O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOexercida pelo crime. O caminho de um direito penal mínimo é umcaminho também encontrado na subjetividade, mas que se manifestaem termos de moralidade objetiva. O conceito de coerção penal se dá no âmbito da antijuridicidadeque, por sua se vez, se situa na dimensão da moralidade objetiva,visto que nem todas as condutas antijurídicas são delitos33. Comoafirma Hegel na teoria da pena, a pena é uma consequência naturaldo delito enquanto uma vontade de supressão que surge em virtudeda vontade do criminoso, exteriorizada pelo crime, pela coação àliberdade de outrem. Ocorre que no âmbito da antijuridicidade tambémse encontra o dano, e este implica tanto uma coação legal quantoo crime, sendo que o dano é uma modalidade de injusto que nascedo próprio exercício de um direito do particular, que acaba por colidircom o interesse de outrem, fazendo surgir o conflito. A discussãosobre o advento de um direito penal máximo ou mínimo depende dofundamento da subjetividade, onde a moralidade vista sob a eticidadea qual se subordina o direito é que dará a configuração de quaiscondutas merecem ser penalmente punidas e quais as que não serão. Não se trata, portanto, de fundar a discussão num conceitode tipos penais de um direito abstrato, numa bisonha legalidade quevista a olhos tortos se confunda com a supremacia de um direitosobre a cultura, o costume ou a experiência social de um povo oucomunidade. Se Hegel pauta suas observações filosóficas sobre oEstado e sobre o Direito, antevendo, no caso do primeiro, a sociedadecivil, e no segundo, o direito privado, é porque Hegel não vê o direitoe crime como categorias jurídicas isoladas, mas, sim, como parteda experiência histórica por que passam todos os povos com suaslegislações. Direito e moralidade não podem ser vistos como entesabstratos, mas sim como consequência do exercício de liberdades,que, vistas como forma de Espírito Objetivo, já se tornaram partede uma experiência compartilhada entre os sujeitos na sociedade,traduzidas em ações e atos considerados historicamente34.33 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIARANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.103.34 HONNET, op, cit. p.101.(RE) PENSANDO DIREITO 49
Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento Machado Daí, aquilo que era crime no Estado romano difere sumariamentedo que é visto como delito no direito moderno, e de região para região,pois não é o direito que define o que seja crime, mas sim o espíritoda coletividade, por meio de sua moralidade exteriorizada, que irádefinir quais tipos de violações podem ser entendidas como umamanifestação de vontade que se exteriorizou propriamente, em suaessência, para coibir outras vontades, no sentido de tolher liberdades.A pena surge, então, como um fator de segurança jurídica, napreservação de liberdades, e não como um mero instrumento punitivo,destinado a combater um mal, já que o mal não existe juridicamente,pois em seu lugar encontra-se o injusto. Assim como a legalidade, o princípio da intervenção penalmínima tem seu fundamento na moralidade objetiva e nas diversasdefinições do injusto que podem ser encontradas na filosofia deHegel e no seu conceito de crime quando se pensam dois aspectosontológicos relevantes como integrantes deste princípio: o dafragmentariedade e o da subsidiariedade35. O primeiro preceitua quesomente os bens jurídicos mais relevantes devem ser tutelados pelanorma penal; enquanto que o segundo afirma que o direito penaldeve atuar subsidiariamente, ou seja, como ultima ratio, quandooutros ramos do direito não conseguem satisfatoriamente solucionar oconflito. Ora, foi visto no pensamento de Hegel que a definição de umato como criminoso dependerá externamente da gravidade com queesse ato é praticado, revelando a vontade do criminoso enquanto umaliberdade existente, que necessita ser suprimida, para a manutençãoda liberdade de outrem, na distinção entre dano e crime. Portanto,entre as diversas categorias de injusto, só deverá ser tratadapenalmente aquela conduta cuja exterioridade entre nos limites dequantidade e qualidade concebidos pela moralidade objetiva e querecebem o respaldo coletivo das diversas moralidades subjetivas dosindivíduos que compõem um povo ou nação que, em sua experiência35 BIANCHINI, Alice, PABLOS de MOLINA, Antonio Garcia, GOMES, Luiz Flávio. Direito penal. Introdução e princípios fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.285.50 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOhistórica, consideram algo dado como algo que merece ser punidofora do âmbito da simples indenização. O conceito de bem jurídico, portanto, visto sob a óptica privatistahegeliana, está relacionado com o conceito de posse e com o desejoda vontade de querer, no momento em que essa vontade é vítimade uma violência que entre na esfera das medidas protetivas deliberdades de caráter penal. Somente dessa forma se evitaria umEstado meramente punitivo, já que esse Estado é visto como produtoda experiência histórica de um povo e não como um ente absoluto eabstrato, um Leviatã que surge com existência própria, à revelia dosindivíduos, para protegê-los de seu estado de natureza. Dessa forma, um direito penal máximo seria incompatívelcom um Estado Democrático de Direito, como resultante do processohistórico de um povo, evoluído por meio da manifestação do EspíritoObjetivo. Se for pensado o direito como subordinado à eticidade deum povo historicamente determinado, saído do despotismo e entreguea uma nova e arrebatadora perspectiva democrática de convivênciasocial, formas punitivas abstratas, criadas aleatoriamente, semo devido embasamento na experiência social, seriam tidas comoalienígenas a um contexto de mundo jurídico cujo sistema encontra-seestruturado por demais na experiência coletiva, social e culturalmentedelimitada. Trabalhar as penas pelas penas seria ideologizar odireito politicamente, esvaziá-lo de seu conteúdo jurídico, pois suanormatividade estaria carente de substância, justamente por nãorevelar em seu interior o componente de moralidade que fundamentatodas as vontades compartilhadas intersubjetivamente, seja sob atutela do Estado ou não, além de ser um perigoso pressuposto paraum amanhecer totalitário.CONCLUSÃO Externa-se nestas linhas finais, que a filosofia consiste numponto de partida e não numa resolução dos problemas penais maiscandentes e relacionados com a imersão da sociedade numa perigosa(RE) PENSANDO DIREITO 51
Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento Machadocultura punitiva, pautada em punir por punir, e não em analisar osreais antecedentes da punição. O estudo filosófico da liberdade eda vontade pode servir como importantes chaves hermenêuticaspara se entender o processo de regulação de condutas por meio denormas penais e de que até que ponto a tutela penal é realmentenecessária, num ambiente social ditado por experiências históricasque, periodicamente, modificam a definição de delitos e suscitam umaprofunda e radical transformação do ordenamento jurídico, sob o riscode permanecer a sociedade presa ao autoritarismo de dispositivoslegais que pecam pelo sentido de autossuficiência, sem recorrer aseus substratos sociais. Não se discorda da necessidade da intervenção penalem uma realidade cuja gravidade enseja a formulação de penascorrespondentes às condutas violadoras de liberdades. Ocorre que énecessário distinguir, na gênese da violação, quais condutas merecem,racionalmente, a tutela penal, dada a fragmentariedade moral dasrelações sociais, e quais, conforme uma moralidade objetiva, merecemser efetivamente punidas. De qualquer forma, a visão do expedientepenal como algo limitado no âmbito de aplicação nas normas jurídicasé algo salutar nos meandros de um Estado Democrático de Direito ealgo desejável para aqueles que, assim como Hegel, consideravamo progresso como um rumo natural do desenvolvimento do EspíritoObjetivo de um povo em direção a sua humanidade e cada vez maisdistante de sua animalidade.REFERÊNCIASBIANCHINI, Alice, PABLOS de MOLINA, Antonio Garcia, GOMES,Luiz Flávio. Direito penal - Introdução e princípios fundamentais. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2009.BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel - direito, sociedade civil,estado. São Paulo: UNESP, 1991.FREITAS, Ricardo de Brito A. P. Princípio da legalidade penal eestado democrático de direito: do direito penal mínimo à maximização52 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOda violência punitiva. In: BRANDÃO, Claudio, CAVALCANTI,Francisco, ADEODATO, João Maurício Adeodato (coord.). Princípioda legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro:Forense, 2009.HEGEL, Georg Friederich. A razão na história - uma introdução geralà filosofia da história. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro,2001.______. Fenomenologia do espírito. Tradução Paulo Meneses, KarlHeinz Efken, José Nogueira Machado. Petrópolis: Vozes, 2007.______. Princípios da filosofia do direito. Tradução Orlando Vitorino.São Paulo: Martins Fontes, 1997.HONNETH, Axel. Sofrimento de indeterminação – uma reatualizaçãoda filosofia do direito de Hegel. Tradução Rúrion Soares Melo. SãoPaulo: Esfera Pública, 2007.LAFER, Celso Lafer. A reconstrução dos direitos humanos - umdiálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhiadas Letras, 1988.ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIARANGELI, José Henrique. Manual dedireito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.(RE) PENSANDO DIREITO 53
D(REI)RPEENSIATNDOO A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM) POSSIBILIDADES The expansion of Penal Law in the post-modern society of risk: the penal control and its possibilities José Francisco Dias da Costa Lyra36Resumo:Pretende-se, com o presente estudo, realizar uma reflexão sobre a expansão do controle penal na modernasociedade do risco. Nessa esteira, criticam-se os recentes rumos expansivos do Direito Penal, que seconverteu em arma política de combate aos crescentes riscos enfrentados pela sociedade atual. O entornosocial e político conferem ao controle penal a missão de controlar riscos sistêmicos, o que leva o DireitoPenal a uma situação de (des)controle, com preocupações pertinentes aos penalistas.Palavras-chave: Pós-modernidade. Direito Penal. Expansão. Sociedade do risco.Abstract:It is intended, with the present study, to do a reflection on the penal control expansion in the post-modernsociety of risk. On this wake, recent Penal Law expanded directions are criticized, converted in a politicalbattle weapon against the rising risks which are faced by the current society. The social and politicalsurrounding give to the penal control the mission of controlling systemic risks, leading the Penal Law to asituation of de(control), with concerns pertinent to the penal law experts.Keywords: Post–modernity. Penal Law. Expansion. Society of risk.36 Doutor em Direito pela Unisinos. Juiz de Direito, Professor de Direito Penal IESA-Santo Ângelo e FEMA- Santa Rosa. Mestre e Especialista em Direito pela UNIJUI-RS e IESA-RS. E-mail: [email protected] .(RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011 • p. 55-78
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento MachadoINTRODUÇÃO O cenário atual oferece uma representação social expansivado Direito Penal, que se constitui em uma “rara unanimidade”, ouseja, é consensual, compartilhando as virtudes atuais do controlepenal. O fato é que se vive numa sociedade do controle37, na qualse tem intensificado, como nunca, o recurso ao Direito Penal paracombater a criminalidade que se intensifica. E o fenômeno expansivonão é monocausal, pois não está relacionado com um só fator, nãodecorrendo, portanto, de orientação de um Estado totalitário. Aocontrário, o movimento é fruto de diversas orientações e saberes queacabam convergindo ao denominador comum que deságua em umaverdadeira proposta securitária, os quais, como refere Silva Sánchez,se integraram nesse novo consenso social sobre o papel do DireitoPenal. Assim, as premissas ideológicas (Direito Penal simbólico) eos movimentos totalizantes de “lei e ordem” não desapareceram docenário social; ao contrário, passaram a se acomodar, “comodamente”,nesse novo consenso38. Dito de outro modo, a expansão do DireitoPenal, que é característica marcante das sociedades pós-modernas,está relacionada com “causas mais profundas”, na precisa observaçãode Silva Sánchez, para quem a expansão deita suas raízes no modelo37 Conforme Deleuze, a sociedade atual, diferentemente da sociedade da disciplina de Michel Foucault, caracteriza-se por estar submetida a um controle intensivo, para além das instituições fechadas como a prisão e a fábrica. Diz com o tempo das câmeras de vigilância, tornozeleiras eletrônicas, vedação do acesso de pessoas a determinados locais, agora restritos ao público em geral. Em uma palavra, o controle é total e disseminado pela sociedade. E tal mutação segue uma nova formatação do sistema capitalista, que se transformou do industrial ao financeiro, deslocando-se, portanto, da fábrica à empresa. Daí por que o controle deslizou das instituições fechadas, tomando conta da sociedade. Importa notar que a sociedade do controle implica a superação da sociedade da disciplina, analisada por Foucault, que, na sua genealogia do poder, afirmou que a fábrica e a prisão, como as grandes instituições fechadas do século XVI ao XVIII, detinham a função primordial de disciplinar corpos (formar corpos dóceis), adaptando-os aos sistema da fábrica, intensificando o processo de industrialização, no que eram auxiliadas por outras instituições como a escola, o hospital, a família etc. A modo de sintetizar, pode-se afirmar, seguindo o pensamento de Foucault e Deleuze, que, na sociedade da disciplina, o controle dirigia-se ao corpo do desviado, buscando corrigi-lo, seguindo uma lógica inclusiva. Já na sociedade do controle, a atual, não se fala mais em disciplinar ou educar, mas, sim, em controlar grupos perigosos e de risco. O controle, portanto, é atuarial e flexível, seguindo a lógica da empresa. Consultar, a respeito do tema, FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 29. ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 117-195. Também, do mesmo autor, A verdade e as formas jurídicas. 2 ed. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1999. p. 79-126. Igualmente, no trato da sociedade do controle, DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: 34, 2008, p. 209-226. Ver, de igual sorte, DE GIORGI, Alessandro. El gobierno de la excedencia: Postfordismo y control de la multitud. Tradução de José Ángel Brandariz García e Hermán Bouvier. Madrid: Traficantes de sueños, 2006. p. 53 e seguintes.38 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 25.56 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADESsocial, notadamente a partir de novas expectativas que as camadassociais têm em relação ao papel conferido ao Direito Penal. Issoculmina, no âmbito cultural, na formação de uma verdadeira demandasocial por mais proteção e segurança em frente aos novos riscos39 40. Nesse passo, razão assiste a Silva Sánchez quando afirma queesse é o ponto de partida real para análise e crítica do tema que nãotem nada a ver com os movimentos de Law and order, que davamrespaldo às políticas criminais totalizantes da década de 70. A pedrade toque é, portanto, a existência de uma crescente demanda socialpor proteção e segurança, que é facilmente detectada na sociedadehodierna. Nesse diapasão, Silva Sánchez, dissertando sobre as causas daexpansão do Direito Penal nas sociedades pós-industriais, conferedestaque à questão da aparição de novos interesses ou bens jurídicos,especialmente aos bens atualmente escassos como o meio ambiente,ou bens coletivos ou difusos, relacionando-os ao aparecimento denovos riscos e à institucionalização da insegurança, que, de resto,não deixam de ser produtos da sociedade do risco. Também aponta osurgimento de uma sociedade de sujeitos passivos, dependentes doEstado de bem-estar, que valorizam, de forma essencial, a questão dasegurança, o que implica a redução do risco permitido na sociedade,havendo, inclusive, uma identificação maior com as vítimas. Tal fatoreforça o consenso punitivo, o que, por fim, descansa no descréditode outras instâncias de proteção, preponderando a resposta penal.Em suma, pode-se referir que a aventura securitária é produto dapós-modernidade ou da modernidade tardia, que, no ambiente derelações sociais, econômicas e culturais, trouxe consigo um conjuntode riscos, complexidade e insegurança, bem como problemas docontrole social, que afetaram, sobremaneira, o Direito Penal, que,agora, não mais discute os efeitos da sanção penal, mas se vê envoltona missão de dispor de novas formas de prevenção e minimização39 Ibid., p. 23.40 No mesmo sentido, é o pensamento de GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008, especialmente p. 41-128. Também, YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 15-90.(RE) PENSANDO DIREITO 57
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento Machadodos riscos, os quais, no cenário da pós-modernidade, não paramde crescer. Dito de outro modo, a pós-modernidade e sua inerentecomplexidade trouxeram ao controle penal desafios questionadoresacerca da possibilidade de controlar, de forma efetiva, os novos riscosda sociedade pós-industrial. Dessa forma, em um primeiro momento, o estudo se deterána questão da pós-modernidade e os riscos que o processode modernização trouxe à tona, afetando, portanto, o tema dasegurança. Em um segundo momento, tratar-se-á da possibilidadeou impossibilidade de o Direito Penal enfrentar, como prima ratio, osriscos da modernidade.PÓS-MODERNIDADE E A COMPLEXIDADEMODERNA Não há consenso entre os pensadores acerca da nossasociedade atual quanto a ser moderna (ou de modernidade tardia)ou pós-moderna. Aliás, diga-se que não há nem convergência sobreo fato de que se tenha passado pelo estágio da modernidade, ouseja, se momento posterior ao modernismo se apresenta. Giddens41,nesse particular, refere que a modernidade pode ser entendidacomo a aproximação do mundo industrializado, com o emprego daforça material e a maquinaria da produção42. Segundo ele, o mundomoderno é um mundo em disparada, notadamente pela ausência deseparação entre tempo e espaço, o que não acontecia nas ordens pré-modernas ou tradicionais, nas quais a vida social era influenciada porpráticas e conceitos preestabelecidos, provocando um “desencaixe”das instituições sociais, apartando as iterações das práticas locais43. No entendimento de Habermas44, a modernidade é um projeto41 BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997.42 Nesse sentido, ver JAMESON, Fredric. Uma modernidad singular: ensayo sobre la ontologia del presente. Tradução de Horacio Pons. Barcelona: Gedisa, 2004. p. 22, quando a afirma que a modernidade sempre teve algo a ver com a tecnologia e progresso, referindo que o “ el único significado semântico satisfactório de la modernidade está em su asociación com el capitalismo”.43 Veja-se, nesse sentido, GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Tradução de Maria Luiza X de A. Borges. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 18-23.44 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Tradução de Ana Maria Bernardo et al. Lisboa: Dom Quixote, 1990. 58 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADESinacabado, tema polêmico, multifacetado, que se apresenta com odesenvolvimento das sociedades modernas, que se organizaram aoredor da empresa capitalista e do aparelho burocrático do Estado. Noprojeto de modernização do mundo, o quotidiano foi arrebatado pelaracionalização cultural e pela social, que dissolveram as formas devida tradicionais, causando uma modernização do mundo da vida,numa nova socialização para formação de identidades abstratasdo eu e, portanto, individualizadas. Enfim, conforme o pensamentode Habermas, a idade moderna diz com a revolução, progresso,emancipação, que romperam radicalmente com as formas de vida etradições anteriores, implicando uma nova subjetividade (liberdade ereflexão), que se expressa no individualismo e autonomia de agir; daí aautorrelação do sujeito cognoscente e a atitude especulativa, peculiara uma nova ciência que se instaura. Aqui, prepondera o princípio daregulação moderna, que se baseia no elemento do mercado, aliado àracionalidade cognitivo-instrumental da ciência45. Importa destacar que a expressão pós-moderno mobiliza diversasmatizes, que são contraditórias, que vão da admissão à repulsado termo. Por vezes, o termo é relacionado com as promessascivilizatórias não cumpridas e o “mal-estar46” que isso tem causadoà humanidade47. Touraine, nesse sentido, afirma que a sociedadepós-moderna é uma sociedade pós-industrial, que deu ênfase àciência e à questão tecnológica, e que hoje se configura como uma p. 11-14. Para Habermas, modernização relaciona-se “a um feixe de processos cumulativos que se reforçam mutuamente: à formação de capital e à mobilização de recursos, ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à formação de identidades nacionais, à expansão de direitos de participação política, de formas urbanas de vida e de formação escolar formal refere-se à secularização de valores e normas, etc”.45 Uma abordagem crítica da regulação moderna é dada por SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 76-110, para quem, no campo da regulação moderna, o princípio do mercado atingiu pujança sem precedentes, extrapolando o econômico, colonizando o princípio do Estado e da comunidade, restando o cidadão esmagado pelo conhecimento jurídico e hermético. Do mesmo autor, consultar Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência.. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 284-327.46 Ver BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 23. Baumann ensina que a modernidade criou uma nova ordem artificial na “era moderna”, notando que a mudança radical foi promovida pelo mercado inteiramente organizado na procura do consumidor, que representa um teste de “pureza”, só sendo incluídos os que passarem pelo teste do mercado de consumo (capazes de consumir). Os excluídos do jogo do mercado são a “sujeira da pureza pós-moderna”.47 Ver GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna: introdução a uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 24, para quem a modernidade mobiliza emoções e é significante que “possua quantos forem os pensadores e os jornalistas”, daí a falta de uniformidade quanto ao conceito.(RE) PENSANDO DIREITO 59
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento Machadosociedade centrada na troca de informações. Nela, segundo Touraine,a ciência levou à “desmodernização” (reverso da modernização), querepresenta a perda do controle de si mesmo, pela combinação docrescimento econômico e do individualismo moral com a destruiçãode subjetividades pelo imperialismo econômico48. De outro lado, centrando o foco na comunicação alavancadapela tecnologia da informação, especialmente pela internet, asociedade pós-industrial, típica da modernidade, é denominada porManuel Castells49 como a sociedade da informação, que, num mundoconectado, funciona em rede. Nela, a fonte da produtividade e dacompetitividade estaria no controle e processamento da informação. A modo de sintetizar, a pós-modernidade representa a passagemda sociedade antiga para a moderna (ou a evolução de uma para aoutra), que teria iniciado no século XVIII, embora muitos autores adatem nos idos dos anos de 1950 à década de 70, e que se relacionacom evolução, progresso, desenvolvimento, globalização econômica,mundialização da economia, promovendo, dessarte, uma rupturacom a ordem social existente até então, no caso, a tradicional. Eisso desencadeou um processo de fragmentação, com o fim dosgrandes relatos herdados do Iluminismo francês e do Romantismo doSéculo das Luzes, ante o “desencantamento da sociedade”50 51. Há,sim, pluralidade de relatos ou de pequenos relatos, não sendo maispossível socorrer-se da dialética do espírito (e, pois, da subjetividadee consciência do cogito de Descartes) e da emancipação dahumanidade52. A fragmentação moderna enfraqueceu a pretensãode universalidade dos grandes relatos. Os novos ares são de48 TOURAINE, Alain Touraine. Crítica da modernidade. 7. ed. Tradução de Elia Ferreira Edel. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. p. 334-342.49 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. Tradução de Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2008. v. 1., p. 71-113. Também do mesmo autor: Fim do milênio. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt e Roneide Venâncio Majer. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. v. 3, p. 416-437. Para Castells, a era da informação constitui-se no lapso de tempo do século XX, sendo que a revolução da tecnologia da informação acentuará seu processo transformativo no decorrer do século XXI, que será marcado pela conclusão da infovia global, pela telecomunicação móvel e pela capacidade de informática, difundindo o poder da informação. Também, segundo ele, será o século do pleno progresso da revolução genética, com a informação penetrando nos recantos da vida, com manipulações substanciais na matéria viva do homem.50 Ver LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1983. p. 27, quando, sinaliza a necessidade da construção de uma nova sociologia do direito para as sociedades complexas, abandonando qualidades materiais em princípios, adotando-se qualidades em axiomas formais.51 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 9. ed. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p 16.52 Ibid., p. 111.60 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADESindividualismo exacerbado (sociedade de consumo de que fala JeanBaudrillard) e projetos pessoais de vida e de pluralismo jurídico53.Entretanto, o projeto civilizatório encontra-se em xeque, uma vez que ahumanidade vive rodeada de conflitos étnicos e guerras e com arbítriodo biopoder. Sérias dúvidas se antepõem à emancipação humana dosgrilhões da violência estrutural e opressão, que estão por detrás daracionalidade iluminista54.A MODERNIDADE E O SEU PRODUTO: O RISCO“CONTROLADO” PELO DIREITO PENAL A modernidade, de outra banda, quando relacionada com oespaço da contingência (ato de que as possibilidades das novasexperiências da vida possam ser diferentes das anteriores, enganosas,especialmente num ambiente dotado de alta complexidade), traz, noseu bojo, a problemática do risco, que está ligada à introdução de novastecnologias no mundo, a ponto de a sociedade atual ser denominadade sociedade do risco, mormente pelo impacto do desenvolvimentotecnológico levado a cabo, bem como pelo chamado público do temana atualidade55. Para Luhmann, o risco surge da tecnologia e seu paradoxo, ouseja, da relação das possíveis utilidades com os possíveis danosque são inerentes à tecnologia, notando que se começou a falar dorisco ao longo do período de transição da Idade Média até o inícioda modernidade56. Nesse contexto, Luhmann afasta-se da concepçãoque associa o risco à questão da seguridade em retórica política,afirmando “que, abaixo das condições atuais do mundo, não se podefazer outra coisa que aventurar-se e correr riscos”57. Em suma, o risco53 HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 17. ed. São Paulo: Loyola, 2008. p. 19.54 Ibid., p. 23-2455 Ver LUHMANN, Niklas. Sociologia del riesgo. Tradução de Silvia Pappe, Bruhilde Erker e Luis Felipe Segura. 3 ed. México: Universidade Iberoamericana, 2006. p. 131.56 Ibid., p. 53. Para Luhmann, a palavra risco está relacionada com a tomada de decisões que se vinculam ao futuro, ainda que não se possa conhecê-lo suficientemente, nem sequer o futuro produzido pelas decisões. Enfim, a temática risco envolve a necessidade de decidir sobre o futuro, sem se dispor das informações suficientes para orientar a decisão, que passa a ser contingente, dando margem para o acerto ou erro, que são distinções da mesma forma. Ibid., p. 57-6157 Ibid., p. 65.(RE) PENSANDO DIREITO 61
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento Machadoé uma variante de uma certa tendência a toda situação de decisão58,daí o porquê de Luhmann ligar o risco à questão da tomada dedecisão, uma vez que toda eleição implica a seleção de uma distinçãode risco59. Luhmann refere que a discussão pública sobre a questão do risco,que é componente sociológico fundamental da sociedade moderna,deve ser feita de uma maneira menos apaixonada e alarmista60, umavez que, para as formas risco/seguridade e risco/perigo e as devidasdistinções, “é válida a seguinte afirmação: não existe nenhumaconduta livre de risco”61. Com isso, Luhmann afasta-se do movimentode crítica da sociedade do risco, que é identificado sob o título da“modernidade reflexiva” e que tem Ulrich Beck62, dentre outros63, comoseu representante exponencial. Beck, por outro lado, centrando-se na modernidade reflexiva,entende que o processo de industrialização, implementado pelamodernidade, especialmente no final do século XX, pensou anatureza como algo que se dá fora da sociedade, como algo dado,58 Ibid., p. 66.59 Ibid., p. 67, fala em “risco da decisão”, distinguindo do perigo aduzindo que este se localiza no entorno.60 Ver, no trato da relação do Direito Penal e novos riscos tecnológicos nas sociedades pós-industriais, GONZÁLES, Carlos J. Suarez. Derecho penal y riesgos tecnolóligos. In: ZAPATERO, Luiz Arroyo; NEUMANN, Ulfrid; MARTIN, Adán Nieto. (Org.). Crítica y justificación del derecho penal em el cambio de siglo. Cuenca: Ediciones de la Univesidad de Castilla-La Macha, 2003. p. 289- 297. Com efeito, Gonzáles refuta os axiomas de Beck, referindo que resultam, provavelmente, falsos, uma vez que os riscos, qualitativamente, têm diminuído pelos indicadores sociais de qualidade de vida e desenvolvimento humano: longevidade, índices de mortalidade infantil, saúde, controle de enfermidades. Para Gonzáles, os riscos sempre existiram. O problema atual não diz com um incremento objetivo dos riscos, senão com um aumento da percepção dos riscos, mormente pelo contágio midiático do medo impulsionado pela mídia. Ver p. 294-295. No mesmo sentido, PRITTWITZ, Cornelius. Sociedad del riesgo y derecho penal. In: ZAPATERO, Luiz Arroyo; NEUMANN, Ulfrid; MARTIN, Adán Nieto. (Org.). Crítica y justificación del derecho penal em el cambio de siglo. Tradução de Adán Nieto Martín e Eduardo Demétrio Crespo. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilha-La Mancha, 2003. p. 259-287. Prittwitz reputa de catastróficas as previsões de Beck, dizendo que as observações deste são mais políticas do que sociológicas, adotando, por outro lado, os ensinamentos de Luhmann. Ibid., p. 261.61 LUHMANN, Niklas. Sociologia del riesgo. Tradução de Silvia Pappe, Bruhilde Erker e Luis Felipe Segura. 3. ed. México: Universidade Iberoamericana, 2006. p. 74. Luhmann refere que não mais existe a absoluta seguridade, motivo pelo qual, mesmo com mais conhecimento e investigação, não se pode passar do risco para a seguridade.62 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Tradução de Jorge Navarro. Barcelona: Paidós, 2006. p. 12. O autor assinala que o produto da modernidade não é mais a pobreza e a exclusão, mas o fato de que se vive sob o signo do medo, estado máximo do desenvolvimento da civilização, que é fruto da individualização e da desigualdade social, que é herança do processo de modernização. Mais adiante, aduz que as ameaças da civilização com o processo de industrialização fazem surgir um novo reino das sombras, uma vez que não mais se está em contato com espíritos malignos (como na antiguidade), mas exposto a radiações, bebem-se toxinas e se vive perseguido pelo medo de um holocausto atômico. p. 103.63 Esse também é o pensamento de GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Tradução de Maria Luiza X de A. Borges. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 33. Giddens entende que viver numa era global significa enfrentar uma diversidade de situações de risco, pois se habita um mundo em que o perigo é criado pelo homem, e que é tão ameaçador como os que vêm de fora, especialmente da natureza.62 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADESum “equipamento interior do mundo civilizatório”, que restou destruídoou ameaçado nas suas condições naturais de reprodução. No seupensamento, “os problemas do meio ambiente não são problemasdo entorno, senão (em sua gênese e em suas consequências)problemas sociais, problemas do ser humano, de sua história, desuas condições de vida, de sua referência ao mundo e à realidade, deseu ordenamento econômico, cultural e político”64. Assim, Beck temque a “modernização reflexiva” inaugura uma nova época, que indicasuperação do paradigma da sociedade industrial, que se desvanececom o surgimento de outra que implica a (auto)destruição criadora daépoca industrial, que vem do trunfo da modernização ocidental. E issolevou a uma nova desordem mundial, principalmente pelo fato de queuma grande quantidade de países e culturas ainda não alcançaramum nível satisfatório de seguridade e racionalidade, democracia ebem-estar65. Em uma palavra, a modernidade reflexiva de Beck oferece potentecrítica ao que ele denomina “absolutismo da própria modernizaçãoda sociedade industrial” que, com o advento da globalização emundialização da economia, implica a autodestruição dos avançosda industrialização, potencializando destruição da natureza, divisãointernacional do trabalho (e o desemprego que causa, a ponto deo capitalismo tardio prescindir do trabalho) e a fome66. A indústriamoderna envelhece, e a magia técnica sofre um desencanto desecularização, surgindo a segunda modernidade67. Em decorrênciada modernização autônoma, em que se vive, surge a sociedade dorisco, que, no entendimento de Beck, é designada como uma fasedo desenvolvimento da sociedade, que, através de uma mudançana dinâmica de produção, produz riscos políticos, ecológicos eindividuais, que, cada vez mais e em maior proporção, escapam de64 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 2006. p. 115. Diz ainda o autor: “Ao final do século XX há que dizer que a natureza é sociedade, que a sociedade é (também) natureza. Quem segue falando da natureza como não sociedade fala de categorias de outro século, as quais já não captam nossa realidade.” p. 114.65 Ibid., p. 223-224.66 BECK, Ulrich. O que é globalização? equívocos do globalismo: respostas à globalização. Tradução de André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 71-119.67 BECK, op. cit., p. 225.(RE) PENSANDO DIREITO 63
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento Machadocontrole e proteção. A sociedade do risco é, portanto, uma formareflexiva, cujo desenvolvimento, do ponto de vista teórico-social e dediagnóstico cultural de um estado da modernidade”, provoca ameaçasà sociedade mundial68. Em suma, pode-se dizer, em uma apertada síntese, que, nopensamento de Luhmann e Beck, há um consenso em caracterizar anossa sociedade contemporânea como sendo uma sociedade do risco.Nesse passo, Luhmann oferece uma visão mais “natural” do risco, que,para ele, deve ser experimentado e controlado. Já Beck aporta fortecrítica ao modelo de modernização capitalista, que é entendido comoo principal elemento do risco atual, dando destaque à destruição danatureza e à pobreza e exclusão social, defendendo uma mudança deorientação no sistema capitalista de produção. Também pode-se referirque o processo de globalização concorre para a produção de riscos,principalmente pela recodificação da soberania do Estado, uma vezque forja Estados debilitados financeiramente. Isso reafirma o contextode crise regulatória do Estado e de seu direito69, que é consequênciado esfacelamento do Estado de bem-estar social num novo mundoatual, de fronteiras invisíveis, que convive com uma avalanche deinformações, consistindo em um movimento desenfreado. Na lição deBauman, esse fato promove uma festa consumista no Norte rico e umsentimento de desespero e exclusão no resto do mundo, o que surgeda contemplação de todo um espetáculo de riqueza em um extremo,e de miséria, em outro70. Com efeito, o espaço da modernidade é o espaço do risco,da contingência, mas também demarca uma outra realidadeemergente, que é o desmonte (ou crise) do Estado social. E, como dito esfacelamento do Estado intervencionista, vão-se embora aspromessas desenvolvimentistas de uma sociedade planificada eigualitária. Desaparece o seguro coletivo que o Estado social havia68 BECK, op. cit., p. 203-204.69 ROCHA, Leonel Severo, SCHWARTZ, Germano, CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 14. Consultar também de ROCHA, Leonel Severo. Uma forma para a observação do direito globalizado: policontexturalidade jurídica e estado ambiental. In: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. Programa de Pós-graduação em Direito Unisinos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p. 143.70 BAUMAN, Zygmunt. Archipiélago de excepciones.Traduçao de Albino Santos Mosquera.Barcelona: Katz, 2008. p. 12.64 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADESoferecido até então e entra em cena a desregulamentação dosmercados laborais. Instala-se um momento de precariedade, não sóde uma periferia precária, mas também o de desestabilização dasestáveis. Segundo Castel, “a precarização do trabalho é um processocentral, comandado pelas novas exigências tecnológico-econômicasda evolução do capitalismo moderno”71. É esse contexto sociológicoque agudiza ou desata um pânico pela segurança pessoal, até porquenão se pode mais contar com a rede protetora do Estado. Problemascomo exclusão, doença e desemprego passam a integrar a biografiaindividual do sujeito72, não se tratando, portanto, de questões sociais. Asegurança comunitária desliza para uma segurança individual, dondesurgem imensas doses de insegurança e medo, bem como de umacompleta insensibilidade ao desvio. O outro desviante se converte emtema da campanha por segurança73.MODERNIDADE, RISCO E O (DES)CONTROLEPENAL: O SURGIMENTO DA CRIMINOLOGIA DOOUTRO Esse contexto de crise do Estado de bem-estar, característico dapós-modernidade, trouxe importantes reflexos à política criminal, umavez que implicou uma revisão/superação do previdenciarismo penal,o qual está relacionado às políticas econômicas e sociais do WelfareState. Dito de outra maneira, se o Estado social detinha compromissode garantir o trabalho e combater as desigualdades sociais inerentesao sistema capitalista, ou seja, se possuía um compromisso coma seguridade social e previdenciária, isso como forma de retirara cidadania da sua posição vulnerável, com o capitalismo tardio71 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 6. ed. Tradução de Iraci D. Poleti. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. p. 526.72 Conforme BECK, Ulrich. Viver a própria vida num mundo em fuga: individualização, globalização e política. In: GIDDENS, Anthony; HUTTON, Will (Org.). No limite da racionalidade: convivendo com o capitalismo global. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 235-248. No pensamento de Beck, viver a própria vida (individualização, biografia individual) incita uma responsabilidade pessoal inclusive para os desastres sociais (doença, vício, desemprego e outros desvios). Dessarte, os problemas sociais podem ser transformados diretamente em disposições psicológicas: sentimento de culpa, ansiedades, conflitos e neuroses.73 BAUMAN, Zygmunt. Archipiélago de excepciones.Traduçao de Albino Santos Mosquera.Barcelona: Katz, 2008. p. 73-76.(RE) PENSANDO DIREITO 65
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento Machadoe sua ideologia neoliberal, o Estado se desincumbe do ideal deressocialização ou (re)inclusão do delinquente. Enfim, com a pós-modernidade, abandona-se o ideal correcionalista, que enxergavao crime como um problema social e entendia que, com a soluçãodas desigualdades sociais e “correção” do indivíduo, via intervençãoestatal, efetivamente, se combatia a criminalidade74. O sentimentoatual é o de que a melhor solução para a crescente criminalidadeé segregá-la ou inocuizá-la, consolidando o império da cultura docontrole. Dessarte, a criminalidade e a política criminal na pós-modernidadesão informadas pelo fim do compromisso com a seguridade eprevidência, ao contrário do que ocorria na idade do capitalismoindustrial, que se pautava pelo desiderato de reduzir as desigualdadessociais e, pois, por um ideal reabilitador. Nesse passo, Garland apontaque a mudança de rumo no controle do crime é influenciado não sópor políticas institucionais, mas também pela mudança social e culturaldo “sinal da pós-modernidade”. Para Garland, o mundo desenvolvidono último terço do século XX traz consigo riscos, inseguranças, queassumiram papel crucial na cambiante resposta ao crime.75 Com efeito, nesse particular, Garland faz uma interessanteaproximação, dizendo que a dinâmica do controle do crime reproduzum certo tipo de ordem social nas sociedades pós-modernas. Portanto,na situação atual, o controle do crime foi afetado pela mudançasocial, bem como pelos mecanismos específicos por meio dos quaisa política criminal foi se alinhando às relações sociais e culturaiscontemporâneas.76 77 Dessarte, o controle do crime e suas mudanças (melhor dizendo,o seu exacerbamento) não provêm apenas de uma orientação políticaou de políticas públicas. O processo também é impulsionado por uma74 Conforme DE GIORGI, Alessandro. Tolerancia cero: estratégias y prácticas de la sociedad de control. Tradução de iñaki Rivera y Marta Monclús. Barcelona: Virus Editorial, 2005. p. 43-73.75 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 33-34,76 Ibid., p 37.77 Não se pode olvidar que Garland parte da análise das respostas norte-americanas e britânicas no controle do crime, bem como do mesmo substrato social e cultural. Todavia, sua análise se encaixa nas de outros autores como Löic Wacquant e Nils Christie, os quais, nas suas observações, não se limitam tão só aos Estados Unidos e Reino Unido.66 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADESnotável mudança social e cultural, que tem alterado as relações sociaisnas sociedades. Nesse ponto, Garland afirma que, no contexto atual, ocontrole do crime “foi moldado por duas forças fundamentais: o modoespecial de organização social da pós-modernidade e a economia demercado e políticas sociais conservadoras que dominaram os EstadosUnidos e Grã-Bretanha na década de 1980”.78 79 O período marca o surgimento de um novo modo de controlee de um modo econômico de tomada de decisões, legitimando-sepolíticas antiprevidenciárias “e para uma concepção dos pobres comouma subclasse social não merecedora de apoio”.80 No modo de umapequena síntese, com Garland, pode-se afirmar que as mudançasde orientação da política criminal nos últimos 20 anos não foramconduzidas por orientações criminológicas, mas, sobretudo, por forçashistóricas que transformaram a vida social no final do século XX. E asforças históricas são a pós-modernidade, que é representada pelasmudanças sociais, econômicas e culturais, e pelo neoliberalismo(mercado livre), que sobreveio como uma resposta liberal à crise doEstado social. Combinou-se aumento da criminalidade e insegurança,desafiando a legitimidade e efetividade do Estado de bem-estar, o querepercutiu, sobremaneira, na forma da gestão da criminalidade.81 82 De efeito, a pós-modernidade do século XX e as novas políticaspor ela engendradas modificaram, portanto, a forma com que asorganizações pensavam o crime e a pena, a justiça e o controle.78 Ibid., p. 36.79 Nesse sentido, também o entendimento de RIPOLLÉS, José Luis Díez. La política criminal em la encrucijada. Montevidéu: IBDEF, 2007. p. 70, quando sinaliza que o novo modelo penal, que ele denomina de “seguridade cidadã”, próprio da sociedade do risco em que se vive, parte da análise de Garland, especialmente no que diz com as observações de Garland quanto a mudanças nas crenças e formas de vida da sociedade moderna, que, ao fim e ao cabo, transformaram a política criminal.80 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 38.81 Como refere GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p 182, “neste novo contexto político, as políticas previdenciárias destinadas aos pobres foram paulatinamente consideradas luxos onerosos, que os contribuintes trabalhadores não podiam mais sustentar. O Corolário disso foi que as medidas penais-previdenciárias para os criminosos foram tachadas de absurdamente indulgentes e inócuas”. Ibid., p. 182.82 Esta leitura também é de BERGALLI, Roberto. Las funciones del sistema penal en el estado constitucional de derecho, social y democrático: perspectivas sociojurídicas. In: BERGALLI, Roberto (Org.). Sistema penal y problemas sociales. Valencia: Tirant lo Bllanch, 2003. p. 25-79. Refere Bergalli que, em face de pós-fordismo e já em pleno auge da dualização com a polarização da riqueza e aguda difusão da miséria, a problemática dos sistemas penais entram em um período de globalização, nos quais os seus efeitos são sentidos no mundo. Nesse contexto, os cárceres europeus se converteram em casa de contenção de imigrantes clandestinos e de pessoas afetadas pela marginalização e exclusão social. Ibid., p. 60-61.(RE) PENSANDO DIREITO 67
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento MachadoAbandona-se a imagem recorrente do criminoso como um produtodo meio, pessoa necessitada, ociosa e desajustada, tornando-seagora uma fonte de medo, mais ameaçadora, como a dos criminososrecalcitrantes, drogados e predadores, para os quais a comunidade emgeral possui intensa sensibilidade. O sentimento piedoso que outrorase identificava com o criminoso deslocou-se para a vítima e ao públicoatemorizado. “Em vez do idealismo e da humanidade, as discussõesde política criminal passaram a ser inspiradas pelo ceticismo para coma reabilitação, pela desconfiança com os especialistas em penalogiae pelo reconhecimento da importância e eficácia da pena [...]. Nestavisão reacionária, o problema subjacente da ordem era visto nãocomo um problema durkheimiano de solidariedade, mas como umproblema hobbesiano de ordem, cuja solução deveria ser uma versãocentralizadora e disciplinar do Estado-Leviatã”.83 Assim, o último quarto do século XX marca a emergência de umanova racionalidade não correcionalista do controle do crime, uma novacriminologia e novas filosofias da pena, agora centradas no combatedos novos riscos da pós-modernidade, mais centradas na pessoa davítima e na defesa da sociedade, em detrimento do criminoso. É anova criminalidade: a do “outro”84, na qual se demoniza o criminoso ese preconizam intervenções preventivas, com maciço apoio ao poderpunitivo do Estado (que passa a ser dotado de uma funcionalidadeilimitada), num ambiente de dramatização midiática dos medospopulares. O criminoso não é mais uma pessoa normal, desajustada,vulnerável e propensa ao desvio (como pensava a corrente dacriminalidade do “eu”). Ao contrário, o “outro” é fonte de perigo, o qualnecessita ser neutralizado, uma vez que é visto como fonte imediatade perigos e incertezas.8583 GARLAND, op. cit., p. 221.84 Para GARLAND, op. cit., p 285, a criminologia do Outro diz com o pensamento que não “normaliza” o criminoso, como o que acontecia na época do previdenciarismo penal. Por vezes, de forma explícita, associa o tipo criminoso em códigos. Assim, o problema é atribuído ao comportamento insidioso, imoral, de delinquentes perigosos, que pertencem tipicamente a grupos raciais e culturais que guardam pouca semelhança “conosco”.85 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 285, Cuida-se de uma nova criminologia que se vale das imagens, arquétipos e ansiedades, e não de análises cuidadosas e de descobertas científicas. Em sua deliberada intenção de ecoar os receios públicos e as pautas midiáticas, e com seu foco nas ameaças mais preocupantes, ela é, na verdade, um discurso politizado do inconsciente coletivo, muito embora reclame para si a virtude de ser realista e consensual, se cotejada com as teorias acadêmicas. Em suas figuras de linguagem e68 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADES A leitura de Garland aproxima-se da lente de Jock Young, que, deigual sorte, entende que a política criminal foi afetada no período da“modernidade recente”. Com efeito, Young relata a existência de umatransição dos “anos dourados”86 do período pós-guerra e o período decrise que se instaurou a partir de 1960, que se constitui no movimentoda modernidade para a “modernidade recente”, cuja tônica estavana assimilação e na incorporação de um mundo que separa e exclui.O mundo atual, na lição de Young, configura-se como um mundo noqual as forças de mercado transformaram as esferas de produçãoe consumo, questionando as noções de certeza material e valoresincontestes, substituindo-as por um mundo de riscos e incertezas,dotado de pluralidade e de uma precariedade econômica e ontológica.Todavia, a transição à modernidade recente pode ser vista como ummovimento que se dá de uma sociedade inclusiva para uma sociedadeexcludente. Ou seja, da assimilação para a exclusão.87 88 Com efeito, da análise de Garland e Young, pode-se afirmar que após-modernidade ou modernidade recente remete ao recuo do Estadode bem-estar, o que é representado pelo fim dos “anos dourados” (erado pleno emprego, de relativa segurança) e o desafio imposto aoEstado de combater os efeitos deletérios do capitalismo tardio. Tambémrefere-se a uma sociedade individualizada89, envolta no consumo eestilos de vida cada vez mais personalíssimos. Ora, essa combinação invocações retóricas típicas, esse discurso político se baseia na criminologia arcaica do tipo criminoso, do Outro.86 Veja-se, nesse sentido, HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 253- 281. Dissertando sobre o que denominava Era de Ouro, Hobsbawm assevera: “Durante a década de 1960, tudo isso dava sinais de desgaste...Houve alguns sinais da diminuição da produtividade da mão de obra em vários países, e sem dúvida sinais de que o grande reservatório de mão-de-obra da migração interna, que alimentara o boom industrial, chegava perto da exaustão. Após vinte anos, tornara-se adulta uma nova geração, para a qual a experiência do entreguerras –desemprego em massa, insegurança, preços estáveis ou em queda – era história e não parte de sua experiência. Eles haviam ajustado suas expectativas à única experiência de seu grupo etário, de pleno emprego e inflação contínua”.87 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 15-23.88 Veja-se que a exclusão pode ocorrer pela privatização do espaços públicos, o que acontece com a construção de shopping certers, parques privados, instalações de lazer, condomínios cercados, que, de resto, constituem a geografia da cidade moderna. Ibid., p. 38.89 A individualização é tratada por BECK, Ulrich, A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich, LASH, Scott. Modernização reflexiva. política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Universidade Paulista -UNESP, 1995. p. 24-25, como sendo um aspecto de “subpolítica”, ou do retorno dos indivíduos à sociedade. Portanto, para Beck, “a individualização significa, primeiro, a desincorporação e, segundo, a reincorporação dos modos de vida na sociedade industrial por outros modos novos, em que os indivíduos devem produzir, representar e acomodar suas próprias biografias. Enfim, para Beck a individualização é um dos lados (a outra face é a globalização) do processo de modernização reflexiva.(RE) PENSANDO DIREITO 69
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento Machadode privação relativa e individualismo é uma causa potencializadora decriminalidade, e isso num momento em que soluções políticas não sãomais possíveis. Numa palavra: a pós-modernidade engendra crimesde uma natureza mais conflitiva e cruenta90. O futuro, como bem sinaliza Young, “não traz bom agouro”, umavez que a demanda por mão de obra desqualificada ou semiqualificada(de que se compõe o grande soldado de reserva na era da divisãointernacional do trabalho) diminui em todos os cantos do mundo,dando azo, inclusive, a sistemas de escravidão, como sói ocorreratualmente nos países asiáticos. De outras, a globalização econômicacorrói as fontes de solidariedade social dos Estados nacionais, atéporque acentua a concorrência mundial. Veja-se, nesse particular, aforça das fábricas do Sudoeste Asiático com relação às situadas naEuropa e América do Norte. A consequência disso é que os pobresestão isolados em guetos urbanos91, em propriedades periféricas ecidades-fantasma, “às quais o capital os trouxe originalmente, e ondeos deixou encalhados depois, ao encontrar soluções alhures”.92 Em suma, o esfacelamento promovido pela pós-modernidade,mormente na elaboração do colapso das regras absolutas, resultou naprecariedade da vida humana, criando uma perturbação ininterruptade todas as condições sociais, incrementando a insegurança e orisco93. Assim, as chaves da onda de crimes que se intensificaram90 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan., 2002. p. 36. Para YOUNG, “a contribuição da precariedade econômica e da insegurança ontológica é uma mistura extremamente inflamável em termos de respostas punitivas à criminalidade e da possibilidade de criar bodes expiatórios. Nós já vimos, na discussão de Luttwark sobre o impacto provável da precariedade econômica isoladamente, que elas opõem sutilmente os que estão no mercado de trabalho aos que estão transparentemente fora dele. A insegurança ontológica acrescenta a esta situação de ação explosiva a necessidade de reelaborar as definições menos tolerantes ao desvio e de reafirmar as virtudes do grupo constituído”.91 Conforme WACQUANT, Loïc. Los condenados de la ciudad: gueto, periferias y Estado. Tradução de Marcos Mayer. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007, especialmente, p. 13-25 e p. 295-320. No pensamento de Wacquant, as favelas (no Brasil), os guetos (nos Estados Unidos), as banlieue (na França), são tidas como zonas do não direito, locais onde prepondera o controle informal, locais de “cerração excludente” que se cristalizaram na cidade pós-fordista como efeito do desenvolvimento desigual das economias capitalistas e da desarticulação do Estado de bem-estar. Afirma que a nova ordem mundial é composta de vertiginosas desigualdades e de uma miséria aterradora, que passa a ser combatida pelo “fetichismo policial”, a quem cumpre afirmar a ordem do Estado e expectativas do povo.92 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan., 2002. p. 41.93 Ver, nesse sentido, BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 16- 51. Com efeito, para Bauman, “os medos modernos tiveram início com a redução do controle estatal (a chamada desregulamentação) e suas consequências individualistas, no momento em que o parentesco entre homem e homem-aparentemente eterno, ou pelo menos desde tempos imemoráveis-, assim como os vínculos amigáveis estabelecidos dentro de uma comunidade ou de uma70 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADESapós o período de pós-guerra estão sob a luz das esferas da privaçãorelativa e individualismo e nelas devem ser focadas94. Numa palavra,a política criminal e o papel reservado ao Direito Penal na sociedadepós-moderna do risco estão intimamente correlacionados com o signoda “modernidade recente”. De efeito, as intensas mudanças experimentadas na esfera deprodução e consumo da sociedade hodierna e a sua reinterpretaçãopelos autores envolvidos têm efeitos sobre as causas da criminalidade,bem como de sua gestão, daí o porquê de a crise da modernidade nãose apartar da crise do Direito Penal. É o risco existencial, intensificandoos bolsões de miséria e pobreza, onde impera a marginalidade, criandoa “crise da modernidade organizada95 96, que vem do desmantelamentodo trabalho coletivo. Com isso, intensifica-se a dimensão subjetiva da insegurança,provocando-se ansiedades, forjando-se um modelo social de“insegurança sentida”ou a “sociedade do medo”. Como bem sinalizaSilva Sánchez, “um dos traços mais significativos das sociedadesda era pós-industrial é a sensação geral de insegurança, isto é,o aparecimento de uma forma especialmente aguda de viver osriscos. É certo, desde logo, que os “novos riscos” tecnológicos e nãotecnológicos – existem”97. Essa nova realidade social do risco mobiliza uma nova políticacriminal de cunho preventivo, dando azo a um Direito Penal preventivo,ou seja, a um Direito Penal do risco, subvertendo o princípio da corporação, foi fragilizado ou até rompido [...] A dissolução da solidariedade representa o fim do universo no qual a modernidade sólida administrava o medo. Agora é a vez de se desmantelarem ou destruírem as proteções modernas-artificiais ou concedidas”. Ibid., p. 19-20. Ver, ainda, BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, mormente p. 22-90. Na obra, Bauman, sinaliza que a modernidade forjou um “teste de pureza” de criação e anulação de corpos estranhos (que são compostos das classes perigosas: moradores de rua, pobres, vagabundos, imigrantes), que nada mais são que subprodutos da desregulamentação universal e da inquestionável prioridade outorgada à irracionalidade do mercado, à custa do despedaçamento das redes protetoras, sustentadas por razões não econômicas. E a busca da pureza expressa-se, diuturnamente, com a ação punitiva contra os ditos corpos estranhos, “impuros”, uma vez que não passaram pelo teste do mercado (consumidores falhos, a sujeira).94 YOUNG, op.cit., p. 78.95 Ibid., p. 32.96 CASTEL, Robert. La inseguridad social: qué es estar protegido. Tradução de Viviana Ackerman. Buenos Aires: Manantial SRL, 2004. p. 54-74.97 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 33.(RE) PENSANDO DIREITO 71
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento Machadointervenção mínima, que sempre se constituiu em uma conquistairrenunciável da moderna política criminal. Com isso, inverte-se aorientação de despenalização, que se encaminhava no pós-guerra,passando-se a implementar uma nova política criminal de cunhoexpansivo e expressivo (punitivista, uma vez que a intervenção édeterminante de aumento das penas), que se descortina na proteçãode bens supraindividuais ou difusos, o que implica a acolhida dosfundamentos da sociedade do risco98. Dessa forma, na sociedade do risco e na modernidade reflexiva,o controle penal passa a funcionar de forma “descontrolada”, uma vezque cumpre a função de “garantir” segurança cognitiva e combatero signo do medo líquido. Ora, o Direito Penal converte-se em umaonda populista que o cerca, na precisa observação de Albrech99,em uma “arma política”, ou seja, em um conceito simbólico, dandovazão, dessarte, a uma política populista de intervenção penal,cuja missão é transmitir à sociedade uma sensação de segurança,instrumentalizando o desviado, que se torna um objeto de políticaspreventivas, consistindo em uma grave ofensa ao princípio dadignidade da pessoa humana100”. Dito em uma palavra, o uso políticodo controle provoca uma “hipertrofia” do sistema penal, que, na buscade sua “descongestão”, o leva, ao fim e ao cabo, a sofrer influxosde uma constante “desformalização” do Direito Penal Material e doDireito Processual Penal101.98 Compartilha, também, esse entendimento RIPOLLÉS, José Luis Díez. La política criminal en la encrucijada. Montevideo: Buenos Aires: IBDEF, 2007. p. 129-176.99 ALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de la política populista reflexiones sobre la razón y limites de los princípios limitadores del derecho penal. In: ROMEO CASABOA, Carlos Maria. La insostenible situación del derecho penal. Tradução de Ricardo Robles Planas. Granada: Comares, 2000. p. 472-474. Para Albrecht, “las reformas de la criminalización son apreciadas en todos los campos políticos en tanto que médio de reafirmación simbólica de valores. También aquellos movimientos politicamente alternativos o anti-estatales que en sus inícios mostraban poca confianza en el Estado y en la Ley figuram hoy entre los propagandistas Del Derecho penal y entre los productores activos de leyes [....] El uso político del Derecho penal se presenta como un instrumento de comunicación. El Derecho penal permite transladar los problemas y conflitos sociales a un tipo de analises especifico. Esse empleo político Del Derecho penal no requiere necesariamente la sanción o la reparación simbólica como médio instrumental de disciplina; ni siquiera la ampliación o el endurecimiento efectivo de La ley están unidos forcozamente a la itilización Del Derecho penal como médio de comunicación política. La lógica de la utilización política se apoya en la función analítica y categorial característica de lo discurso penal, puesto que el cumprimiento de esta función no requiere más que la demonstración ejemplar de La actividad de la práxis legislativa y de la justicia penal”. Ibid., p. 479.100 ALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de la política populista. In: ROMEO CASABOA, Carlos. La insostenible situación del derecho penal. Tradução de Ricardo Robles Planas. Granada:Comares, 2000. p. 480.101 Ibid., p. 482.72 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DO RISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADESCONCLUSÃO A modo de concluir, pode-se afirmar que o fenômeno da expansãodo Direito Penal é fato incontroverso na contemporânea sociedadedo risco e do signo da pós-modernidade. E, para a dita expansão,concorrem diversos fatores, que vão desde o surgimento de novosperigos e bens jurídicos até o sentimento de inseguridade subjetiva,muito bem explorados pela mídia, que tem o delito como produto deconsumo, o que reforça a demanda por segurança e a consequenteresposta punitiva. Entretanto, o ponto de tensão e de possível desfuncionalidadedo Direito Penal repousa no fato de que se converteu em prima rationo combate ao risco, que, na modernidade, é produto humano, ouseja, diz com a tecnologia e com o contexto de opções políticas eeconômicas. Em uma palavra, o risco é sistêmico, cumprindo notarque a maior fonte de risco é dada pela violência estrutural do sistemacapitalista financeiro de cunho neoliberal, que se transformou em umamáquina de produzir pobreza e sofrimento humano. Aqui uma perguntase impõe: o Direito Penal pode combater riscos dessa natureza? Éfunção sua combater riscos ou lesão a bens jurídicos? Ora, não podeser olvidado, no discurso, que a “desmodernização” reclama umareflexão – modernidade reflexiva – quando coteja o projeto iluministade progresso e bem-estar para todos, que fracassou e não apresentasintomas de que sua recuperação será fácil. Talvez se tenha de mudaro projeto. Todavia, enquanto o medo for utilizado populisticamente pela elitepolítica, e a sociedade tende a esquecer que a modernidade produza sua própria barbárie, que é a exclusão, a tendência expansivado controle penal não terá limites. Com efeito, na lógica punitivista,o Estado de Direito inclui todos sob o manto da igualdade perantea lei, e é o mesmo que também exclui. Há uma violência estruturalque incide na seleção da diferença. Cada vez mais, produzem-seilhas de exclusão ou periferias. Nesse contexto, não mais se podeobservar o risco do desvio a partir de observações hauridas do sensocomum (que sempre informa que a criminalidade aumenta), uma(RE) PENSANDO DIREITO 73
José Francisco Dias da Costa Lyra - Dênis Alberto Nascimento Machadovez que a questão do risco/desvio é um problema complexo, anteo fato de que a violência tem fonte estrutural. Tal complexidade temde ser observada adequadamente: a violência está na estrutura dasociedade. O ponto dramático é que a questão tem sido observadapor uma visão reducionista, que não consegue captar que a violênciaé a característica infeliz da sociedade moderna, da qual não se podefugir com respostas simplistas e reacionárias.REFERÊNCIASALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de lapolítica populista refelxiones sobre la razón y limites de los princípioslimitadores del derecho penal. In: ROMEO CASABOA, Carlos Maria.La insostenible situación del derecho penal. Tradução de RicardoRobles Planas. Granada:Comares, 2000. p. 472-474.BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Coimbra: Edições70, 2005.BAUMAN, Zygmunt. Archipiélago de excepciones. Traduçao de AlbinoSantos Mosquera. Barcelona: Katz, 2008.______. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Riode Janeiro: Zahar, 2009.______. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gamae Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.______.BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria damodernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH,Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordemsocial moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: UniversidadeEstadual Paulista 1995. p. 24-25.______. La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad.Barcelona: Paidós, 2006.______. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostasà globalização. Tradução de André Carone. São Paulo: Paz e Terra,1999.74 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
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D(REI)RPEENSIATNDOO OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 The international treaties of human rights: before and after of constitutional amendment n. 45/2004. José Lauri Bueno de Jesus102 Tanelli Fiorin de Jesus103Resumo:Neste trabalho abordar-se-á a validade do tratado internacional no direito interno brasileiro, em especial, ostratados internacionais de proteção dos direitos humanos, haja vista o previsto na Carta Magna de 1988, apartir da Emenda Constitucional n. 45/2004.Palavras-chave: Tratado internacional, direitos humanos, validade, incorporação, direito interno.Abstract:In this study, will board the validity of international treaties in national law, in special, international treatiesof human rights protection, considering the expected in the Federal Constitution of 1988, from theConstitutional Amendment n. 45/2004.Keywords: International treaty, human rights, validity, incorporation, national law.102 Tenente-coronel da reserva remunerada da Brigada Militar e docente no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (IESA), Mestre em Direito pela Unisinos, Especialista em Segurança Pública pela PUC-RS e em Docência para o Ensino Superior pelo IESA. E-mail: [email protected] Graduada em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (IESA), Pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo mesmo Instituto, Advogada. E-mail: [email protected](RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011 • p. 79-114
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de JesusINTRODUÇÃO O objeto deste trabalho é analisar a importância e a influênciaque os tratados internacionais de direitos humanos têm no sistemajurídico brasileiro, a partir do momento que são incorporados ao seudireito interno. Inicialmente, antes de adentrar-se nos tratados internacionais dedireitos humanos, far-se-á um breve relato sobre o que é um tratadointernacional geral ou clássico, como ele se incorpora ao direitobrasileiro e qual a sua hierarquia no âmbito das normas do país. Após,verificar-se-á que os tratados internacionais de proteção de direitoshumanos são direitos do pós-guerra, os quais nasceram como respostaàs atrocidades e aos horrores cometidos pelo regime nazista, quando,a partir daí, têm criado obrigações e responsabilidades aos Estados eque estes devem proteger os direitos das pessoas. O movimento internacional de proteção e respeito aos direitoshumanos, de certa forma, teve força com a introdução da DeclaraçãoUniversal de Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, e,posteriormente, com a II Conferência Mundial de Direitos Humanosrealizada em Viena, em 1993, onde foi elaborada e aprovada aDeclaração e Programa de Ação de Viena, tendo, naquela ocasião, semanifestado o então secretário-geral das Nações Unidas, B. Boutros-Ghali, dizendo que os direitos humanos constituíam o irredutívelhumano e que a adequação dos direitos à evolução da história nãohaveria de alterar o que é de sua própria essência, ou seja, a suauniversalidade. Disse, também, que o verdadeiro garante dos direitoshumanos é a democracia no interior dos Estados e solicitou que todos,urgentemente, ratificassem a totalidade dos instrumentos jurídicosrelativos aos direitos humanos. Na oportunidade, ainda ponderou que, por sua natureza, os direitos humanos abolem a distinção tradicional entre a ordem interna e a ordem internacional. São80 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 criadores de uma permeabilidade jurídica nova. Trata-se, pois, de não considerá-los, nem sob o ângulo da soberania absoluta, nem sob o da ingerência política. Mas, ao contrário, há que se compreender que os direitos humanos implicam a colaboração e a coordenação dos Estados e das organizações internacionais104. Também acrescentou que o processo de democratização éindissolúvel na proteção dos direitos humanos, visto constituir oprojeto político que se insere a garantia dos direitos humanos, a qualdeve ser assimilada por todas as culturas e compartilhada por todasas pessoas.105 Assim, pode-se perceber o quanto é importante que os direitoshumanos estejam positivados na Constituição ou incorporados nelaem virtude de tratados, para que se possibilite ao intérprete e aplicadorda norma jurídica uma maior tranquilidade no momento de concretizara lei ao fato. Sabe-se das dificuldades que os juristas e aplicadores do direitotêm para criar uma doutrina ou jurisprudência na mesma linha depensamento. Inclusive, alguns se baseiam nas teorias monista oudualista, enquanto que outros dizem da existência de um sistemamisto para aplicar o direito ao caso concreto, com força no art. 5º,parágrafos 1º, 2º e 3º, da Carta Magna de 1988, quando decorrentesde tratados internacionais de direitos humanos. Entretanto, não bastaque os direitos humanos estejam positivados constitucionalmente,pois há que se ter vontade por parte das autoridades judiciárias,legislativas e administrativas, para torná-los efetivos. Outra situação que se mostra importante é relativo à hierarquiaque os tratados internacionais de direitos humanos passam a ter aoingressar no direito interno brasileiro. Por isso, far-se-á uma abordagempara demonstrar que o Direito Constitucional e o Direito Internacionalnão podem mais ser aplicados de forma compartimentalizada, hajavista as grandes transformações que toda a sociedade, nos maisdiversos lugares, e os Estados têm enfrentado no ordenamentoconstitucional, em especial, o brasileiro.104 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. vol.I, Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1997, p.180.105 Idem. Ibidem., p. 181.(RE) PENSANDO DIREITO 81
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesus Como se verificará, alguns países têm seguido a diretriz deobservância integral e primazia aos direitos humanos provenientes detratados internacionais, inclusive com a inserção dos mesmos em nívelde hierarquia constitucional. No Brasil, ainda há grande resistência,visto que a maioria dos julgadores – ministros – do Supremo TribunalFederal quer dar hierarquia de norma infraconstitucional aos tratadosinternacionais de direitos humanos que não estejam aprovadosconforme a previsão expressa no art. 5º, § 3º, da Constituição Federalde 1988 (alteração feita por meio da EC n. 45/2004). No entanto, nãose pode esquecer que a Convenção Americana de Direitos Humanos(Pacto de São José da Costa Rica), em seu art. 29, traz o seguinte: Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de [...] suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidas [...] ou limitá-las; excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo, ou, excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.106 Por isso, faz-se necessário que ocorra no Brasil uma interpretaçãojurídica conforme a Constituição Federal de 1988, com a intenção dese manter a força normativa da Constituição, pois [...] se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade. 107 Para que a Constituição não seja apenas uma folha de papelescrita,108 é que se deve ter presente a orientação básica do art.106 Cfe. o previsto no art. 29 da Convenção Americana dos Direitos Humanos. In PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4. ed. rev., ampl. e atual., São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 413.107 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris Editor, 1991, p. 25.108 LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 5. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2000.82 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/20045º, §§ 1º, 2º e 3º, da Constituição Federal de 1988, pois esta Cartaestabelece a dignidade da pessoa humana como um de seusfundamentos, assim como determina que as normas protetoras dosdireitos humanos presentes em tratados internacionais configuremcomo direito fundamental.O TRATADO INTERNACIONAL Primeiramente, há que se dizer o que é um tratado em nívelinternacional, qual o seu significado jurídico, o seu processo deformação e quais seus efeitos no direito interno brasileiro com oadvento da Constituição Federal de 1988. Um tratado é um acordo formal concluído entre sujeitos de direitointernacional público e tem por finalidade produzir efeitos jurídicos,pois é, em si mesmo, um instrumento identificado por seu processo deprodução e pela sua forma final e não pelo seu conteúdo. É variávelao extremo, haja vista o efeito compromissivo e cogente que visaproduzir, pois o tratado dá cobertura legal à sua própria substância109. Por ser um acordo formal, o tratado não prescinde da formaescrita, como foi acertado na Convenção de Havana, em 1928 e,posteriormente, retomado no ano de 1969, por ocasião da Convençãode Viena sobre o Direito dos Tratados110, a qual foi promulgada noBrasil, em 14 de dezembro de 2009, pelo Decreto n. 7030111. Dessa forma, pode-se dizer que os tratados internacionais,enquanto acordos internacionais juridicamente obrigatórios evinculantes, constituem a principal fonte de obrigação do DireitoInternacional112, pois é pela utilização da fórmula pacta sunt servandaque se autoriza os sujeitos da comunidade jurídica internacional aregular, por meio de tratados, a sua conduta recíproca, quer dizer, a109 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. Curso elementar. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 14. Nesse sentido MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Teoria Geral. Comentários aos arts. 1º ao 5º da constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e Jurisprudência. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 302.110 Na Convenção de Havana sobre os tratados, de 1928, no art. 2º, diz: “É condição essencial nos tratados a forma escrita”. Na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o art. 2, I, a, diz que: “tratado significa acordo internacional celebrado entre Estados em forma escrita (...)”. In ARIOSI, Mariângela. Conflitos entre tratados internacionais e leis internas. O judiciário brasileiro e a nova ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 231 e 237.111 Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 30 jun.2010.112 PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 65.(RE) PENSANDO DIREITO 83
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesusconduta dos seus órgãos e súditos em relação aos órgãos e súditosdos outros113. Foi em decorrência da necessidade de regular e disciplinar oprocesso de formação de tratados internacionais que resultou naelaboração pela Convenção de Viena na chamada Lei dos Tratados,a qual foi concluída em 23 de maio de 1969. Há que salientar queos tratados celebrados pelos Estados são baseados em consenso erestrito àqueles Estados signatários, pois só a eles se aplicam, aomesmo tempo que se obrigam a aceitar os seus termos, bem como secomprometem a respeitá-los. Na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, em seusarts. 26 e 27, está disposto o seguinte: Todo tratado em vigor é obrigatório em relação às partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé e que uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento do tratado.114 Nessa circunstância, é consagrado o princípio da boa-fé, vistoque o Estado ao contrair o tratado o fez no livre exercício de suasoberania, obrigando-se com outros Estados em nível internacional. Com relação ao processo de formação do tratado internacional,inicialmente, deixa-se a critério de cada Estado, em observância erespeito à sua soberania. No caso do Brasil, prevê a Carta Magna de1988, no art. 84, inc. VIII, que compete privativamente ao Presidenteda República “celebrar tratados, convenções e atos internacionais [...]”e, no art. 49, inc. I, diz que é da competência exclusiva do CongressoNacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos, ou atosinternacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos aopatrimônio nacional”. Assim, após a assinatura do tratado pelo Poder Executivo, osegundo passo é a sua apreciação e aprovação pelo Poder Legislativo.Na sequência, depois de aprovado o tratado pelo Legislativo, háo ato de ratificação, ou seja, a confirmação formal pelo Estado de113 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 359.114 ARIOSI, Mariângela.Op. cit., p. 248-249.84 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004que ele está obrigado ao tratado. A partir deste momento, depois decumpridas tais formalidades legislativo-constitucionais, a ratificaçãoé que irradiará os efeitos necessários à sua observância no planointernacional. A Convenção de Viena, de 1969115, em seu art. 11, é claraquando diz que “o consentimento de um Estado em obrigar-se por umtratado pode ser manifestado pela assinatura, ratificação, aceitação,aprovação ou adesão ou por quaisquer outros meios, se assim foracordado”. Portanto, a ratificação é o ato necessário para que otratado passe a ter obrigatoriedade no âmbito interno e internacional.Dessa forma, a simples assinatura de um tratado “não gera efeitosse este não for referendado pelo Congresso Nacional, já que o PoderExecutivo só pode promover a ratificação depois de aprovado otratado pelo Congresso Nacional”.116 Entretanto, para os tratadosinternacionais de proteção aos direitos humanos, o procedimento édiferente em virtude do estabelecido na Constituição Federal de 1988,em especial no art. 5º, §§ 1º, 2º e 3º, conforme se verificará logo maisadiante. A incorporação de um tratado internacional no âmbito do direitointerno brasileiro ocorre, então, com a ratificação pelo Presidente daRepública, e terá a sua vigência definida pelas partes. Também háa possibilidade de não ser incorporado ao direito interno, de formaintegral, caso ocorra a chamada “reserva” a determinado item ouartigo. Sendo assim, o Estado não se obriga naquele momento, vistoter aposto contrariedade e que se expressou por meio da reserva. Para que surta o efeito jurídico necessário e que se quer do tratado,a sua validade é, de regra, a condição irrefutável da produção de seusefeitos. Portanto, para que o tratado seja válido, é necessário que aspartes sejam capazes, que o consentimento tenha se manifestado deforma regular e que o objeto seja lícito117. Todo Estado, em princípio, écapaz para concluir tratados sem limitação de domínio, conforme art.6º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.115 ARIOSI, Mariângela. Op. cit., p.241.116 PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 71.117 SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy. Introdução ao estudo do direito internacional público. 2. ed., Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001, p. 48-49.(RE) PENSANDO DIREITO 85
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesus No tocante aos vícios de consentimento, esses podem surgirsob várias formas como, por exemplo, uma ratificação imperfeitaquando resultante de violação à norma interna e também caso ocorrauma coação ou violência contra um Estado ou seu representante.Decorrente dessa situação, a Convenção de Viena sobre o Direitodos Tratados diz em seu art. 51 que o tratado obtido pela coação ouviolência, por meio de atos ou de ameaças, é desprovido de qualquerefeito jurídico. Ainda, para que um tratado seja válido, é preciso queseu objeto seja lícito, isto é, que seus objetivos se confrontem com asnormas imperativas do chamado Direito Comum Internacional aceitaspelo conjunto da comunidade internacional dos Estados, ou seja, asliberdades individuais e as liberdades coletivas.OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃOAOS DIREITOS HUMANOS Os tratados internacionais de proteção aos direitos humanostêm como fonte um campo do direito extremamente recente, sendodenominado “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, que é odireito do pós-guerra, nascido como resposta às atrocidades e aoshorrores cometidos pelo nazismo. Como disse Louis Henkin, logoapós a Segunda Guerra Mundial, os acordos internacionais de direitos humanos têm criado obrigações e responsabilidades para os Estados, com respeito às pessoas sujeitas à sua jurisdição, e um direito internacional tem- se desenvolvido. O emergente direito internacional dos direitos humanos institui obrigações aos Estados para com todas as pessoas humanas e não apenas para com os estrangeiros. Este direito reflete a aceitação geral de que todo indivíduo deve ter direitos, aos quais todos os Estados devem respeitar e proteger118. O surgimento da necessidade de um movimento internacional dosdireitos humanos é baseado na concepção de que “toda nação tem118 HENKIN, Louis. Apud PIOVESAN, Flávia. A Constituição brasileira de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. In MARCÍLIO, Maria Luiza; PUSSOLI, Lafaiate (Org.). Cultura dos direitos humanos. São Paulo: LTr, 1998, p. 133.86 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e deque todas as nações e a comunidade internacional têm o direito deprotestar, se um Estado não cumprir com suas obrigações”119. Por isso, quando se diz que os direitos humanos são universais,indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, está se pensandonum respeito a tais direitos de forma integral, pois esta situação,inicialmente, foi introduzida pela Declaração Universal dos DireitosHumanos, de 1948, e reiterada pela Declaração de Viena, por ocasiãoda II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena,no ano de 1993. Inclusive, a Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993, éclaríssima a esse respeito, e dispõe no seu art. 5º: Todos os direitos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em consideração, assim como os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, mas é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais120. Essa universalidade decorre da condição de pessoa que há de sero requisito único para a titularidade de direitos. Afastada qualquer outracondição os direitos civis e políticos hão de ser somados aos direitossociais, econômicos e culturais, já que não há verdadeira liberdadesem igualdade, tampouco a verdadeira igualdade sem liberdade. Issoocorre porque “os desafios da universalidade aumentam na mesmaintensidade com que os Estados se fecham na defesa de seusinteresses soberanos e as culturas se isolam na proteção das suasparticularidades”121.119 BILDER, Richard. Apud PIOVESAN, Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. Op. cit., p.134.120 ALVES, J. A. Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, Brasília, Fundação Alexandre Gusmão, 1994, p.153.121 LUCAS, Doglas Cesar. Direitos humanos e interculturalidade. Um diálogo entre a igualdade e a diferença. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 22.(RE) PENSANDO DIREITO 87
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesus A instituição da Organização das Nações Unidas – ONU –por meio da Carta de São Francisco, assinada em 26 de junho de1945, conferiu aos direitos humanos uma estatura constitucional noordenamento do direito das gentes, “já que até a sua fundação nãoera seguro afirmar que houvesse, em direito internacional público,preocupação consciente e organizada sobre o tema dos direitoshumanos”122. Com a adoção da mencionada Carta, garantiu-se os pressupostosjurídicos que permitiram à Assembleia Geral da ONU, reunida emParis, em dezembro de 1948, a proclamar a Declaração Universal dosDireitos Humanos, o que vem a ser um dos marcos mais importantesdos direitos humanos. A Declaração Universal tem um texto queexprime de modo amplo as normas substantivas relacionadas ao temae, no qual, as convenções posteriores encontrariam seu princípio esua inspiração. Os dispositivos da Declaração Universal não constituemexatamente uma obrigação jurídica para cada um dos Estados, já que orespectivo texto foi adotado sobre a forma de resolução da Assembleiae, como tal, não se enquadra na categoria dos tratados internacionais,ao menos não no sentido que lhes imprimiu a Convenção de Viena123. Embora os princípios acolhidos na Declaração Universal dosDireitos Humanos passassem a ter o status de direito internacionalcostumeiro, a adoção de tratados sobre os direitos humanos foiconsiderada necessária pela Comissão de Direitos Humanos dasNações Unidas e, desta forma, prepararam-se, em 1966, os PactosInternacionais sobre Direitos Civis e Políticos e os Econômicos, Sociaise Culturais, os quais agora possuem força jurídica convencionalàqueles Estados que são signatários. Para que se tenha a quem recorrer quando da violação de algumtratado internacional de proteção de direitos humanos, existe o sistemauniversal de promoção e proteção dos direitos humanos, sendo osmais importantes o europeu, o interamericano e o africano. O sistema122 REZEK, José Francisco. Op. cit., p. 210.123 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 126.88 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004europeu funciona dentro da estrutura da Comunidade Europeia para aProteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, adotadoem Roma, no ano de 1950. O sistema africano funciona dentro daestrutura da Organização da Unidade Africana e é baseado na CartaAfricana do Direito do Homem e dos Povos, de 1981. Já no sistema interamericano, no qual o Brasil está inserido, setemeses antes da aprovação da Declaração Universal dos DireitosHumanos foi assinada, juntamente com a Carta da Organização dosEstados Americanos – OEA -, a Declaração Americana dos Direitose Deveres do Homem, a qual se inspirou nos trabalhos preparatóriosque resultariam na Declaração Universal. Em 22 de setembro de 1969, foi aprovada, em São José da CostaRica, a Convenção Americana sobre a Proteção de Direitos Humanos,tendo a sua entrada em vigor ocorrido em julho de 1978124. É de ressaltar que, quanto aos sistemas internacionais deproteção aos direitos humanos, a Declaração Universal de 1948não instituiu qualquer órgão internacional de índole judiciária ousemelhante para garantir a eficácia de seus princípios, nem abre aoser humano, enquanto objeto de proteção, vias concretas de açãocontra o procedimento estatal que venha a ofender seus direitos,inclusive, como diz José Francisco Rezek: [...] somente em dois contextos regionais, o europeu ocidental e o pan-americano, chegaram-se a instituir sistemas de garantia da eficácia das normas substantivas adotadas, no próprio plano regional, sobre os direitos da pessoa humana. A Corte Europeia dos Direitos do Homem, sediada em Estrasburgo, cuida de aplicar a Convenção de 1950. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em São José da Costa Rica, garante a vigência à Convenção de 1969. Nenhuma das duas é diretamente acessível aos indivíduos 125. Nota-se que o Direito Internacional dos Direitos Humanosemerge com princípios próprios e, além de apresentar uma hierarquia124 REZEK, José Francisco. Op. cit., 213.125 Idem. Ibidem, p. 214(RE) PENSANDO DIREITO 89
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesusconstitucional, como se verificará logo mais, suas normas passam ater a característica da expansividade decorrente da abertura tipológicade seus enunciados. Além do mais, ele rompe com a distinção rígidaexistente entre o Direito Público e o Direito Privado. Enquanto as relações regidas pelo Direito Internacional Público“são marcadas pela reciprocidade e equilíbrio entre os Estados,disciplinando relações em que são eles, exclusivamente, sujeitosativos e passivos de direito”126, as relações regidas pelo DireitoInternacional dos Direitos Humanos têm por objetivo “estipular osdireitos fundamentais do ser humano e garantir o seu exercício,geralmente tendo o Estado como obrigado”127. Portanto, a salvaguardaé dos direitos fundamentais dos seres humanos e não das relaçõesentre os Estados. Porém, ainda não se tem chegado a um grau mínimode respeitabilidade de tais normas. Com o evolver da sociedade e o constante crescimento dodesrespeito aos direitos humanos, é preciso que se busque, sejano Direito Interno ou no Direito Internacional, ou em ambos, saídaseficazes para a solução do problema diário da violação dos direitosinternacionalmente garantidos em tratados internacionais. Vê-se que os operadores do direito, de certa forma, estãomudando, aos poucos, a mentalidade e, assim, pretende-se dar àsnormas de direitos humanos decorrentes de tratados internacionaiso seu devido valor, visto que já não mais se admite a igualização dostratados internacionais de proteção das pessoas com a legislaçãoinfraconstitucional do país.OS DIREITOS HUMANOS E SUACONSTITUCIONALIZAÇÃO NA ORDEM JURÍDICAINTERNA É importante salientar que em uma sociedade democrática aordem jurídica só se realiza e se justifica com a observância e garantia126 WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 1999, p.21.127 Idem. Ibidem.90 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004dos direitos humanos. É, nesse sentido, que a constitucionalização dosdireitos humanos ou dos direitos fundamentais ensejou a positivaçãodos mesmos, tornando-os categorias dogmáticas. Inclusive, segundoJosé Joaquim Gomes Canotilho, sem essa positivação jurídico-constitucional, os direitos do homem são apenas esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional 128. Assim sendo, os direitos humanos são considerados direitosconstitucionais fundamentais no âmbito interno e estão protegidospela ordem jurídica internacional, tornando-os direitos internacionaisfundamentais. Como disse Paulo Bonavides, os direitos fundamentais são a bússola das constituições democráticas, e quem governa com grandes omissões constitucionais está menosprezando-os e os interpreta a favor dos fortes contra os fracos. E, ainda que, sem os direitos humanos fundamentais não há constitucionalismo129. Se for realizada uma análise nas Constituições estrangeiras,constatar-se-á que os direitos humanos estão elencados de forma adar prioridade à sua proteção e concretização, sendo que a primaziados tratados internacionais está presente, por que já não mais se justifica que o direito internacional e o direito constitucional continuem sendo abordados de forma estanque ou compartimentalizada, como o foram no passado. Já não se pode haver dúvida de que as grandes transformações internas dos Estados repercutem no plano internacional, e a nova realidade formada provoca mudanças na evolução interna e no ordenamento constitucional dos Estados afetados130. Para Doglas Cesar Lucas, a proteção e incorporação dos direitoshumanos não dizem mais respeito somente a um único país, mas que128 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 497.129 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 553-554.130 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado internacional de direitos humanos. Op. cit., p. 403.(RE) PENSANDO DIREITO 91
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesus é consenso hoje que a sociedade mundial deseja que os direitos humanos incorporem as agendas nacionais e transformem radicalmente a realidade de todos aqueles que precisam ser protegidos da violência e ter sua dignidade preservada. Acontece que o reconhecimento dos direitos humanos não se dá de modo igual em todos os países. Condições econômicas, culturais, políticas, etc., interferem na forma como cada país estabelece sua política de direitos humanos131. Norberto Bobbio132, ao referir-se sobre a proteção dos direitoshumanos afirma que “uma coisa é falar dos direitos, direitos semprenovos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentosconvincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva”. O autor segue, afirmando que [...] não há nenhuma Constituição democrática que não pressuponha a existência de direitos individuais, ou seja, que não parta da ideia de que primeiro vem a liberdade dos cidadãos singularmente considerados, e só depois o poder do governo, que os cidadãos constituem e controlam através de suas liberdades.133 Partindo desse princípio, de que sem os direitos humanosfundamentais não há constitucionalismo e democracia, é possívelconstatar na Carta Magna de 1988 a consagração, de forma inédita,de um extenso catálogo de direitos humanos, e ainda a menção emseu art. 5º, § 2º, da não exclusão de “outros decorrentes do regime edos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em quea República federativa do Brasil seja parte”. Agora, com mais clareza, ao se referir sobre os direitos humanos,o legislador no art. 5º, § 3º, (parágrafo acrescentado pela EmendaConstitucional n. 45, de 8/12/2004), elenca que os “tratados econvenções internacionais sobre direitos humanos que foremaprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por131 LUCAS, Doglas Cesar. Direitos humanos e interculturalidade. Op. cit., p. 45.132 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 63.133 Idem. Ibidem., p. 120.92 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentesàs emendas constitucionais”. Este novo parágrafo altera totalmente aforma de incorporação dos tratados internacionais de direitos humanosno direito pátrio. Apesar dessa inovação, no sentido de dar um norte àhierarquia, nem todos são unânimes que devia ter sido assim. Valério Mazzuoli manifesta sua contrariedade sobre a forma dehierarquização que foi dada aos direitos humanos, decorrente da ECn. 45/2004, da seguinte forma: Se a intenção foi colocar termo às controvérsias (doutrinárias e jurisprudenciais) sobre o nível hierárquico dos tratados de direitos humanos no Brasil, parece que a tal desiderato não conseguiu chegar. Nós também sempre entendemos inevitável a mudança do Texto Constitucional brasileiro, a fim de se eliminarem as controvérsias a respeito do grau hierárquico conferido pela Constituição aos tratados internacionais de direitos humanos pelo Brasil ratificados. Mas a nossa ideia era outra, em nada semelhante à da Emenda Constitucional nº 45. Entendíamos ser premente, mais do que nunca, incluir em nossa Carta Magna não um dispositivo hierarquizando os tratados de direitos humanos, como fez a EC 45, mas sim um dispositivo que reforçasse o significado do § 2º do art. 5º, dando-lhe verdadeira interpretação autêntica. Essa redação do Texto constitucional [...] é exemplo claro da falta de compreensão e de interesse (e, sobretudo, de boa vontade) do nosso legislador relativamente às conquistas já alcançadas pelo direito internacional dos direitos humanos nessa seara134. Mas é necessário dizer que o Brasil apenas a partir de 1985, com oprocesso de democratização do país, é que passou a ratificar relevantestratados internacionais de direitos humanos e, posteriormente, com oadvento da Constituição Federal de 1988, em decorrência do previstono art. 5º, § 1º, onde se diz: “As normas definidoras dos direitos egarantias fundamentais têm aplicação imediata”, é que, realmente, asituação começou a mudar, pois, inclusive, com relação a esse fato rezaa Carta Magna que o Brasil se rege nas suas relações internacionais134 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 28.(RE) PENSANDO DIREITO 93
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesuspelo princípio da “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, inc. II). Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 é a primeiraconstituição brasileira a elencar o princípio da prevalência dos direitoshumanos como princípio fundamental a reger o Estado nas relaçõesinternacionais. Ainda, quando se trata de direitos e garantias individuais, conformea Constituição Federal, o constituinte estabeleceu que tal situação nãoserá objeto de deliberação a proposta de emenda que pretender aboliras conquistas (art. 60, § 4º, inv. IV). Por isso, a relevância da atual Constituição Federal brasileira, porinovar ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, osdireitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil sejasignatário, haja vista que, de maneira mais acanhada, na ConstituiçãoFederal de 1967, o art. 153, § 36, previa apenas que a “especificaçãodos direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluioutros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios queela adota”. Entretanto, até o ano de 2004, ainda não estava pacificada asituação dos tratados internacionais de direitos humanos, porquehavia necessidade de se fazer uma interpretação sistemática para quese possibilitasse a incorporação dos tratados de direitos humanos. Foi com a Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de2004, que os procedimentos mudaram, levando os aplicadores dodireito, principalmente os julgadores, a analisarem de outra formaos tratados, quando forem de direitos humanos. Com essa EmendaConstitucional, desde que observadas as regras estabelecidas, ostratados internacionais de direitos humanos passam a integrar ocatálogo constitucional brasileiro. Já os tratados anteriores a essa Emenda Constitucional, segundo os autores, têm uma hierarquia supralegal, ou seja, estão acima das leis ordinárias, mas abaixo da Constituição Federal. Tal procedimento muda totalmente, pois, como Pedro Dallariargumenta,94 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 essa norma constitucional, concebida precipuamente para disciplinar situações no âmbito interno do país, pode e deve ser vista, se associada ao inciso II do art. 4º (prevalência dos direitos humanos), como instrumento que procura dar coerência à sustentação do princípio constitucional de relações exteriores em pauta e que, por isso mesmo, possibilita ao Brasil intervir no âmbito da comunidade internacional não apenas para defender a assunção de tal princípio, mas também para, em estágio já mais avançado, dar-lhe materialidade efetiva135. Aqui também cabe salientar a posição de Antônio AugustoCançado Trindade, antes da EC n. 45/2004, quando ele se refereàquela inovação que o art. 5º, § 2º, dera aos tratados de direitoshumanos, mas isso, fazendo uma interpretação favorável, porque [...] a novidade do art. 5º, § 2º, da Constituição federal de 1988, consiste no acréscimo [...] ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, dos direitos e garantias expressos em tratados internacionais sobre proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte. É alentador que as conquistas do direito constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista136. Por isso, Cançado Trindade continua afirmando, com base noartigo e parágrafo citado que, [...] para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação do Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar as suas disposições de vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional de direitos humanos em que o Brasil é parte os direitos neles garantidos passam, consoante o art. 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e indiretamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno137.135 DALLARI, Pedro de Abreu. Constituição e relações exteriores. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 162.136 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos. Op. cit., p. 631.137 Idem. Ibidem.(RE) PENSANDO DIREITO 95
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de Jesus Assim, imperativo se faz que os tratados internacionais dedireitos humanos sejam imediatamente aplicados pelas autoridadeslegislativas, judiciárias e administrativas, bem como os direitos nelesgarantidos hão de ser direta e integralmente consagrados no própriodireito interno. Por isso, ao Estado não é dado deixar de cumprir suasobrigações convencionais sob o pretexto de supostas dificuldadesde ordem constitucional ou interna, pois os fundamentos últimos daproteção dos direitos humanos transcendem o direito estatal138. Esclarecendo mais um pouco e fazendo a diferenciação, paraa incorporação de um tratado geral internacional ao ordenamentojurídico brasileiro, deve o Presidente da República celebrar o tratado(art. 84, inc. VIII) e, após, o Congresso Nacional deve deliberar sobreo tratado e fazer a aprovação por meio de um decreto legislativo e, porúltimo, o Presidente da República editará um decreto promulgando otratado. É, nesse momento, que o tratado geral internacional adquireexecutoriedade interna139. Por sua vez, Gilmar Ferreira Mendes explica que ao contrário do sistema adotado na Alemanha, o Congresso Nacional aprova o tratado mediante a edição de um decreto legislativo (art. 49, I, CF de 1988), ato que dispensa sanção ou promulgação por parte do Presidente da República. Tal como observado, o decreto legislativo contém aprovação do Congresso Nacional ao tratado e simultaneamente a autorização para que o Presidente da República ratifique-o em nome da República Federativa do Brasil. Esse ato não contém, todavia, uma ordem de execução do tratado no Território Nacional, uma vez que somente ao Presidente da República cabe decidir sobre sua ratificação. Com a promulgação do tratado por meio do decreto do chefe do Executivo recebe aquele ato a ordem de execução, passando, assim, a ser aplicado de forma geral e obrigatória140. Entretanto, o que interessa realmente a este trabalho é ahierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos de que é138 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit.., p. 124-128.139 MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 303.140 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 168.96 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004parte o Brasil. Para isso, é preciso ter em conta o posicionamento deCelso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, quando se manifestamsobre o assunto, dizendo que os arts. 3º e 4º é que dão corpo a esta delicada matéria do relacionamento do Brasil com a ordem internacional, mas, de maneira inacreditável, nenhum dos dispositivos estatui de forma a tornar clara a posição hierárquica do direito internacional perante o direito interno141. Antes da EC n. 45/2004, os tratados internacionais de direitoshumanos eram incorporados ao direito brasileiro no mesmo patamarda legislação ordinária, infraconstitucional e, em nome do manipuláveltema da soberania do Estado, em face de seu ordenamento jurídico,os mesmos não se sobrepunham à norma interna, e tal situaçãodividia, nesse item, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF),nas mais diversas decisões142. O entendimento do STF sobre qualquer tratado internacional – dedireitos humanos ou não – desde que ratificado pelo Brasil, passavaa fazer parte do direito interno brasileiro, no âmbito da legislaçãoordinária e, como é sabido, esta não tem força nenhuma para mudaro texto constitucional. Isto porque a Carta Magna, como expressãomáxima da soberania nacional, como diz aquele Tribunal, está acimade qualquer tratado ou convenção que com ela conflitue. Portanto,como não havia garantia explícita de privilégio hierárquico dos tratadosinternacionais, mesmo que de direitos humanos sobre o direito internobrasileiro, devia ser garantida a autoridade da norma mais recente,pois era paritário o tratamento brasileiro (segundo o STF) dado àsnormas de direito internacional. A prevalência de certas normas de direito interno sobre as dedireito internacional decorre de julgados do próprio STF, com baseno sistema jurídico constitucional. Antes do advento da Constituição141 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 450, vol. 2.142 LEAL, Rogério Gesta. Hermenêutica e direito. Considerações sobre a teoria do direito e os operadores jurídicos. 2. ed., Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999, p. 176-177.(RE) PENSANDO DIREITO 97
José Lauri Bueno de Jesus - Tanelli Fiorin de JesusFederal de 1988, o STF já havia se pronunciado três vezes a respeito,inclusive por ocasião da Convenção de Genebra da Lei UniformeSobre Cheques, por votação unânime, em 4 de agosto de 1971, no RE71.154-PR, tendo sido relator o ministro Oswaldo Trigueiro no sentidode que “não é razoável que a validade dos tratados fique condicionadoà dupla manifestação do Congresso Nacional, exigência que nenhumadas nossas Constituições jamais prescreveu”. Além disso, apesar das decisões contrárias à incorporaçãoconstitucional dos tratados internacionais de proteção dos direitoshumanos, o Estado brasileiro deve [...] elaborar todas as disposições de direito interno que sejam necessárias para tornar efetivos os direitos e liberdades enunciados nos tratados de que o Brasil é parte. Viola ainda a própria Constituição, na medida em que destes direitos e liberdades não foram incorporados ao texto constitucional, por força do art. 5º, § 2º, devendo ter aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º)143. Então, em decorrência dos tratados internacionais e a previsãoconstitucional no direito interno brasileiro, em especial no art. 5º, §§ 1ºe 2º, era possível verificar a existência de três vertentes no tocante aosdireitos e garantias individuais, os quais são: a) os direitos e garantiasexpressos na Constituição; b) os direitos implícitos decorrentes; e c)os direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais em que oBrasil seja parte. Com respeito aos direitos e garantias expressos na ConstituiçãoFederal, tem-se como exemplo os elencados nos incisos I a LXXVIII,do art. 5º. No entanto, não é só no art. 5º que se encontram os direitos,haja vista que a Carta Magna de 1988 bem claramente se refereaos direitos e garantias expressos “nesta Constituição”, ou seja, emtoda a Constituição Federal, de forma que podem ser encontradosno decorrer do texto constitucional outros144 direitos e garantias que143 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Op. cit., p. 248.144 Cfe. a jurisprudência do STF, trata-se de cláusula pétrea, por exemplo, a garantia constitucional assegurada ao cidadão no art. 150, III, ‘b’, da CF de 1988, que veda à União, Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que tenha sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, pelo o que a EC n. 3/1993, de 17 de março de 1993, ao pretender98 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011
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