas, fazendo falta histórias obstáculo para construir positivas de pessoas transplantadas. família. HISTÓRIAS DE VIDA // 14

Um dos grandes objetivos de Filipe é inspirar outros doentes a viajar, a não terem medo, porque, pela sua experiência, sempre correu tudo muito bem. Não vê os tratamentos como algo negativo, pelo contrário; vê que está a “ganhar vida para poder usufruir das coisas boas”. “A maneira como vemos a diálise é que pode mudar tudo. Não é o fim do mundo. É um recomeçar. Tem limitações, mas podemos fazer a nossa vida normalmente”. HISTÓRIAS DE VIDA // 15

HISTÓRIAS DE VIDA // 16

JOANA VELOSO: “A MINHA MOTIVAÇÃO DIÁRIA É CONSEGUIR TER UMA VIDA O MAIS NORMAL POSSÍVEL E SER FELIZ COM ISSO” Joana Veloso tem 34 anos e é co Urémico foi o diagnóstico. Uma pareciam muita calma e tranquilida- doente renal há quase 30. A sua doença fulminante, de origem bacte- de. Este suporte fez com que tudo se história enquanto doente renal co- riana e não genética, no seu caso. tornasse mais natural, assim como meça cedo. Tinha cinco anos quando todos os profissionais de saúde que estava num casamento — era a meni- Após este episódio de urgência, se- a acompanharam, desde aquele mo- na das alianças — pediu para ir várias guiram-se alguns meses de interna- mento até aos dias de hoje. vezes à casa de banho e tinha sangue mento no Hospital D. Estefânia. Joa- nas fezes. Foi às urgências e os rins na lembra-se de não entender o que Depois começou a fazer diálise tinham parado. Síndrome Hemolíti- se passava na altura. Os seus pais es- peritoneal. Eram os seus pais que tiveram sempre ao seu lado e trans- faziam as sessões, quatro a seis HISTÓRIAS DE VIDA // 17

horas por dia. A 20 de outubro de Os cuidados ensinados pela equipa ta vez optou pela hemodiálise. Foi 1994, quando estava na segunda do Hospital de Santa Cruz incluíam uma escolha pessoal, decidiu evitar classe, recebeu a tão esperada uma dieta saudável, ingestão de o cateter e possíveis infeções (diá- chamada do Hospital de Santa Cruz muitos líquidos e toma de medica- lise peritoneal), uma vez que gosta e foi transplantada. ção diária. Foi transplantada até muito de ir a praias e piscinas. dezembro de 2008. O transplante “Foi uma mudança extraordinária, durou 14 anos. Durante estes 14 Foi muito bem acolhida nas clínicas tinha mais noção da realidade, senti- anos, cresceu, foi adolescente, fez de hemodiálise — Abrantes e Coim- -me livre. Já não tinha de ir a casa fa- o secundário e foi para a faculdade. bra — e isso foi fundamental. Du- zer os tratamentos, podia estar o dia Foram 14 anos felizes. Foi nessa rante as primeiras sessões é normal todo na escola a brincar com os ami- altura que iniciou o tratamento de sentir uma melhoria da condição gos. Iniciei uma vida normal como substituição renal, sendo que des- geral de saúde e isso fez com que a qualquer criança”, explicou. adaptação ocorresse de forma natu- HISTÓRIAS DE VIDA // 18

ral. Joana aceitou esta sua nova rea- nidades: afinal é possível viajar e lidade e incluiu-a no seu dia a dia sem fazer hemodiálise, não só dentro grande resistência. “Há situações na de Portugal, mas também fora. vida que não conseguimos controlar Durante os 10 anos de hemo- e esta foi uma dessas situações, a diálise experimentou várias melhor estratégia é aprender a viver clínicas: Abrantes, Coimbra, com elas”. Grândola, Covilhã, Vila Franca de Xira, Restelo, Porto Santo, Ilha Ao realizar hemodiálise, os cuidados Terceira. Fora de Portugal esteve a ter são diferentes, as restrições ali- em Viena de Áustria, Milão, Mar- mentares são mais severas e incluem selha e Gran Canária. restrição de líquidos. Estava então no último ano de faculdade e tinha “Claro que nem tudo são vontade de ingressar no programa rosas, a resiliência é im- Erasmus e estudar uma temporada portante, alguns dos fora de Portugal. E assim foi, falou destinos que tentei com a assistente social da clínica foram rejeitados por para perceber qual seria a possibi- diversos motivos. A lidade de fazer hemodiálise fora de sorte é que a Europa Portugal durante um semestre. Foi tem muitas opções e aqui que a sua vida começou a ser quando se fecha uma muito mais do que só tratamentos. E porta, outra se abre”. lá foi Joana até Barcelona em setem- bro de 2009. Regressou em feve- A 15 de janeiro de reiro de 2010. Assume ter sido uma 2019 fez um novo oportunidade de vida fantástica. A transplante. Confes- experiência de estudar na Universi- sa que já estava can- dade de Barcelona foi também muito sada da rotina de enriquecedora. entrar no trabalho às 09h da manhã, Com esta temporada fora de Portu- sair às 18h e ir a gal abriu-se um mundo de oportu- casa mudar de HISTÓRIAS DE VIDA // 19

roupa, fazer o lanche e seguir para lorizar muito do que sempre se con- a sessão de hemodiálise, três vezes siderou como garantido. Sempre que por semana. O segundo transplante posso aproveito para viajar, passear correu bem, a mudança mais eviden- e estar com a família e amigos. Gos- te é a não dependência da máquina to de conhecer culturas e lugares de hemodiálise, o que se pode cha- novos, quer seja dentro de Portugal mar de liberdade. ou fora. Também gosto muito de ir simplesmente observar o pôr do sol “A vida de um insuficiente renal é à praia”. cíclica, os transplantes duram mais ou menos anos, por fatores diver- Na sua opinião, o bem-estar de um sos, e entre transplantes as opções insuficiente renal, independente- de substituição da função renal são mente de que estado da doença se variadas. Aguardemos que a ciência encontre, depende da sua saúde psi- evolua na direção dos rins biónicos cológica. Lamentavelmente, o Servi- ou quem sabe, rins de porco. Na ço Nacional de Saúde não está sufi- minha primeira aula de economia cientemente adaptado para dar este aprendi que os recursos são escas- apoio à população em geral, e aos sos e as necessidades ilimitadas. Faz insuficientes renais em particular. sentido”. Há uns tempos cruzou-se com a Atualmente, tem 34 anos e trabalha frase: numa multinacional francesa. Faz gestão de equipas na área financei- “A insuficiência renal testa os ra, por coincidência numa linha de limites da força e coragem hu- negócio ligada à saúde, conseguindo mana. Requer dedicação e fé, conciliar o gosto de trabalhar com assim como resistência psicoló- pessoas e a parte contabilística. Pes- gica, emocional e física. Se con- soas e números são duas das suas seguimos viver com insuficiência grandes paixões. renal, conseguimos conquistar tudo a que nos propomos. É um Joana acredita que a sua motivação desafio de vida e o melhor bene- diária é conseguir ter uma vida o fício é a VIDA” e fez-lhe todo o mais normal possível e ser feliz com sentido. isso. “A COVID-19 ensinou-nos a va- HISTÓRIAS DE VIDA // 20

HISTÓRIAS DE VIDA // 21

MARIA CRISTINA SOUSA: “LEVO MUITO NA BRINCADEIRA, MAS COM RESPONSABILIDADE” Positiva. Conformada. Com ale- que aquela foi a melhor altura para Mas tem sorte. Metade das coisas gria de viver. É assim Maria receber o diagnóstico, achando que que está proibida de comer, não Sousa, com 47 anos de idade, trans- se fosse aos 60/70 anos, a adaptação gosta. “Não é um problema para mim, plantada por duas vezes, à espera de iria ser muito pior. foi uma adaptação fácil”, disse. um terceiro rim e a realizar hemodiá- lise três vezes por semana. Sempre contou com o apoio da sua Rapidamente se conformou de que família e amigos, que prontamente teria de fazer tratamentos para o Diagnosticada com doença renal alteraram a alimentação, para que resto da vida, mas isso nunca a deitou com apenas 16 anos, Maria acredita Maria se sentisse acompanhada. abaixo. Começou a fazer hemodiálise HISTÓRIAS DE VIDA // 22

aos 21 anos e confessa que durante plante. Mas para Maria, ser trans- malmente. O transplante não é uma os primeiros quatro anos nunca se plantada não é uma grande mudança cura, é o adiamento. Eu levo as coisas sentiu mal. No entanto, assume que na sua vida. muito na desportiva”. o que mais lhe custou foi não poder ter continuado a fazer karaté. “Quando receber o transplante, a Hoje em dia, após os tratamentos, única coisa que muda é não ir três sente-se cansada, com cãibras e Atualmente, encontra-se à espera vezes por semana para o tratamen- quebras de tensão, mas nem isso a para receber o seu terceiro trans- to. De resto faço a minha vida nor- deita abaixo. Para Maria, “metade do HISTÓRIAS DE VIDA // 23

nosso bem-estar vem do psicológico”. Apesar da sua grande força interior, o apoio familiar e dos profissionais de saúde é muito importante. “São o nosso suporte enquanto estamos no tratamento. No caso da clínica de Matosinhos, para mim são os melhores profissionais que me poderiam ter calhado”. “Os doentes não podem ir abaixo psicologicamente. Se forem muito negativos, acabam por prejudicar o tratamento. Somos doentes renais, mesmo transplantados, nunca o vamos deixar de ser e temos de ter noção e responsabilidade”. HISTÓRIAS DE VIDA // 24

HISTÓRIAS DE VIDA // 25

MARIA ELISABETE NUNES: “É PRECISO ANDAR PARA A FRENTE” Maria Elisabete Rodrigues Se não fosse isto já não andávamos No entanto, após alguns tratamen- Nunes, 59 anos, viúva e cá. É importante aceitar”, disse. tos, começou a lidar melhor e apesar com um filho. Durante cinco anos fez de se sentir em baixo e com algumas diálise peritoneal e desde há quatro Antes da insuficiência renal lhe ter dores nos ossos, no dia seguinte já meses faz hemodiálise. batido à porta era empregada de lim- está bem. peza, mas teve de deixar o trabalho Mulher de poucas palavras, confor- devido às limitações dos tratamen- “A motivação é andar para a frente. mada com a situação, acredita que é tos. O cansaço que sentia e o facto Um dia de cada vez. Não vale a pena preciso andar para a frente. “É a úni- de não poder fazer esforços ditaram estarmos a pensar no caso, porque ca maneira de conseguirmos viver. o fim da sua vida profissional. senão estamos mal”. HISTÓRIAS DE VIDA // 26

Em agosto de 2021 foi internada, o transplante porque parece que obstáculos. Marca os compromissos mas essa situação trouxe-lhe espe- muda a nossa vida”. para os dias em que não tem tra- rança: conheceu duas senhoras que tamentos, porque lhe ocupam muito foram submetidas a transplante e O surgimento da pandemia da tempo, mas garante que mesmo es- “estavam como se nada fosse. Fi- COVID-19 também não facilitou a tando em casa, tem sempre com que quei muito admirada. Julguei que a vida de Maria. Com receio de sair se entreter. pessoa ficasse mais em baixo. Mas de casa por ser doente de risco, pre- estavam bem e ao fim de oito dias ti- fere resguardar-se e ocupar o seu “A motivação é andar para a veram alta”. tempo nas lides domésticas. Quando frente. Um dia de cada vez.” podia ia caminhar, mas agora evita Encontra-se em lista de espera e por medo de ir para a rua. vê no transplante uma nova opor- tunidade. “Gostava muito de fazer Tenta ao máximo ter uma vida equilibrada e normal, apesar dos HISTÓRIAS DE VIDA // 27

HISTÓRIAS DE VIDA // 28

ROSA CARDOSO: “TENHO CORAGEM PARA DAR, VENDER E DOAR” Rosa Cardoso, amputada de Mulher cabo-verdiana, enfermeira disse. Veio de Cabo Verde para uma perna, com diabetes, insu- licenciada, quis a vida que deixasse Portugal evacuada para tratamento, ficiência cardíaca e a fazer tratamen- de ser cuidadora para passar a ser em 2016. Na altura, vinda de São tos de hemodiálise três vezes por cuidada. No entanto, há seis anos a Vicente, tinha um diagnóstico de semana, descobriu recentemente o realizar hemodiálise, não se dá por insuficiência cardíaca e a sua perna gosto pelas cantorias – mornas – e vencida. esquerda já tinha sido amputada. ainda procura trabalho como telefo- Assim que chegou ao Hospital nista. Tem 56 anos, é solteira, com “Faço tudo normalmente. O meu de São José ficou internada e dois filhos e dois netos. tratamento não muda a minha vida”, rapidamente foi transferida para HISTÓRIAS DE VIDA // 29

o Hospital Curry Cabral. Foi nesse tempo da melhor forma e não baixa fora, uma vez que não pode parar momento que soube que os rins os braços. os tratamentos. apenas trabalhavam 15% e que teria de fazer hemodiálise. Assume que a maior alteração na Em breve vai fazer uma consulta sua vida foi o cuidado com a ali- de pré-transplante, mas não vive Reagiu bem ao diagnóstico e menta- mentação, devido à restrição de agarrada à espera de um rim. “Se lizou-se de que se a sua vida depen- vários alimentos, e a pouca inges- aparecer eu aceito, se não aparecer dia dos tratamentos, teria de aceitar. tão de líquidos. Apesar de ser algo não faz mal. Eu vivo um dia de cada Diz ter “coragem e força para supor- que não a incomoda, assinala que vez”. tar tudo isso”. Procura ocupar o seu também é difícil fazer viagens para HISTÓRIAS DE VIDA // 30

HISTÓRIAS DE VIDA // 31

ROSA ROMÃO: “QUEM SABE SE AINDA IREMOS TER A SORTE DE TER UM RIM BIÓNICO” Rosa Maria Marques da Silva Ro- Iniciou o seu percurso profissional renal crónica depois de ter estado mão, 68 anos de idade, casada aos 18 anos e trabalhou em vários internada com uma grande anemia há 49 anos, com duas filhas. Atual- serviços da Administração Pública. e já estar descompensada e com mente, os seus hobbies passam por Sempre foi à luta para ascender vertigens. Os exames aos rins cozinhar, tratar da horta e dançar. profissionalmente, tendo chegado acusaram falência quase total. “Não Juntamente com o seu marido, fez vá- ao topo da carreira com a categoria entrei em pânico, porque foi tudo rios workshops de danças, como salsa, de chefe de secção. muito gradualmente e sempre com kizomba, bachata, forró, chá-chá-chá, o apoio do meu marido e família. valsa, tango, bolero e outras. Reformada desde os 56 anos, Só pedia mesmo a Deus para não descobriu que tinha insuficiência HISTÓRIAS DE VIDA // 32

entrar em depressão nervosa, se- que inventam tanta coisa, por que não seriam dois problemas para não investirem também nesta resolver”, disse. alternativa”. Confessa que os primeiros tempos Para Rosa, a principal motivação de hemodiálise foram muito dolo- para ultrapassar a doença é ter espe- rosos, tanto a nível físico como psi- rança num transplante compatível, cológico. Chorava e ficava muito para pelo menos ter mais liberdade. ansiosa. Tinha quebras de tensão e Neste momento, encontra-se em cãibras. Custou muito habituar-se lista ativa para o transplante renal às picadas e a estar quatro horas, no Hospital Curry Cabral e Hospital três vezes por semana, deitada a Garcia de Orta. Caso tenha suces- fazer tratamento. Assume também so “poder-me-ia ausentar por mais que a sua vida após o início da diá- tempo para outros lugares”. lise se tornou muito limitada. “Dei- xei de viajar, deixei de poder passar Apesar de já ter sido chamada períodos na minha casa da aldeia de por duas vezes, o destino trocou- que eu tanto gostava. É uma com- -lhe as voltas. Na primeira vez plicação para ir passar uns dias para optou por não aceitar por receio. qualquer lado, já tentei e não é  fá- “Estávamos em plena pandemia no cil arranjar vagas para fazer diálise verão de 2020 e alguns dias antes numa outra clínica e depois é o trans- houve uma insuficiente renal que porte entre a clínica e a residência”. morreu, porque foi contaminada com COVID-19 no hospital, ainda No entanto, não perde a esperança. não havia as vacinas e por isso eu “Quem sabe se ainda iremos ter tive receio de aceitar”, explicou. Na a sorte de ter um rim biónico, já segunda vez que foi contactada HISTÓRIAS DE VIDA // 33

aceitou, mas infelizmente foi feita Rosa deixa o conselho a todos uma biópsia aos órgãos colhidos os familiares e cuidadores de compatíveis e não estavam em insuficientes renais: “Sejam ca- condições de serem transplantados. rinhosos, aconselhem-nos a ali- mentar-se bem, ajudem-nos a A cada ano que passa sente-se tomar a medicação certinha e com menos força física, mas tenta tenham muita paciência. Usem ao máximo fazer a sua vida o mais e abusem da empatia, imaginem- normal possível. “Vou de fim de -se no lugar deles”. semana, aproveitando os dois dias seguidos sem tratamento para ir à minha aldeia, ou fazer uma escapadinha pelo Alentejo, Algarve, Aveiro, Nazaré. Também vou à praia aqui perto de casa, moro na Aroeira - Charneca de Caparica, a poucos quilómetros da Fonte da Telha e praias da Caparica”. HISTÓRIAS DE VIDA // 34

HISTÓRIAS DE VIDA // 35

SABINA ABOOBAKER: “NÃO ME ESQUEÇO QUE TENHO DOENÇA RENAL CRÓNICA, MAS TAMBÉM NÃO FAÇO DISSO O CENTRO DA MINHA VIDA” “Sou uma pessoa bastante dizem que eu sou uma pessoa mui- outra forma”. É assim a descrição que social, gosto muito de estar to forte. Sou como tenho de ser. Se Sabina Aboobaker faz de si própria. com os meus amigos, adoro viajar e não fosse assim não vivia e deixava ir a concertos. Ir à praia, por a cabeça que as doenças que tenho tomassem Tem 41 anos e é a irmã mais velha debaixo de água é uma das melho- conta do rumo da minha vida. Tão de três irmãos. Juntamente com a res sensações para mim. As pessoas simples quanto isso. Não sei ser de sua mãe, são o seu “núcleo duro”. Aos 16 anos, Sabina descobriu que HISTÓRIAS DE VIDA // 36

tinha Lúpus e a aceitação foi muito É em 2005 que faz o seu primeiro exercer, considera ter sido uma ex- difícil. Aos 22 anos essa doença co- transplante de rim dado pela sua periência espetacular, pois teve a meçou a atacar os rins e foi aí que mãe. O rim durou 10 anos: cinco oportunidade de colocar em prática começou a desenvolver insuficiência anos fantásticos e cinco anos a lutar toda a sua criatividade. renal. contra uma rejeição humoral. Até que teve de regressar à diálise. Op- Atualmente, trabalha na área do tu- Nessa altura, estava no 3.º ano do tou pela diálise peritoneal, pela liber- rismo e vive precisamente na baixa curso de Medicina. Desde sempre dade e autonomia que dava, mas ao de Lisboa e adora. A possibilidade achava que queria ser médica. Mas fim de seis anos já não estava a ser de poder deslocar-se a pé para todo a vida obrigou-a a parar e repensar eficaz, então voltou a fazer hemodiá- o lado, permite que tenha uma vida na vida. “Adoro a Medicina e a sua lise. Faz há cerca de um ano e desta independente e livre. ciência, mas não queria ser médica. vez corre muito melhor. Para doente já bastava eu”, pensou “Gosto muito de viver, sair, estar com Sabina. Quando rejeitou o rim e começou os amigos, ir a concertos, cinema e a diálise novamente, contou com o ir à praia. Não posso dizer que foi a Após vários tratamentos, inclusive apoio de vários amigos e familiares, doença que me fez ter esta vontade quimioterapia para tentar reverter que fizeram exames de compatibi- de viver, porque desde sempre vivi a falência renal, em 2003 iniciou a lidade. “Infelizmente nenhum era com doença crónica. Por isso acho hemodiálise. Estava muito debilita- compatível, mas só esse gesto mos- que já faz parte de mim. Se não tives- da fisicamente para reagir bem ou tra um altruísmo gigante por parte se limitações estava sempre a viajar. mal, estava apenas a “sobreviver”. deles”. A minha mãe uma vez disse que se Foi uma altura muito difícil, perdeu não tivesse doença crónica nunca me imenso peso e as sessões não cor- Em 2005, após o transplante, tirou via”, disse Sabina. riam muito bem. o curso de Joalharia. Apesar de não HISTÓRIAS DE VIDA // 37

Sabina assume que sempre viveu dade que poderia voltar a ter e por correu lindamente. É disso que Sabi- muito bem com a sua condição, deixar de ter de estar ligada a uma na sente falta. Da liberdade. e tanto a família como os amigos máquina para viver. Poder fazer a estão muito bem informados, pelo mala e ir viajar. É este o maior desejo Com doença renal crónica desde os que “não há dramas, apenas muita de Sabina. 20 anos, sempre fez questão de ter empatia”. uma vida igual às pessoas da sua “Com um transplante posso beber a idade e nunca deixou que a doença “Quando fazia diálise peritoneal e ia a água que quiser, sem me preocupar. condicionasse a sua vida. casa de amigos, a primeira coisa que Posso comer à vontade sem pensar procurava era um prego na parede no potássio e no fósforo. Voltar a ou um cabide para que pudesse fa- fazer chichi. Poder beber um copo zer a diálise quando chegasse a hora. inteiro de água de seguida só porque Quando íamos de férias, estavam me apetece, sem me preocupar em todos muito tranquilos e à vontade levar peso a mais na sessão seguin- com os sacos, ajudando-me sempre te, só isso é uma alegria. São essas que era preciso. Cheguei a fazer no ‘pequenas coisas’ que mais tenho carro para poder estar o dia todo vontade. O resto vem a seguir”. na praia. Tinha sempre um gancho/ suporte comigo e um saco de diálise Com a hemodiálise, ainda não con- no carro para qualquer eventualida- seguiu viajar mais do que um fim de de. Sempre desdramatizei, mas sem semana. Também porque o início do nunca descuidar”. tratamento coincidiu com o início da pandemia, e as restrições aumenta- Relativamente à hipótese de voltar a ram, mas também pela burocracia ser transplantada, Sabina admite que que daí advém. Quando fazia diálise um segundo transplante seria o seu peritoneal, viajou várias vezes, in- Euromilhões, sobretudo pela liber- clusive foi ao Brasil e Turquia e tudo HISTÓRIAS DE VIDA // 38

HISTÓRIAS DE VIDA // 39

SÓNIA CARTAXEIRO: “EU ESCOLHO O AMOR E SER FELIZ” Sónia Cartaxeiro tem 42 anos, é Atualmente, trabalha na Associação tornar disponível alguma informação designer de Comunicação, vive Portuguesa de Insuficientes Renais que, a seu ver, parece faltar. uma história de amor com o seu ma- (APIR), mas além da profissão rido há 26 anos e é portadora de sín- que exerce, ajuda pessoas com “Quando soube que iria iniciar diálise drome de Alport. Considera-se uma problemas semelhantes aos seus. A senti falta de algo assim, na altura pessoa resiliente, lutadora, forte e nível pessoal, sentiu a necessidade pouca era a informação disponível frágil, mas sempre com um sorriso de criar um blog — starlightsonia e poucas eram as pessoas dispostas no rosto. A vida tem-na posto à pro- — para partilhar a sua história e dia a falar abertamente sobre o que va, mas Sónia responde com pensa- a dia. Encara como uma forma de estavam a viver. Queria e quero mentos positivos. exprimir o que lhe vai na cabeça e continuar a mostrar que ser doente renal crónico e a fazer diálise não HISTÓRIAS DE VIDA // 40

é o fim e que a nossa vida não tem locais de namoro. Começou por ter orgulhosa de si própria e ganhou uma de parar. É possível, mesmo com anemia, hematúria na urina e alguns confiança que não sabia que tinha. algumas limitações, ter uma vida anos depois, perda de proteínas e No entanto, continuava a sentir-se ativa e feliz”, disse. tensão arterial alta. A solução era muito fraca, com náuseas e com uma inevitável: mais tarde ou mais cedo grande oscilação da tensão arterial Tinha apenas cinco anos quando, teria de fazer diálise ou transplante e em 2002 iniciou a diálise, com após uma biópsia renal, diagnosti- renal. Com o aumento dos interna- apenas 15% de função renal. Optou caram a doença. Na altura, disseram mentos, foi fazendo amigos, que se pela diálise peritoneal e rapidamente que seria uma doença grave apenas mantêm até hoje. se adaptou. para o sexo masculino, mas com o passar do tempo percebeu-se de Durante o secundário sentiu-se Entretanto, recebe o seu primeiro que não seria o caso da Sónia. A incompreendida por parte dos rim, mas um ano e meio após o doença avançou de forma galopan- colegas e professores, uma vez que transplante, teve uma rejeição aguda te quando começou a namorar com tinha uma “doença invisível”, mas esse e voltou a fazer diálise peritoneal. o seu marido, Bruno, e o serviço de sentimento alterou-se por completo Apesar de se sentir triste pela perda Nefrologia Pediátrica do Hospital quando entrou na faculdade no ano do rim, já não se sentia assustada. de Santa Maria passou a ser um dos 2000. Sentiu-se verdadeiramente Após um ano em diálise, em 2006 é novamente transplantada com um rim do seu pai. Tudo tinha corrido bem. Só se lembrava que tinha sido transplantada na hora da medicação ou quando tinha consultas. Foi nessa altura que decidiu ir viver com Bruno, tendo-se casado em 2008. Durante a lua de mel HISTÓRIAS DE VIDA // 41

começou a sentir-se mal. Assim Em 2013, já habituada à rotina, que regressou a Portugal teve de eis que surge um novo problema: retirar o seu segundo rim e ficou cancro. Rapidamente foi operada três meses internada. A adaptação à para remover a tiróide na totalidade hemodiálise não foi fácil, no entanto, e alguns meses depois, acabou aos poucos começou a olhar para a por fazer tratamento com iodo situação de outra forma. Iniciou a radioativo. Além disso, o acesso hemodiálise por cateter e só passado não parava de dar problemas e uns largos meses é que foi possível estava já muito degradado, tendo construir um acesso. As veias eram sido necessário avançar para a muito frágeis e finas e a única opção construção de um novo. foi uma prótese. “A minha vida é uma constante aventura”, afirmou Sónia. Nessa altura, voltou a fazer diálise peritoneal, algo que preferia, em comparação com a hemodiálise. Pouco tempo depois, eis que surge um novo cancro, desta vez no intestino. “Não é possível!”, pensou Sónia. Em janeiro de 2015 foi operada para remover o dito tumor HISTÓRIAS DE VIDA // 42

e, um mês depois, veio a confir- havia outra opção senão desistir da “Costumo dizer que a minha vida mação, era um adenocarcinoma do diálise e regressar à hemodiálise. dava uma novela algo bipolar, intestino. Passado pouco mais de tipo drama com comédia à um ano, nos exames de controlo, Sónia ganhou coragem e deu o mistura. Aventuras não faltam, foi encontrado um novo tumor. passo seguinte: hemodiálise notur- acontecem-me as coisas mais Seguiu-se nova cirurgia e a poste- na. Mais longa, mais lenta, menos incríveis, mas faço questão de rior análise confirmou que era de agressiva e com mais vantagens. enfrentar tudo sempre de sorriso facto recidiva. No início de 2018, O maior receio era não conseguir nos lábios (mesmo com os olhos nos exames de vigilância, apareceu dormir durante as seis horas de cheios de lágrimas). Podemos novamente algo no intestino e foi tratamento, mas só saberia se não controlar ou escolher aquilo necessária nova cirurgia. Durante experimentasse. Iniciou hemodiá- que nos acontece, mas podemos todo este tempo, Sónia continuou lise noturna em abril de 2018 e aí escolher a forma como lidamos sempre a fazer diálise peritoneal, continua até hoje. “Foi sem dúvida com elas. Um caminho difícil e, quando tudo começou a acalmar, a melhor opção para mim tendo em não tem de ser feito sozinho teve duas peritonites seguidas. Não conta todos os meus problemas”, ou infeliz, podemos sempre garante. escolher como o queremos atravessar”. HISTÓRIAS DE VIDA // 43

HISTÓRIAS DE VIDA // 44

VÍTOR DAMIÃO: “CONTINUO COM IMENSOS OBJETIVOS DE VIDA E VONTADE DE OS CONCRETIZAR” Vítor Damião, 68 anos, casado, do Túnel do Marquês de Pombal, em terismo, foi contemplado com duas com dois filhos e dois netos. Lisboa, até 2012. Quis a vida tro- doses de contraste, que implicou Durante a sua vida profissional foi car-lhe as voltas quando em 2011 um aumento de creatinina e causou Técnico Experimentador, no Labora- descobriu que tinha doença renal cinco dias de internamento. Esta tório Nacional de Engenharia Civil, crónica. situação rapidamente conduziu à exercendo funções no Serviço de inevitabilidade da diálise, que se Barragens. Posteriormente, foi En- Descoberta esta que se veio a re- veio a concretizar em 2012. genheiro Civil na Junta Autónoma velar lenta, uma vez que foi pro- de Estradas e, finalmente, respon- gredindo nos diversos patamares Tendo-se informado previamen- sável pela Construção e Exploração da doença, aumentando a albumi- te em relação à doença que o iria núria, e, na sequência de um cate- acompanhar daí em diante, Vítor HISTÓRIAS DE VIDA // 45

sabia que era uma situação irrever- assim, conseguia descansar a maior estas viagens, devido à diminuição sível e com duas soluções apenas: parte do tempo, tornando o trata- da acuidade visual, à nefropatia dia- diálise ou transplante. Esta última hi- mento menos duro. Vítor assume bética e dores na coluna. Desde os pótese rapidamente foi abandonada, que o tempo de tratamento lhe custa seus 20 anos que coleciona livros, uma vez que tinha feito a excisão das a passar. selos, calendários, moedas e pos- glândulas tiróideas, devido a células tais ilustrados e agora ocupa o seu cancerígenas e, por norma, durante Apesar de estar conformado, a sua tempo a cuidar das árvores frutíco- cinco anos não é possível fazer trans- vida profissional sofreu uma pesada las, do jardim e da horta. plante. No entanto, mesmo com este transformação, porque a ocupação cenário, a reação imediata de Vítor de praticamente 18 horas semanais Apesar das limitações inerentes à foi de resignação. com a diálise, impediram a continui- doença, Vítor afirma que sempre se dade do trabalho que fazia, e que du- preocupou com a sua alimentação “Sabendo que não havia outra solu- rante longos anos foi executado em e supressão de líquidos, pelo que a ção, procurei criar rotinas de modo diversos pontos do país, com grande manutenção dos valores vitais foi a tornar menos penoso o período do dedicação. De 2012 a 2017, exerceu tratamento”, justificou. funções de presidente da Associa- ção Inválidos do Comércio a tempo Por seu lado, a família e amigos ten- inteiro, uma vez que já exercia estas taram o “tratamento de choque”, ou funções a tempo parcial desde 2006. seja, “se não se falar nisso, ele facil- mente supera a situação”. Quando Atualmente, e passados 10 anos iniciou os tratamentos na clínica, desde o início do tratamento, já se teve oportunidade de integrar o sente mais cansado. Nos primeiros único turno existente na altura — tempos, saía da clínica e conduzia pares manhã — que rapidamente se 600 quilómetros para passar os transformou na melhor opção, uma fins de semana em Espanha. Hoje, vez que gosta de se levantar cedo e, já tem mais dificuldade em realizar HISTÓRIAS DE VIDA // 46

algo que “determinou a vontade de “Aqueles cinco anos de suspensão dominar e controlar a doença, pois devido à tiróide foram decisivos, pois continuo com imensos objetivos de o regresso à consulta de transplante vida e vontade de os concretizar”. não correu bem nos primeiros anos. Neste momento, os médicos que me Em relação à possibilidade de rece- acompanham têm sido muito mais ber um transplante, Vítor considera efetivos na pesquisa da possibilida- que é uma esperança importante de, mas eu neste momento já estou para os mais jovens. Para o próprio, menos confortável, pois as patolo- já não se sente tão confortável. gias aumentaram, a idade também, pelo que o eventual benefício já seria menor”, justifica. desânimo, no entanto, aquilo que im- porta é que apesar de sermos finitos, Vítor é da opinião de que “a supe- “a vida é maravilhosa, pelo que vale a ração da doença renal, bem como pena lutar para vivê-la”. de qualquer outra doença, deve ser encarada com esperança nas meto- dologias e equipamentos atuais e fu- turos e procurando ajudar a ganhar dias à doença, quer com o cumpri- mento das regras de conduta face à doença, quer no objetivo e ânimo de ganhar dias de vida com a melhor qualidade possível”. O apoio da família e dos cuidadores também é fundamental, sobretudo em períodos de maior prostração ou HISTÓRIAS DE VIDA // 47

HISTÓRIAS DE VIDA // 48


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook