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(Re)Pensando Direito - Nº 2

Published by comunicacao, 2015-04-29 22:34:06

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OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004não expressamente inscritos no seu art. 5º. Portanto, “são direitosconstitucionais na medida em que se inserem no texto de umaconstituição ou mesmo constem de simples declaração solenementeestabelecida pelo poder constituinte”145. Quanto aos direitos implícitos, estes estão subentendidos nasregras de garantias, bem como os decorrentes do regime e dosprincípios adotados pela Constituição. E, como última vertente, há osdireitos e garantias inscritos nos tratados em que República Federativado Brasil seja parte. Por isso, não se pode esquecer que, por ser oBrasil subscritor das Declarações Universal e Americana, o que, porforça do art. 5º, § 2º, já lhe era imposto que a pessoa humana fosselevada em consideração em uma dimensão supranacional146. Para José Afonso da Silva, os direitos individuais decorrentes doregime e de tratados internacionais subscritos são aqueles que “nãosão nem explícita nem implicitamente enumerados, mas provêm oupodem vir a provir do regime adotado, como o direito de resistência,entre outros de difícil caracterização a priori”147. Nessa mesma linha de pensamento se encontra Manoel GonçalvesFerreira Filho, para quem a Constituição, “além desses direitosexplicitamente reconhecidos admite existirem outros decorrentes doregime e dos princípios por ela adotados, incluindo também aquelesque derivam de tratados internacionais, quais sejam estes direitosimplícitos é difícil de se apontar”148. Para Flávia Piovesan149, tais posicionamentos pecam ao equipararos direitos decorrentes dos tratados internacionais aos direitosdecorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, subtraí-la da esfera protetiva, estaria violando o limite material previsto no art. 60, § 4º, IV, da CF, ou seja, tal EC que instituiu o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2º, do art. 2º, que, quanto a tal tributo, não se aplicaria o art. 150, III, ‘b’, e VI, da CF, por se tratar de garantia constitucional do cidadão (ADIN n. 930-7/DF, relator ministro Sidney Sanches – medida cautelar, RTJ 150/68). Em suma, como decidiu o STF: “admitir que a União, no exercício de sua competência residual, ainda que por EC, pudesse excepcionar a aplicação desta garantia individual do contribuinte, implica conceder ao ente tributante poder que o constituinte expressamente lhe subtraiu ao vedar a deliberação de proposta de emenda à Constituição tendente a abolir os direitos e garantias individuais constitucionalmente assegurados”. (Trecho do voto do min. Celso de Mello, Serviço de Jurisprudência do STF, Ementário n. 1730-10/STF).145 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Nos termos da reforma constitucional. 19. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 184.146 Idem. Ibidem., p. 196.147 Idem. Ibidem., p. 197.148 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988. Vol. 1, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 88.149 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Op. cit., p. 78-79. (RE) PENSANDO DIREITO 99

José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesuspois se os direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados“não são nem explícita nem implicitamente enumerados, mas provêmou podem vir a provir do regime adotado”, sendo direitos de “difícilcaracterização a priori”, o mesmo não pode ser afirmado quanto aosdireitos constantes nos tratados internacionais dos quais o Brasilseja parte, posto serem eles expressos e claramente elencados, nãopodendo ser considerados de “difícil caracterização” ou “difícil deapontar”. Assim, para Flávia Piovesan, ao recepcionar os tratadosinternacionais de direitos humanos, a Constituição Federal de1988 está a conferir-lhes a hierarquia de norma constitucional, ouseja, tais direitos integram e complementam o catálogo de direitosconstitucionalmente previstos150. J.J. Gomes Canotilho, ao se referir à hierarquia dos tratadosinternacionais de proteção dos direitos humanos em relação aostratados clássicos, diz que a paridade hierárquico-normativa, ou seja, o valor legislativo ordinário das convenções internacionais deve rejeitar-se pelo menos nos casos de convenções de conteúdo materialmente constitucional (exs.: Convenção Europeia de Direitos do Homem, Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais)151. Ainda com Canotilho, pode-se afirmar que [...] os direitos, liberdades e garantias são regras e princípios jurídicos, imediatamente eficazes e atuais, por via direta da Constituição [...]. [...] não são meras normas para a produção de outras normas, mas são normas diretamente reguladoras de relações jurídico-materiais152. Há que se ter em conta que os tratados modernos sobre direitoshumanos em geral e, em particular, a Convenção Americana, não sãotratados multilaterais do tipo tradicional, concluídos em função de um150 Idem. Ibidem., p. 79-80.151 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 227.152 Idem. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 412.100 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004intercâmbio recíproco de direitos, para o benefício mútuo dos Estadoscontratantes, pois os seus objetivos e fins são a proteção dos direitosfundamentais do homem e, como tais, não podem ser interpretadoscomo qualquer outro tratado153. Inclusive, ao se manifestar sobre oassunto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos154, em suaOpinião Consultiva n. 2, de setembro de 1982, esclareceu que “aoaprovar estes tratados sobre direitos humanos, os Estados sesubmetem a uma ordem legal dentro da qual, eles, em prol do bemcomum, assumem várias obrigações, não em relação aos indivíduosque estão sob a sua jurisdição”, por isso, esse caráter especial vem ajustificar o status constitucional atribuído aos tratados internacionaisde proteção aos direitos humanos. Tanto é que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, emseu 13º Parecer (1993), manteve que, à luz do que dispõem os art.41 e 42 da Convenção, a Comissão Interamericana é competentepara determinar se uma norma de direito interno de um Estado-parteviola ou não as obrigações deste último sob a Convenção Americanaacerca dos direitos humanos, mas não é competente para determinarse aquela norma contradiz ou não o próprio direito interno desteEstado155. Apesar das opiniões favoráveis à corrente de que os tratadosinternacionais de proteção aos direitos humanos incorporadospelo Brasil possuem hierarquia constitucional, há aqueles quenão compactuam com a ideia e dizem existir apenas uma relaçãode paridade156 entre os tratados internacionais e a lei federal, bemcomo se a norma internacional reflete outro direito não previsto naConstituição, possui força de lei ordinária157. Entretanto, no dizer de153 TRAVIESO, Juan Antonio. Derechos humanos y derecho internacional. Buenos Aires: Heliasta, 1990, p. 90.154 PIOVESAN, Flávia. Direito humanos e o direito..., op. cit., p. 87.155 LEAL, Rogério Gesta. Op. cit.., p.184.156 REZEK, José Francisco. Op. cit., p. 98. Para LEAL, Rogério Gesta, op. cit., p. 181 e 182, a tese de paridade é comprometedora, mas que parece fascinar o Poder Judiciário de tantos países, inclusive o da América Latina, na busca dessa pretensa paridade entre os tratados, independentemente da matéria que regulam, e as legislações ordinárias. Mas não fica aí; vai mais além, ao admitir que, se equiparando uns aos outros, por terem a mesma hierarquia, podem teoricamente derrogar-se ou revogar-se pela simples aplicação do critério que a lex posterior derrogat priori, sem preocuparam-se com a responsabilidade internacional do Estado perante os demais.157 GOMES, Luis Flávio. A questão da obrigatoriedade dos tratados e convenções no Brasil: particular enfoque da Convenção Americana sobre direitos humanos. In Revista dos Tribunais, vol. 83, n. 710/26, dez. 1994, p. 30.(RE) PENSANDO DIREITO 101

José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de JesusAgustin Gordillo, os tratados de proteção dos direitos humanos têmgrau supraconstitucional, quando [...] a supremacia da ordem supranacional sobre a ordem nacional pré-existente não pode ser senão uma supremacia jurídica, normativa, detentora de força coativa e de imperatividade. [...] não duvidamos de que muitos intérpretes resistirão a considerá- la direito supranacional e supraconstitucional, sem prejuízo dos que se negarão a considerá-la sequer direito interno, ou mesmo, direito158. A Constituição portuguesa de 1976, em seu art. 16, n.1,ao estabelecer que “os direitos fundamentais consagrados naConstituição não excluem quaisquer outros constantes de regrasaplicáveis do direito internacional”, está a conceder um grau desupraconstitucionalidade a todo direito internacional dos direitosdo homem. Já no Brasil, a Constituição Federal de 1988, regula avigência de direitos internacionais na ordem interna através do art. 5º,§ 2º, quando estabelece que não excluem os direitos decorrentes detratados internacionais. Dessa forma, tal situação está muito próximoà referida na Constituição portuguesa159. Entretanto, com a inserçãodo § 3º no art. 5º, é que os direitos humanos decorrentes de tratadosinternacionais, estabeleceu-se um mesmo grau de uma emendaconstitucional. Por outro lado, a afirmação feita pelo min. Moreira Alves160, do STF– posição majoritária –, quando disse que o § 2º, do art. 5º, da Carta daRepública, só se aplica aos tratados anteriores à Constituição Federalde 1988 e ingressam como lei ordinária”, e que, quanto aos tratadosposteriores, não seria de aplicar o referido parágrafo, pois, “senãopor meio de tratados teríamos emendas constitucionais a alterara Constituição”, sendo que tratado posterior “não pode modificar aConstituição nem se torna petrificado por antecipação”.158 GORDILLO, Agustin. Derechos humanos, doctrina, casos y materiales: parte general. Buenos Aires: Fundacion de Derecho Administativo, 1990, p. 53-54.159 PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de direito internacional público. 3. ed., Coimbra:Almedina, 1993, p. 103 e 107.160 Cfe. pronunciamento feito por ocasião da conferência inaugural no Simpósio Sobre Imunidades Tributárias: conferência inaugural. In MARTINS, Ives Gandra (coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, Centro de Extensão Universitária, 1998, (Pesquisas Tributárias, Nova Série, n. 4), p. 22.102 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 Na época dessa afirmação do min. Moreira Alves, tal assertivade que os tratados internacionais proteção dos direitos humanos“ingressam como lei ordinária” no ordenamento jurídico pátrio, nãodevia prosperar, pois, se a própria Constituição estabelecia que osdireitos e garantias nela elencados podem ser complementados poroutros provenientes de tratados, não se poderia pretender que essesdireitos e garantias tivessem graus hierárquico diferente das normasconstitucionais em vigor. Mas essa era uma posição que algunsautores tinham sobre tal assunto. Infelizmente, pessoas e/ou autoridades contrárias à proteção dosdireitos humanos sempre existirão, em qualquer época, apesar de que o fundamento dos direitos humanos não pode depender de variações espaço-temporais, tampouco de visões particulares do mundo religioso, político, cultural, etc. Uma vez que se reporta a uma ordem comum de valores que visa a justificar a aceitação de um conjunto de conceitos jurídicos e de práticas políticas cuja finalidade é proteger o homem independentemente de seus vínculos institucionais ou culturais, os direitos humanos não poderão condicionar seu fundamento sem que isso também comprometa sua própria universalidade161. De qualquer sorte, a Carta Magna brasileira atual, está a permitirno art. 5º, § 3º, que os tratados internacionais de proteção dos direitoshumanos ingressem no ordenamento jurídico interno e que, a partirdaí, revistam-se de norma constitucional – não é ainda o entendimentoda maioria dos juristas nem do STF – e, dispondo o produto normativodesses tratados sobre garantias e direitos individuais, chega-se àconclusão que após a incorporação de tais normas no direito brasileironão há mais possibilidade alguma de suprimir qualquer dos direitosprovenientes daquele produto normativo convencional, nem mesmopor meio de emenda à Constituição. Em outras palavras, a partir doingresso de um tratado internacional de proteção dos direitos humanosno ordenamento jurídico brasileiro, todos os seus dispositivosnormativos passarão, desde o momento de sua incorporação, a161 LUCAS, Doglas Cesar. Direitos humanos e interculturalidade. Op. cit., p. 43.(RE) PENSANDO DIREITO 103

José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesusconstituírem cláusulas pétreas, não podendo mais ser suprimidas. É,sem dúvida, uma grande mudança. No dizer de Jorge Miranda, [...] o art. 16, n. 1, da Constituição (portuguesa) aponta para um sentido material dos direitos fundamentais: estes não são apenas os que as normas formalmente constitucionais enunciem; são ou podem ser também direitos provenientes de outras fontes, na perspectiva mais ampla da constitucional material. Não se depara, pois, no texto constitucional um elenco taxativo de direitos fundamentais. Pelo contrário, a enumeração (embora sem ser, em rigor, exemplificativa) é uma enumeração aberta, sempre pronta a ser preenchida ou completada pelas novas faculdades para lá daquelas que se encontrem definidas ou especificadas em cada momento162. Assim, a cláusula do art. 5º, § 3º, da Carta Magna de 1988 (ECn. 45/2004), está a admitir que os tratados internacionais de proteçãodos direitos humanos se incorporem no ordenamento jurídico brasileirono mesmo grau hierárquico das normas constitucionais (desde queseguidas as regras estabelecidas) e não no âmbito da legislaçãoordinária, inclusive em virtude da abertura propiciada pelo citadoparágrafo ao falar de direitos fundamentais. Estes [...] passam a integrar o nosso catálogo [...]. Na realidade parece viável concluir que os direitos materialmente fundamentais oriundos das regras internacionais – embora não tenham sido formalmente consagrados no texto da Constituição – se aglutinam à Constituição material e, por esta razão, acabam tendo status equivalente163. Daí se verifica que, segundo Ingo Sarlet, a tese de equiparação entre os direitos fundamentais localizados em tratados internacionais e os com sede na Constituição formal é a que mais se harmoniza [...] constituindo, assim, pressuposto indispensável à construção e consolidação de um autêntico direito constitucional internacional dos direitos humanos, resultado da162 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos fundamentais. Tomo IV, 2. ed., Coimbra. Coimbra Editora, 1993, p. 152.163 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit.., p. 130.104 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 interpenetração cada vez maior entre os direitos fundamentais constitucionais e os direitos humanos dos instrumentos jurídicos internacionais164. Para Flávia Piovesan, a teoria da paridade entre o tratadointernacional e a legislação federal não se aplica aos tratadosinternacionais de proteção dos direitos humanos, tendo em vistaque a Constituição Federal de 1988 assegura a esses a garantia deprivilégio hierárquico, atribuindo-lhes natureza de norma constitucionale que esse tratamento se justifica na medida em que os tratadosinternacionais de direitos humanos apresentam um caráter especial,distinguindo-se dos tratados internacionais comuns, visto que aquelesobjetivam a salvaguarda dos direitos do ser humano e não asprerrogativas dos Estados165. Para se ter uma ideia da evolução na proteção dos direitoshumanos pelo STF, destacam-se três exemplos: a) por meio doRE 80.004/SE, julgado em 29.12.1977 – exame matéria de direitocomercial (Convenção de Genebra) –, a Corte passa a entender pelaparidade entre lei federal e tratado em substituição ao entendimentoanterior em que os tratados tinham superioridade à lei interna; b) ojulgamento do HC 72.131/RJ, ocorrido em 22.11.1995 – sob a égideda Carta de 1988, tratava da possibilidade de prisão civil por dívidaprevista no ordenamento interno em contraste com a ConvençãoAmericana de Direitos Humanos, o STF ratifica a paridade entre leifederal e tratado de direitos humanos; e c) no RE 466.343/SP, já sobo ordenamento constitucional da EC n. 45/2004, a Corte avança ealtera o posicionamento anterior. Por cinco votos a quatro, vence atese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos. Vencida atese da hierarquia constitucional, a hierarquia dos tratados de direitoshumanos, equiparada à emenda constitucional, fica restrita aostratados quando o seu caminho de aprovação atender ao disposto no§ 3º do art. 5º da Constituição Federal (alteração introduzida pela ECn. 45/2004).164 Idem. Ibidem., p. 130-131.165 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Op. cit., p. 86.(RE) PENSANDO DIREITO 105

José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesus Não foi fácil para o Brasil chegar a esse patamar, muitosobstáculos no caminho foram encontrados, mas, apesar de ainda nãoser o totalmente desejado, já é um grande avanço nesse sentido. Mauro Capelletti foi muito feliz ao fazer um chamamento aosjuízes e dizer que [...] será difícil para eles não dar a própria contribuição à tentativa de o Estado tornar efetivos tais programas, de não contribuir [...] para fornecer concreto conteúdo àquelas finalidades e princípios [...] eles podem fazer controlando e exigindo o cumprimento do dever do Estado de intervir ativamente na esfera social, um dever que [...] cabe exatamente aos juízes respeitar [...]166. Nessa linha de pensamento, o STF, em decisão proferida emdezembro de 2008, afirmou competir aos juízes e Tribunais o deverde atuar como instrumento da Constituição – e garante de suasupremacia – na defesa incondicional e na garantia real das liberdadesfundamentais da pessoa humana, conferindo, ainda, efetividade aosdireitos fundados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte.Essa é a missão socialmente mais importante e politicamente maissensível que se impõe aos magistrados, em geral, e àquela SupremaCorte, em particular. O voto do min. Celso de Melo no julgamentopelo Pleno do STF, RE 466.343/SP, de 3 de dezembro de 2008, foi daseguinte maneira (apenas parte): [...] Nesse sentido – e no contexto histórico-social em que se formaram –, as Declarações de Direitos representaram, sempre, um poderoso instrumento de tutela e de salvaguarda dos direitos e liberdades civis, das franquias constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário. O juiz, no plano de nossa organização institucional, representa o órgão estatal incumbido de concretizar as liberdades públicas proclamadas pela declaração constitucional de direitos e reconhecidas pelos166 CAPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?. Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1993, reimpressão 1999, p. 42.106 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 atos e convenções internacionais fundados nos direitos das gentes. Assiste, desse modo, ao magistrado, o dever de atuar como instrumento da Constituição – e garante de sua supremacia – na defesa incondicional e na garantia real das liberdades fundamentais da pessoa humana, conferindo, ainda, efetividade aos direitos fundados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Essa é a missão socialmente mais importante e politicamente mais sensível que se impõe aos magistrados, e a esta Suprema Corte, em particular. É dever dos órgãos do Poder Público – e notadamente dos juízes e Tribunais – respeitar e promover a efetivação dos direitos garantidos pelas Constituições dos Estados nacionais e assegurados pelas declarações internacionais, em ordem a permitir a prática de perspectiva, como peça complementar no processo de tutela das liberdades fundamentais167. Assim sendo, o Poder Judiciário deve dar ampla atenção quandoos direitos humanos estejam em julgamentos, visto que somentedessa forma é que será concretizado aquilo que está positivado, sejana Constituição Federal ou em tratados internacionais de proteçãoaos direitos humanos. Isto não quer dizer que as demais autoridadeslegislativas ou administrativas não tenham também o dever depromover e concretizar os direitos humanos. Para o Brasil, a proteção aos direitos humanos tem sido umdestaque muito importante em sua agenda, inclusive, por meio doDecreto n. 7225168, de 1º de julho de 2010, foi promulgado o Protocolode Assunção sobre Compromisso com a Promoção e a Proteção dosDireitos Humanos do MERCOSUL, o qual foi assinado em Assunçãoem 20 de junho de 2005. Nesse tratado internacional sobre direitoshumanos, reafirmaram-se os princípios e normas contidos naDeclaração Americana sobre direitos humanos e outros instrumentosregionais de direitos humanos, bem como na Carta DemocráticaInteramericana. Também se ressalta o expressado na Declaração eno Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanosde 1993, onde diz que a democracia, o desenvolvimento e o respeito167 Cfe. voto do min. Celso de Melo no julgamento pelo Pleno do STF, RE 466.343/SP, de 3 dez. 2008. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 10 jul. 2010.168 Decreto n. 7225, de 1º de julho de 2010. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em 13 de julho de 2010.(RE) PENSANDO DIREITO 107

José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesusaos direitos humanos e liberdades fundamentais são conceitosinterdependentes que se reforçam mutuamente. Além disso, sublinha-se o destacado em distintas resoluções da Assembleia Geral e daComissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, em que o respeitoaos direitos humanos e das liberdades fundamentais são elementosessenciais da democracia. Nesse tratado, também é reconhecido a universalidade, aindivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos osdireitos humanos, sejam direitos econômicos, sociais, culturais, civisou políticos.CONSIDERAÇÕES FINAIS Após discorrer sobre a incorporação e a hierarquia dos tratadosde proteção dos direitos humanos no ordenamento jurídico interno,fica claro, apesar de algumas controvérsias, que o art. 5º, § 3º, daConstituição Federal de 1988, inserido por meio da EC n. 45/2004,está dando outro encaminhamento aos tratados internacionais quetratem sobre a proteção dos direitos humanos. O Poder Judiciário, de certa forma, deve, urgentemente, fazer umreconhecimento dos direitos humanos e, ao proferir as sentenças, quesejam com base na Constituição Federal, para que se possa mostrarà sociedade que tem um papel decisivo e relevante perante a mesma. Com o advento da atual Carta Magna (1988), se faz necessárioque ela seja mantida com força e estabilidade, devendo, para isso,ser o seu texto sempre realçado e despertado e, principalmente,preservada a vontade em relação à vontade do povo, pois somenteassim será garantida uma maior força169. A Constituição brasileira é clara ao mencionar em seu preâmbuloque tem por horizonte a instituição de um Estado Democrático e quese destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,bem como os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralistae sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,169 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 27. 108 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004na ordem interna e internacional, com a solução pacífica dascontrovérsias. No entanto, ocorre que ainda há aplicadores da lei quesão conservadores e tradicionais e fazem de conta que o norte dado jáno preâmbulo, não existe e acabam julgando contrariamente ao textoconstitucional, dando, em contrapartida, força à lei ordinária. Ora, issonão pode acontecer, pois caso ocorra, não estará sendo buscado oprincípio fundamental para a formação do Estado Democrático deDireito. Os aplicadores do direito (especialmente os juízes) e autoridadesnão podem querer criar uma realidade diferente daquela que asociedade quer, e, como foi visto no decorrer deste trabalho, osprincípios elencados na Carta Magna de 1988, no art. 5º, §§ 1º, 2º e 3º,respectivamente, são claros ao dizerem que “as normas definidoras dosdireitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, bem comoque “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluemoutros decorrentes do regime e os princípios por ela adotados, ou dostratados internacionais em que a República Federativa do Brasil sejaparte” e, por fim, que “os tratados e convenções internacionais sobredireitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do CongressoNacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivosmembros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Entretanto, não se pode esquecer que todo cidadão, de algumamaneira, é um colaborador e intérprete da Constituição e, conformePeter Häberle, pode-se afirmar que a sociedade é livre e aberta na medida que se amplia o círculo dos intérpretes da Constituição [...] pois até o juiz constitucional já não interpreta, [...] de forma isolada, muitos são os participantes do processo, as formas de participação ampliam-se acentuadamente [...]170. Sendo assim, para que se possa dar ao art. 5º e seus parágrafos,da Constituição Federal de 1988 a força que ele precisa ter, deve-se170 HÄBERLE. Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 40-41.(RE) PENSANDO DIREITO 109

José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesussair de um modelo fechado, em que se fica limitado nos procedimentose olhar para o interesse público e o bem estar das pessoas, pois deveser possibilitado a cada cidadão a vivência da norma, como respeitoaos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana. O § 3º do art. 5º (EC n. 45/2004) não foi inserido na ConstituiçãoFederal de 1988, de forma impensada ou alheia em relação aos demaisartigos, pois, como se nota, um dos princípios elencados no art. 1º (III)é o fundamento da dignidade da pessoa humana. A seguir, no art. 3º,é estabelecido como um dos objetivos fundamentais (III) a erradicaçãoda pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociaise regionais, bem como (IV) a promoção do bem, indistintamente. Issotudo sem mencionar o catálogo de direitos e garantias previstos no art.5º, em seus incisos, e nos demais artigos da Constituição Federal, foradeste catálogo, mas que também estão inscritos na Carta. E, ao falarsobre as relações internacionais, a Constituição Federal de 1988 dizque o Brasil se rege (art. 4º, II) pela prevalência dos direitos humanos. Para perceber a importância dada à proteção dos direitoshumanos e às garantias das pessoas, o legislador estabeleceu no art.60, § 4º, inc. IV, que não será objeto de deliberação a proposta deemenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Portanto, quando da incorporação dos tratados internacionaisde proteção dos direitos humanos no direito interno brasileiro, apósratificados pelo Brasil, não pode haver mais dúvidas por parte dosaplicadores do direito, pois os mesmos devem realizar a interpretaçãoharmônica e sistemática conforme a Constituição e dar aostratados internacionais de direitos humanos a hierarquia de normaconstitucional, pelos motivos já expostos neste trabalho. Logicamente, para uma mudança de pensamento e posições, nãoé fácil, entretanto, acompanhar a vontade da sociedade. Deve ocorreruma transformação na maneira de agir, haja vista que a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade e que a sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade e essa pretensão de eficácia não pode ser separada110 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 das condições históricas de sua realização, que estão [...] numa relação de interdependência171. Para encerrar, com apoio em Norberto Bobbio172, é possível dizerque “os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quandodevem ou podem nascer” e “que o problema grave de nosso tempo,com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los,e sim, o de protegê-los”, haja vista que, se assim não se proceder, nãoexistirá futuro para a Constituição se não for lembrado que ela teveum passado e, por isso, deve evoluir, a fim de detectar as linhas deforça de seu desenvolvimento no momento presente, pois a história doconstitucionalismo é a história dos direitos fundamentais173.REFERÊNCIASALVES, J. A. Lindgren. Os direitos humanos como tema global. SãoPaulo: Perspectiva, Brasília, Fundação Alexandre Gusmão, 1994.ARIOSI, Mariângela. Conflitos entre tratados internacionais e leisinternas. O judiciário brasileiro e a nova ordem internacional. Rio deJaneiro: Renovar, 2000.BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários àconstituição do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. SãoPaulo: Saraiva, 1989.BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos NelsonCoutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo:Malheiros, 2001.BRASIL. Decreto n. 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Disponívelem: www.planalto.gov.br. Acesso em: 30 jun.2010.171 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 14-15.172 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 6 e 25.173 MOREIRA. Vital. O futuro da Constituição. In GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 313 e 322.(RE) PENSANDO DIREITO 111

José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesus______. Decreto n. 7.225, de 1º de julho de 2010. Disponível em:www.planalto.gov.br. Acesso em: 13 de julho de 2010.______. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgadaem 5 de outubro de 1988.CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed.Coimbra: Almedina, 1993._______. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:Almedina, 1998.CAPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos AlbertoÁlvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1993, reimpressão1999.DALLARI, Pedro de Abreu. Constituição e relações exteriores. SãoPaulo: Saraiva, 1994.FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituiçãobrasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990, vol. 1.GOMES, Luis Flávio. A questão da obrigatoriedade dos tratados econvenções no Brasil: particular enfoque da Convenção Americanasobre direitos humanos. In: Revista dos Tribunais, vol. 83, n. 710/26,dez. 1994.GORDILLO, Agustin. Derechos humanos, doctrina, casos y materiales:parte general. Buenos Aires: Fundacion de Derecho Administrativo,1990.HÄBERLE. Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade abertados intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretaçãopluralista e procedimental da Constituição. Tradução de GilmarFerreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997.HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução deGilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris Editor, 1991.KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João BaptistaMachado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.112 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

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D(REI)RPEENSIATNDOO O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVO The fear in and of the penal law: the paradigm of publicsecurity and the criminalization of poverty due to the expansionprocess of the punitive law Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth174Resumo:O artigo aborda a problemática do medo como ideia motora do processo de expansão do Direito Penaldiante dos riscos da sociedade contemporânea, o que tem por consequência, diante do enxugamentodo Estado de bem-estar social em razão do avanço do neoliberalismo, a retomada do punitivismo, apartir da construção do paradigma da segurança cidadã. Dito modelo de política criminal, por meio deequiparações conceituais equivocadas, passa a dar maior ênfase à criminalidade “tradicional”, pugnandopelo recrudescimento punitivo e pela consequente flexibilização de garantias penais e processuais típicasdo Direito Penal liberal clássico. Com isso, o medo no e do Direito Penal presta-se à manutenção daviolência estrutural inerente ao modelo econômico neoliberal, pautado na submissão dos desvalidos àvontade dos detentores do poder econômico.Palavras-chave: Direito Penal. Medo. Expansão. Criminalização da pobreza.Abstract:The present paper studies the fear as a driving idea of the expansion of criminal law due to the dangersof contemporary society, which is due to the downsizing of the State of social welfare and the advanceof neoliberalism, the resumption of punitivism from the construction of the paradigm of public safety.This model of criminal investigation, through misguided conceptual equivalence, gives more emphasison “traditional” criminality, pushing for the punitive revival and the consequent flexibility of typical criminalguarantees of the classical liberal Penal Law. Thus, the fear in and of the penal law provides the preservationof the structural violence inherent in the neoliberal economic model, guided by the submission of thedisadvantaged by the holders of economic power.Keywords: Penal Law. Fear. Expansion. Poverty Criminalization.174 Advogado. Mestre em Direito Público pela UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].(RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011 • p. 115-138

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de JesusINTRODUÇÃO O presente artigo tem por objetivo verificar, diante do processoexpansivo experimentado pelo Direito Penal em face das novasformas assumidas pela criminalidade na contemporaneidade, sea dita expansão tem por consequência, por meio de equiparaçõesconceituais equivocadas, a retomada do repressivismo – com orecrudescimento punitivo e flexibilização das garantias penais eprocessuais penais que lhe são peculiares – no que diz respeito aocombate à criminalidade “tradicional”, reforçando, assim, a ideia dautilização do Direito Penal como instrumento de gestão e controlesocial das camadas subalternizadas da sociedade. Em suma, objetiva-se investigar se a inserção do medo no DireitoPenal – ou seja, se as mudanças nele operadas no sentido de darrespostas eficientes aos novos riscos e inseguranças da sociedadecontemporânea – redunda na imposição do medo do Direito Penal– por meio da utilização, na persecução à criminalidade “clássica”levada a cabo pelos segmentos subalternos da população, deelementos extraídos do discurso jurídico-penal voltado ao combate àmacrocriminalidade –, a partir do modelo de política criminal baseadono chamado paradigma da segurança cidadã.ODOPADPIREELIDTOO PMEENDAOL NO PROCESSO DE EXPANSÃO A globalização introduz, a cada dia, no catálogo dos riscos einseguranças, novas e aterradoras formas que eles podem assumir.Paradoxalmente, o aumento da crença de se estar habitando ummundo cada vez mais seguro e controlado pela humanidade éinversamente proporcional ao avanço da ciência e da tecnologia. Os riscos da contemporaneidade são definidos por Beck(1998) como “riscos da modernização”, marcados justamente pelaglobalidade de sua ameaça e por serem produto da maquinaria doprogresso industrial. Ademais, é intrínseco a esses “novos riscos”116 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVOum componente futuro, ou seja, relacionado com uma previsão deuma destruição/catástrofe que ainda não ocorreu, mas que se revelaiminente. Já na óptica de Bauman (2008, p. 129), o conceito de riscocunhado por Ulrich Beck é insuficiente para traduzir a verdadeiranovidade introduzida na condição humana pela globalização(negativa), visto que a ideia de risco só pode partir do pressupostode uma regularidade essencial do mundo, que permite que os riscossejam calculados. Dessa forma, o conceito de risco de Beck só adquiresentido em um mundo rotinizado, ou seja, monótono e repetitivo, “noqual as sequências causais reapareçam com frequência e de modosuficientemente comum para que os custos e benefícios das açõespretendidas e suas chances de sucesso e fracasso sejam passíveisde tratamento estatístico e avaliados em relação aos precedentes.” Ocorre, no entanto, que não é esta a realidade do mundoglobalizado, razão pela qual Bauman (2008, p. 129-130) propõea substituição da expressão “sociedade de risco” pela expressão“sociedade da incerteza”: em um mundo como o nosso, os efeitos das ações se propagam muito além do alcance do impacto rotinizante do controle, assim como do escopo do conhecimento necessário para planejá-lo. O que torna nosso mundo vulnerável são principalmente os perigos da probabilidade não-calculável, um fenômeno profundamente diferente daqueles aos quais o conceito de ‘risco’ comumente se refere. Perigos não calculáveis aparecem, em princípio, em um ambiente que é, em princípio, irregular, onde as sequências interrompidas e a não-repetição de sequências se tornam a regra, e a anormalidade, a norma. A incerteza sob um nome diferente. É por isso que o catálogo dos medos, segundo Bauman (2008,p. 12), está longe de se esgotar: “novos perigos são descobertos eanunciados quase diariamente, e não há como saber quantos mais, ede que tipo, conseguiram escapar à nossa atenção (e à dos peritos!)– preparando-se para atacar sem aviso.” Com isso, no ambientelíquido-moderno, a vida transformou-se em uma constante luta contra(RE) PENSANDO DIREITO 117

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesuso medo, companhia indissociável dos seres humanos, que passam aconviver com aquilo a que o referido autor (2008) denomina “síndromedo Titanic”, ou seja, um temor desmedido de um colapso ou catástrofecapaz de pegar todos despreparados e indefesos e os atingir de formaindiscriminada. Como consequência inafastável dos cada vez mais fortessentimentos de insegurança e medo na sociedade contemporânea,tem-se o aumento da preocupação com as novas formas decriminalidade que se apresentam nesta realidade, notadamente asrelacionadas ao crime organizado e ao terrorismo. No entanto, de acordo com Navarro (2005, p. 4), esse medodifuso e constante do crime pode ser definido como la percepción que tiene cada ciudadano de sus propias probabilidades de ser víctima de un delito, aunque también se puede entender como la simple aprensión de sufrir un delito, si atendemos tan solo al aspecto emocional y no a los juicios racionales de esse ciudadano. De hecho, la carga emotiva suele prevalecer, pues, según numerosos estúdios empíricos, el miedo al delito no se relaciona con las posibilidades reales de ser víctima, esto es, no responde a causas objetivas y externas. O medo da criminalidade, assim, em que pese a distância quemedeia entre a percepção subjetiva dos riscos e sua existência objetiva,pode ter, de acordo com Navarro (2005), consequências sociaisinclusive mais graves que as decorrentes da própria delinquência.Em nível individual, promove alterações de conduta (agressividade,casmurrismo) destinadas a evitar a vitimização, o que afeta o estilo e aqualidade de vida dos cidadãos. Já em nível coletivo, as repercussõesdo medo do crime redundam na redução da interação social, noabandono dos espaços públicos e no rompimento do controle socialinformal. Ocorre que a ênfase dada aos riscos/perigos da criminalidade nacontemporaneidade gera um alarmismo não justificado em matéria desegurança, que redunda no reclamo popular por uma maior presença e118 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVOeficácia das instâncias de controle social, diante daquilo a que Cepeda(2007, p. 31) denomina de “cultura da emergência”. E, neste contexto,o Direito Penal e as instituições do sistema punitivo são eleitos comoinstrumentos privilegiados para responder eficazmente aos anseiospor segurança, o que decorre, segundo Díez Ripollés (2007), doentendimento de que a contundência e a capacidade socializadora sãomais eficazes na prevenção aos novos tipos delitivos do que medidasde política social ou econômica, ou, ainda, de medidas decorrentes daintervenção do Direito Civil ou Administrativo. Nesse contexto, o Direito Penal se expande e se rearma comoresposta ao medo, sendo possível destacar algumas característicasessenciais que passa a assumir. A primeira dessas características éuma maior identificação/solidarização da coletividade com as vítimas,em decorrência do medo de tornar-se uma delas. Deixa-se de verno Direito Penal um instrumento de defesa dos cidadãos em face doarbítrio punitivo estatal – ou seja, como Magna Carta do delinquente –e passa-se a percebê-lo como Magna Carta da vítima, o que redundaem um consenso restritivo quanto aos riscos permitidos, dado que osujeito que se considera enquanto vítima potencial de um delito nãoaceita a consideração de determinados riscos como permitidos, o queresulta em uma definição social-discursiva expansiva do âmbito deincidência do Direito Penal, visto que a identificação social com asvítimas da criminalidade implica a reivindicação por maior eficiênciana sua aplicação e/ou na reparação dos efeitos do delito (SILVASÁNCHEZ, 1999). Uma segunda característica, decorrente da anterior, é apolitização do Direito Penal por meio da utilização política da noçãode segurança, resultado de um empobrecimento ou simplificação dodiscurso político-criminal, que passa a ser orientado tão somente porcampanhas eleitorais que oscilam ao sabor das demandas conjunturaismidiáticas e populistas, em detrimento de programas efetivamenteemancipatórios (CEPEDA, 2007). Outra característica que merece destaque é a cada vez maiorinstrumentalização do Direito Penal no sentido de evitar que os riscos(RE) PENSANDO DIREITO 119

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesusse convertam em situações concretas de perigo. Surgem leis penaispreventivas para evitar o reproche da inatividade política diante dosriscos, visto que “el Derecho penal preventivo es un medio ideal deconsolación política, una carta de presentación para demostrar queaparentemente existe una actividad política. Ya ninguna políticaprescinde de el en su arsenal de recursos” (ALBRECHT, 2000, p. 483). Cepeda (2007) salienta, a propósito, que se vive na sociedadede risco uma autêntica “cultura preventiva”, na qual a prevençãoacompanha o risco como uma sombra, desde os âmbitos maiscotidianos até os de maior escala, cujo exemplo maior são as guerraspreventivas. Para a referida autora (2007, p. 321), parece que hoy la preocupación social no es tanto cómo obtener lo que se desea, sino cómo prevenir de daños lo que se tiene. Esto desemboca en una intervención penal desproporcionada, en la que resulta priorita únicamente la obtención del fin perseguido, la evitación del riesgo en el ‘ámbito previo’ a la lesión o puesta en peligro, adelantando la intervención penal, o general, suprimiendo garantías en busca de la presunta eficacia. Paralelamente à antecipação da intervenção punitiva, verifica-seum desapreço cada vez maior pelas formalidades e garantias penais eprocessuais penais características do Direito Penal liberal, que passama ser consideradas como “obstáculos” à eficiência que se espera dosistema punitivo diante da insegurança da contemporaneidade. SilvaSánchez (1999, p. 55-56) refere que desde la presunción de inocencia y el principio de culpabilidad, a las reglas del debido proceso y la jurisdiccionalidad, pasando por la totalidad de los conceptos de la teoría del delito, el conjunto de principios y garantías del Derecho penal se contemplan como sutilezas que se oponen a una solución real de los problemas. São essas as principais características que o Direito Penalorientado ao enfrentamento aos novos riscos, medos e insegurançasda contemporaneidade apresenta, o que acena para o fato de que seestá diante da configuração de um modelo de intervenção punitiva que120 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVOrepresenta um sério risco às liberdades e garantias fundamentais docidadão. Para que se possa melhor compreender essa “flexibilização”do referido sistema de garantias e liberdades fundamentais em face daintervenção do Direito Penal, é importante assinalar que dito processoexpansivo do Direito Penal coincide com o processo de enxugamentodo Estado social diante do avanço das reformas neoliberais, como sedemonstrará a seguir.A SUBSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL PELOESTADO PENAL O contexto social no qual se produzem os novos sentimentos deinsegurança e consequente expansão do Direito Penal coincide como desmantelamento do Estado de Bem-Estar, que redunda em umadesigualdade social que cada vez mais se agudiza. O processo deglobalização coloca-se como o contraponto das políticas do WelfareState, visto que representa uma lógica altamente concentradora,responsável pela exclusão de grandes contingentes populacionais domundo econômico, pelo desemprego e pela precarização do mercadode trabalho. Na realidade contemporânea, com o advento das novastecnologias de produção, prescinde-se dos “corpos dóceis” aosquais se referia Foucault (1987) para o trabalho que outrora erarealizado exclusivamente por meio da força física. Com isso, enormescontingentes humanos tornaram-se, de uma hora para outra, “corpossupérfluos”175 absolutamente disfuncionais para o sistema produtivo,eis que não suficientemente qualificados para operar estas novastecnologias ou porque sua força de trabalho tornou-se de fatoabsolutamente desnecessária.175 A expressão é utilizada por Bauman (2009, p. 23-24), para o qual a exclusão do trabalho traduz na contemporaneidade uma noção de “superfluidade” e não mais de “desemprego”. Isso porque a noção de “desempregado” representa “um desvio da regra, um inconveniente temporário que se pode – e se poderá – remediar”, ao passo que a noção de supérfluo equivale ser considerado “inútil, inábil para o trabalho e condenado a permanecer ‘economicamente inativo.” É por isso que “ser excluído do trabalho significa ser eliminável (e talvez já eliminado definitivamente), classificado como descarte de um ‘progresso econômico’ que afinal se reduz ao seguinte: realizar o mesmo trabalho e obter os mesmos resultados econômicos com menos força de trabalho e, portanto, com custos inferiores aos que antes vigoravam.”(RE) PENSANDO DIREITO 121

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesus Essa nova polarização social resulta na dicotomia “aqueles queproduzem risco” versus “aqueles que consomem segurança”, o queimplica uma atualização do antagonismo de classes. E o modelo decontrole social que se impõe, nesse contexto, é o de exclusão deuma parte da população que não tem nenhuma funcionalidade para omodelo produtivo e que, por isso, constitui uma fonte permanente deriscos (CEPEDA, 2007). É neste contexto que se desenvolvem e se legitimam campanhaspolítico-normativas de Lei e Ordem que se fundamentam nahipersensibilização de alarmes sociais específicos e constituem“políticas basadas en la represión férrea aplicada a ciertos espaciosciudadanos, la dureza de las sanciones, una cierta permisividad a larudeza policial y en la búsqueda de la eficacia fundada en principiosde represión/reactividad” (CEPEDA, 2007, p. 50). Dessa forma, o propalado êxito do programa de combate ao crimepor meio da “tolerância zero” a toda e qualquer infração penal, antesda redução da criminalidade supostamente verificada a partir de suaaplicação, deve-se ao fato de que ele constitui a atitude em termosde repressão penal que melhor se amolda ao contexto mundial deenfraquecimento do Estado de Bem Estar Social diante do modelode Estado mínimo neoliberal, onde se pretende “remediar com um‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico esocial que é a própria causa da escalada generalizada da insegurançaobjetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como doSegundo Mundo” (WACQUANT, 2001, p. 7). Quer dizer, na medida em que o Estado busca eximir-se de suastarefas enquanto agente social de bem-estar, surge a necessidade denovas iniciativas do seu aparato repressivo em relação às condutastransgressoras da “ordem” levadas a cabo pelos grupos que passama ser considerados “ameaçadores”. Paralelamente a isso, tornam-senecessárias medidas que satisfaçam às demandas por segurança dasclasses ou grupos sociais que se encontram efetivamente inseridos nanova lógica social. O escopo deste controle, portanto, é justamente garantir asegurança daqueles que participam ativamente da sociedade de122 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVOconsumo, de forma a livrá-los da presença indesejável da pobrezaque incomoda, qual seja, “a que se vê, a que causa incidentes edesordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, umadifusa sensação de insegurança, ou simplesmente de incômodo tenaze de inconveniência” (WACQUANT, 2001, p. 30). Como aduz Bauman (1999, p. 121-122), o que sugere a acentuada aceleração da punição através do encarceramento, em outras palavras, é que há novos e amplos setores da população visados por uma razão ou outra como uma ameaça à ordem social e que sua expulsão forçada do intercâmbio social através da prisão é vista como um método eficiente de neutralizar a ameaça ou acalmar a ansiedade pública provocada por essa ameaça. De acordo com Garland (2005), em um ambiente tal, o crimepassa a funcionar como legitimação retórica para políticas econômicase sociais que punem a pobreza, dentro de um contexto de Estadodisciplinador. Ao invés de indicar privação social, o crime passa a servisto como um problema de indisciplina, de falta de autocontrole oude controle social deficiente, ou seja, como produto da lassidão naaplicação da lei, assim como de regimes punitivos lenientes, que abremespaço para indivíduos perversos optarem, de forma racional, pela viadelitiva para satisfazerem as necessidades de suas personalidadesantissociais. Fala-se, aqui, em uma “teoria da escolha racional”, que reviveuma explicação meramente utilitária da conduta criminosa: el modelo da la elección racional considera los actos delictivos como una conducta calculada que intenta maximizar los benefícios, como consecuencia de un proceso simple de elección individual. Este modelo representa el problema del delito como una cuestión de oferta y demanda, en el marco de la cual el castigo opera como un mecanismo de establecimiento de precios. Considera a los delincuentes como oportunistas racionales o delincuentes profesionales cuya conducta es disuadida o desinhibida por la puesta en marcha de desincentivos, un enfoque que hace da las penalidades disuasivas un mecanismo evidente de reducción del delito (GARLAND, 2005, p. 220).(RE) PENSANDO DIREITO 123

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesus Não há, portanto, como discutir os motivos que levam alguém adelinquir, uma vez que “a justiça está aí para punir os culpados, indenizaros inocentes e defender os interesses dos cidadãos que respeitama lei” (MURRAY apud WACQUANT, 2001, p. 50). Nesse contexto, aconcepção do Direito Penal como ultima ratio é radicalmente alterada,de forma a torná-lo mais abrangente, rigoroso e severo com o escopode disseminar o medo e o conformismo em seu público-alvo. Fala-se, então, no surgimento do paradigma da segurança cidadã, cujascaracterísticas principais são abordadas na sequência.A CONSTRUÇÃO DO PARADIGMA DA SEGURANÇACIDADÃ E A IMPOSIÇÃO DO MEDO DO DIREITOPENAL Paralelamente às preocupações político-criminais com acriminalidade característica da sociedade de risco, o fato de ofenômeno expansivo do Direito Penal nesse setor coincidir como processo de desmantelamento do Estado Social redunda noressurgimento, sob influência dos movimentos de Lei e Ordem, dorepressivismo e do punitivismo como formas por excelência de secombater a criminalidade dita “tradicional”. Isso porque, como destaca Zaffaroni (2007), embora os “novosinimigos” da sociedade de risco sejam perigosos, não se pode, pormeio do Direito Penal para eles especialmente criado176, legitimar arepressão sobre os pequenos delinquentes comuns, quais sejam, osdissidentes internos ou os indesejáveis em uma determinada ordemsocial. Com isso, pretende-se justificar um controle maior sobre todaa população tendo por escopo prevenir a infiltração dos terroristas,reforçando-se, assim, o controle exercido principalmente sobre aclientela tradicional do sistema punitivo.176 O autor se refere, aqui, à formulação teórica do penalista alemão Günther Jakobs (2009), o qual propõe a adoção da dicotomia conceitual Direito Penal do inimigo versus Direito Penal do cidadão para designar as concepções de autor das quais deve partir o Direito Penal no enfrentamento da criminalidade no contexto mundial atual. O referido autor sustenta a existência de indivíduos que devem ser diferenciados como inimigos em relação aos demais cidadãos, razão pela qual também se faz necessário diferenciar entre um Direito Penal criado especificamente para os inimigos daquele criado especificamente para os cidadãos, uma vez que, sem essa diferenciação, não existe outra alternativa para o combate a determinadas formas de delinquência, em especial no que diz respeito ao caso das organizações criminosas e do terrorismo.124 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVO Assim, a par do Direito Penal criado para a prevenção dos “novosriscos” da sociedade contemporânea, desenvolve-se um crescenteinteresse por aspectos microssecuritários como as insegurançasrelacionadas à “pequena delinquência”, que passa a fazer parte docatálogo dos medos dos cidadãos, em função da sua proximidadepara com eles. Surge, assim, o paradigma da “segurança cidadã”, que parte dopressuposto de que a criminalidade dos socialmente excluídos constituia “dimensão não tecnológica da sociedade de risco”, a justificar, porexemplo, a antecipação da tutela penal tanto pela necessidade deresponder com estruturas de perigo às novas formas de criminalidadecomo pela urgência de atuar contra a desintegração social e adelinquência de rua originada pelos socialmente marginalizados (DÍEZRIPOLLÉS, 2007). O modelo da segurança cidadã “vampiriza” – na expressão deDíez Ripollés (2007) – o debate penal surgido no bojo da sociedadede risco. Para o referido autor (2007, p. 149), las vías de acceso del discurso de la seguridad ciudadana al discurso de la sociedad del riesgo vienen constituidas en su mayor parte por una serie de equiparaciones concepctuales que, basándose en la equivocidad de ciertos términos, tratan como realidades idénticas unas que presentan caracteres muy distintos e incluso contrapuestos. En resumidas cuentas, se da lugar a que el discurso de ley y orden parasite conceptos elaborados en otro cotexto. Ou seja, “se establece una ecuación de igualdad entre elsentimiento de inseguridad ante los nuevos riesgos masivos quedesencadena el progreso tecnológico, y el sentimiento de inseguridadcallejera ligado al miedo a sufrir un delito en el desempeño de lasactividades cotidianas” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p. 149-150). Buscando suporte na análise de David Garland (2005) sobre osurgimento de uma “cultura do controle”, Díez Ripollés (2007) sustentaque o paradigma da segurança cidadã estabelece-se com base emalgumas modificações nas crenças e formas de vida da sociedade(RE) PENSANDO DIREITO 125

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesuscontemporânea, que afetam diretamente a política criminal. Estasideias motoras do novo modelo de intervenção penal que se configurasão:a) O protagonismo da delinquência clássica O retorno dos delitos tradicionais ao centro do cenário político-criminal deve-se, segundo Díez Ripollés (2007), à resignação daopinião pública, alguns anos mais tarde à promulgação das leis penaisque colimavam a criminalização dos colarinhos brancos, diante daconstatação do quão difícil mostra-se a operatividade prática de taisdispositivos. Três fatores principais podem ser apontados como causasdessa desilusão: o primeiro decorre da impressão popular de queos poderosos, por meio de assessoramentos técnicos somenteacessíveis a quem tem recursos econômicos ou grande respaldopolítico, são capazes de explorar abusivamente as garantias doDireito Penal e Processual Penal, logrando, assim, furtar-se tantoà persecução penal em si quanto à condenação e ao cumprimentodas penas que eventualmente lhes são impostas; o segundo decorredo processo de judicialização da política, mais especificamente doaproveitamento sectário da persecução penal por parte dos agentespolíticos, o que relega a segundo plano a verificação da realidade egravidade das condutas delituosas levadas a cabo pelos colarinhosbrancos, as quais acabam sepultadas sob as infindáveis acusaçõesrecíprocas de condutas semelhantes; por fim, tem-se a posturacontemporizadora da doutrina penal em relação aos obstáculos quesurgem na persecução da criminalidade de colarinho branco, o queredunda num rebaixamento significativo na intensidade de persecuçãoa essa criminalidade (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007).b) A prevalência do sentimento coletivo de insegurança cidadã A segunda característica da política criminal que se estrutura apartir do paradigma da segurança cidadã diz respeito ao já referido126 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVOaumento incomensurável do “medo” e da “insegurança” da sociedadeem relação à criminalidade, sempre apresentada como ascendentepelos meios de comunicação de massa e pelos discursos políticos,mesmo quando tal informação é estatisticamente contrariada.c) A substantivização dos interesses das vítimas Uma terceira característica da política criminal assentada noparadigma da segurança cidadã reside na substantivização dosinteresses das vítimas, outrora subsumidos na noção de interessepúblico. Nesse sentido, Garland (2005) refere a tendência cada vezmaior dos partidos políticos na “instrumentalização” das vítimas paraanunciar e promulgar leis penais, as quais assumem, não raras vezes,o nome dessas vítimas177. Com isso, a vítima já não é um cidadão desafortunado que suportaos efeitos de um ato delitivo e cujas preocupações estão subsumidasno interesse público. Ela é um personagem muito mais representativo,cuja experiência se considera comum e coletiva e não mais individuale atípica. Logo, quem fala em nome das vítimas fala em nome dopovo. As imagens das vítimas reais servem como demonstração doque pode ocorrer na vida real (“poderia ser você!”), referindo-se a umproblema de segurança que se converteu em um traço definitivo dacultura contemporânea (GARLAND, 2005).d) Populismo e politização do Direito Penal Sob a influência cada vez maior da população e dos meios decomunicação de massa, o Direito Penal tem passado por um processode politização populista. Com efeito, na contemporaneidade, toda equalquer decisão atinente ao controle da criminalidade é rodeadade um discurso politizado e altamente publicizado. Eventuais erros177 No cenário brasileiro, o exemplo mais recente e expressivo desta característica é a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), que instituiu tratamento mais severo para os acusados de “violência doméstica”, tendo sido assim nomeada em homenagem a uma vítima deste tipo de violência, que, agredida pelo marido por anos a fio, acabou ficando paraplégica.(RE) PENSANDO DIREITO 127

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesustransformam-se em escândalos que podem comprometer a própriamanutenção do poder político nas mãos daqueles que são por elesresponsabilizados. Cada vez mais a experiência cotidiana do povo e a sua percepçãodireta da realidade e dos conflitos sociais passam a ser consideradosfatores de primeira importância na hora de configurar leis penais e naaplicação dessas leis, em detrimento dos conhecimentos e opiniõesdos expertos, que passam a ser desacreditados porque considerados,em sua maioria, desresponsabilizantes (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007).e) A revalorização do componente aflitivo da pena Outra importante característica da política criminal balizada noparadigma da segurança cidadã é a revalorização do componenteaflitivo da pena, rechaçado, durante a maior parte do século XX,porque considerado anacrônico em um sistema penal moderno. No entanto, nos últimos anos, “los intentos explícitos de expresarla ira y el resentimineto públicos se han convertido en un temarecurrente de la retórica que acompaña la legislación y la toma dedecisiones en materia penal” (GARLAND, 2005, p. 43). Cada vez maissão tomados como argumentos os sentimentos das vítimas e/ou seusfamiliares, bem como de uma população cada vez mais temerosadiante do fenômeno da criminalidade, para apoiar a elaboração denovas e mais rígidas leis penais.f) A redescoberta da pena privativa de liberdade Como sexta característica da política criminal sustentada peloparadigma da segurança cidadã tem-se a redescoberta da pena deprisão, outrora considerada uma instituição problemática que, emboranecessária como último recurso, era contraproducente no que dizrespeito aos objetivos correcionalistas. Durante a maior parte doséculo XX parecia produzir-se uma mudança fundamental no sistemade penas, contra o encarceramento e em favor das penalidadesmonetárias, a probation e outras formas de penas supervisionadaspela comunidade (GARLAND, 2005).128 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVO Todavia, nas últimas décadas, verifica-se no mundo toda umainversão dessa tendência, assistindo-se à redescoberta da prisãocomo pena por excelência, não no que diz respeito à sua capacidadesocializadora ou reabilitadora, mas sim como meio de incapacitação(inocuização) e castigo que satisfaz a contento as demandas popularespor retribuição e segurança pública (GARLAND, 2005). Assim como as penas pré-modernas de banimento e degredo,destaca Garland (2005), a prisão funciona na contemporaneidadecomo uma espécie de exílio, cujo uso não é informado por umideal de reabilitação, mas sim por um ideal eliminativo. Ou seja,a prisão desempenha uma função essencial no funcionamentodas sociedades neoliberais, pois é um instrumento civilizado econstitucional de segregação das populações problemáticas. A prisãopune e protege, condena e controla. Portanto, o encarceramentoserve simultaneamente como uma satisfação expressiva (simbólica)de sentimentos retributivos e como mecanismo de administração deriscos, por meio da confinação do perigo representado pelos setorespopulacionais excluídos do mercado de trabalho e da previdênciasocial.g) A ausência de receio em face do poder punitivo estatal A construção do Direito Penal moderno tem por base o equilíbrioentre a necessidade de proteção de determinados bens jurídicosimprescindíveis para a convivência humana e a preocupação constantecom a não intromissão do poder público nos direitos e liberdadesindividuais do cidadão. Em virtude disso, os modelos de intervençãopenal construídos com base nessa tensão sempre sofreram restriçõesem sua função de tutela dos interesses sociais em decorrência dadesconfiança da cidadania acerca da capacidade dos poderespúblicos de usarem moderadamente das amplas possibilidades deatuação que lhes são outorgadas pelos instrumentos de persecuçãodelitiva e execução de penas (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007). Este receio em face de eventuais abusos passíveis de seremcometidos pelo Estado no exercício do poder punitivo, entretanto,(RE) PENSANDO DIREITO 129

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesusé paulatinamente relativizado no bojo do discurso jurídico-penal dasegurança cidadã, em nome da eficiência que se exige por parte dosistema punitivo na persecução à criminalidade. A ausência de receio em face do poder sancionatório estatalprestigia modos de operação do sistema punitivo altamente violadoresdos direitos e liberdades individuais, como por exemplo: a) a conivênciadiante da rudeza policial desde que haja uma ação instantânea, oque redunda em atuações apressadas que incidem sobre objetivosequivocados; b) a transformação pelo legislador de qualquer problemasocial em delito; c) a flexibilização, pelo Judiciário, de garantias penaise processuais penais em atendimento às demandas populares pormaior eficiência; d) a preocupação por parte dos agentes da execuçãopenal no sentido de que o delinquente não seja tratado de maneiramuito generosa no cumprimento da pena (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007).h) A implicação da sociedade na luta contra a delinquência O paradigma da segurança cidadã implica uma mudança deatitude por parte da sociedade em relação ao delinquente. Ao invés daação voltada à gênese da criminalidade, a fim de evitar a atuação dosistema punitivo por meio do apoio social ao criminoso ou à pessoa emvias de incidir em um delito por meio do reforço dos vínculos sociaisdessas pessoas, passa-se a uma ação voltada à colaboração como sistema punitivo, com a finalidade de identificação e persecuçãoaos delinquentes. Busca-se fazer com que a comunidade, “medianteuna estrecha colaboración con la policía, aprenda y acepte poner enpráctica por sí misma técnicas y habilidades que permitan sustituir oincrementar la eficacia de las intervenciones policiales para prevenir opeseguir el delito” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p. 94). Isso redunda numa mudança de atitude da comunidade emrelação ao delinquente: antes de buscar a sua inclusão social, busca-se a sua exclusão do tecido societal.130 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVOi) As transformações no pensamento criminológico Para a consolidação do paradigma da segurança cidadã torna-se imprescindível uma transformação no pensamento criminológico,de forma a afastar os argumentos outrora propalados pelas teoriaspsicológicas/sociológicas do delito, a exemplo das teorias da anomia,da subcultura e do etiquetamento desenvolvidas entre as décadasde 60 e 80 do século passado, que, mescladas ou não, partiam deum argumento explicativo central: o da privação social, ou seja, o deque os indivíduos enveredavam pelo caminho da delinquência emvirtude do fato de terem sido privados de uma educação adequada,de uma socialização familiar, de oportunidades laborais ou, ainda, deum tratamento adequado de sua disposição psicológica anormal. Aatitude esperada por parte dos poderes públicos, diante das causasindicadas para o fenômeno da criminalidade, consistia no tratamentocorrecional individualizado, aliado ao apoio e supervisão das famíliasdos delinquentes e em medidas de reforma social que melhorassemo seu bem-estar, por meio da educação e da criação de empregos(GARLAND, 2005). Em oposição, o atual pensamento criminológico majoritário – quecomeçou a tomar proeminência a partir da década de 90 do séculopassado – é norteado pela ideia de que não são a marginalização oua exclusão sociais as causas da delinquência, mas que esta é fruto deum defeito, qual seja, da insuficiência de controle social, de forma que,para enfrentá-la, torna-se imprescindível incrementar este controle(GARLAND, 2005). Verifica-se que, ao contrário das teorias criminológicas que viamno delito um processo de socialização insuficiente e que portantoreclamavam do Estado a ajuda necessária para aqueles que haviamsido privados de provisões econômicas, sociais e psicológicasnecessárias para uma conduta social respeitosa à lei, as teoriasdo controle partem de uma visão pessimista da condição humana,ao suporem que os indivíduos são atraídos por condutas egoístas,antissociais ou delitivas, a menos que sejam inibidos por controlessólidos e efetivos (GARLAND, 2005).(RE) PENSANDO DIREITO 131

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesus Assim, “mientras la antigua criminología exigía mayoresesfuerzos en las partidas presupuestarias a la ayuda y el bienestarsocial, la nueva insiste en ajustar los controles y reforzar la disciplina”(GARLAND, 2005, p. 53). Isso porque se parte da compreensão de queos delinquentes são atores racionais que respondem a desincentivose são plenamente responsáveis por seus atos delitivos. Nessa lógica,os delinquentes apenas “aproveitam” as oportunidades que lhes sãoapresentadas para a prática delitiva, razão pela qual as soluções que seapresentam para essas “tentações” transitam por duas vias principais:a) pelo reforço dos efeitos intimidatórios e reafirmadores da vigênciadas normas, próprios de penas suficientemente graves, a fim de queos delinquentes possam, por meio de um processo racional, incorporaresses “custos” em seus cálculos, desistindo, assim, da prática delitiva;b) pelo desenvolvimento de políticas de prevenção situacional quedeslocam a atenção do delinquente do delito, buscando reduzir asoportunidades delitivas e as tornar menos atrativas pela incorporaçãode medidas de segurança de todo tipo (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007). Demonstra-se, assim, que o novo pensamento criminológicobem traduz a lógica de substituição das instituições de assistênciatípica de um modelo de Estado de Bem-Estar Social por instituiçõespenais, o que transforma o sistema penal em um instrumento decriminalização dos estratos mais pobres da sociedade, os quais, pelasua condição socioeconômica e pelo tipo de criminalidade cometida,colocam em risco, aos olhos da classe detentora do poder econômico,a paz e a ordem social. O objetivo da hipertrofia do “controle” dacriminalidade por meio da utilização do Direito Penal, nesse contexto,é justamente garantir a segurança daqueles que participam ativamenteda sociedade de consumo, de forma a livrá-los da presença indesejávelda pobreza que incomoda por ser inconveniente aos desígnios docapital e que, por isso, precisa ser constantemente vigiada, controladae, sempre que possível, punida. Portanto, a partir das principais características do paradigma dasegurança cidadã acima apontadas, torna-se possível afirmar que, nocentro do debate sobre a persecução à criminalidade no bojo desse132 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVOdiscurso jurídico-penal, encontra-se uma racionalidade pragmáticaque prima pela eficácia e efetividade da intervenção penal, olvidando-se de toda e qualquer consideração etiológica sobre a criminalidade.Por essa razão, o modelo de Direito Penal que se estrutura a partirde tais premissas se encontra “asentado sobre un proyecto políticode consolidación de las desigualdades sociales y de fomento de laexclusión social de ciertos colectivos ciudadanos” (DÍEZ RIPOLLÉS,2007, p. 189). Em um contexto tal, “a política criminal é inflada, ocupando osespaços normalmente destinados às outras políticas disciplinaresde controle social. Há uma substituição das políticas disciplinaresinclusivas e integradoras por práticas de exclusão e segregaçãobaseadas quase unicamente nas medidas penais” (DORNELLES,2008, p. 42). Surge, assim, uma espécie de “fundamentalismo penalcriminalizador dos conflitos sociais, que substitui a mediação políticanas relações sociais por um direito penal de emergência, com carátercontra-insurgente” (DORNELLES, 2008, p. 46). Questões sociais sãotransformadas em “questões de polícia” e, em nome da celeridadeda resposta aos conflitos sociais, passa-se a renunciar às garantiaslegais processuais ínsitas ao Direito Penal liberal e presentes namaioria das constituições modernas e nos tratados internacionais dedireitos humanos. Esse modelo de Direito Penal só é possível a partir dodesaparecimento de atitudes tolerantes em relação às condutasdelitivas ou simplesmente não convencionais inerentes a todasociedade aberta e pluralista, abrindo, reflexamente, espaço parauma intervenção estatal altamente autoritária. Como destaca Cepeda(2007, p. 430), trata-se de um programa que “amplía el arbitrio paradecidir si procede una intervención y cómo realizarla, ofreciendoun modelo reaccionario desligado de los principios y garantías delDerecho penal, con el fin de conseguir mayor flexibilidad y supuestaeficacia”. Com efeito, o modelo de Direito Penal assentado no paradigmada segurança cidadã é um modelo classista que,(RE) PENSANDO DIREITO 133

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesus de un modo insostenible ideológicamente dentro de las sociedades socialdemócratas actuales, establece muy significativas diferencias entre las intervenciones sociales a praticar sobre las conductas lesivas de los sectores socialmente poderosos, y aquellas que deben ejercerse sobre comportamientos nocivos de las clases baja y marginal. A tal fin, lleva a cabo un prejuicioso análisis de la lesividad de los comportamientos a considerar, en virtud del cual convierte la criminalidad común en un factor desestabilizador del orden político y social de primer orden, haciéndola, consecuentemente, el objeto central de la intervención penal (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p. 190). Se, dentro da lógica neoliberal, os pobres têm utilidade zero– como destacado no tópico 2, supra – deve-se ter, em relação aeles, “tolerância zero”, lembra Cepeda (2007). Olvidando-se dofato de que “el desacierto de la política estructural nunca puede sercompensado a través del Derecho penal” (ALBRECHT, 2000, p. 487),e relegando, consequentemente, a segundo plano as origens sociaisda criminalidade, o modelo de Direito Penal que se implementa apartir do paradigma da segurança cidadã abandona qualquer tentativade buscar a integração social dos delinquentes, preconizandoprecipuamente pela sua eliminação do tecido societal. Portanto, a partir dessa redefinição de prioridades pautadana ideia de segurança, impõe-se um modelo de controle pautadona exclusão/inocuização de uma parte da população que não temnenhuma função dentro do atual modelo econômico, o que constituiuma revalorização da ideia de fragmentação ou separação comofundamento da ordem. Os destinatários desse controle são os “outros”,os inimigos da sociedade, os novos homo sacer do século XXI. Nessecontexto, o controle social se despoja das “amarras” do Estado deBem Estar e aparece desnudo em seu sentido mais direto e cruel:renuncia-se expressamente qualquer intenção de integração dosespaços marginais e se propõe um controle voltado a redistribuir osriscos inerentes a esses espaços até torná-los “toleráveis” (CEPEDA,2007). Como destaca Brandariz García (2004, p. 51),134 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVO de la misma forma en que se constata la irreductible existencia del riesgo y la imposibilidad de garantizar por los medios clásicos la seguridad, el sistema penal del Estado contemporáneo funciona asumiendo la ineludible existencia de relevantes y sostenidos niveles de exclusión social, a los que se enfrenta con una intención de gestión, y ya no de superación mediante el ideal reintegrador. Em síntese, tais atitudes refletem posturas repressivistas/punitivistas que concebem como principal causa da criminalidadeclássica/tradicional na sociedade contemporânea o afrouxamento narepressão e a impunidade de grande parte dos envolvidos com essescrimes. Neste sentido, propõem um maior endurecimento nas penas, asupressão de garantias e a busca pela superação da impunidade comoestratégia primeira de segurança pública. Exsurgem daí a falsidade ea perversidade deste discurso, uma vez que o aumento do númerode condutas definidas como criminosas, assim como o maior rigor naaplicação da pena, significam tão somente mais pessoas presas e nãonecessariamente menos conflitos sociais, ratificando, assim, o projetoneoliberal de separação, exclusão e inocuização daqueles estratossociais que se tornam “descartáveis” para a nova estrutura econômica. Dessa forma, torna-se possível afirmar que, por meio do modelode Direito Penal que se estrutura a partir do paradigma da segurançacidadã, não se busca a proteção dos cidadãos e dos seus direitosfundamentais em face da atuação punitiva estatal, tampouco aprevenção à prática de crimes – conforme preconizam os discursosclássicos de legitimação do jus puniendi do Estado. Busca-se, sim, adominação e a opressão exercidas precipuamente contra as camadaseconomicamente desfavorecidas da sociedade, inclusive por meiode medidas de inocuização daqueles que são escolhidos pararepresentarem a “personificação do mal”, o que viabiliza a afirmaçãode que os esgualepados são duplamente atingidos: por um lado, por não terem acesso aos direitos sociais, encontram-se constantemente numa luta pela sobrevivência, o que muitas vezes leva ao cometimento de delitos, especialmente contra o patrimônio;(RE) PENSANDO DIREITO 135

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth - Tanelli Fiorin de Jesus por outro, porque, não possuindo qualquer capacidade de articulação frente ao sistema, ao cometerem delitos, são vítimas fáceis da repressão estatal, que deles se vale para justificar sua imprescindibilidade à sociedade (COPETTI, 2000, p. 63). Conclui-se, portanto, que a atuação do sistema punitivo a partir doparadigma da segurança cidadã reforça estereótipos historicamenteperseguidos pelo sistema punitivo e revela, consequentemente, areal função por ele desempenhada na contemporaneidade: inspirar aconfiança das classes detentores do poder econômico e infundir terroraos setores populares.CONSIDERAÇÕES FINAIS Como consequência da difusa e constante sensação de medocaracterística da sociedade globalizada, tem-se o aumento dapreocupação com as novas formas de criminalidade que se apresentamnesta realidade, o que faz com que o Direito Penal experimenteum processo de expansão, uma vez eleito pelo legislador comoinstrumento privilegiado para responder eficazmente aos anseios porsegurança da população. Nesse sentido, procurou-se demonstrar, neste trabalho,primeiramente, que o medo é inserido no Direito Penal no sentidode dar a uma população cada vez mais atemorizada diante do medogeneralizado da violência e das inseguranças da sociedade líquidapós-moderna uma sensação de “tranquilidade”, restabelecendo aconfiança no papel das instituições e na capacidade do Estado emcombatê-los por meio do Direito Penal. Como segundo objetivo, buscou-se analisar de que forma ainserção do medo no do Direito Penal redunda na imposição do medodo Direito Penal, uma vez que o processo de expansão punitiva abarcauma dimensão extremamente punitivista voltada à persecução dos“medos tradicionais” da dimensão “não tecnológica” da sociedade derisco, por meio da utilização de equiparações conceituais equivocadasconstruídas à luz do paradigma da segurança cidadã. Tem-se, assim,136 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇA CIDADÃ E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVOo exacerbamento punitivo voltado à criminalidade “tradicional”, levadaa cabo preferencialmente por membros dos grupos socialmenteexcluídos, em relação aos quais o medo do Direito Penal se transformaem instrumento de gestão/controle social.REFERÊNCIASALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervencíon de lapolítica populista. La insostenible situación del derecho penal.Granada: Comares, 2000. p. 471-487.BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Riode Janeiro: Jorge Zahar, 1999.______. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.______. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2009.BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad.Trad. Jorge Navarro, Dabiel Jiménez e Maria Rosa Borrás. Barcelona:Paidós, 1998.BRANDARIZ GARCÍA, José Ángel. Itinerarios de evolución delsistema penal como mecanismo de control social em las sociedadescontemporâneas. In. CABANA, P. F.; BRANDARIZ GARCÍA, J. A.;PUENTE ABA, L. M. (org.). Nuevos retos del derecho penal en laera de la globalización. Valencia: Tirant lo blanch, 2004. p. 15-63.CEPEDA, Ana Isabel Pérez. La seguridad como fundamento de laderiva del derecho penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007.COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. La política criminal en la encrucijada.Buenos Aires: B de F, 2007.DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança: entre pombose falcões. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.(RE) PENSANDO DIREITO 137

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DIREITO(RE) PENSANDO O SUJEITO ÉTICO E A RESPONSABILIDADE PELO OUTRO: EMERGÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA HUMANIDADE THE ETHICAL SUBJECT AND RESPONSIBILITY FOR THEOTHER: THE EMERGENCE TO BUILD THE HUMANITY Marina Bertarello178Resumo:O sujeito moderno se consolidou sob o paradigma individualista, tornando-se distante do senso dehumanidade e da onipresença do Outro, um indivíduo encapsulado em si, perpetuador da soberania deum Eu solipsista, um ser humano desumano e egoísta, incapaz de reconhecer o Outro como sujeito, ainegável alteridade constitutiva. Contudo, o reconhecimento do Outro como sujeito é fundamental para aconstituição de uma humanidade humana, pois é na alteridade que se constrói o homem. A humanidadeapenas pode se erigir diante do sujeito ético ciente de sua responsabilidade pelo Outro.Abstract:The modern subject is consolidated under the individualistic paradigm, becoming distant from the senseof humanity and the ubiquity of the Other, an individual encapsulated in itself perpetuates the sovereigntyof a solipsist I, a human being inhuman and selfish, incapable of recognizing the Other as subject, theundeniable otherness constitutive. However, the recognition of the Other as subject is essential for theformation of a human mankind, for it is the otherness that builds the man. Humanity can only be erected onthe subject aware of its ethical responsibility for the Other.Palavras-chave: Alteridade. Sujeito ético. Humanidade. Outro.Keywords: Otherness. Ethical subject. Humanity. Other.178 Mestranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) na linha de pesquisa Sociedade, Novos Direitos e Transnacionalização. Bolsista CAPES-PROSUP. E-mail: [email protected](RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011 • p. 139-154

Marina Bertarello - Tanelli Fiorin de JesusINTRODUÇÃO O sujeito moderno se consolidou sob o paradigma individualista-narcisista, constituindo-se em um homem dissociado do senso dehumanidade e distante da onipresença do Outro, pelo que o sujeitose transforma tão somente em um indivíduo titular de direitos eobrigações, de cunho exclusivamente patrimonialista, um sujeitoobjetificado capaz de firmar contratos, que prescinde da relação como Outro para se constituir. O homem tornou-se mero instrumental do paradigma racionalista,um indivíduo encapsulado em si, perpetuador da soberania de um Eusolipsista, um ser humano desumano e egoísta. Assim, o Eu edificou-se como um ser iluminado capaz de se autoconstituir a partir de seuego, independente da existência do Outro, vista como secundária. Por consectário, tal concepção aniquilou com o próprio sujeitohumano, pois se encontra vazio e encerrado em si mesmo, ausentede qualquer responsabilidade, de inigualável descaso pelo Outro,distante de qualquer senso ético de complacência pelo Outro, dondeo protagonismo pertence à solidão travestida de liberdade ilimitada,uma pseudo liberdade que permite o vilipêndio ao Outro porqueo Eu libertário pode tudo sem limites, ante a cega óptica de que aresponsabilidade pelo Outro consolida mero ato volitivo do indivíduo,um elemento secundário à liberdade, sob o argumento de que avontade do homem é anterior à alteridade constitutiva do sujeito.O RECONHECIMENTO DO OUTRO COMO SUJEITO:A ALTERIDADE CONSTITUTIVA A sociedade moderna se consolidou sob o paradigmaindividualista-narcisista, o que eclodiu na criação de homens isentosdo sentido de humanidade, distantes das inquietudes advindas daonipresente existência do Outro, ao ponto de condescenderem-se aoreconhecimento do sujeito apenas como o indivíduo titular de direitos eobrigações, imbuído tão somente do cariz patrimonialista meramentefuncional, dissociado de qualquer concepção de alteridade.140 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O SUJEITO ÉTICO E A RESPONSABILIDADE PELO OUTRO: EMERGÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA HUMANIDADE A transformação do homem em mero sujeito contratualredunda na inafastável constatação de que o sujeito de direitomoderno consubstancia mero objeto contratual que, em razão desua objetificação, prescinde de uma relação com o Outro para seconstituir, já que o relevante é a solidificação do Eu desumanizado,independente das relações recíprocas com os Outros, desacopladodo indispensável reconhecimento do outro como sujeito. Um sujeito de direito descarnado refoge ao mínimo sensohumanitário, pois se revela incapaz de compreender que a reflexividadedo sujeito, a constituição do homem depende intrinsecamentedo reconhecimento perpassado pela existência do Outro. Nessesentido, impendem os dizeres de Roberto A.R. Aguiar, que assinala aquantificação do ser humano com pretensão à objetividade, eis que, a crescente descorporificação do ser humano possibilita, na atualidade, a maior fluidez dos controles sociais, pois, além de abstraí-lo, torna-o mais apto para sofrer considerações quantitativas, menos sensíveis, com pretensão à objetividade e estatuto de verdade. O sujeito de direitos de nosso Código Civil é a expressão mais acabada dessa visão. Não mais o cidadão e seus dramas e demandas, não mais a sociedade clivada por assimetrias de todos os gêneros, mas o particular descarnado, anônimo, que chega a se confundir, apesar da separação, com as pessoas jurídicas. É nesse momento que a normatividade oficial se expressa em contradição com o sujeito concreto, pertencente ao mundo do dado179. A objetificação do homem acabou por transformá-lo eminstrumental mecanicista do paradigma racionalista, um indivíduonarcisista que apenas privilegia a soberania do Eu solipsista, um serhumano desumano, incapaz de se solidarizar com o Outro, sendo, naverdade, um indivíduo prisioneiro e isolado, eis que inexiste liberdadequando se está inserido fora do contexto da reciprocidade com oOutro, da pluralidade que o Outro emana.179 AGUIAR, Roberto A.R. de. Alteridade e Rede no Direito. Veredas do direito, Belo Horizonte, v.3, n.6, p.32, jul-dez. 2006.(RE) PENSANDO DIREITO 141

Marina Bertarello - Tanelli Fiorin de Jesus Um indivíduo isolado em seu mundo acaba por extirpar a própriacomunicação entre os homens, o relacionamento intersubjetivo tãoessencial ao eterno reproduzir da teia de relações humanas que constróia história da humanidade e, por consectário, um homem distante dodiálogo é um homem que aceita qualquer condição humana, o quepropicia a abertura para o totalitarismo tão nefasto à humanidade, poiscomo bem assinala Hannah Arendt, “a ação, única atividade que seexerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ouda matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato deque homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” 180. E a pluralidade é a condição de substrato da humanidade, poisnão há o verdadeiramente humano sem o reconhecimento do Outro,da alteridade constitutiva do homem, haja vista o ser humano consistireminentemente ser-em-relação; é reciprocidade, é o contato perenecom o Outro, é, enfim, a intersubjetividade essencial à ruptura daobjetificante autoafirmação Eu-Eu, como pondera José Roque Junges: A intersubjetividade rompe a relação de objetividade e instauraa relação dialógica com um outro eu; o eu é suprassumido naprioridade fundante da reciprocidade que institui o ‘nós’. Faz emergiro problema do outro e compreende o ser humano como ser-com-outros. A suprassunção no ‘nós’ exige a constituição de sujeitos cujoser é estruturalmente reflexivo e que são capazes de exprimir-se asi mesmos como auto-afirmação do eu. Sem sujeitos não existecomunidade/sociedade. A constituição de sujeitos pela reflexividadeacontece através do reconhecimento mútuo. A reflexividade do sujeitoacontece mediada pelo reconhecimento do outro. Sem reconhecimentonão existe sujeito consciente de si181. Assim, o Eu existiria sob o premente risco de encerramentosolipsista dentro de sua interioridade, sendo imprescindível paraelidir tal ameaça a experiência do Outro como constitutiva do sujeito180 ARENDT, Hannah. A condição humana. Traduzido por Roberto Raposo. Rio de Janeiro, Forense, 1987, p.16.181 JUNGES, José Roque. Bioética: perspectivas e desafios. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p.90.142 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O SUJEITO ÉTICO E A RESPONSABILIDADE PELO OUTRO: EMERGÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA HUMANIDADEenquanto membro de uma humanidade ética, pois o homem detentordo múnus da humanidade é aquele que reconhece a transcendênciado outro pela relação Eu-Outro e toma consciência de que as decisõesdo Eu refletem, indubitavelmente, no Outro. Não se pode negar a dificuldade de derrocar ou ao menosamenizar o individualismo extremado perene na sociedade, quedesintegra e corrói o homem enquanto ser social como verdadeirapatologia humana, tanto que o homem enquanto sujeito humanonão é capaz de concatenar a busca por interesses comuns, apenasreúne forças para o pleito desenfreado pela satisfação de interessesparticulares, como salienta o sociólogo polonês Zygmunt Bauman: Como a arte de negociar interesses comuns e um destino compartilhado vem caindo em desuso, raramente é praticada, está meio esquecida ou nunca foi propriamente aprendida; como a ideia do ‘bem comum’ é vista com suspeição, como ameaçadora, nebulosa ou confusa – a busca da segurança numa identidade comum e não em função de interesses compartilhados emerge como o modo mais sensato, eficaz e lucrativo de proceder; e as preocupações com a identidade e a defesa contra manchas nela tornam a ideia de interesses comuns, e mais ainda interesses comuns negociados, tanto mais incrível e fantasiosa, tornando ao mesmo tempo improvável o surgimento da capacidade e da vontade de sair em busca desses interesses comuns182. Um homem incapaz de empenhar suas energias para a buscade interesses comuns, apenas voltado à fruição de pretensõesparticulares, não é verdadeiramente um homem no sentido humanitárioda palavra, é, quando muito, um instrumento de perpetuação doegocentrismo e de aniquilação da benevolência, do respeito mútuo, dasolidariedade, da compaixão e da própria liberdade, eis que liberdadesem responsabilidade pelo Outro não existe, o que existe é umaclausura do próprio homem dentro de seu ego. O reconhecimento do Outro como sujeito é fundamental paraa constituição de uma humanidade humana, pois é na alteridade182 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Traduzido por Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 124.(RE) PENSANDO DIREITO 143

Marina Bertarello - Tanelli Fiorin de Jesusque se constrói o homem; um sujeito não é outra coisa que nãoser-em-relação, não é coisificado, não é substancializado, é umaininterrupta rede contínua de relações. E é o caráter relacional do serhumano que confere a essência da humanidade, sem relação cria-seum ser “ahumano”, encapsulado em si183. Nesse diapasão, pertinente é a reflexão do filósofo francês LucienSève: E, digamos, para já, apesar de uma longa tradição atualmente muito estafada, que já não podemos, de modo nenhum, fazer repousar o valor da pessoa na sua representação como uma substância – espiritual ou material. A ideia de substância é a de um dado subjacente que subsiste por si mesmo. Tudo contradiz uma tal caracterização naquilo que sabemos do ser humanamente homem. Ele não é dado, mas constrói-se. Nada de subjacente nele poderia ocupar o lugar de uma tal atividade. Ele é menos subsistente que existente. E não existe por si só, mas pelo outro, pelos outros, pelo gênero humano. [...] Ao desubstancializar a pessoa para fazer dela um nó de relações, pensa-se tê-la instalado no coração do mundo dos homens184. Inarredável a constatação de que o sujeito necessita do Outropara se constituir, não existe uma fórmula matemática que crie e recrieo sujeito a partir de um ciclo espontâneo, mas sim o que emergecristalino é o fato de o sujeito eclodir a partir das relações com osoutros, da imensa teia de comunicação existente no gênero humanoimprescindível à formação do homem enquanto sujeito ético. Mais:a própria vida não representa um estado isolado, muito menos umobjeto de contratação, mas, sim, consubstancia a cada instante umarede de interdependência mútua entre o Eu e o Outro.183 O filósofo canadense Charles Taylor enfatiza a consequência irrefutável de desencantamento que o individualismo e a razão moderna traz, o que torna o homem incapaz de tecer redes relacionais, de se preocupar com a comunidade e, enfim, de se libertar da cápsula em que o Eu habita. Impende os seguintes dizeres: “Hemos perdido el contacto con nosostros mismos y nuestro proprio ser natural, y nos vemos impulsionados por un imperativo de dominación que nos condena a una incesante batalla contra la naturaza tanto dentro de nosotros como a nuestro alrededor. Esta queja contra el <<desencantamiento>> del mundo ha sido articulada una y otra vez desde el período romántico, con su nítida sensación de que los seres humanos habían sido triplemente divididos por la razón moderna: dentro de sí mesmos, entre sí mesmos, y frente a la naturaleza”. TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. Traduzido por Pablo Carbajosa Peréz. Barcelona: Paidós Ibérica, 1994, p. 121- 122.184 SÈVE, Lucien. Para uma crítica da razão bioética. Traduzido por Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1994, p.67.144 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O SUJEITO ÉTICO E A RESPONSABILIDADE PELO OUTRO: EMERGÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA HUMANIDADE O próprio erigir do Eu depende do diálogo com o Outro, nãohá um Eu iluminado que consiga se sustentar apenas sobre o seuegocentrismo, a alteridade encontra-se emaranhada na formação doser como algo indissociável do Eu, pois como menciona o filósofoCharles Taylor, “o self tanto é feito como explorado com palavras; e omelhor para ambos são as palavras trocadas no diálogo da amizade.Na falta desta, o debate com o self solitário é um substituto muitopobre” 185. Não há nada que substitua o reconhecimento do Outro naconstrução do sujeito, poder-se-ia afirmar que o sujeito sequer existesem o vínculo relacional com o Outro; o Outro é condição primeirada própria existência do homem, na medida em que “o Outro corróiminhas certezas, me extrai de mim mesmo, delimita meu desespero eminha solidão aparentemente infinitos e eternos com sua ocorrência,e funda meu persistir na existência – minha subjetividade” 186, peloque se constata ser a alteridade fundamental para o erigir do homemhumano, sujeito da humanidade. Na verdade, o individualismo crê na criação de um ser potencialcapaz de subsistir por si só, independente dos Outros que o circundam,o que apenas intensifica uma centralização no mundo do Eu, nascoisas do Eu, na satisfação do Eu acima de qualquer objeção, poucoimportando os reflexos que o desejo insaciável do Eu acarreta noOutro. Vive-se a era da satisfação pessoal como forma de constituiçãodo sujeito, reduz-se o sujeito ao ser humano capaz de contratar; ocontrato, pode-se dizer, é o único vínculo relacional vital ao Eu doindividualismo, um Eu gerido para si, dentro de si. As palavras de Charles Taylor, na obra La ética de la autenticidad,alertam para os perigos da soberania do Eu, que cria um ser tolhidoda capacidade de se interessar pela sociedade, pelos que o cercam,nota-se: “Em otras palabras, el lado obscuro del individualismo supone185 TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Traduzido por Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997, p. 238. 186 SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000, p.179.(RE) PENSANDO DIREITO 145

Marina Bertarello - Tanelli Fiorin de Jesuscentrarse en el yo, lo que aplana y estrecha a la vez nuestras vidas,las empobrece de sentido, y las hace perder interés por los demás opor la sociedad” 187. O elemento fundante do sujeito é, inegavelmente, o reconhecimentodo Outro; a alteridade constitui o sujeito, não há sujeito ético fora docontexto da existência do Outro, não há o sentido de humanidade sema abertura para o próximo – e não apenas no sentido de solidariedade– mas na certeza de que o Outro funda o sujeito. O Outro está inseridona humanidade e é vã a tentativa do individualismo de rechaçar o Outropara fora do Eu, que acaba por criar um sujeito desumano que se voltacontra o próprio Outro constituidor de seu Eu. Sob tal argumento, cabetrazer à baila a conclusão de Edgar Morin acerca da ética que compõeo sujeito, de que “a ética para o outro reclama portanto, antes de maisnada, não remeter o outro para fora da humanidade”188. Assim, para que exsurja uma humanidade de sujeitoshumanos, éticos, conscientes de sua responsabilidade pelo Outro, éimprescindível que o homem reconheça o Outro como sujeito, queadmita à alteridade a categoria de elemento fundador do sujeito,substrato fundamental para o erigir de uma sociedade de sujeitoshumanos, possuidores da capacidade de pensar o Outro não comouma das partes de um contrato, mas como componente intrínseco daprópria subjetividade humana.O HOMEM ENQUANTO SUJEITO ÉTICO: ARESPONSABILIDADE PELO OUTRO PARA OEXSURGIR DA HUMANIDADE O homem apenas pode ser concebido como sujeito enquantoinserto na concepção do termo sujeito ético, ou seja, um ser humanoque reconhece o Outro, a relação de intersubjetividade Eu-Outro ea necessidade inequívoca de que o ser depende intrinsecamente187 TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. Traduzido por Pablo Carbajosa Peréz. Barcelona: Paidós Ibérica, 1994, p. 39-40. Em outras palavras, o lado obscuro do individualismo é a suposição de centralização no eu, o que, por sua vez, achata e estreita nossas vidas, as empobrece de sentido, e as faz perder interesse pelos demais ou pela sociedade (tradução livre).188 MORIN, Edgar. O método 6: ética. Traduzido por Juremir Machado da Silva. Porto Alegre, Sulina, 2005, p. 104.146 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O SUJEITO ÉTICO E A RESPONSABILIDADE PELO OUTRO: EMERGÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA HUMANIDADEdo Outro para sobreviver e que as escolhas do Eu refletem,invariavelmente, no Outro; enfim, um sujeito apenas é sujeito éticoquando assimila e incorpora a responsabilidade pelo Outro comocondição de possibilidade do Eu, como sustentáculo da humanidade. Todavia, o homem vivencia uma espécie de aeticidade, umacompleta ausência de qualquer senso de responsabilidade, deinigualável descaso pelo Outro; um ser humano fechado em si,perpetuador da ipseidade destrutiva e edificador de um tempoapocalíptico em que o homem é reduzido ao sujeito contratual,distante de qualquer senso ético de complacência pelo Outro, dondese admite a desumanidade como algo inerente aos homens, donde oprotagonismo pertence à solidão e ao possessivo. Nesse sentido, o professor Ricardo Timm de Souza descreve otempo da exacerbação absoluta do Eu como um tempo de vale-tudo,sem nenhum Outro, assim: Ora, ao ser humano – e quando falamos em “ser humano”, pensamos também em coletividades bem determinadas – circunstancialmente desprovido de qualquer consistência senão sua própria solidão, “inter-eras”, “pós-paradigmático”, sem passado, presente ou futuro, ou seja, sem nenhum tempo – o que significa sem nenhum outro – esta infeliz mônada, aureolada por seu desespero, cercada somente de suas posses e projeções, por mais gente que circule ao seu redor – cercada de tudo aquilo que ela confunde consigo mesma, foi “ensinada” a tal por um muito bem determinado sistema social – esta mônada nada mais pode esperar do que se encontrar em um tempo apocalíptico, a descida frenética da ribanceira, sem parada e sem retorno, um tempo de “vale-tudo”. O “vale-tudo” significa que o círculo já se fechou, ou seja, que a tautologia tornou-se finalmente verdadeira.189 Poder-se-ia asseverar que o indivíduo moderno se fechou nasua individualidade libertária, pelo que a liberdade é concebida comoo elemento motriz fundante da humanidade, e, sob o véu de uma189 SOUZA, Ricardo Timm de. Sentido e alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000, p.159.(RE) PENSANDO DIREITO 147

Marina Bertarello - Tanelli Fiorin de Jesusliberdade pura, permite-se o ultraje ao Outro porque o Eu libertáriopode tudo ilimitadamente, haja vista a responsabilidade pelo Outroconsubstanciar mero ato volitivo do indivíduo, um elemento secundárioà liberdade, donde a vontade do homem é anterior à alteridade. O pensamento da modernidade exclui qualquer possibilidade deconsideração da alteridade como elemento constitutivo do Eu, o Outroé visto como contingência, como algo dispensável à existência do Eu;em contrapartida, o Eu acredita erroneamente ser a liberdade seuelemento constitutivo, por isso a responsabilidade pelo Outro é vistacomo um complemento, uma opção da vontade do indivíduo e, muitasvezes, como mero ato de caridade. Nas palavras de Castor Bartolomé Ruiz, esta é a lógica degradanteda modernidade na relação Eu-Outro: A lógica da modernidade definiu que primeiro existe o eu natural com uma vontade livre e depois o eu se relaciona com o outro. O outro surge como algo histórico e não natural na existência do eu, isso significa que o outro é sempre contingente, dispensável para o eu, ao menos no âmbito da existência ontológica. O outro não forma parte da constituição natural do eu moderno, ou seja, a alteridade não é um constitutivo necessário para o eu. Aceita-se que seja uma dimensão importante e até necessária, mas ela é sempre secundária pois a relação da alteridade deriva da natureza livre do eu, ou seja, de uma natureza autossuficiente na sua formação como indivíduo e como sujeito. A relação de alteridade é considerada um momento posterior e secundário na existência do indivíduo. Consequentemente, a relação com o outro estará mediatizada pela liberdade do indivíduo uma vez que a liberdade é considerada o momento primeiro de sua existência natural190. A consideração do Outro como secundário revela-se equivocada,eis que a alteridade constitui o sujeito previamente; o Outro é anteriorao Eu e condição de existência do próprio Eu. E o sujeito ético apenasexsurge na onipresença do Outro, posto que “a ética, o impulso do190 RUIZ, Castor Bartolomé. Liberdade, Justiça e Alteridade: uma reflexão aberta a partir de E. Levinas. In: MAGALHÃES, Fernando (Org). Violência e perspectivas éticas da sociedade: ensaios sobre a subjetividade, cidadania e liberdade. Recife: Universitária da UFPE, 2009, p. 75-76.148 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011


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