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memórias sonoras

Published by medusaebook, 2021-12-09 20:52:47

Description: Autor: Murilo Silvestrim
Edição: Ricardo Corona e Eliana Borges
Ilustrações: Surya Amitrano
Projeto gráfico: Eliana Borges
Revisão: Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra
Editora Medusa

Keywords: murilo silvestrim

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memórias sonoras murilo silvestrim



memórias sonoras murilo silvestrim 2021

Copyright desta edição © 2021 Medusa Copyright dos poemas © 2021 Murilo Silvestrim Edição Ricardo Corona Eliana Borges Ilustrações Surya Amitrano Projeto gráfico Eliana Borges Revisão Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra ISBN 978-65-86276-20-6 Impresso no Brasil / 1a. Edição Foi feito o depósito legal Editora Medusa www.editoramedusa.com.br [email protected] facebook.com/EditoraMedusa

memórias sonoras murilo silvestrim



não sigas as pegadas dos antepassados busque as que eles buscaram Matsuo Bashô



quietude memórias de início sopro memórias à beira mar estampido memórias que moldam voo memórias de pássaros



quietude memórias de início



memórias que viajam pelo som o dia é uma memória que nasce com o sol e espalha suas teias fragmentos de limo do tempo em cada pedacinho de som e silêncio viaja uma memória projétil de cristal itinerante de eras avanço nos dias deglutindo flocos de ruído e quietude amálgama que me transporta pra outros universos em memórias que viajam pelo som

orvalho orvalho da manhã arauto do tempo fluído copas altas esperança no movimento dos pássaros brotos de flor nascentes de água preciso habitar relvas e horizontes interioranos ser provisório de matéria perecer no espírito do mundo e cindir o fim do pensamento

início há no meu âmago uma ausência, um erro espaço transmorfo, buraco negro de onde vem a falta? tenho pensado sobre isso ao longo dos anos e há pouco tenho notado nessa ausência um fluído translúcido de início talvez seja necessário haver sempre uma galáxia inóspita em nós é somente no vazio no vácuo, no ridículo abismo da ausência que se pode engravidar um gesto aleatório e fazer surgir no escuro uma pequena onda um mínimo vulto de algo novo que jamais nos pertenceria de outra forma



I fragmentos de chuva – mil touros

I. Se fundem manhã e temporal criando um dia quase noite. Com ele uma aura para além da esperança. O que há além da esperança? A chuva verte água sobre o mundo. Parado na janela do banheiro meus olhos vidram, fixos, uma moça que se move lentamente no jardim vizinho. Ela usa um vestido florido adequado à primavera. Consigo imaginá-la num lapso de tempo anterior ou sobreposto, colhendo frutas e fazendo ge- leias em algum canto ermo e desabitado da terra. Por cima do vestido um moletom preto com capuz. Não consigo ver seu rosto. Moça, mulher, menina? Todas juntas. Suas pernas desnudas são fortes e musculosas. Seu corpo se move e se sustenta quase como um sa- murai: ereto, preparado para o peso do mundo. Mas ainda assim relaxado, como quem impõe ao mundo uma importância meramente ocasional. Ela caminha lentamente, uma bailarina que recebe os pesados grãos de água sem demonstrar mínimo incômodo. Apesar do temporal vociferar torrentes de vento úmi- do sobre ela, segue cada passo sem o mínimo vestígio de dúvida. Em suas mãos segura um maço de ervas. Vai colhendo-as de alguns canteiros elevados. De vez em quando retira pedras ou troncos que atrapalham o crescimento das plantas. Não sem antes se deter por alguns segundos a olhar para o que quer que seja, como a avaliar sua índole ou segredos mais profundos.

Me assusta, me desconcerta e me emociona ver aque- la senhora, aquela menina colhendo ervas em meio ao temporal. Desejo muito ver seu rosto, tocar sua face, mas ele permanece escondido. Faz meses que não cai uma gota d’água. Ver aquela dança delicada e selva- gem de pingos sobre a moça remexe com os recôn- ditos mais profundos da minha alma e costura nela, com fios delicados de água gélida, sentimentos que só consigo acessar por meio do umbral das palavras. Enquanto a moça caminha com suas ervas pela chuva primaveril com a força de mil touros, eu caminho pe- las minhas palavras, me agarrando vorazmente a tudo que me atravessa nessa tempestade matinal de quase noite. Bem e mal são astros distantes. Nós, andarilhos cansados. Pequenas estrelas no espaço difuso de uma manhã em lugar nenhum.

II. Um pássaro canta atravessando eras e planos. Seu canto, mis- turado à chuva, atravessa meu ser com a força de mil touros.

III. Pintaram faixas amarelas nos pavers do meu condomínio. Em algum momento, trocaram os pavers de lugar por motivo des- conhecido. As faixas viraram retalhos amarelos e abstratos em mosaico. A chuva cai em torrentes sobre o chão. No escuro dessa manhã quase noite, o mosaico de pavers me trasporta para um mundo longínquo. Viajo em memórias como um bar- co no oceano. Em algum lugar, um jovem segura um lenço. Ele brinca com os cães do jardim, de olhos fechados. Na réstia de pensamento em suas têmporas, vejo claramente: ele sonha que caminha ileso por entre mil touros.

arcanjo matinal respiro matinal, rio congelado raposa frutífera a aura nascente aurora a geografia dos caules, troncos jarros de mel nas nuvens ascende às copas um pássaro raro coroa um bebê, dor ancestral vida verte nos vãos a manhã segue redimindo o mal

ofereço alma andei colecionando catástrofes ouvi tempestade na boca de um furão vi o vento desviar-se do meu rosto por duas vezes mas houve, lá no fundo do horizonte uma nuvem que atirava aurora vi um menino atravessar uma velhinha e uma senhora perdoando o anjo da morte andei colecionando catástrofes – não que eu quisesse hoje olho-as nos olhos ofereço alma e elas me perdoam o futuro



sopro memórias à beira mar



fevereiro início de fevereiro o ano são números na tormenta luminária de um hotel velho piscando na noite transito entre golem de pedra e brotos num tronco cortado eles vão crescendo, bem verdinhos se emocionam com as leves chuvas de firmamento vértices de sonhos levemente empoeirados - já desisti deles? -

E novas dores Colar de esmeraldas Paixões serenadas Pela amizade Início de fevereiro Reinício de mim Gotejando Como essa chuva – tão minha Pássaros Nos ventos do horizonte esvoaçante

junqueira, kyoto, curitiba o oceano cai novamente invertido pela boca da noite um espelho de ondas na última réstia de luz penso com calma e certa confusão em junqueira em kyoto em curitiba as luzinhas na estrada é normal elas sumirem entre um morro e outro, mãe? ela me responde um sorriso porto em algum lugar como transformo meu barco em golfinho?

talvez assim ao invés da luz cambiante do farol eu nade no peito de sal nas brumas solares do não arrependimento

arcos I. houve uma noite ela era quase eterna se fecho os olhos sinto-a mas não a vejo a noite é escura pode se perder na penumbra da memória por que ainda lembro daquela? envolvendo as sombras havia arcos de luz colorida um globo gravitacional suspenso percebo não haver som... mas não estava errado ouço um lampejo redentor e silencioso de duas respirações

II. a dor na minha vida pode ser como uma torneira mal fechada? gota uma briga um desmaio gota morreu um cachorro gota um amor infrutífero gota... mas quem foi que deixou essa torneira aberta? quem fabrica torneiras? um dia eu vi, numa árvore, um pássaro negro e seu canto me transportou para um leito frio era uma cama de outro tempo vazia, desabitada, sepulcral e nela, um umbral de três arcos retorcidos

III. eu vi a mata estava fincado no seio da mata no início da aurora havia pássaros – sempre pássaros e um raio de luz solar um fino e poderoso cicerone solar penetrou-me pela testa houve um fluxo lento e vagaroso de seiva e sumo derramados raios, ramas, raízes e inúmeros arcos que transpõem o tempo as distâncias e os limites da materialidade

mãe enquanto o mundo surgia com seu choro à revelia e cada coisa bela de dor se travestia do ventre de uma mulher o amor nos redimia

sutileza sutileza não é presa não é algo a se esconder não é sinal de fraqueza nem é bicho a se temer sutileza é como o toque do chuvisco de verão e um coração sutil também pode ser trovão sutileza é ser no outro um espelho natural que reflete-nos aos poucos cada quem e cada qual sutileza é ver o mundo no olhar de cada um o que existe lá no fundo do naufrágio o baú sutileza é como o vento que sussurra uma canção e com seu beijo frio nos tira do chão

sutileza é sortilégio não confunda o que é sútil e o que é banal sutileza é a correnteza de um rio e a destreza de uma nau sutileza é privilégio não te afunda num covil nem prega o mal sutileza é a certeza de um rei e a coroa de um pardal

farol meu corpo se enrola nas voltas úmidas de um farol na beira do mar ele mora de um planeta que perdeu o sol se o dia se deitou nas rocas do meu atol miro a vida nas rochas flamejantes do arrebol e sei que todo esse medo essa busca por um lar é o rosto do desassossego mar negro, meu altar e vou fazendo lugar na venda e na tormenta aceitando caminhar como a montanha se movimenta meu corpo se rende nas portas úmidas de um farol na beira de mim ele mora manto, estrela, girassol

mudando acho que estou mudando não caibo mais em mim vejo passar os anos quero chegar ao fim quero me mudar penso em estradas logo cedo preciso ver o mar não sei se hoje eu volto cedo tenho que me encontrar ouço alguém me chamando sinto que devo ir sonho com oceanos quero submergir quero me afogar penso em como somos tão pequenos preciso viajar não sei se estou me entendendo devo lhe confessar lembro dos teus olhos me dizendo acho que vou chorar você foi viver e eu entendo tenho que me encontrar





sobre bibliotecas e floriculturas I. Sobre bibliotecas e floriculturas é pra lem- brar a mim mesmo onde tudo começou. Para resgatar a beleza das coisas singelas. Minha vó trabalhava em uma biblioteca. Eu me lembro do encantamento que sen- tia quando ela me levava ao seu trabalho quando eu era criança. O amor com o qual ela olhava os livros. As canções são univer- sos. Talvez eu tenha me esquecido disso. Para me lembrar, proponho essa jornada de viagem pelo olhar. E pelo som. Sempre foi sobre isso. Tiro meus sapatos, me acon- chego novamente nesse lugar. Lugar ne- nhum. Um ponto avulso entre bibliotecas e floriculturas.

II. O significado de cada coisa depende da história de cada um. Venho pensando em como a gente se diminui a todo momento, tentando encontrar na história dos outros o nosso próprio caminho, o que é impos- sível. Caminho é vereda que percorremos com os próprios pés. As dores que a gente encontra são nossas. E também as peque- nas e tão significantes vitórias. E pra se ter caminho, é preciso arrebentar as correntes. Olhar ao horizonte com liberdade de pen- samento. Morar em algum lugar entre céu e chão. Ser livre como flores e livros.

III. Tem dias que são escuros. E por mais que eu aperte os olhos, tudo parece turvo e úmido. Uma madrugada que viaja pelo tempo de cada respiração. Mas no meio de uma noite sem lua, nos vãos de um abismo de silêncios, nas encostas de um vazio estelar, no ventre desse escuro eu me deparei com um espaço novo no fundo dos pulmões. Um oceano de oxigênio e líquens. Nas profundezas dessa água um recife de corais que brilham nas pe- numbras dos fins. Fim e começo. Recomeço. Tudo do avesso? Me parece mais... tudo como deve ser. Cada coisa em seu lugar. O escuro dos olhos fechados em prece. O escuro do es- paço infinito. O escuro que traz beleza à luz. E cada tom de escuro que tece uma sinfonia entre meu peito e o próximo dia que aguarda paciente a alvorada.

IV. Infinito. Uma força pra além da nossa com- preensão. Se o infinito é algo que não tem fim, cada uma de suas partes são igual- mente inacabadas. E o inacabado sempre precisa de duas vias, duas mãos, duas fa- ces que se olhem. O infinito é o senhor da solidão. Talvez quando nos sentimos sós, no último suspiro da tarde, nas últimas horas da esperança, no silencioso e atra- palhado momento antes de dormir, onde nossos pensamentos vagam por um mar de coisas fúteis e fazem voltas tímidas até pousarem delicadamente sobre aquilo que amamos, lá no fundo. Nesse momento eu preciso que você saiba, preciso que acre- dite: não estás só. Porque duas partes do infinito ressoam em consonância, mesmo longe. A imensidão, dividida em duas, ain- da contém mares e desertos. E a fundura de uma alma não se mede pelo cansaço dos dias. Chega de tentar calcular cifras que não sabemos. Que o amor seja o novo

senhor da solidão. Que a solidão seja so- mente uma saudade do que existe. Uma face de montanhas e estrelas cadentes. Ou teleguiadas.

estampido memórias que moldam





geleira, vapor levo comigo no peito um sujeito de qualquer lugar um sujeito que carrega um sonho no olhar ele leva uma vida modesta ou só leva o que vai precisar e caminha num tempo que não dá pra contar ele sabe chorar eu vejo ele na estrada na cidade do interior na favela, na rua, na praça faz calor e a labuta é pesada mas ele não desiste não, senhor é preciso viver na geleira e no vapor ele não pode errar toda vez que o nosso olhar se cruza sinto um nó no meu peito apertar me invade uma dor que é intrusa

e ancestral e eu percebo: ele também me vê como um igual outro dia eu vi um senhor quis perguntar seu nome e a pergunta perdeu-se no ar


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