fim de tarde em são paulo vão de concreto e humanidade estou num convento a tarde cai e miro a face da cidade há aqui um silêncio particionado em gritos invisíveis tal que nos dois – silêncio e cidade uma amálgama sonora escavando leito nas solas do meu interior recebo as lascas dos rochedos idos das pessoas-montanhas caminhantes e seus gritos silenciosos
grito dia na garganta, preso é que se ouve rouca a mucosa e se de rebenque o verbo à solta a prosa o sol matinal faria fogo no sketch o arrebento seria guizo de serpente e eu pagaria pra ver os escombros dessa merda toda
rua I vi um homem um senhor, pelos cabelos? nosso olhar se encontrou, era jovem – ou poderia ter sido comia um enrolado de salsicha na rua, sentou-se à rua eu o olhei ele me olhou sabíamos o que se passava eu sabia – droga, eu sabia quis chorar, não pude e senti novamente aquela geleira que se movia por favor, quero quebrá-la preciso esmurrá-la, destruí-la a cara mas não não posso, medíocre ela se alimenta dos choros de não acontecer coleciono choros empedrados pro futuro um dia hei de sentar na borda de um riacho, em lugar nenhum e chorar até o fim de todas as coisas
soneto de não esquecer belos olhos de mar à noite, sob os lençóis das estrelas, do luar com o brilho dos faróis ah, o mar dos olhos sutil presente do tempo reminiscente, na memória a aura daquele momento viver esse caminho de entrar no teu olhar e lá enfim fazer ninho e por isso não bastar há no meu peito um lugar pra te guardar com carinho
vãos escrevo em manhãs e tardes os vãos das minhas falhas as patas dos meus abismos os roncos das minhas salamandras finco nas manhãs e tardes arpões siderais auroras boreais machuco-as - peço que me perdoem - espeto-as com as lascas que ricocheteiam das almas o mundo foi um moinho hoje é o trigo
só resta em mim tudo que vem antes memórias de foice, semente e silêncio sabedoria e eternidade das nuvens
guerra e paz para amar as pessoas não é preciso concreto, contrato, continente, inciso amá-las é como o canto de um pássaro único em fluído e redenção insisto: é preciso amá-las! as pessoas tive um sonho maluco e acordei crendo nisso a vida – um sonho louco estanca no não amor para amar as pessoas basta um chá, um café, um olhar não é preciso a ciência as letras e o bom tempo amamos nas tormentas, inclusive e quando elas passam se miram nossos fragmentos: juntos talvez o grande desafio esteja em amar-nos a nós mesmos porque isso – isso? – isso sim
é pré-requisito do olhar leve amar-nos – tenho essa impressão – garante certa sinceridade com o outro a dizer-lhe: luto comigo, bebo minhas poluições te amo na tua guerra, inteiro
arquitetura de escombros I. mergulho antes da tormenta Tiro meu caderno do armário. Capa gros- sa, assopro a poeira. Coloco sobre a ban- cada, sob a janela. Curitiba, 18 graus, chuva mansa, grafia distorcida. Café. Ampulheta. Meu cervo selvagem. Estou como sempre perdido. Florestas escuras, criaturas es- tranhas, estilhaços e eu desvio tem muito tempo. Mas não me somo em pedaços hoje. Sinto atração pelo inteiro, pelas ruas, pelas pessoas. Sempre o outro, sempre outros mundos. Li em algum lugar que o poeta carrega nas costas a melancolia e os escombros dos amores. O poeta uma am- pulheta, escorrendo na mata virgem sua essência sagrada. Dia e noite se transmu- tando em horizontes arenosos, grão por grão. O poeta uma criança que chora seus ancestrais, que vomita o lodo do tempo e que purifica as capturas do olhar. Penso nos meus grandes poetas. Todos solitários, desgarrados e de olhar fundo. Creio que nos cabe bem o temor da noite. As mãos rachadas. A cirurgia do olhar. A dor como
substrato. Quanta dor eu sinto, por todos que passam e se vão. Aprender a ouvi-la, respeitá-la, usá-la a nosso favor. Nesses dias, ando precisando cuidar e remediar as minhas dores. Os pássaros me ajudam. Cantamos no fim da tarde, em silêncio, as coisas de não se ver. Tomei um caminho. E depois dos sinos... o que vem agora? Qual será o sabor das pedras, o emanci- par das nuvens, a volúpia da aurora? Estou só nesse caminho mas dessa vez carrego preciosa bagagem. Pedernal e lenha, puçá de estrelas. Um gole de vinho, um frasco miúdo de risadas, um botão adormecido de flor do campo, cordas de não amarrar e a voz embargada. Na boca eu levo o nome do vento. Nos olhos sempre o horizonte. Mãos vazias pra sentir quem vier. E a me- mória... ah, a memória. O início de todas as coisas. O umbral onde começa minha via- gem. Vou atravessar o campo da memória e sair pela porta oposta. Almejo adentrar ao alicerce do paraíso. Vou em busca da fundição do homem. Quero ouvir a primei- ra árvore, o primeiro pássaro. Meu arauto: o olhar da saíra na pitangueira. Curitiba, 19 graus. Gotas preguiçosas que se atrasam ao mergulho nas cordas do varal.
II. permissão ao cansaço Cansado. Hoje eu me cansei. Estar cansa- do não requer pressupostos. O cansaço não pede licença. Ele olha nos olhos. Ele mora nos olhos. O cansaço pra mim é qua- se como a poesia. Um manifesto livre das fragilidades e das forças. Uma estalagem na beira da estrada. Ao abrir suas portas, a luz das velas não tenta te lembrar o sol. Você está em lugar nenhum. Penso que antes de ir a qualquer lugar, é preciso pri- meiro estar em lugar nenhum. Um avião no céu está em lugar nenhum. Sob a jurisdi- ção dos ares. Sob o crivo do horizonte. Um vértice de pedra nas espumas do oceano. A história também se trata das paradas. Das perdas. Dos escombros. Do desfoque. Do caminho pra fora... ou pra dentro. Se eu sigo cada palavra que escrevo, sinto que o sentido se desvanece. Às vezes é preci- so embaralhá-las. Afugentá-las e lhes pro- por abismos. Sem ressentimentos. Se elas fogem, aí temos um jogo. Se transformar de novo em algo que possa cativá-las. Ou persegui-las, que seja. Palavras também se cansam. Acho que hoje estamos am- bos cansados. Nos convidamos a lugar ne-
nhum. Quem pode dizer o destino de um texto, a sina de um poema, a alma de um grito? Cansaço. A ciência do desapego. Eu te acolho. Me permito. Me esqueço. O nada: a mais antiga floresta das idas. Eu? Uma montanha... em lugar nenhum. hoje eu me cansei profundamente senti na face dos ossos uma centelha de fim porém hoje ao me cansar sorri junto à escada e depois dormi na mesa junto ao jardim ao nada disse: sim sim sim hoje, enfim acolhi o cansaço de mim
III. pássaro negro Sou um pássaro negro, sou chegada e partida. O silêncio fala mais por mim que qualquer palavra escrita. Um pássaro no escuro é uma dança perigosa. Arremeter na ausência de chão. Arrebentar com a no- ção de chão. Deixar o chão em pedaços. No lugar dele, fazer crescer outra coisa, surgir outra lógica. Como o martim-pesca- dor, usar o chão de lago, de rio, de mar, ser insubordinado a ele. Se é um risco eminen- te, inventar o mergulho que sobrevive. Um pássaro no escuro canta pra ouvir os refle- xos. Se estão distantes, bem... em tudo há certa distância. Quando a distância é uma dor em erupção... Quando a distância é uma dor em erupção eu imagino um trem no meio do oceano. Pra onde vai um trem no meio do oceano? Ele não tem trilhos? Quando a distância é uma dor em erup- ção, um pássaro negro é a memória dos abandonos. Ele atenta contra o chão - ou contra o céu, no escuro céu e chão se mis- turam - ele atenta contra o chão e assume a redenção de todas as dores do mundo. A lava também empedra no escuro. Um pássaro no escuro, depois da solidão, tal-
vez confie em seus instintos. Talvez procu- re alma. Talvez entregue néctar aos ventos. E se existe uma nesga de luz por sobre as copas, por entre os olhos, um pássaro ne- gro talvez sonhe com faróis. Faróis onde o mar bate à sua porta. E o pescador faz uma prece aos seus pés. E as rochas são como seus cabelos. Ser farol na noite, adentrar aos olhos, vestir os olhos que se foram. E flamejar alma rompendo os atlânticos.
IV. saudade do que vem A saudade do que está por vir é quase uma saudade do que se foi. Uma traquinagem da memória. O voo estonteante de um bei- ja-flor. É claro que não sabemos o que está por vir. Que graça teria? mas sinto, numa parte de mim, um portal, um varal, um círculo de luz, ou de sombra... luz e som- bra. Tudo o que temos, dentro. Um círculo onde cabem muito bem todas as coisas. Vi por lá uma criança no banco de trás de um carro velho. A criança era capaz de ver sonhos escondidos nas frestas dos olhos. Também uma senhorinha muito antiga, e sua voz transpondo planetas e horizontes. Talvez eu devesse ter dado mais atenção às aulas de geometria... Quem diria que a saudade dependesse apenas do ângulo do nosso olhar na linha dos tempos. Qua- se como as lentes de um antiga câmera de cinema, que sutilmente grava no filme um suspiro etéreo da vida. Ah, o som dos an- tigos projetores de cinema. Me lembram bicicletas que se movem nos ares. Se há uma saudade do que está por vir, ouso en- cará-la apenas na eminência da perda. Ig-
norância ou proteção? Não sei... Em cada linha dos meus versos, em cada pássaro na minha garganta, em cada explosão de palavra em minha boca, é tudo uma ten- tativa vã de falar sobre os impossíveis. Vê? Tudo bem. Feche os olhos. Apenas fique um pouco comigo no escuro. Que nossos medos se abracem. Que nossos escom- bros se apaixonem. Que nossas almas se beijem sem signos. E quando nossos olhos se tocarem... que paradoxo. Eles apenas saberão. A saudade do que vem é um dos tentáculos do silêncio, uma das guelras do impossível, um balão colorido em nós... Oz, e sua magia. Nós? Um amontoado de falhas e coragem. Quero ver o próximo dia, descobrir a aurora e o desenredo. Vou com calma e vou com medo. E palavra por pa- lavra, agora partilhamos um segredo. Dei- xa, deixa, deixa tudo escorrer. E de gota e rocha, logo seremos flecha, montanha, pássaro de pedra preciosa.
voo memórias que moldam
réstia, francisco francisco, peito aberto florestas portuguesas aquele que recebe o sol do leste francisco meu pai meu avô a voz rudimentar que me convida para o mundo sei dos teus traços, francisco sei de ti, acredite e quando estou perto de perder chaves, olhos, força te vejo, francisco te vejo plenamente na penumbra da minha alma aos pés da minha fogueira cigana abro meu canto por ti, amado francisco e todos os sinos nas praias e todos os mares nas conchas e toda réstia de vida em meu peito
cisão cinde o céu como um sino escorre seu ferro fundido penetrando na carne da terra eu ouço o som: quebranto de luas no meio da tempestade 18h30, a igrejinha diz os antigos santos recebem honrados a purificação do céu e eu digo desculpas e peço esperança aos antigos ancestrais
luz do cerrado nos semblantes e nos passos dos meus irmãos encontro ressonância os caminhos, mesmo longínquos são semelhantes, tão árduos é preciso cindir os julgamentos e refazer as pegadas na madrugada ouvir sonhos e acalorar abraços pôr serragem de sons e palavras nos vãos ser bravo na solitude e na reminiscência luminescer como o céu do cerrado
puçá de cometa no escuro do céu desponta uma lança multicor no peito ela me alcança num coito estivador e um barco pescador é nosso cicerone e a emulsão das galáxias aos poucos me consome desaparecido sou na pele do oceano nos olhos de um planeta meu menino, que são muitos e seus sonhos num puçá de cometa
peito, leito, pássaros I. nas suaves e aerodinâmicas escamas púrpuras de um beija-flor descubro mais sobre as escavações no meu peito II. tenho o peito preenchido de fagulhas de pássaros III. houve um chamado um vento errante um canto de outro mundo segui por uma trilha meu peito se revirava meus olhos se lembravam e um pouco à frente
me deitei nos olhos e seios do uirapuru IV. quando toco e canto é como se meus dedos e garganta fossem uma revoada como se houvesse dentro a necessidade incessante da migração pra fora meu corpo explode em sons e cores, em plumas e vento e de vez em quando em voo, em cordas em canto vislumbro os horizontes da plenitude V. quero voar permeando tuas asas, pele empurrar o vento por entre tuas penas, pernas e me deliciar
na tua boca, bico de fruto no teu peito, seio aconchegante me aninhar na tua cama, ninho, ar entrar dentro do teu cantar caminhar dentro das tuas vísceras bebendo cada gota de desejo e silêncio tormenta e primavera até restar apenas os volteios delicados da quietude
depois da solidão (para Analia Garcetti) hoje eu fiz um chá depois da solidão senti me visitar um sabor de mansidão lembrei-me bem do gosto - nuvens de memória - de cada passo avulso pontinhos de uma história camomila erva-brava hibisco, flor de algodão as mãos de noz-moscada os beijos de açafrão quimeras mergulhadas em cachos de alcaçuz lavanda, erva-sagrada as sombras e a luz
no céu a madrugada prenuncia seu perdão o mundo é minha estrada um chá depois da solidão
olhos de não acabar (para Lucas Franco) não se preocupe amor nem tudo morre ou tem fim se você se lembrar de quando foi alguém a sonhar, a sonhar a sonhar se a infância voltar e as memórias: um jardim eu seria um beija-flor beijando os pólens do angelim e no céu eternizar sinos vão soar e num mar de algodão eu vou flamejar encontrar sinos vão cindir e num vão planetar eu vou ecoar e fundir
e talvez nessa altar das memórias do mundo inteiro os meus olhos serão os seus
quando soarem os sinos quando soarem os sinos da igrejinha e o orvalho no vidro prismar o sol sob nosso sorriso nosso leito de amores me farei nos teus seios me direi nos teus lábios e no escuro onde ambos percorremos distâncias voltaremos sem a pressa, nada mais interessa nada temos que nos faça menor ou redutível quando soarem os sinos da igrejinha me terei nos teus olhos versarei teu lirismo e no escuro de um abismo onde as cores se escondem viveremos preto e branco, sem a dor da promessa nada temos que nos faça menor ou redutível
no silêncio nos teremos sem que a fala comprometa no contraste da aurora no suor que aflora um ser pleno e absoluto quando soarem os sinos
dragões d’água falar sobre um riacho que na verdade é mar falar sobre o mar que se molda riacho aquietar a voz silenciar urgências amansar dragões d’água ser canoeiro pertencente uno ao horizonte remanso, tempestade premente estar no toque ausente na dança presente na superfície da mente viajante cansada falar sobre um riacho que na verdade é mar
aceitar o trânsito de águas de olhares aceitar com leveza o baile das marés
ponto final última página, o fim da linha o que um poeta escreve ali? eu – quem sou eu? eu – o que sou? eu escrevo mangusto passo-preto, saíra-sapucaia, sabiá-poca fim de tarde, balões livros, discos escrevo café e chá e meu imaginário de um Japão antigo que só existe em mim – quem sou eu? um quintal florido, com poço e balde os olhos e um meio sorriso de minha mãe a delícia dos beijos – quem eu fui? da minha primeira namorada
escrevo junqueira até o fim e tudo que aprendi ao perder poderia escrever muito – muito mais mas aí precisaria de outro outro papel outro caderno outro eu – quantos sou? última página – últimas linhas deixo-as serei delas um eterno pássaro serei quantas e quantos puder no céu de cada ideia
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