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Revista Pentagrama 2008-2

Published by Pentagrama Publicações, 2016-06-13 21:25:12

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pentagrama Lectorium Rosicrucianum O edifício espiritual do futuro Uma mudança climática interior Um coração puro Viver ou ser vivido Deus e o DNA2008 2MAR/ABRNÚMERO

Redação REVISTA BIMESTRAL DAC. Bode, A.H.v.d. Brul, I.W. v.d. Brul, ESCOLA INTERNACIONAL DA ROSACRUZ ÁUREAA. Gerrits, H.P. Knevel, G.P. Olsthoorn,A. Stockman-Griever, G. Uljée, LECTORIUM ROSICRUCIANUMP. Huijs (editor responsável) A revista Pentagrama propõe-se a atrair a atenção deEndereço da Redação seus leitores para a nova era que já se iniciou para oPentagram,Maartensdijkseweg I, desenvolvimento da humanidade.NL – 3723 MC Bilthoven, [email protected] O pentagrama tem sido, através dos tempos, o símbolo do homem renascido, do novo homem. Ele é tambémEdição Brasileira o símbolo do Universo e de seu eterno devir, por meioEditora RosacruzAdministração, assinaturas e vendas do qual o plano de Deus se manifesta. Entretanto,Caixa Postal 39 um símbolo somente tem valor13240-000 – Jarinu – SPTel: (011) 4016-1817 quando se torna realidade. O homem que realizaFax: (011) 4016-5638 o pentagrama em seu microcosmo, em seu pró[email protected] pequeno mundo, está no caminhoEditado nos seguintes idiomas da transfiguração.Holandês, Português, Alemão,Espanhol, Francês, Grego*, Húngaro*, A revista Pentagrama convida o leitor a operarInglês, Italiano*, Polonês*, essa revolução espiritual em seu próprio interior.Russo*, Sueco*A revista é editada 6 vezes por ano(*Editada 4 vezes por ano)Lectorium RosicrucianumSede no BrasilRua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo, [email protected] em PortugalTravessa das Pedras Negras, 1, 1º, [email protected]© Stichting Rozekruis PersProibida qualquer reprodução semautorização prévia por escritoISSN 1677-2253 52

pentag rama Ano30 Número2 Abril 2008Por toda parte ouvimos dizer que as coisas devem mudar, e em Sumárioespecial os seres humanos. Essa é a mensagem que o fundadordo Lectorium Rosicrucianum propagou durante toda a sua vida. O edifício espiritual do futuro 2O artigo de Annick de Witt “Uma mudança climática interior”, Os tempos estão maduros paraque publicamos neste número da revista Pentagrama, é um ex- uma mudança climática interior 8celente exemplo. Com plena responsabilidade, é absolutamentepossível, em nossa época, fazer brilhar com todas as suas cores Annick de Witta antiga mensagem gnóstica sobre as duas ordens de natureza: A vida de Valentino 15a ordem da realidade terrestre e a da realidade divina. O artigo Valentino e o mito da criação 18intitulado “O edifício espiritual do futuro” mostra como umaescola espiritual moderna como a Rosacruz Áurea se esforça O coração puro 21para estruturar a mudança interior. O pleroma segundo Valentino 25 Viver ou ser vivido 26 Deus e o DNA ou Deus no DNA? 30 A criação da Sophia 38 Capa: A força divina, no antigo Egito, é com freqüência representada por um nobre animal que protege o Filho de Deus (o faraó). O célebre Hórus é um exemplo. Este leão da tumba de Ramsés VI é o protetor (ou guardião) do horizonte, que vela para que nada impeça o sol espiritual de surgir no horizonte. tijd voor leven 1

O edifício espiritual doAlocução inaugural do ano de trabalho na Holanda e naBélgica, proferida em setembro de 2007Um triângulo ígneo manifesta-se de forma mínios da obra mundial. interativa e regular em todos os locais de Um triângulo análogo existe no axioma:“conheci- trabalho de uma escola espiritual gnóstica. mento, amor, ação” gravado na pedra comemora-Esse triângulo tem três lados: tiva no roseiral de Noverosa. São “os três atributos- a unidade no interior do corpo-vivo, sublimes de Cristo”:- a liberdade de uma elevação vivente em direção à - o conhecimento: guardar a simplicidade e a leve-fonte de luz e força, za no trabalho;- e o amor irradiante que labora em todos os do- - o amor: testemunhar do equilíbrio interior, que2 pentagrama 2/2008

futuroestá no silêncio – repouso – movimento; Essa poderosa força ígnea manifesta-se como um- a ação: alcançar o alvo no momento justo, no duplo foco, do interior para o exterior e do exte-movimento e na ação. rior para o interior, do alto para baixo e de baixoO triângulo “unidade, liberdade, amor”, orientado para o alto.para o alto, e o triângulo “conhecimento, amor, É o olhar do ser interior que se dirige para o exte-ação”, orientado para baixo, simbolizam a essência rior, do observador para o observado. É o poder deígnea que jorra, como uma energia vulcânica, da perceber o outro em seu estado interior, portanto,fonte central do campo de força. como homem interior. É aprender a perceber o buscador, o buscador que aguarda que o reco- nheçamos. É ver e compreender que os jovens de nossa época vivem e buscam de modo diferente. É ver o crescimento do jovem adulto, que inicia o caminho do discernimento. É ver o crescimento do homem que se tornou adulto, que vive na realida- de do temporário, da mudança e do permanente, e reconhece a experiência profunda que existe atrás de si. É o regresso dos anciãos no campo manti- do vivo pela Fraternidade da Vida, em cujo seio o presente, o passado e o futuro fundem-se na força da onipresença. Tudo isso forma um edifício espiritual, no qual a brilhante estrela-guia de seis pontas acompanha o buscador no caminho, até que ele tome lugar no pentagrama da realização: o lar da Fraternidade da Rosacruz, a Fraternidade que está no mundo, mas não pertence a ele, que está acima dele, mas penetra ao mesmo tempo seu coração, o centro do seu mundo. Assim, encontramo-nos todos reunidos, hoje, no decorrer desta atividade, no início de um novo ano de trabalho. Recarregados, inspirados, cheios de uma nova coragem, aceitando inteiramente nossa responsabilidade, prontos para um novo esforço que exige que juntemos nosso tesouro interior a o edifício espiritual do futuro 3

Tudo isso forma um edifício espiritual, no qual o guiaé a brilhante estrela de seis pontasessa incomensurável riqueza de luz que pode liber- nal que emana do Logos. Dessedentados pela águatar o mundo e a humanidade de todas as ilusões e da vida inexaurível, pelo mar da plenitude divina,de todas as mentiras. nos tornaremos, então, verdadeiros portadores deA Escola Espiritual é uma comunidade na qual água, homens de Aquário. É chegado o tempo emo ensino e a aprendizagem encontram um lugar que numerosos alunos superarão a teoria e coloca-de crescimento e de desenvolvimento, onde o rão essa missão em prática. Somente sobre essa baseprofessor – o campo de força – está a serviço do podemos conduzir o desenvolvimento da futuraaluno. Fazer parte da comunidade tem por objetivo obra gnóstica a outro nível, a novas e maravilhosasconduzir a alma ao crescimento e ao florescimen- possibilidades de florescimento, do interior para oto pelo processo particular da auto-iniciação. Esta exterior. O mundo e a humanidade estão a cami-comunidade reúne, portanto, um grupo de homens nho para o que se anuncia como nadir.e mulheres dinâmicos que, ao lado das numerosas Ora, é precisamente nesse ponto crucial do declí-atividades do Lectorium Rosicrucianum, interiores nio ou da ascensão que esse desenvolvimento é dee exteriores, se orientam diariamente para o campo grande importância, porque a radiação emanadada obra mundial, onde a Fraternidade Mundial poderá diminuir consideravelmente o sofrimentoescolhe e gera seus notáveis pioneiros. do mundo. O futuro desenvolvimento interior daA missão da Era de Aquário, diante da qual a Ro- Escola Espiritual fundamenta-se em um corpo pu-sacruz Áurea nos coloca, é a renovação e a trans- rificado e na nova atividade da alma. Pela obtençãofiguração, mediante a atividade do homem alma- dessa nova consciência, nascida dos princípios eter-espírito consciente. Quando aceitamos essa missão, nos de unidade, liberdade e amor, nós nos ligamos,não agimos somente em nome da Fraternidade, exteriormente, ao trabalho mundial, utilizandomas colocamo-nos concretamente a serviço do métodos e meios da nossa época.mundo e da humanidade. Somos, então, verdadei- Não existem estratégias elaboradas comros servidores. Essa missão excede de longe nosso antecedência para esses desenvolvimentos interioresatual discipulado, porque é como homem alma- e exteriores. Porque se trata do cumprimento doespírito que servimos realmente a grande obra da plano do Logos, que pode se manifestar pela novaFraternidade. alma e pela nova faculdade de pensar. E assim, umTambém não devemos estagnar. Quem orienta in- círculo crescente de alunos pode percebê-lo decessantemente seu olhar para o mais elevado cume modo intuitivo, ser inspirado por ele e realizá-lo;da montanha sagrada é constantemente renovado, e o que demonstra uma consciência crescente ecompreende que ele mesmo se tornou aquele que um fortalecimento do campo eletromagnético darenova. Escola Espiritual. Um novo campo de manifestaçãoÉ dessa forma que, um dia, nos tornaremos criatu- dinâmico correspondente a esse desenvolvimentoras divinas, que bebem eternamente da fonte origi- interior começa a se esboçar. É um aspecto4 pentagrama 2/2008

exterior que envolve a Escola e oferece aos ta: Não deve haver um elo faltante, um caminho anumerosos buscadores no mundo as condições percorrer que devesse nos religar à verdadeira mis-ideais para empreender um caminho. são do ser humano? Em que consiste essa missão?Apoiando-se no princípio hermético original Onde e como encontrá-la? Como aplicá-la?– tudo receber, a tudo renunciar, para tudo reno- Antes de aprofundar essas perguntas no âmbito davar na força do amor –, os dois desenvolvimentos Escola Espiritual, é bom estarmos atentos aos sinais,mencionados se concretizarão nos tempos vindou- cada vez mais claros, emitidos por nossa sociedade.ros, tanto no ensinamento quanto na vida. Isso é o Vemos um exemplo na rubrica “Opinião e Deba-chamado de Aquário, que anuncia para nossa época te” do jornal holandês NRC Handelsblad de 8 deuma mudança irreversível, e hoje se manifesta por julho de 2007, na qual a pesquisadora Annick deum sentimento de inquietação. Witt introduz um novo paradigma, o da mudançaTanto o homem como indivíduo quanto a huma- climática interior:“Na visão do mundo racionalnidade como um todo encontram-se a um passo comum, o conceito ‘mudança climática’ apenasdo processo de conscientização; e a pergunta do tem valor quando percebido de maneira empíricasentido da vida toma lugar cada vez mais central e tangível. Os fenômenos internos são reduzi-no mundo. dos aos seus equivalentes externos: a consciênciaAl Gore, no seu filme Uma verdade inconveniente, e é considerada como um subproduto do cérebrosobretudo pelo seu desempenho pessoal na cena e o sentimento do amor é atribuído a processosmundial das multimídias, apresentou esse desenvol- químicos. Essa visão materialista da realidade ofe-vimento como uma crise ecológica irreversível. rece uma compreensão profunda do lado físico doPessoa alguma nem povo algum pode permanecer mundo, mas tende também a fazer do mundo uminsensível.Al Gore mesmo diz:“Quanto mais fun- simples objeto, um bem de consumo, um instru-do eu cavo para encontrar as raízes da nossa crise mento.Assim, a natureza não só não tem nenhumecológica global, mais fico convencido de que ela valor especial, mas não tem valor algum. Essa visãoé a manifestação de uma crise interior que, na falta do mundo caracteriza-se, por conseguinte, por umade uma palavra mais adequada, é espiritual”. separação fundamental entre o homem e a nature-Nesta época em que tudo muda tão depressa, com- za, o espírito e o corpo, o assunto e o objeto”.provamos objetivamente que a vivência desta crise Annick de Witt termina sua exposição com estaé muito diferente quando se trata de crianças ou notável conclusão:“As visões do mundo tendem ajovens, e que há um grande abismo entre crian- se desenvolver até suas conseqüências mais extre-ças, jovens, adultos e anciãos, bem como entre os mas.A única coisa capaz de modificar esse curso émundos nos quais eles exercem suas faculdades de uma imagem do mundo inegavelmente superior:compreensão e expressão. um novo modelo que responda aos desafios doMas essas quatro gerações fazem a mesma pergun- tempo e ultrapasse o antigo modelo. Uma visão do o edifício espiritual do futuro 5

O leão de Judá sim-boliza a força espi-ritual crística, vigiaa nova construção,a morada espiritualSancti Spiritus.mundo deve, portanto, poder superar o drama do É a força do Logos, a Gnose, que testemunha dotempo. E é exatamente o que está ocorrendo”. seu amor.Isso nos transporta diretamente ao âmago da nossa Unidade – Liberdade – Amor.atual missão, individual e coletiva. Pomos nosso Unidade de grupo – Liberdade interior – Amordiscipulado à prova no ponto em que ele cruza para a humanidade.nossa experiência diária. Na qualidade de alunos,somos colocados à prova em nossa vida cotidiana. Essa é a receita com a qual preparamos o remédioTentemos imaginar isso da seguinte maneira: a da libertação gnóstica. Essa fórmula espiritual dálinha vertical é a nossa inteira aspiração a nos abrir uma nova dimensão a nosso trabalho: em primeiroao impulso do campo de força posto a nossa dis- lugar, o desenvolvimento ulterior das atividades daposição; a linha horizontal é a responsabilidade que Escola Espiritual com seus alunos; em segundo lu-temos de transformar a força da qual dispomos e gar, o desenvolvimento ulterior da força da expan-de acrescentar o fruto dessa obra ao capital espiri- são interior nos sete aspectos do corpo-vivo;tual com o qual a Escola Espiritual se manifesta na em terceiro lugar, a consolidação da Escola de Mis-corrente universal de Fraternidades.Assim, a Rosa- térios: ser um instrumento no seio da obra da sétu-cruz Áurea vivente está erigida no campo mundial pla Fraternidade Mundial.A sede central da Escolacomo uma cruz. Ela age: Espiritual, em Haarlem, ocupa um lugar elevado na obra mundial. Foi assim que, em 1938, a conclusão do interior para o exterior, do primeiro templo inaugurou um novo período e do exterior para o interior; que o raio chamador se tornou ativo. de baixo para o alto, Em seguida, ao longo dos anos, os grandes centros do alto até coração do mundo. de renovação irradiaram como o do Templo deÉ a força de Cristo que arrebata o coração do mundo.6 pentagrama 2/2008

O chamado da Fraternidade se manifesta por seuaspecto material, por sua inspiração interior viva,por sua manifestação espiritualRenova, o foco do sétimo raio ou raio da realiza- Na força da convicção dos fundadores da Fraterni-ção, bem como os numerosos centros de trabalho dade da Rosacruz clássica, confirmamos de novo oem muitos países do mundo. O chamado da Fra- que está gravado no epílogo da Fama Fraternitatis, oternidade manisfesta-se na obra de maneira mágica: Chamado da Fraternidade da Rosacruz:“É preci-por sua veste material, por sua inspiração vivente so, com efeito, que nossa construção, mesmo queinterior, por sua manifestação espiritual. centenas de milhares de homens a tenham visto deA Escola Espiritual, em sua atual fase de manifesta- perto, permaneça intangível, incólume, excepcionalção, está aberta à sociedade. Seu desenvolvimento e perfeitamente oculta por toda a eternidade.Àse manifesta em estreita relação com a humanidade sombra de tuas asas, ó Espírito Santo”.buscadora. O edifício espiritual do futuro eleva-se! Essa tríplice força espiritual determina a orientaçãoAl Gore fala de uma verdade inconveniente: com a qual nós, alunos e obreiros a serviço da sagradaa mudança climática do nosso planeta e as obra, fazemos surgir o quadrado de construção comconseqüências decorrentes para toda a sociedade. base na tríplice força espiritual. O quadrado de constru-Annick de Witt diz no seu artigo:“Devemos ção cede lugar a quatro gerações: a mocidade, os jovens,inverter nossa visão do mundo. Chegou o tempo os adultos e os anciãos; quatro grupos de homenspara uma mudança climática interior, uma dinâmicos a caminho do cumprimento da missão datransformação da consciência coletiva”. Fraternidade: viver o novo dia de manifestação µOra, nos aspectos da nossa Escola Espiritual que serenovam sem cessar, há sempre lugar para compre-ensão, novos meios e possibilidades que se juntamao coletivo formado por nossas crianças, nossosjovens, nossos adultos e nossos anciãos. o edifício espiritual do futuro 7

Os tempos estão maduros uma mudançaAnnick de Wittpublicado em NRC-Handelsblad, 19-7-2007P or detrás do aquecimento climático devido climática como um problema realmente preocu- ao efeito estufa oculta-se uma concepção pante, faltará base para a busca efetiva de soluções. racional do mundo na qual há pouco espaço A maioria das pessoas procura a solução nas novaspara o desenvolvimento pessoal e a questão do tecnologias. Mas sobre esse otimismo tecnológicosentido da vida. há muito a dizer. As novas tecnologias não caemPor conseguinte, nossos invernos moderados e do céu: o compromisso político e, conseqüen-nossos verões precoces nos fornecem a oportu- temente, um apoio substancial da sociedade são,nidade de inverter essa visão do mundo. Já não antes de tudo, necessários ao desenvolvimento e àse trata “de descartar a razão”, mas “de ir além da criatividade. É claro também que freqüentementerazão”. as inovações tecnológicas são depressa supera-Há décadas os movimentos em matéria de am- das por outros desenvolvimentos: demográfico,biente acentuam com força os riscos ligados à econômico, cultural. Os automóveis, por exemplo,mudança climática, e de repente todos tomaram tornaram-se mais econômicos, mas nós somosconsciência do perigo. De repente a atmosfera mais numerosos e nossos automóveis são maio-aqueceu-se. res. E se, de fato, os automóveis tornam-se maisNinguém poderia ter previsto uma mudança econômicos, o consumidor vai comprar de modomental tão rápida e radical. Podemos, contudo, significativo? Comprará um pequeno automóvelexplicá-la. se o seu status exige um maior?Pensemos, por exemplo, no documentário Uma O debate atual sobre o clima limita-se geralmen-verdade inconveniente, de Al Gore. Ele nos fez vi- te a novas tecnologias e a energias duradouras,venciar, direta e mesmo fisicamente, a ausência de com algumas pequenas incursões no domínio datransição, que apresenta no filme, demonstrando mudança comportamental.que um inverno quase inexistente foi seguido de Por mais importantes que sejam esses elementos,um verão extremamente precoce. Além disso, a uma política eficaz em matéria de clima exige,economia vai bem e a expansão econômica em antes de tudo, uma transformação da consciênciageral provoca um interesse crescente pelo meio coletiva a fim de que uma mudança climática in-ambiente. Ademais, somos sempre confrontados terior possa ocorrer. Se quisermos realmente queoutra vez com a incerteza e as suscetibilidades toda essa agitação ao redor da mudança climáticapolíticas quanto às fontes de energia. não se reduza a uma propaganda difundida pelaEsse clima provocou uma mudança de curso nos mídia, que desaparece tão rápido quanto veio,setores de energia contrária à tendência dos anos deveremos procurar mais profundamente em nóspassados, fato que mostra a considerável impor- mesmos e compreender que essa crise refere-se atância da consciência coletiva: enquanto a massa nós mesmos, à nossa relação com o mundo e aocrítica da população não considerar a mudança nosso modo de vida.8 pentagrama 2/2008

paraclimática interior É necessário inverter nossa visão de mundoUma visão racional e científica do mundo Eu lembrarei de ti. © Iris le RütteNa visão do mundo racional comum, o conceito “fé” porque contém em si, tal como uma reli-“mudança climática” apenas tem valor quando gião convencional, a promessa da felicidade, atépercebido de maneira empírica e tangível. mesmo uma espécie de libertação. Ela escondeOs fenômenos internos são reduzidos aos seus uma ideologia que fala fortemente às necessi-equivalentes externos: a consciência é consideradacomo um subproduto do cérebro e o sentimen-to do amor é atribuído a processos químicos.Essa visão materialista da realidade oferece umacompreensão profunda do lado físico do mundo,mas tende também a fazer do mundo um simplesobjeto, um bem de consumo, um instrumento.Assim, a natureza não só não tem nenhum valorespecial, mas não tem valor algum. Essa visão domundo caracteriza-se, por conseguinte, por umaseparação fundamental entre o homem e a natu-reza, o espírito e o corpo, o sujeito e o objeto.Num mundo onde a matéria constitui a realidadefinal, tudo o que aí vive está fundamentalmenteseparado: os limites materiais são insuperáveis.O homem, ser racional, põe-se em linha diretacontra a natureza irracional - não somente a queo cerca, mas igualmente a de sua própria natureza.A ligação entre essa visão do mundo e os proble-mas climáticos atuais é evidente. Uma visão demundo que nega qualquer interiorização podeproduzir apenas uma cultura muito “exterioriza-da”. Com uma concepção da vida tão materialis-ta, a busca por felicidade pode nos levar apenas afreqüentar os shopping centers. E é precisamenteessa cultura obstinada de consumo que é difícilde conciliar com um comportamento e uma po-lítica razoáveis em matéria de ambiente.Essa visão do mundo é concebida às vezes como os tempos estão maduros para uma mudança climática 9

dades fundamentais do homem, aos seus desejos às perguntas existenciais do indivíduo, do mes-e convicções. Dessa forma, ela é, com freqüên- mo modo que o contexto social não respondecia, considerada a barreira mais importante a ser às necessidades da sociedade. O novo relaciona-transposta para viver em comunidade de maneira mento social atesta: “A abundância não asseguraduradoura. o bem-estar. A Segurança Social não assegura aNão será fácil alterar essas convicções e idéias coesão social”. As respostas freqüentemente sãofreqüentemente inconscientes e muito enraizadas. procuradas na esfera do desenvolvimento pessoal,As revoluções metafísicas são raras na história da na busca pelo sentido da vida e pela espirituali-humanidade. Por revolução metafísica entende- dade. Parece-nos aqui útil nos referir à diferen-mos as transformações da visão do mundo em ciação proposta pelo filósofo Ken Wilber entregeral, que são determinantes para a economia, a as formas de espiritualidade “pré-racionais” epolítica, e para os hábitos e costumes da socie- “pós-racionais”.dade.Tais revoluções estendem-se, muitas vezes, Concepções mágicas e místicas bem como opor vários séculos e geram muita resistência. Os idealismo romântico constituem a primeira formaprecursores tiveram, às vezes, de pagar com a pró-pria vida suas qualidades visionárias, quando, porexemplo, a visão do mundo passou de aristotélicae cristã para racional e científica. Basta que noslembremos de cientistas como Galileu, Copérni-co, Kepler e Bruno, considerados heréticos devidoà sua concepção heliocêntrica do nosso sistemaplanetário.As visões do mundo têm tendência de se de-senvolver até suas conseqüências mais extremas.Apenas uma imagem do mundo inegavelmentesuperior é capaz de modificar esse curso: umnovo modelo que responda aos desafios do tem-po e ultrapasse o antigo modelo. Uma visão domundo deve, portanto, poder superar o drama dotempo. E é exatamente o que está ocorrendo.Os nômades da espiritualidade Nossa socie-dade pós-moderna afasta-se, sob muitos aspectos,da visão de mundo materialista. Uma mudançaanuncia-se em várias frentes. Basta observar abusca por qualidade de vida, por seu significa-do, por sua profundidade, bem como a aspiraçãoao desenvolvimento e à autenticidade pessoais.Reagimos devido a diversas fontes, indo da me-ditação à paixão segundo São Mateus. Porque omodelo ocidental, com sua abundância materialexcessiva e suas infinitas tentações, não responde10 pentagrama 2/2008

de espiritualidade. Quanto à espiritualidade pós- atividades exige clareza intelectual e explicaçõesracional, refere-se simplesmente à aquisição, por precisas. Porque, falando como Wittgenstein,evolução psicológica, de poderes situados e estru- “os limites da minha linguagem determinam osturados além do pensamento racional. Essas duas limites do meu mundo”. Esse campo por si só jáformas de espiritualidade constituem uma etapa é suficientemente obscuro e vago para necessitarlógica durante o desenvolvimento da humanida- de outros propósitos nebulosos.de: o indivíduo aspira descobrir no seu mais pro- Não se trata de uma corrente marginal. Se obser-fundo ser poderes como, por exemplo, a verdadei- varmos a civilização em geral, veremos transfor-ra paz interior, o pensamento criador universal, a mações que solicitam uma diferente compreensãoverdadeira empatia e indulgência, a autenticidade da realidade e uma nova visão do homem. Ose a integridade. Caso a razão seja suficiente para limites das concepções científicas positivistas sãoreconhecer seus próprios limites, essa forma de cada vez mais contestados e transgredidos. Naespiritualidade não é contra a razão, não luta com Filosofia, os antigos temas voltam à moda e aa razão. Pelo contrário. O desenvolvimento dessas arte conhece uma verdadeira reativação. A vida empresarial integra as práticas de meditação e o desenvolvimento pessoal, porque podem contri- buir para a criatividade dos trabalhadores e, como conseqüência, para a produtividade da empresa. Existe hoje uma economia em pleno desenvol- vimento na qual as matérias mais importantes já não são a terra ou o capital, mas o próprio homem: o seu trabalho, o seu meio, o seu saber, a sua criatividade e o seu poder mental. A espiritualidade é, portanto, freqüentemen- te carregada de negatividade. Para muitos, ela é nebulosa, irracional, regressiva - trata-se da forma pré-racional. Isso pode ser compreendido. Em nossa sociedade, às vezes acontecem experiências negativas devidas a pessoas que pretendem falar em nome de Deus e disso abusam de maneira desavergonhada. A imagem que se elaborou em redor da espiritualidade é desperdiçada por “gu- rus” que põem seus adeptos na sua cama, ou por indivíduos completamente perdidos que acham as divagações emocionais da sua “criança inter- na” mais importantes que o respeito ao próximo. Para muitos ateus convictos, tudo isso parece um regresso para coisas que, a justo título, foram erradicadas com muita dor e dificuldade. Mas a procura “dos nômades da espiritualidade” faz pensar que nossas idéias a esse respeito são madu- ras para “uma atualização”. A compreensão parece os tempos estão maduros para uma mudança climática 11

É isso aí! © Iris le Rütte Essa concepção da vida é geralmente associada a um grande sentimento de responsabilidade emter vencido o infantilismo doentio da maior parte matéria de ambiente, sentimento de importânciae procura atualmente sua forma num mundo crucial para a política climatológica em todos osadulto. aspectos.O ponto de partida de uma espiritualidade pós- Cada um de nós teve um dia a oportunidade deracional é o seguinte: o que é espiritual e “divi- sentir um momento de grande felicidade, talvezno” manifesta-se na e pela própria vida. Não se após ter feito a ascensão ao cimo de uma mon-reduz, portanto, a um além hipotético ou a um tanha, ao admirar a paisagem magnífica que seinventor externo à sua própria criação. Evolução revelava então; ou ao sentir amor por um sere criação não são conceitos que se excluem um querido, ou ao ter o prazer de contemplar umaao outro, mas antes as duas faces de uma mes- obra de arte ou ao ouvir música. Sentimo-nos,ma moeda: a evolução é um processo contínuo então, leves e preenchidos de alegria, abertos ede criação, e a criação encontra lugar graças à indulgentes em relação às pessoas que nos cercam,evolução.Tudo tem uma alma, e a diferença entre e nossos pensamentos tornaram-se mais claros.o homem e a natureza é antes essencialmente A nossa vida tomou um sentido. O melhor emgradual que absoluta. O homem é um co-criador, nós despertou. Nossas qualidades, que se revelamum artista da vida que, devidamente provocado, na vida diária apenas gota a gota, emergiram dedesenvolvido e cultivado, porta poderes supe- repente.Vivemos experiências sensoriais: a ligaçãoriores e um potencial mais importante do que com o nosso corpo, com outras pessoas ou comgeralmente acreditamos. E esse potencial dá-lhe o mundo estabelece-se de maneira natural, comotoda uma gama de possibilidades e uma respon- se as barreiras se dissolvessem ou se tornassemsabilidade considerável. O mundo, a natureza, a porosas. E por mais notáveis e excepcionais quevida, reencontram aqui seu valor e significado. sejam tais momentos, o mais incrível é que nota- mos que eles fazem que nos sintamos mais fortes. Tudo parece mais espontâneo e mais direto, de acordo com nossa própria natureza.Tais momen- tos são a ocasião, para alguns, de realizar escolhas, por exemplo, consagrar-se de corpo e alma às atividades consideradas realmente importantes. Nesse sentido, essa corrente, esse paroxismo, esse apogeu ou experiência sublime, contribui para aumentar o valor pessoal. Ciência e verdade Por ocasião da revolução que constituiu a passagem da visão cristã à visão científica do mundo, a Igreja opôs-se tanto quan- to pôde à emergência dos novos conceitos e suas implicações. Atualmente, é sobretudo o mundo científico que se revolta contra o modo de pensar predominante. A ciência, com o seu “direito de veto” em tudo o que se refere “à verdade”, tor-12 pentagrama 2/2008

nou-se a nova Igreja. O pós-modernismo – com Além do “ver”, o mundo da percepção objetivaa idéia de que tudo é relativo – é a conseqüência e da compreensão reservada, existe também ofinal dessa visão do mundo. mundo do “ser”, das experiências subjetivas e dasAgora que o homem compreendeu o mundo impressões do coração. Mas, em geral, há estritamaterial com tanta inteligência e precisão quanto separação entre o mundo vivenciado e o reco-possível, uma fundamental falta de conhecimento nhecido mundo científico.de natureza diferente revela-se. Aspira-se, de fato, O resultado é a situação absurda na qual coexis-conhecer de maneira subjetiva, provar, experi- tem duas formas essenciais de conhecimento e,mentar. Uma verdadeira necessidade de compre- conseqüentemente, duas realidades diferentes! Issoender o universo interior pessoal emerge. Discu- dilacera o mundo, mas também cada um de nós.tem-se valores e normas. E sempre mais pessoas O homem como sujeito conhecedor e o homemprocuram formas de desenvolvimento interior. como objeto conhecido tornaram-se dois domí-Por exemplo, de acordo com um estudo recente, nios científicos aparentemente incompatíveis.grande parte da humanidade “ora”. Freqüente- Isso apresenta um grande problema para a filo-mente não se trata de invocar Deus de maneira sofia científica. O novo paradigma e as experi-tradicional, mas antes de uma forma de introspec- ências de muitos indivíduos contêm um germeção meditativa, de uma técnica psicológica para da verdade: a vida na terra possui uma dimensãoÉ necessário compreender o universo interior decada um Que a sorte esteja a teu lado. © Iris le Rütte espiritual, interior. Como essa existência não pode ser medida empiricamente e é difícil racio-restabelecer o equilíbrio interior. nalizá-la, ela desliza pela trama da verdade cientí-Esse mundo de experiências interiores não é, fica. Com base nas atuais regras do jogo, podemoscontudo, nem compreendido, nem descrito, nem dizer como as pessoas vivenciam essa dimensão,demonstrado no âmbito das concepções científi- mas nada podemos dizer com respeito à própriacas positivistas atuais. Os cientistas mais razoáveis realidade. O conhecimento objetivo é empírico-reconhecem que além dos conhecimentos racio- racional; o conhecimento subjetivo é uma cons-nal-científicos existem outros meios igualmente trução sócio-psicológica.legítimos, dos quais a arte e a filosofia geralmente Contudo, enquanto não reconhecermos comosão consideradas os mais importantes. “real” esse mundo interior que muitos de nós claramente experimentam em nossos melho- res momentos, como poderemos esperar que as pessoas se orientem ou se desenvolvam nesse aspecto? Como repreendê-las por buscar sua salvação no consumismo sem alma, no materialis- mo superficial, numa exteriorização vazia e numa busca vazia por prazer? os tempos estão maduros para uma mudança climática 13

O mundo interior de cada homem é o lugar único onde ele pode sentir o amor, onde ele pode provar a compaixão Eu lembrarei de ti. A mudança climática, uma “bênção disfar- © Iris le Rütte çada”? Uma revolução metafísica é um processoEntretanto, atenção: certamente é esplêndido doloroso, difícil e extremamente lento. Nesseaproveitar a vida, e no mundo físico há uma contexto, uma pequena pressão externa destinadagrande beleza. Mas essa felicidade ou alegria a vencer a resistência social é, por conseguinte,não terá sentido se não atribuirmos real valor às oportuna. A mudança climática - o drama doexperiências interiores, se as desprezamos ao invés nosso tempo - com todas as suas ameaças, desem-de cultivá-las - porque o ponto essencial onde penha um papel chave e revela-se uma bênçãopodemos encontrar alegria e felicidade é onde o disfarçada. Seu caráter onipresente e inegávelamor pode ser vivenciado, os valores podem ser nos obriga a uma mudança radical de idéias esentidos, a compaixão pode emergir, onde pode- comportamentos. Aparentemente, só com muitamos contatar nosso eu, nosso próximo, a natureza. dificuldade aprendemos a respeitar a natureza eEntão, como estudar de maneira objetiva essas ex- os reinos exteriores e interiores que nos foram le-periências interiores sem fazer objeções? Como gados. A mudança climática auxilia drasticamentepodemos, de maneira confiável, torná-las fontes a humanidade e a leva ao complexo mas benéfi-de percepção? E podem elas ajudar-nos a pene- co processo de tornar-se adulta, de desabrochartrar cada vez mais no nosso ser interior? Enquan- totalmente.to continuarmos a nos agarrar ao céu estrelado Já em 1992, Al Gore escreveu em Earth in theque nós mesmos construímos não poderemos ver Balance: “Quanto mais profundamente procuro aso novo mundo. raízes da crise global ambiental, mais sou persua- dido de que se trata da manifestação exterior de uma crise interior que, na falta de uma palavra melhor, é espiritual”µ Annick de Witt trabalha para a fundação Aarde, uma célu- la de reflexão sobre a natureza e o ambiente. Ela fez vastas investigações sobre as relações entre orientação espiritual e responsabilidade pelo meio ambiente. As imagens deste artigo são cerâmicas de Iris le Rütte. Amsterdã, 1993.14 pentagrama 2/2008

a vida de Valentino “Reconheci-o, aquele que era o meu ser verdadeiro, de quem fui um dia separado.” Mani (216-277)Gilles Quispel*V alentino, egípcio de origem grega e de um filósofo da vida. Em Cádis, descobre que as nome latino, escreveu suas obras em grego marés dependem da fase da lua. Ele conclui que há e foi um importante gnóstico da Antigui- simpatia entre o céu, a terra e tudo o que existe.dade. Nascido por volta do ano 100 da nossa era Para ele, Deus é um espírito que penetra todasnum lugar incerto do delta do Nilo a cerca de as coisas e as liga umas às outras.Apesar das suascento e vinte quilômetros a leste de Alexandria, pretensões científicas, ele abre a porta à magia e aodeve ter lido a Ilíada na escola, fato que transparece ocultismo.no Evangelho da Verdade, onde é evocado um sonho No início,Valentino é receptivo a essas noções,inspirado em uma imagem da Ilíada. mas descobre que o platonismo é uma forma deEle tinha espírito poético. Para compreendê-lo racionalismo pelo qual não tem simpatia. Maisé necessário preparar-se lendo a obra de poetas tarde, diz que a filosofia quer varrer com impru-como Sponsæ Eternæ (Noivos Eternos) de P. C. dência as profundidades de Deus e que essa hybrisBoutens, De Afspraak (O compromisso), de A. Ro- (arrogância) levou à queda. É nessa época que temland Holst, Fausto, um mito gnóstico de Goethe, contatos com o cristianismo que acabara de nascer.The marriage of heaven and hell (O casamento do céu Nas areias do Egito são descobertos fragmentos dee do inferno) de William Blake. escritos cristãos que mostram que, mesmo antes doValentino seguiu uma formação científica em ano 200, os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos eAlexandria. Posidônio e Eudorus reinavam, então, Lucas) já eram conhecidos.Também é descobertona filosofia. Eudorus esforçava-se para reconciliar um fragmento do Evangelho de João, que parecePlatão e Aristóteles e ensinava uma filosofia bas- ter sido conhecido muito cedo no Egito.tante intelectual, mas não mística, segundo a qual O melhor texto em grego do Novo Testamento, oo cérebro de Deus contém efetivamente as Idéias, texto alexandrino, foi composto antes do ano 200embora o mundo ainda não fosse uma emanação por filólogos gregos, dentre os quais muitos cristãosde Deus, como disseram Valentino e, mais tarde, de nacionalidade judaica. É interessante observaro neo-platônico Plotino. Encontramos Eudorus, que o Novo Testamento nunca fala sobre Alexan-entre outros, nos escritos de Hermes Trismegisto e dria, pois ele é particularmente centrado em Paulo,nos gnósticos. apóstolo dos pagãos, e, por conseguinte, é muitoEm certo sentido,Valentino era também um pla- parcial.tônico: de acordo com ele o cosmo é um reflexo, No Egito viviam cerca de dois milhões de judeus,mas apenas um reflexo, do mundo espiritual das mais que na Palestina. Nas tradições da comuni-Idéias, que ele chama de “pleroma” dos éons. Lite- dade original de Jerusalém, de onde missionáriosralmente os éons são eternidades bem como senti- eram enviados a Alexandria, ensinava-se que Jesusmentos, pensamentos e reações afetivas de Deus. era o verdadeiro profeta, que tinha se manifestadoPosidonius é um estóico do primeiro século antes sob diferentes formas às gerações anteriores an-da nossa era. Foi o mestre de Cícero na ilha de tes de aparecer definitivamente como Jesus. EssaRodes, para onde fora banido. Ele é um vitalista, crença era compartilhada pelos elkesaítas e pelos a vida de Valentino 15

pseudo-clementinos, que acreditavam também que, d.C. No tempo de Valentino, a direção da igrejapelo batismo no Jordão, Jesus tornou-se Cristo. se apóia nos anciãos escolhidos pelos membros daValentino explica isso do seguinte modo:“Jesus comunidade. Em 136 d.C., Valentino vai a Roma,morreu quando o espírito que descera sobre ele no onde funda uma livre universidade de ciências es-Jordão o deixou”. pirituais, que tem ramificações na Itália, em Antió-Ele diferencia Jesus, um corpo espiritual que nas- quia e Alexandria. Ele concebe o sistema religiosoceu, do Logos que se liga a ele. Valentino prova- valentiniano e seus alunos inauguram em Roma,velmente é muito influenciado pela imagem de após a sua morte, a escola ocidental ou italiana daCristo do Evangelho de João. Para ele e para João, gnose valentiniana.Cristo é a revelação do que está escondido, filho Evidentemente ele e Marcion foram afastadosdo homem ou homem que reluz numa noite cós- da igreja romana, e questiona-se se os partidáriosmica, como um farol ao lançar um raio de luz, que desses dois mestres não constituíam a maioria dostoca a terra por um curto período e, em seguida, cristãos de Roma. Supõe-se que ele tenha voltadovolta à sua origem. Seu pensamento é cristocêntri- para Alexandria e que faleceu em idade avançada,co, ele proclama um cristianismo joanino. por volta do ano 160.Em Alexandria, ele ensina na comunidade cris- Valentino considerava que Cristo representa o Lo-tã, que, nessa época, ainda não era estruturada de gos, a revelação do que está escondido. Numa vi-maneira autoritária. Isso ocorre apenas no ano 250 são, ele vê uma criança recém-nascida. É a primeiraO16mpuenndtaogragmreac2o/2-0r0o8mano no tempo de Valentino.

vez que o tema do nascimento de Deus no coração Os muros da moderna biblioteca mundial de Alexandria,do homem é mencionado. nos quais estão gravadas palavras em todas as línguasO fundamento do ser, Deus, é profundidade e do mundo.silêncio. Dele emanam os éons, imagens provindas À esquerda:Alexandria, escritos de formas variadas dodo reino espiritual. Deus tem uma consorte tam- começo de nossa era.bém chamada Sabedoria ou Espírito Santo. Valen-tino chama-a regaço. dedicaram-se aos homens, aos quais se juntaram, eO mundo espiritual e o visível não foram criados concederam-lhes a gnose.Além disso, eles tambémdo nada. Eles emanam de Deus e nasceram de seu precisam dos homens com os quais se consorciam,aspecto feminino. União e parto guiam o processo pois eles não podem entrar no pleroma, o reino dode evolução. O profeta experimenta que, como ser Espírito. Juntos formam um par. Esse anjo guardiãoespiritual, é admitido no todo universal e idêntico é originalmente o daimon grego, que acompanha aao fundamento daquilo que é. Os indianos cha- criança quando de seu nascimento e é sua imagemmam isso de advaita, a não-dualidade. Isso impli- e semelhança.ca também que o mundo visível, revelado pelos Valentino considerava o anjo como o noivo e o sersentidos e pela inteligência, é apenas ilusão. Isso foi humano como a noiva: o eu inconsciente (o anjo)o que a criança revelou a Valentino. e o consciente do gnóstico formam uma unida-De acordo com Valentino, Cristo veio para liber- de indestrutível e celebram juntos “o mistério dotar os homens de todas as ilusões e conduzi-los ao verdadeiro casamento”, do qual o casamento entreauto-conhecimento. No Evangelho da Verdade, homem e mulher é apenas uma imagem µa vida no mundo é comparada a um pesadelo doqual é necessário despertar. *Em 1947, Gilles Quispel publicou uma reconstituição do ensinamento“Por isso, quem possui a Gnose tem algo de supe-rior em si. Se é chamado, ouve e responde. Ele vol- original valentiniano (mythos), que extraiu dos escritos do caçador deta-se e eleva-se em direção a quem o chama. Elesabe o que significa ser chamado. Então ele possui heresias Irineu. Em 2003, integrou-o ao livro supra-citado, cujo primeiroa Gnose, realiza a vontade daquele que o chama edeseja agradá-lo. Ele recebe a paz e toma posse de capítulo serviu de base para este artigo.seu nome. Quem desse modo possui a Gnose sabede onde vem e para onde vai”* Quispel, Gilles. Valentinus, de gnosticus en zijn evangelie der waarheid. Amsterdã:Quando é chamado pelo nome, o homem sabe deonde vem, para onde deve ir e quem é. O gnóstico De Pelikaan, 2003.descobre a si mesmo graças à revelação do verbode Cristo.Valentino ensinava que quando Cristo veio, trou-xe anjos guardiães para os homens espirituais. Eles a vida de Valentino 17

Valentino e o mitoP araValentino, os habitantes do mundo espi- capaz de conhecê-lo.A outra metade da consci- ritual, o pleroma, não são deuses, mas éons. ência é a verdade; os dois geram a palavra e a vida, “O Pai original dos éons é a ‘profundeza’; que por sua vez geram o homem e a comunidade.”sua outra metade é o ‘silêncio’.A profundeza é o Esses “oito” constituem o cerne do pleroma (afundamento não criado, o fundamento sem funda- plenitude).mento. Com o silêncio, a profundeza gera seu filho: “A palavra e a vida criam dez éons. O homem e aa consciência, semelhante ao Pai, e somente ela é comunidade criam outros doze éons, o que perfaz O Leão do Horizonte (Aker) protege o candidato em viagem para o reino de Osíris. ©Tumba de Ramsés VI, Luxor, Egito.18 pentagrama 2/2008

da criaçãoum total de trinta criações, sendo a trigésima, a mentos que a prendem à matéria indeterminada.sabedoria (Sophia). Cada éon nutre o desejo de Seu desejo de beatitude dá nascimento à alma docontemplar aquilo que está na origem do seu ser. mundo, sua aflição gera a terra, sua tristeza, a água,Quanto à sabedoria, seu desejo a impulsiona a sua angústia, o ar, e em todos esses elementos surgelançar-se audaciosamente em frente. Mas o limite a ignorância que se transforma em fogo.”(Hórus) a preserva de errar na profundeza infinita Vemos que esse processo de redenção começa pelado Pai mantendo-a fora do mundo espiritual”. aparição, no vazio, dos quatro elementos: terra,No mito valentiniano, não são Adão e Eva que água, ar e fogo.“Liberta de seus temores, a sabe-são expulsos do paraíso, e sim a sabedoria, ao passo doria recebe com alegria e júbilo a imagem dosque sua metade masculina, o amado, permanece na anjos que acompanham Cristo e, inflamada peloplenitude.A sabedoria está exilada no vazio sem amor, fecundada por sua imaginação, ela cria, àconhecimento, vazio que ela própria criou por sua semelhança deles, os filhos espirituais.”transgressão. Em memória do Altíssimo, ela gera Agora começa indiretamente a futura criação doJesus. Mas ele se lança em direção ao reino do Es- homem: com base na substância da alma, a sabedo-pírito, lá onde a sabedoria não pode segui-lo, pois ria cria o “demiurgo”, um ser divino, à imagem doo limite a impede. Ela encontra-se só, no vazio, pri- Pai, e que em conseqüência dará forma a tudo quesioneira da tristeza e da angústia, e diante da causa existe, furtivamente influenciado por sua mãe, afundamental de seu sofrimento: a ignorância.Após sabedoria. Ela queria, na verdade, moldar o univer-ter suportado tantos tormentos, ela implora a ajuda so em honra dos éons fazendo do mundo visível ode Jesus, o que comove todos os éons, que por sua símbolo do mundo invisível.vez, imploram ao Pai para libertá-la de sua aflição. A fórmula hermética adquire, então, todo seuEm seguida, o Pai cria o Espírito Santo, que instrui sentido:“assim como é em cima, assim é embaixo.”os éons sobre qual atitude adotar em relação ao Pai Em As lembranças que o Apóstolo João guarda de Jesus,e restabelece a calma no pleroma. Em reconhe- texto que faz parte dos Atos dos Apóstolos apócri-cimento à sua boa ação, a plenitude dos éons vai fos, está escrito:“O Senhor fez símbolos de todascriar, com base no que cada um deles tem de mais as coisas. Depois que o demiurgo formou o céubelo e radiante, um ser espiritual da mais perfeita e a terra com a ajuda dos quatro elementos, elebeleza: Cristo. Este é enviado com seus anjos ao fez o ser humano e insuflou-lhe uma alma. Mas,espírito-do-mundo em exílio: a sabedoria. em segredo, a sabedoria associou-lhe uma criançaNote-se o quanto, no mito valentiniano, os concei- espiritual sem que o demiurgo o soubesse.Assim, otos de Pai, Filho, Espírito Santo e Cristo são mais demiurgo serve de canal por onde passa o espíritoressaltados do que no ensinamento cristão tradi- no corpo e na alma do homem, a fim de que elecional.“Cristo liberta a sabedoria de seus sofri- seja levado a termo como no ventre materno, se Valentino e o mito da criação 19

desenvolva e se encontre pronto a receber a palavra Mas o homem existe sobretudo pela alma que ode Deus, que é Cristo.Assim que todos os seres demiurgo lhe insuflou; muito de sua energia seráespirituais forem salvos, eles retornarão com sua utilizada para se conservar segundo sua concepçãomãe, a sabedoria, à plenitude onde, tornados éons do mundo: ele cuida de sua saúde, de suas relações,espirituais, poderão contemplar o Pai”. de sua profissão, de seus bens, de seu passado eAssim é o mito de Valentino. Trata-se de dois outras coisas transitórias. Mas os éons e a sabedo-campos de vida separados: de um lado, o mun- ria almejam conhecer o domínio insondável dado espiritual, o pleroma; de outro lado, o mundo plenitude, do mundo divino. É nisso que podemostransitório, manifestado para oferecer à sabedoriaexilada uma possibilidade de retorno ao mundoespiritual. Graças à sua imaginação, a sabedoriareúne os filhos espirituais (que ela criou à imagemdos anjos que circundam Cristo) a uma alma e aum corpo terrestres e ao caminho de experiênciasatravés da matéria.O homem mortal é, em suma, um instrumento, umórgão de percepção, com a ajuda do qual a imagi-nação da sabedoria pode fazer experiências.Quando todos os filhos espirituais, escondidospela sabedoria dentro dos seres humanos, tiveremrecebido Cristo e forem libertados, a sabedoriaretornará com eles ao pleroma.No mito deValentino, a natureza dupla do homemé explícita: por um lado ele é constituído de pó econdenado a retornar ao pó; por outro lado, ele éo filho espiritual da sabedoria, portador de umacentelha divina oculta. Nossa alma terrestre nãoé consciente de nosso companheiro divino, tantoquanto não foi o demiurgo das manobras secretas desua mãe.Apesar de tudo, temos a faculdade de sentira influência da centelha divina que está em nós. Oque resulta da alma natural é o instinto de conserva-ção como conseqüência da influência da sabedoria.20 pentagrama 2/2008

O coração puro doria que se situa no mesmo nível que o diz: Meu Deus, meu pensamento, minha coração físico. alma, meu corpo. Descobre a origemEm uma carta de Valentino, lemos o Num outro texto, ele declara: “Muito do de tuas preocupações, de tua alegria, doseguinte: que está escrito nos livros de hoje encon- teu amor do teu ódio. Pondera de que“Há um Bem único, que se manifesta livre- trava-se na igreja de Deus. Porque esses maneira olhas-te, zangas-te, ressentesmente mediante o Filho. Apenas por meio ensinamentos fragmentários são as pala- amor e paz sem que o queiras. Quandodele o coração pode se purificar, e isso vras procedentes do coração, a lei escrita tiveres observado cuidadosamente essasapenas quando a essência do mal é dali no coração.Trata-se aqui do grupo dos coisas, encontrá-lo-ás, em ti mesmo,” de-extirpada. Agora, sua pureza está obstruída ‘bem-amados’, que são por ele amados e clara Monoimus, autor gnóstico do séculopor várias essências que fizeram morada que o amam”. II. E o Pai da Igreja, Irineu de Lyon*, escreveno coração, pois cada uma delas executa Quem é o bem-amado? O “ser” no cora- a respeito de Valentino e dos gnósticos:sua própria ação, oprimindo-o de diversas ção, a centelha-de-luz espiritual, o eterno “Acreditam de fato que o conhecimentomaneiras, mediante desejos impróprios. peregrino que reencarna na matéria. Os da inexprimível grandeza constitui aAssim, a impureza do coração foi negli- que trazem em si esse princípio vivente perfeita remissão. Pois, segundo eles, asgenciada durante tanto tempo, que agora e consciente são homens espirituais imperfeições e as paixões provêm daele é a morada de numerosos demônios. (pneumáticos). ignorância; a Gnose desagrega a substânciaMas, quando o Pai Todo Bem observa o “Pois os gnósticos sabem que existem se- que as constitui; e é por isso que a Gnosecoração, ele o santifica e o ilumina. E quem res espirituais originais que vêm habitar as liberta o homem interior. Este não é, porpossui tal coração é tão abençoado que almas e os homens de luz. Antes da queda conseguinte, de natureza material ¬– com‘verá Deus’”. no mundo dos sentidos e do pecado, eles efeito, o corpo é mortal – e muito menosPossuir um coração tão puro que possa se encontravam no mundo espiritual supe- de natureza animal. Por essa razão aver Deus continua sendo uma realidade rior. Agora, graças ao autoconhecimento, libertação deve ser de natureza espiritual,para os cristãos valentinianos.Valentino eles se apressam a regressar, redimidos e pois a alma animal é o resultado das im-não se refere ao coração como órgão libertos do mundo inferior.Todos nasce- perfeições, mas é a morada do Espírito. Afísico, mas como centro espiritual de sabe- mos, mas nesse momento renascemos no libertação deve, portanto, ser de natureza mundo do Espírito”. espiritual, pois confirma que o homem in- É-se um gnóstico quando se sabe, por terior e espiritual foi expiado pela graça da revelação, qual é o seu ser autêntico e sua Gnose e que os que alcançaram a Gnose verdadeira essência. As outras religiões de todas as coisas já nada desejam. Aí está são orientadas para Deus de diferentes a verdadeira libertação”. maneiras. Os gnósticos se orientam para o Atualmente começa-se a reconhecer as interior de si próprios. Interessam-se pelas origens gnósticas do cristianismo. Con- particularidades mitológicas referentes à seqüentemente,Valentino deve retomar origem do universo e da humanidade uni- o lugar que merece como um dos mais camente como expressões de si mesmos importantes representantes da Gnose e fonte de autocompreensão. do início da era cristã. A idéia gnóstica “Abandona a busca de Deus, da criação da libertação interior e autônoma do ser e de outras coisas similares. Busca-o humano continua ativa dentro da vasta examinando a ti mesmo. Aprende quem perspectiva da espiritualização de sua é aquele que torna suas todas as coisas e consciência na força de Cristo. Nos mistérios egípcios, o coração humano é pesado diante do trono de Osíris. No outro prato da ba- lança a pluma de Ma’at simboliza “a verdade e a harmonia”. Valentino e o mito da criação 21

identificar a influência do filho espiritual em nós: te animados pelo demiurgo, não experimentaría-muitas pessoas buscam sua origem e o mistério da mos como ruim a dor que acompanha a luta pelavida.A ciência constitui uma resposta coletiva a vida, e a aceitaríamos como inevitável. No entanto,essa busca.A religião testemunha o desejo de nos como temos em nós uma centelha de sabedoria,“religarmos” ao plano da eternidade, de encontrar temos uma idéia secreta, latente, de que a dor doa libertação e retornar à pátria perdida.A criação mundo não é inevitável, que a simples vida animalartística traduz o desejo exaltado de um ideal ainda é, na realidade, bem inferior a nós, e que não deve-desconhecido, como atestam as estátuas gregas mos nem podemos nos conformar com ela.de proporções perfeitas, as evocações bíblicas em A alma sofre quando temos consciência de nossaalguns quadros e as composições musicais que ex- nobreza perdida. E saber que “outra” existênciaprimem a nostalgia de uma pátria perdida. puramente espiritual foi outrora nosso quinhão,No entanto, ciência, religião e arte – cabeça, cora- e disso somos mais ou menos conscientes, nosção e mãos – já não reagem de maneira consciente faz pensar que deve ter acontecido algo comà centelha-do-espírito que habita secretamente em uma “queda”, o que explica que erramos em umnós, à obra da sabedoria que nos inspira. Quem é mundo que não é o nosso. Um dos traços funda-animado pelo sopro do demiurgo emprega grande mentais da criação é a infinita multiplicidade: nãoparte de sua energia para manter a si mesmo e a encontramos duas folhas iguais em uma árvore,imagem que faz do mundo, preocupa-se então com nem dois caules de grama perfeitamente iguais emtodos os elementos puramente terrestres enumera- um campo. Essa diversidade abundante de formasdos acima e com muitos outros ainda; sem contar é própria também da humanidade. Cada indivíduoque, na maior parte do tempo, seu instinto de con- reage de modo diferente às duas influências con-servação faz que ele veja no outro um adversário. trárias que o penetram. Esse algo não terrestre quePor outro lado, o desejo de defender sua vida leva inquieta o indivíduo faz dele uma criatura terrestredepressa e inevitavelmente à luta, à clássica “luta descortês. Sempre de novo o meio ambiente devepela vida” de Darwin. Se estivéssemos simplesmen- pagar caro o sofrimento do qual ele quer se libertar22 pentagrama 2/2008

A antiga biblioteca de Alexandria.de todas as maneiras possíveis.A solução desse pro- verdadeiro. No entanto, comoblema não estará longe se o homem puder tornar- no mito deValentino, a sabe-se um instrumento suficientemente maleável para doria crística vem em nossarealizar em si “o filho espiritual da sabedoria”, o ajuda: ela se revela em mo-qual é coroado quando a imagem que ele faz de si mentos determinados, logomesmo se religa a Cristo. Inconsciente desse apelo que a humanidade alcançaque lhe vem de muito alto, o ser humano imagina psicologicamente certa ma-que todos os objetivos que persegue são extrema- turidade. Ela é então enviadamente importantes, e repete constantemente:“o a pessoas que, desde seu nascimento, são conscientesfim justifica os meios”, mesmo se seus objetivos, da presença do “Outro” em si mesmas. Essas pessoaslevando tudo em consideração, favoreçam seu ins- tornam-se assim provas vivas da existência dos doistinto de conservação, ou apenas seu puro egoísmo. mundos, da força e da ação da nova alma no serNo conjunto, vemos que o poder mental que nos humano, o que provoca a admiração tanto de seusé dado para sondar o plano divino é empregado amigos como de seus inimigos. Elas nos colocamvisando a luta pela vida. Esse poder é cultivado de novamente em contato com o ensinamento das duasmaneira refinada, mas cristalizada, e nós o medimos ordens de natureza, e simplesmente nos mostramem relação à engenhosidade com que fabricamos nosso lugar e nossa vocação no centro da criação.armas. É preciso reagir à influência que a centelha Freqüentemente falamos sobre a atual passagem dadivina exerce sobre nós, mas em geral essas reações era de Peixes para a era de Aquário, período no qualsão inteiramente caricaturais. se verá quem possui ou não a nova inspiração. DesdeA história prova que poucas pessoas percebem por si o começo desta era, logo após a Segunda Guerrapróprias o verdadeiro objetivo da vida e seu sentido Mundial, verificamos que certos acontecimentos produziram-se quase ao mesmo tempo: Gilles Quis- pel aprofundou as doutrinas deValentino segundo o que Irineu disse sobre o assunto; nas areias do Egito, em Nag Hammadi, foram descobertos 52 manuscri- tos de origem gnóstica; em seguida, J. van Rijcken- borgh, a exemplo dos que acompanham os seres hu- manos no caminho da libertação da alma, interveio e revelou o cristianismo vivente da Rosacruz Áurea. Valentino e o mito da criação 23

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Éon perfeito publicamente proposto aos pesquisadores, e se transformou em uma Escola Espiritual autônomaOgdas Abismo Silêncio através da qual a Luz chega ao mundo. Em mui- Segunda Tetras Primeira Tetras Abyssos Sigè tos dos que chamamos países “ricos”, as condi- ções materiais assim como a liberdade de ex- Consciência Verdade pressão quase atingiram um ponto de saturação, Noûs Alètheia jamais antes ultrapassado. O mundo não pode oferecer muito mais do que já adquirimos. Para- Palavra Vida lelamente à industrialização e à democratização, Logos Zoe desde o fim do século XIX, ocorre intensa busca espiritual, tanto nos movimentos esotéricos como Homem Comunidade nos setores da ciência acadêmica. O resultado é Anthropos Ecclesia que a realidade manifestada nos é apresentada como em uma bandeja. Do tratado hermético Profundeza Mistura Consolador Fé Do castigo da alma* extraímos esta citação que se Bythius Mixis Paracletus Pistis refere precisamente ao homem de Aquário: Eternidade União Paterno Esperança “Este mundo material daqui de baixo, ó alma, Ageratus Henosis Patricus Elpis é a morada dos desejos insaciados, do medo, da Autônomo Prazer Materno Amor indignidade e da aflição; no alto encontra-se o Autophyes Hedone Metricus Agape mundo do espírito, do repouso, inacessível ao Imóvel Fusão Consciente da Noção medo, que testemunha de uma dignidade e de Acinetes Syncrasis eternidade Synesis uma alegria elevadas.Tu vês esses dois mundos, Unigênito Bem-aventurança Ainus Bem-aventurança tu vives nesses dois mundos. Faze agora uma Monogenes Macaria Profetizando Macariotes escolha de acordo com tua experiência. Nos dois Ecclesiasticus Sabedoria podes morar; por nenhum dos dois serás rejei- Amado Sophia tada ou abandonada. Mas, para um homem, é Theletus impossível ser atormentado pelos desejos insacia- dos e ao mesmo tempo estar em paz, subir e aoEsquema do pleroma segundo Valentino em mesmo tempo descer, estar alegre e ao mesmoTertulianus. Basiléia: Opera, 1539. Em: Quispel, G. tempo abatido. No homem, o amor por esteValentinus de gnosticus en zijn Evangelie der Waareid. mundo e o amor por outro mundo não podemAmsterdã: De Pelikaan, 2003. se unir. Isso é impossível” µEsperamos até 1995 por uma edição comple- * Trismegistus, H. Do castigo da alma. Jarinu: Editora Rosacruz, Sérieta em holandês dos textos de Nag Hammadi, eo mito da criação de Valentino por Quispel só Cristal 1, 2004.apareceu em 1985, após investigação de Attridgee Pagels. Logo após a guerra, a Rosacruz Áureafez aparecer uma torrente de publicações ondeo ensinamento das duas ordens de natureza foi Valentino e o mito da criação 25

Viver ou ser vividoPouco importa a complexidade do ser humano, épossível defini-lo em duas palavras simplesmente:exterior e interior. Na interação dessesdois aspectos contrários, encontra-se o quechamamos a pessoa, o “eu”.S egundo os ensinamentos universais secula- e à audição é mais difícil, entretanto enxergar não res, nosso mundo é sétuplo, o ser humano é obrigatoriamente ver, e escutar não é necessaria- também, assim como sua interação com o mente ouvir. O controle das sensações como o friomundo. Em cada plano de seu ser natural, do mais e o quente, o seco e o úmido, o duro e o mole, égrosseiro ao mais sutil, existe a atividade de assimi- quase impossível. Com o cérebro como canal delação e em seguida de expressão. Esses dois simples entrada de dados, o verdadeiro trabalho começa:parâmetros, aspecto interior e aspecto exterior, ofe- para as idéias, as impressões, as informações, etc.,recem um amplo leque de necessidades, qualidades que filtro usar? Especialmente para escolher oe capacidades. Trata-se de tudo o que é elaborado, meio onde vivemos, suas interpretações, a literaturaassimilado, transformado interiormente e depois que lemos, nossas relações sociais, e isso partindoprojetado, ou mais ou menos, para o exterior, no do princípio de que podemos escolher! Fica aindameio ambiente. mais difícil imaginar como proteger as vias deOs seres humanos absorvem alimentos sólidos acesso sutis: os chacras, o coração com suas emo-ou líquidos, que se transformam em substâncias ções, suas impressões, as influências etéricas e astraisnecessárias para o seu crescimento, manutenção e que o tocam.regeneração – e o resto é eliminado. Eles inspiram De todas essas coisas que nos penetram acreditamosar, cujo oxigênio passa pelo sangue, e expiram gás que as únicas que merecem nossa atenção são ascarbônico. Suas impressões criam seus pensamen- que dão resultados no plano material. Que posicio-tos, que, por sua vez, buscam um terreno propício namento tomamos diante desse assunto? Interior,para se exprimir como decisões, fala e ação. exterior: o que somos neste instante? Uma plantaA influência dos homens, dos animais e dos ve- que absorve água, luz, minerais, que produz umagetais que nos circundam, assim como as estações, flor, murcha e vira comida para a próxima planta?a lua, as estrelas e os planetas nos atingem dire- Essa questão parece acadêmica, mas é bastante útiltamente e determinam nossos modelos de com- estudar o processo dos vegetais. Devemos partir doportamento; vibrações e radiações mudam nossos fato de que os minerais, vegetais, animais e ho-humores sem que compreendamos exatamente o mens representam os quatro estágios do campo demecanismo. Seria nosso ser natural uma espécie desenvolvimento que chamamos de natureza, umde transformador? Ou serviria ele passivamente de campo de desenvolvimento estreitamente ligado aopassagem para todas as forças e influências que nos universo, um universo organizado, cumprindo umtocam? objetivo, e que absolutamente não apareceu porÀ primeira vista, essa interação entre interior e acaso.À primeira vista, essa contribuição de umaexterior só é controlada de forma muito restrita. única planta com sua flor é negligenciável. Mas seO controle do beber e do comer não causa muito considerarmos que o reino vegetal é a diversifica-problema para a maioria de nós. Em relação à visão ção exponencial do processo da planta, tudo muda.26 pentagrama 2/2008

“Assim, vesti-me com trajes egípcios,para que ninguém suspeitasse de mimque eu viera de longe apanhar a pérola,para que os egípcios não despertassema serpente contra mim.Contudo, por algum motivo eles descobriramque eu era um estrangeiro.Com seus ardis seduziram-me a comerdo alimento de seu país.Assim, esqueci que eu era filho de reie servi o rei dos egípcios.Esqueci a pérola que meus paisme haviam enviado buscar.E por conta de seu alimento pesado,caí em sono profundo.”(Fragmento de:A canção da pérolaAtos de Tomé) viver ou ser vivido 27

O fim de um idílio A questão é importante: só há e constituição. Nossa planta chega também àuma planta, mas ela tem inúmeras formas. Basean- maturidade e perfeição absorvendo os elementosdo-nos em todas essas formas individuais, pode- necessários presentes em seu meio ambiente. Che-mos supor uma evolução vegetal até o estágio de ga então o dia em que ela segue uma nova fase: oplantas que se movem livremente e, então, passam que era centrípeto torna-se centrífugo; as matériasao reino animal. O homem descende dos animais? e energias absorvidas retornam ao ciclo da na-Talvez ele deva aos animais sua forma atual, mas tureza na forma de odores, beleza, de elementoscertamente não seu ser interior, a princípio supra- destinados à conservação da espécie e das formasnatural e divino. de vida superior.O que o homem natural tem de espiritual não No homem, esse processo é desviado. Dotado deO que o homem natural tem de espiritual não lhe provém dos animais,nem dos vegetais, nem dos minerais, mas sim da natureza fundamentallhe provém dos animais, nem dos vegetais, nem inteligência, cedo ele teve a idéia de corrigir ados minerais, mas sim da natureza fundamental, passagem do interior para o exterior de acordoentretanto os aspectos superiores do espírito ainda com as normas de sua consciência no momento.estão ativos nele. Na sua forma natural, ele vive É dessa forma que vemos o interior, o centrípe-como um mineral, uma planta, um animal, mas to, cultivado para as mais sutis formas, tal como ao que o torna humano é o brilho luminoso do planta. Mas a comparação pára por aí. Em vez deespírito, ao qual ele outrora pertencia conscien- se alinhar à planta e na maturidade inaugurar atemente. Outrora? Certamente, pois hoje essa fase centrífuga, observamos no ser humano umaimagem idílica está terrivelmente destruída. Lá, forte tendência a se servir do resultado de tudoonde, nos reinos inferiores, a relação entre interior o que foi assimilado como um novo capital, ume exterior leva ao crescimento e a uma relativa investimento a fim de fazer crescer o interior: nãomaturidade, de acordo com seus respectivos graus somente na forma de posses materiais, mas prin-de evolução, verificamos que, no homem, o cres- cipalmente valores imateriais superiores como ocimento interior foi travado pela instabilidade do poder, a consideração, o conforto, valores que eleritmo interior/exterior, e isso mesmo tendo ele geralmente considera, junto com a saúde, comopossuído originalmente um mecanismo autore- “felicidade”. O que, aliás, é verdadeiro, até certogulador natural que assegurava sua boa evolução ponto.28 pentagrama 2/2008

Uma nova orientação Mas até que ponto? A luz é amor É com precaução e muito progres-Falávamos da maturidade dos diferentes reinos mi- sivamente que a luz abre suas fontes à medida queneral, vegetal e animal. A maturidade do homem aquele que a busca pode suportar.“Quando o alu-do qual queremos falar não é a finalização da for- no está pronto, o mestre aparece.” À medida que oma natural, mas a maturidade e a inteligência da aluno abandona a compreensão e as aspirações dopersonalidade humana, que ultrapassam em muito velho homem, a luz edifica o novo homem, tantoa dos animais; elas podem se elevar muito e atingir demolindo-o e purificando-o, quanto reestru-um limiar, uma passagem para uma realização ain- turando-o e regenerando-o. A antiga orientaçãoda mais elevada. O ser humano que progride em interior/exterior fica desinteressante, ainda quedireção a uma verdadeira maturidade experimenta, mantendo toda a alegria. O dom habitual dode um lado, que suas capacidades não podem pas- princípio da dualidade comum, do interior parasar desse limiar e, de outro, descobre que para além o exterior, ganha um significado totalmente novo.desse limite existe uma realidade, um oitavo plano, De forma decisiva, esse dom faz, apesar de tudo,poderíamos dizer, aparentando ser diametralmente parte do grande todo.“Dai e dar-se-vos-á”, esse éoposto à natureza, mas que se faz conhecer e traz o convite que nos faz o reino interior que cresceum insight dessa imortalidade que ele pressente dentro de nós. A resposta a esse convite guarda emexistir e procura há tanto tempo. si a verdadeira felicidade. Quem alcança dessa for-Essa consciência crescente pode suscitar pouco ma a “quintessência” do ser humano conhece suaa pouco uma reviravolta completa, e uma nova origem, traspassa a matéria, encontra seu verdadei-orientação que traz interiormente algo de total- ro lugar, seu verdadeiro destino como indivíduo emente novo, algo como uma luz que faz brilhar, expoente da humanidade vivente: é o servidor queno coração, o cristal que não é desse mundo. E prepara a casa para o “Outro” em si e reparte a luzentão abre-se a perspectiva da imortalidade do ser. com todos os que se aproximam da casa µ viver ou ser vivido 29

Deus e DNA ou Deus noAsopa primordial Francis Crick, um dos cientistas que descobriu a hélice dupla do DNA, fez a se-guinte pergunta, em uma conferência:“Mas,afinal, o que veio antes: o DNA, o RNA outudo começou com a proteína?” Segundouma das teorias, o DNA surgiu quando mi-núsculas partículas, menores que moléculas, secoagularam nos oceanos primordiais e formaramuma espécie de sopa primordial. Nesse momen-to, foram constituídas longas correntes, que fo-ram se aglomerando cada vez mais às moléculasque acabaram formando a hélice dupla doDNA, considerada pela ciência atual a base davida existente no planeta. Em 1953, os quí-micos Stanley Miller e Harold Urey faziamexperiências em um laboratório quandoobtiveram aminoácidos com a utilizaçãode uma atmosfera equivalente à sopaprimordial, que corresponderia às mes-mas condições em que a Terra surgiu.Portanto, supunha-se que a atmosferaoriginal era completamente diferenteda atual. Miller utilizou compostosredutores, como o metano e o amo-níaco. Mas, atualmente, os cientistasacham que a atmosfera original eracomposta sobretudo de monóxidode carbono, dióxido de carbono ede nitrogênio. Quando Miller refezsua experiência com essas substân-cias, surgiu apenas uma pequena quantidade30 pentagrama 2/2008

DNA? A ciência afirma que o DNA é o princípio que dirige a vida. Seria possível dizer que essa des- coberta é notável para a consciência humana. Como o ser humano já ultrapassou, finalmente, sua infância, conseguirá ele sair da impotência e do medo rumo à descoberta de uma energia desconhecida chamada Deus? Chegará ele, finalmente, a compreender que Deus e homem, vida e natureza, sua consciência e seu processo de desenvolvimento são uma coisa só?de aminoácido do tipo mais simples: a glicina. complexa, desempenhou importante papel nessa“Final da história! É o que eu digo”, declarou o história.astrobiólogo Oliver Botta, em um artigo recente, Um outro problema é que deve ter havido umpublicado na revista Bionews.“Mas isso não é mecanismo que continuamente quebrasse a hélicetudo. As reações químicas obtidas por Miller em para que o ciclo se perpetuasse. Por volta de 5Osua primeira experiência realmente aconteceram graus Celsius, as espirais individuais formam uma– mas não na Terra primordial. Elas aconteceram espécie de mola, à qual outros átomos vêm senos asteróides e talvez nos cometas. É aí que se juntar. A uma temperatura de cerca de 100 grausencontram os elementos redutores que Miller Celsius, a mola e a molécula se desacoplam e, porutilizou na primeira vez. causa disso, o número de moléculas é duplicado.Eles estão no espaço interestelar. Esses elementos Quando a temperatura é mais baixa, tudo reco-primitivos são recolhidos pelos asteróides. Neles, meça como antes. O número de réplicas multipli-suas reações são idênticas às que Miller obteve em ca-se exponencialmente. Quarenta ciclos produ-suas experiências e fazem surgir aminoácidos.” zem um trilhão de cópias idênticas.O surgimento dos aminoácidos no espaço trazum problema: eles não são estáveis quando estão Uma lua completamente diferente É pro-sob a influência da luz.“Aminoácidos precisam vável que a lua desempenhe um papel muitose esconder no interior de um corpo planetário, importante no surgimento e na manutenção dacomo um asteróide por exemplo. Isso significa vida. Richard Lathe, um especialista em molé-que os meteoritos que caem na Terra poderiam culas da Universidade de Edimburgo levantou aconter elementos construtores da vida. Isso sem- seguinte hipótese: um bilhão de anos depois dopre aconteceu, pois de fato encontramos esses surgimento de nossa Terra, a lua dava uma voltaelementos nos meteoritos. A principal questão em torno dela a uma distância bem mais curtanessa área de pesquisa específica é, portanto: esses – o que com freqüência devia provocar enormescorpos vêm de fora ou é a própria terra que os fluxos e refluxos de marés. As linhas costeirasproduz? Na universidade de Leyde há estudos ficavam submetidas a variações rápidas de suaque dizem que esses elementos, ou materiais de salinidade. Isso deve ter provocado incessantesconstrução, são produzidos fora da Terra. Portan- fusões e rupturas da dupla corrente de moléculas.to, a vida como nós a conhecemos – o DNA, o Quando as marés mais violentas atingiam a costa,RNA, a proteína – provavelmente não começou a concentração de sal era provavelmente muitodessa maneira. Hoje, acham que o PNA, o ácido baixa. Até mesmo a dupla hélice de DNA atual senucléico peptídico, que é uma molécula grande e rompe em circunstâncias análogas porque, além Deus e o DNA ou Deus no DNA? 31

disso, os grupos de fosfatos carregados eletrica- Não se trata unicamente de matéria Omente se repelem uns aos outros em cada espiral. DNA não tem razão de existir sem a vida e a vidaO refluxo teria produzido grandes concentrações não teria como existir sem o DNA.de moléculas primitivas e depósitos de sal. Mas, Esta é a grande questão que não pode ser res-como as grandes concentrações de sal neutralizam pondida unicamente com base no plano materialas cargas de fosfato do DNA, isso só poderia ter – uma questão para a qual a ciência contem-um efeito positivo na formação das moléculas em porânea não consegue dar uma resposta exata.hélices duplas como as do DNA. Cada vez mais surgem cientistas que acham queEsses ciclos incessantes da salinidade, assim como é preciso que um parâmetro desconhecido venhaas temperaturas sempre mutantes, teriam multi- intervir nessa questão.plicado algumas moléculas, como o DNA. Por- O astronauta Fred Hoyle declara:“Ao invés detanto, as marés teriam desempenhado, na matéria, acreditar na probabilidade ínfima e inacreditávelum papel preponderante. O sol também exerceu, de que a vida se deve às forças cegas da natureza,certamente, sua influência sobre as marés, mas parece que é mais passível de se admitir – ou peloem menor proporção. Há três milhões e meio de menos é menos inacreditável de reconhecer – queanos, ele era, com certeza absoluta, bem menor. um princípio inteligente, consciente da finalidadeÉ evidente que a energia solar desempenhou um de sua ação realmente estava presente na origemgrande papel nos acontecimentos mencionados de tudo.”acima. Comparado à sua situação atual, o sol não O filósofo Anthony Flew afirmou, em dezembrose encontrava, como a lua, muito mais próximo da de 2004:“A única boa explicação para o surgi-Seja quem o homem for, em seu sistema háum lugar para DeusTerra. mento da vida e o caráter complexo da naturezaComo foi dito, sem o DNA não há vida. Da é a existência de uma superinteligência, de umaameba monocelular até a enorme baleia, o DNA força criadora desconhecida.” Sua definição deé o componente principal e é ele quem assegura Deus parece um pouco com a da tradição judai-e mantém a vida, qualquer que seja a sua forma. A co-cristã e islâmica, que ele descreve assim:“umteoria de Lathe explica o papel da lua na primei- déspota oriental com poder absoluto – um Sadamríssima propagação de vida pela divisão das células Hussein cósmico”.do DNA, mas a origem em si ainda continua Já Einstein afirma que “Deus se manifesta nas leissendo um ponto de interrogação. Com base nesse do universo como espírito infinitamente superiormodo de considerar as coisas, o milagre da cria- ao nosso espírito e diante dele, devido a nossasção e o surgimento da vida tais como são expos- possibilidades restritas, devemos manter extrematos na Doutrina Universal de todos os tempos modéstia.” Ele concorda com Espinosa, para quem– que nos serviram de ponto de partida – estão “aquele que conhece a natureza conhece Deus;fora de cogitação. Afinal, estamos falando, aqui, de não porque a natureza seja Deus, mas porque ateorias puramente científicas. abordagem científica da natureza conduz a Deus”.32 pentagrama 2/2008

Reprodução científica do DNA. A religião do DNA Tudo o que o homem nunca compreendeu e nunca vai compreender (assim como as forças da natureza que o atemorizavam e continuam a atemorizá-lo) ele sempre atribui à “vontade de Deus”, e muitos pensam assim até hoje.A religião é tão antiga quanto o homem.Alguns neurologistas e cientistas localizam a idéia do divino em determinado local do cérebro.A sensibilidade do indivíduo aos impulsos espi- rituais dependeria do DNA. Foi estabelecido que o gene VMAT2 que compreende um C é um fator de sensibi- lidade à espiritualidade mais que, por exemplo, um gene que compreende um A. De qualquer modo, haveria um lugar para Deus no sistema humano.Paul Davies, chefe de um grupo de pesquisadores A cabala Os pesquisadores que se dedicam ada Universidade do Estado do Arizona, expõe certa interpretação da cabala concluem que cadaem seu último livro o fato embaraçoso de que célula humana conserva o código do nome damuitos aspectos fundamentais do universo físico divindade. Eles chegam até mesmo a estabelecerparecem ter como finalidade fazer que se pro- ligações entre certas letras dos antigos alfabetosduza o surgimento da vida. Ele parte do prin- hebreu e árabe com os elementos fundamentaiscípio de que a aptidão do universo para gerar do DNA: hidrogênio, nitrogênio, oxigênio e car-uma vida inteligente não é acidental, mas que, bono. Nessas línguas, nosso código genético “tra-pelo contrário, representa uma evolução lógica. duz” o antigo nome da divindade. E esse nomeIsso apresenta o seguinte problema: a concepção (portanto esse código) está gravado em todos osdo universo implica a existência de um criador seres humanos, quaisquer que sejam suas crenças,inteligente? ações, estilo de vida, religião, condição social. EssaEle termina concluindo que deve haver, no cos- relação foi feita há pelo menos doze mil anosmo, uma espécie de princípio vital não-definido. antes que a ciência atual pudesse verificá-la. EisE acrescenta que “sente isso mais no coração do o que nos transmitem os antigos textos sagrados,que na cabeça.” como o livro hebreu SeferYetzirah. Deus e o DNA ou Deus no DNA? 33

O budismo parte da idéia de que tudo evolui, se pelo menos três correntes diferentes, que foramtransforma e acaba se desintegrando. Os pensa- passados para a escrita no século sexto antes dedores budistas sempre admitiram que o universo Cristo por sacerdotes judeus e que descrevem li-era muito velho, teria mesmo milhões de anos, teralmente o surgimento do mundo. Eles conside-mas eles não tinham nenhum mito da criação que ram o plano de Deus atemporal e imutável, umacorrespondesse aos da tradição judaico-cristã. No vez que nada liga os vegetais e os animais; queentanto, eles têm certeza de que os homens, assim o mundo foi criado por volta de 4004 antes decomo os animais, têm uma consciência que sobre- Cristo, no espaço de uma semana. Eles dão muitavive à morte. importância ao fato de que existe uma diferençaO hinduísmo situa-se um pouco mais próximo da absoluta entre os homens e os animais, ao contrá-ciência moderna. Ele fala da roda do tempo que rio dos adeptos da evolução, para quem o homemgira sem parar, indefinidamente, de acordo com descende do macaco.ciclos sucessivos nos quais todas as coisas sobem,brilham e tornam a cair sem cessar. Nessa cosmo- Há diferenças entre:logia, é normal pensar que os universos se sucedem 1 – Os jovens criacionistas, que pensam que a te-em uma série de criações e aniquilamentos. Da oria da evolução é cientificamente insustentável emesma forma, a alma passa por toda uma série de não passa de uma tentativa de justificar o ateísmo.nascimentos e mortes (samsara). Eles se baseiam na autenticidade dos textos da Bí-O criacionismo Na Europa, tanto o mun- blia e interpretam ao pé da letra a narrativa sobredo científico como a opinião pública em geral a criação, acontecida há menos de dez mil anos.concordam com a teoria da evolução. A situação 2 – Os velhos criacionistas, que partem do pontoé completamente diferente nos Estados Unidos. de vista de que os processos naturais do passadoNesse país há uma profunda controvérsia sobre obedeciam às mesmas leis de nossos dias. Eles dãotolerâncias religiosas e filosóficas e grandes con- à terra uma idade bem maior e interpretam otrastes entre fundamentalistas e modernistas. Lá, Gênesis de forma bem diferente.um grupo crescente de cristãos fundamentalistas 3 – Os criacionistas progressistas, para os quais o(que não aceitam a teoria da evolução) se faz ou- gênero humano não pára de mudar e evoluir, evir cada vez mais fortemente... que acreditam ser esse processo continuamenteEm matéria de dogmas, os cristãos vão muito dirigido por Deus. Eles têm opiniões divergen-além, e os criacionistas se opõem à idéia de evo- tes sobre o modo como acontece essa ou aquelalução. Eles baseiam-se no princípio de que os ve- operação.lhos mitos e lendas reunidos do antigo judaísmo David A. Kaufmann, da Universidade da Flóri-existem na Mesopotâmia, que eles representam da, que é adepto dessa última opinião, diz, por34 pentagrama 2/2008

exemplo:“Falta os evolucionistas dar uma explica- das noites.ção científica demonstrada sobre a introdução do “E disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deuscódigo implantado nas células. Sem ele, nenhuma que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luzproteína poderia se formar, e, portanto, nenhuma e as trevas. E Deus chamou à luz dia; e às trevasvida.” O argumento clássico segundo o qual é chamou noite. E foi a tarde e a manhã, o dia pri-possível provar a existência de um Deus exterior à meiro. [...] E disse Deus: que haja luminares na ex-sua criação é a idéia de que deve ter havido uma pansão dos céus [...] para alumiar a terra. E assim“causa primeira”. Filósofos como David Hume e foi. E fez Deus dois grandes luminares: o luminarImmanuel Kant demonstram a incorreção desse maior para governar o dia, e o luminar menor paraargumento, neutralizado por suas próprias pre- governar a noite; e fez as estrelas.”missas: se tudo vem de uma causa primeira, então, A terra foi mantida pela lua em posição inclinadaquem fez ou causou essa divindade? Portanto, as- e sempre houve dias, anos, e mudanças de estaçõessim como Deus, o universo seria uma criação es- que se repetiam com regularidade. E conformepontânea. O que aconteceria se Deus e o universo dissemos antes, a lua, mais próxima da terra dofossem inseparáveis e – sim! – até mesmo um só? que hoje, era a causa de enormes marés, cujasMas vamos rever mais uma vez o mito do Gênesis, águas atingiam a terra, e da sopa das águas e daonde está fixada a imagem de uma superinteli- terra surgiu a vida. Primeiro, os vegetais, depois,gência desconhecida como ponto de partida. Essa apareceram nos oceanos os primeiros animais, quenarrativa descreve, de fato, de modo feliz, a intera- vieram à terra e, dotados de asas, se elevaram noção entre a lua e o surgimento do DNA, da vida ar. E milhões de formas viventes iam e vinham,Se tudo deve ter uma causa, então qual é a causa daexistência de uma divindade?tal como a conhecemos e sempre em evolução. depois evoluíam regularmente em estruturas maisTrata-se de um verdadeiro mito da criação. Por complexas, até finalmente surgirem a inteligênciaisso, conscientemente, podemos ter dúvidas sobre e a autoconsciência.a exatidão de sua transmissão, pois os poderes po- “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,líticos serviram-se desses textos bíblicos, os quais, conforme a nossa semelhança; e domine sobre oscom certeza, passaram por alterações no decorrer peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre odos séculos. gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil“No princípio, Deus criou o céu e a terra.” que se move sobre a terra. E criou Deus o homemUma força desconhecida criou a terra e os céus, à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homemdeterminou a distância da lua à Terra, e fez que a e mulher os criou.” (Gen 1:26-28)terra fosse coberta de água. Há cerca de 25.000 anos, havia três tipos de seres“E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas humanos: homo floresienis, homo neanderthalissobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se e homo sapiens. O homem de Neandertal tinhamovia sobre a face das águas.” uma enorme capacidade craniana, bem maior queNo começo, a lua girava mais perto da terra, mas, a dos homens de hoje: ele ria, chorava e trocavaaos poucos, ela foi girando cada vez mais devagar informações. Suas práticas funerárias indicam certae sua rotação determinou a regularidade dos dias e consciência religiosa. Deus e o DNA ou Deus no DNA? 35

Representação artística da hélice dupla do DNA. © S. Sven Geier, Pasadena, EUA.“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai vimento da humanidade não é linear. Em outrase multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a (com palavras: em nossa época coexistem uma mentali-responsabilidade); e dominai sobre os peixes do mar dade medieval e uma mentalidade muito avançadae sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que – e essas duas influenciam-se mutuamente.A terrase move sobre a terra. E disse Deus: Eis que vos te- é o campo de evolução de inúmeras almas de níveisnho dado toda a erva que dê semente, que está sobre muito diferenciados.a face de toda a terra; e toda a árvore, em que háfruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.” Os saltos da consciênciaDepois de cada catástrofe, que eliminou pouco apouco as comunidades, os sobreviventes das diversas Seguem, a grosso modo, algumas indicações sobre ocivilizações progrediam aos poucos no caminho da progresso da consciência:consciência. Podemos comparar o desenvolvimentoda humanidade com o de uma criança. Ela, também, • Os Vedas (por volta de 6000 a.C.) não fazemevolui aos poucos. E, sempre, em certos momentos, nenhuma diferença entre o que é divino e o que érecebe impulsos aos quais se adapta, quer queira ou criado.Tudo é uma coisa só e, além disso, nada cessanão. de progredir na senda.As civilizações que conhecemos remontam a maisou menos dez ou doze mil anos antes de Cristo. • Homero faz Ulisses dizer, na Odisséia (800 anos a.É importante ter sempre em vista que o desenvol- C.),“Eu sou” – e isso marca o nascimento da indivi- dualidade.36 pentagrama 2/2008

• Jesus Cristo declara, cerca de 30 anos d. C.:“O terior, que também era chamada de conhecimentoreino de Deus está em vós” (Lc 17:21). interior, ou Gnose. Em todas essas filosofias e com(No DNA?) base em seus pontos de vista, não há deuses vinga- dores ou apaixonados, exteriores e personificados.• Em 1336, o poeta Petrarca descreve uma subida O homem sempre dispôs de seu próprio destino.ao monte Ventoux, que ele realiza com seu irmão. Muito tempo antes da descoberta do DNA, tantoQuando alcançou o topo e lançou um olhar ao seu os místicos do Ocidente como os do Oriente járedor, ficou aterrado pelo sentimento de imen- haviam desvelado o fato de que a divindade estása sabedoria. Ele viu, ao longe, outras montanhas dentro do ser humano, e não fora dele.– e reconheceu o que estava por detrás delas. Ele Mestre Eckhart diz, em um de seus sermões: “Deusdescobriu, sensorialmente, a perspectiva “… doce está em toda parte, e, em toda parte, é perfeito.e árdua, porque o corpo que se aproxima tanto do Deus age na essência de todas as coisas... Deus estácéu deve senti-lo, e sentir temor, como a alma que interiormente no que há de mais profundo de cadase aproxima de Deus”. coisa em particular”. Para Angelus Silesius,“Deus é puramente nada: está• Na Renascença, Giordano Bruno, Galileu e oculto no aqui e agora; quanto menos as pessoas seKepler estabelecem que a terra não é o centro do voltam em sua direção, mais ele aparece”.universo e que ela gira em torno de si mesma. Em Um monge sufi afirma:“Deus dorme nas rochas,1972, a imagem do “planeta azul”, a terra no seio sonha nas plantas, move-se com o animal e desper-do universo fez a consciência dar mais um salto ta no homem”.adiante.Aos poucos, em todo o planeta, fomos Citando Ashtavakra Gita:“Eu sou a profundezatomando consciência de que não passamos de uma infinita, onde todos os mundos encontram suaminúscula parte do imenso universo. origem. Em repouso, estou além de todas as formas aparentes: sou eterno. É assim que eu sou”.Naturalmente, há múltiplos avanços da consciência Sri Rama Krishna diz:“O nome de Deus é ‘Euque nem sequer podemos perceber – e ainda ha- sou’. Deus nada é senão o Ser”.verá muitos. Isso, sem falar da descoberta do DNA Shankara diz:“Eu sou Brahma… Habito todos ospor Watson e Crick em 1953. Será ela a marca de seres sob a forma de suas almas, de sua autênticauma nova etapa do materialismo descompromis- consciência. Sou o fundamento de todos os fenô-sado? Ou teria o homem, finalmente, ultrapassado menos… Nos dias de minha ignorância, eu pensavao tempo da infância, quando se sentia cheio de que eles estavam separados de mim.Agora eu seiangústia e incapacidade diante de uma entidade que eu sou Tudo”.todo-poderosa chamada Deus? Estaria ele alcan- E Thomas Merton:“Quando penetro no maisçando sua maturidade? Tomará a responsabilidade profundo de minha existência e de minha realidadede si mesmo e de tudo o que vive ao seu redor, pessoal atual, o ser indefinível que sou nas minhasreconhecendo que tudo está ligado (vida, natureza, células mais profundas, alcanço, então o ‘Eu sou’ in-consciência, evolução)? finito, que é o nome absoluto do Todo-poderoso”. Em Alice no país das maravilhas Lewis Carroll des-Olhem para dentro! creve claramente a condição humana:“Um país um pouco lento”, diz a rainha.“Veja só: você precisaDe fato, nem Lao Tsé, nem Confúcio, nem Buda, andar tanto que pode continuar no mesmo lugar.nem Jina no século VI a. C., falavam de uma divin- E quando você quer ir por aí afora, então, precisadade exterior ao homem. Eles partiam do princípio andar pelo menos duas vezes mais!” µde que o homem precisa alcançar a harmonia in- Deus e o DNA ou Deus no DNA? 37

A criação da SophiaFé e sabedoria nos escritos cosmogônicos de Nag HammadiO s textos encontrados em Nag Hammadi de seus corações e vivem em concordância com dão à criação divina do espírito, da alma ele, então a fé triunfa sobre a morte. O Adão-Luz e do corpo uma versão diferente da ver- se eleva da tumba (da matéria) e logo começa suasão dada pela Bíblia. Essa extraordinária revelação ascensão no pleroma, hoje e agora.obriga a admitir que o Gênesis do Antigo Testa-mento não relata a primeiríssima fase do desenvol- A primeira criação Em O livro secreto de João,vimento da manifestação universal, mas sim uma Jesus ressuscitado instrui seu discípulo João sobresegunda fase, bem mais tardia.A chave da com- o desenvolvimento da criação original pelo Deuspreensão dessa dupla concepção é a “Pistis”, a Fé. invisível. Ele diz:“O verdadeiro Deus, o Pai doO teor do presente artigo fundamenta-se em dois Universo, o sopro sagrado, o Invisível que envolveescritos de Nag Hammadi: O livro secreto de João e o Universo com sua imortalidade, está na mais puraAs origens do mundo. luz, que olho algum consegue ver. [...]A primeira fase da criação emana diretamente do Seu pensamento entra em atividade e se revela. EEspírito imutável e é denominada pleroma ou surge da radiação da luz diante dele. Ele é a for-ogdóade (termo de origem grega que, na mitolo- ça do Universo, que vai se demonstrar. Ele guia ogia egípcia, significava um agrupamento de oito Universo com perfeição. [...]divindades): o mundo do Espírito manifestando-se Ele é seu primeiro pensamento. Ele é seu reflexo.em movimento. O Gênesis apresenta a criação do Ele se tornou o primeiro Homem. Ele é o espíri-mundo, da matéria e da alma como provindo do to virginal. Ele é o tríplice masculino, o três vezescaos: ela é a obra dos éons, e dentre eles o maior é poderoso, com os três nomes, com as três forças queo deus do Antigo Testamento. Esse deus enfurecido despertam. Ele é o éon que não envelhece. Ele é oe vingativo não é o Deus supremo, o Inefável, o masculino-feminino, que brotou por sua própriaÚnico, a Origem do primeiro princípio, mas sim “a determinação”.força com cabeça de leão”. O primeiro homem celeste é Cristo, o divinoComo tal conhecimento pôde ter permanecido Autógeno, o auto-criado. Ele existiu antes que oescondido por tanto tempo? Quais foram as conse- mundo existisse, pois é a primeira emanação deqüências disso? Os mortais, prisioneiros da matéria, Deus, a primeira manifestação do pensamento divi-ignorando a primeira criação, esqueceram que pos- no. Ele nasceu, assim como está escrito, do silênciosuíam dentro de si mesmos um núcleo espiritual e, do Deus invisível; e, de seuVerbo, doVerbo desseda mesma forma, esqueceram a base da fé autêntica. Autógeno, foi criado o Universo, que é sua primei-Eles se tornaram inconscientes do homem primor- ra criação, perfeita.dial, da imagem espiritual original participante do A primeira criação, o pleroma ou ogdóade, está empleroma, do Adão-Luz. completa sintonia com o Deus invisível: ela está emMas quando eles redescobrem o núcleo espiritual estreita ligação com ele.38 pentagrama 2/2008

A criação da Sophia –Sabedoria – é um nascimentocósmico comparável ao doprimeiro Adão, que estavaligado ao espírito e à luz.© Fran YeonPistis,a força da fé A força dessa união in- A Pistis Sophia no microcosmo A Pististerior é chamada, nos textos de Nag Hammadi, Sophia também existe no microcosmo. Quandode Pistis – que é a fé. Ela liga a criação original a aspira a se libertar da natureza mortal, o homemseu criador. Mas as coisas não param aí, pois, da começa a seguir o chamado da rosa do coraçãofé nasce a sabedoria.A idéia de criação conduz e, assim, inicia o caminho da rendição do eu.necessariamente à idéia de sabedoria. No decorrer Pouco a pouco, o ”Outro” dentro dele cresce,do processo da criação, a fé gera a sabedoria – que na força da fé; em dado momento, ele se tornaé Sophia – como uma projeção. Assim, a notável consciente – e essa é a prova de que a nova sabe-força chamada “Pistis Sophia” começa a existir. doria, que é Sophia, está surgindo no candidato. A criação da Sophia 39

A revivificação da rosa acontece paralelamente à A força com cabeça de leão Ialdabaoth, o fi-revivificação de Pistis Sophia, que é a sabedoria lho da Sophia nascido de um ato arbitrário, é a for-unida à fé. É um momento crucial. E então, o que ça com cabeça de leão que, mais tarde, criará nossoSophia fará, ao tornar-se consciente de si mesma? mundo e a humanidade, fundamentado no caosContinuará ela unida a sua companheira Pistis? das trevas. Ialdabaoth é o criador, o deus do AntigoContinuará unida ao Espírito invisível? Testamento – aquele a respeito do qual se diz:“Seu espírito planava sobre as águas”, essas águas que, deA crise da Sophia Lemos ainda em O livro acordo com os textos de Nag Hammadi, represen-secreto de João: “Entretanto, nossa irmã, a Sophia, o tam o caos das trevas.décimo segundo éon, começou a desenvolver um A narrativa sobre a criação contida no Antigopensamento por si mesma. Assim como o Espí- Testamento é, portanto, a história da segundarito e o conhecimento primordial, ela quis criar criação, aquela que não é obra do Espírito invisível,Ao dizer isso, ele pecou contra todos os mortais queo haviam protegidopor si sua imagem, embora sem o consentimento do Silêncio, nem do Verbo da primeira Emanaçãodo Espírito, que não concordara com ela. [...] – mas sim o fruto da tentação da Pistis Sophia, aComo ela já não pudesse anular seu pensamento, fé-sabedoria apartada do Espírito.sua obra tornou-se evidente: era imperfeita e feia, Um processo como esse também é uma realidadeporque ela a criara sem seu companheiro. [...] microcósmica: ele acontece todos os dias dentro deQuando a Sophia a viu, tinha a aparência de dra- nós, quando o mental trabalha apartado da ligaçãogão e cara de leão. Seus olhos, porém, eram como com o Espírito, quando ele somente está ligado àraios luminosos de fogo. Então, a Sophia afastou- matéria e apenas cria éons desta natureza. Em todasa de si, para fora daquele lugar [...] E deu-lhe o as partes vemos criações mentais humanas “comnome de Ialdabaoth. Ele é o primeiro arconte. cabeça de leão”.Retirou muita força da Mãe. Ele se afastou dela, Mas, a criatura com cabeça de leão, fruto de nossado local onde nascera, tomou posse de outro obstinação e teimosia, pode ser desmascarada dentrolugar, criando um éon ardente ígneo, onde agora de nós. E como isso pode acontecer? Os textos defica”. Nag Hammadi nos fornecem a explicação.40 pentagrama 2/2008

O nascimento do Adão terrestre, “o homem da lei”, e de Eva, “consagrada a Afrodite (o amor)”. © John Farleigh, 1939Os pecados do deus cego Ialdabaoth (Saclas, meteste um erro, Samael.Teu nomeSamael), filho da Pistis Sophia, gera sete filhos e significa ‘o deus cego’. Um Homem-concede um céu para cada um deles. Em Der Urs- Luz existe antes de ti; ele se mani-prung der Welt (A origem do mundo), lemos:“São festará dentro de teu corpo criado;as sete forças dos sete céus do caos […] E todos os ele andará como sobre potes dedeuses e seus anjos o honraram e glorificaram. E argila; e tu, tu descerás com os teusele se rejubilou em seu coração inflado de orgulho aos abismos, onde habita tua mãe.e lhes disse:‘Eu não preciso de ninguém. Eu sou Pois, no final de tuas obras, todas asDeus e não há ninguém fora de mim!’ Mas, ao imperfeições aparecerão na verdadedizer isso, ele pecou contra todos os imortais que e serão dissolvidas. E será como seouviram suas palavras e as guardaram na memó- nada jamais houvesse existido”.ria”. Ele replicou:“Se alguém existe antesA Pistis viu a perversidade do arconte supremo e de mim, que ele se manifeste a fimdisse encolerizada, sem que ele a visse:“Tu co- de que possamos julgar o seu bri- lho”. Foi então que uma luz radiosa vinda da ogdóade fendeu os céus da terra.Vendo isso, Samael ficou consternado e envergonhado. Em um halo de esplendor, mostrou-se com precisão a imagem de um homem de grande magnificência – mas ninguém o via, a não ser o criador e Pronóia (o Entendimento), que estava com ele. Apenas o flamejar da luz manifestava-se a todas as potestades do céu, que, por causa disso, ficaram perturbadas. Assim que Pronóia viu o Anjo de Luz, ela foi tomada de amor por ele – ela, que estava nas trevas e era ignorada por ele. Agora, a Pronóia apresenta- va-se lânguida por querer abraçá-lo sem estar em condição de fazê-lo. Como não pudesse satisfazer seu amor, ela direcionou sua luz para a superfí- cie da terra. Essa luz tornou-se o anjo chamado “Adão-Luz” que significa: homem-sangue-luz. A criação da Sophia 41

Cheio de alegria, o homem acolhe o nascimento interior da luz (Escultura copta, ca. século V d.C.).A imagem do homem perfeito O homem decaí- original. Porém, antes que estivesse pronto, a forçado também ficou profundamente perturbado dian- Sophia-Zoé (Sabedoria-Vida) precedeu-os e crioute do impulso de luz do campo de vida divino. Ele a seu lado um homem que, mais tarde, instruirianão pode ver a imagem do homem perfeito, mas o homem material e o salvaria das potestades dasele é tocado pela luz. Seu pensamento tenta, então, trevas: esse foi o homem-alma, ainda chamado decaptar a luz – mas não consegue. Por isso, ele dirige ‘hermafrodita’ ou ‘mestre da vida’ que, em hebreuseu amor para a terra. Isso quer dizer que ele altera quer dizer ‘Eva’ ”.os impulsos de luz do campo de vida original emproveito de suas criações mentais. As três manifestações do homem O arquétipoVoltemos nossa atenção para os textos de Nag das três manifestações do homem (homem-espírito,Hammadi. Os éons, loucos de inveja, são forçados a homem-alma, homem-corpo) é, portanto, oreconhecer que há um Homem-Luz que existe an- Adão-Luz que desceu de ogdóade para confundirtes deles e que possuiu uma força superior à deles. o arconte das trevas e revelar a luz divina a suasÉ por essa razão que Ialdabaoth, auxiliado pelas potestades.Assim, a força crística desce no mun-forças do caos, que são os arcontes da imperfeição, do e nos microcosmos para segurar nosso própriodecide criar os homens com base na imagem que Ialdabaoth, nosso ser aural, fruto de nossa teimosia.ele viu, e eles aprisionam a luz, por extrema inveja As Potestades das trevas criaram o homem materialdela. Da substância das trevas, eles geram corpos para aprisionar a luz. Mas, graças ao homem-almahumanos para neles “aprisionar a luz”.Assim foi criado por Sophia-Zoé, as trevas se deslocam e secriado o homem material. dissolvem, deixando resplandecer em sua perfeiçãoEm A origem do mundo lemos: “O corpo do ho- a imagem do primeiro homem.mem material era semelhante ao seu corpo; seu Uma última citação de A origem do mundo: “O pri-arquétipo, entretanto, era semelhante ao homem meiro Adão, o Adão-Luz, é espiritual. Ele surge no42 pentagrama 2/2008

A força da Pistis, a fé, religa de modo invisívela rosa do coração à criação originalprimeiro dia. O segundo Adão é provido de uma nal, cujos impulsos de luz perturbam nosso mi-alma. Ele surge no sexto dia e se chama ‘herma- crocosmo e fazem-no começar sua busca. Há umafrodita’; o terceiro Adão é terrestre, é ‘o homem natureza diferente da natureza mortal – assim fala ada lei’. Há três homens e seus descendentes no voz do Adão-Luz no coração do homem. Mas qualmundo, e isso até a perfeição do éon: o éon da ma- será o caminho que leva até ela?téria, o da alma, o do espírito [...] Há, portanto, três É a força da fé, emanada da rosa, que conduz àespécies de batismo: o batismo da água, o batismo libertação. É a fé ligada à sabedoria verdadeira, a fédo fogo e o batismo do espírito”. “que move montanhas”. Mediante humildade e auto-entrega à luz, o homem terrestre tem o poderA herança do Adão-Luz O homem nascido da de ligar-se outra vez à força da fé. Para ele, tornam-matéria recebe como herança a rosa-do-coração, se realidade as palavras:“Que vos seja feito segundoque é o último vestígio do homem-espírito origi- vossa fé” (Mateus 9:29) µ Edwards, J. Der Ursprung der Welt (A origem do mundo). Berlim: Klaus Wagenbach, 2005. Dietzfelbinger, K. O livro secreto de João. Jarinu: Editora Rosacruz, 2006. A criação da Sophia 43

44 pentagrama 2/2008

“Dai e dar-se-vos-á.”Os rosacruzes se reconhecem nessas palavras.Eles experimentam que esse preceito crístico é um convite do reino dasalmas em crescimento.A resposta a esse convite conduz à descoberta de uma alegria verdadeira.Quem alcança a quintessência do homem verdadeiro conhece suaorigem, passa pela matéria, encontra seu verdadeiro lugar e seuverdadeiro destino, e isso como indivíduo que faz parte da multidãoque constitui a humanidade.Ele é o servidor que prepara a casa e distribui a luz para todos que seaproximam, em unidade, liberdade e amor.Essa é a receita, a fórmula pela qual, através dos séculos, os rosacruzesprepararam o remédio da libertação gnóstica.Esse remédio universal opera magicamente de três maneiras.No exterior, mediante a Fraternidade, pela vivência interior e mediantea revelação espiritual.


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