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Revista Pentagrama 2013-5

Published by Pentagrama Publicações, 2016-06-13 20:40:58

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pentagrama Lectorium Rosicrucianum O cântico de louvor secreto de Hermes Sobre o Noûs e o homem Pérolas do hermetismo Como um sorriso que vem do céu Pitágoras e sua escola Uma investigação em sete partes 2013 5número

Edição Revista Bimestral da Escola Interna-Rozekruis Pers cional da Rosacruz ÁureaRedação FinalP. Huijs Lectorium RosicrucianumRedação A revista Pentagrama dirige a atenção de seus lei-K. Bode, W.v.d. Brul, A. Gerrits, tores para o desenvolvimento da humanidade nestaH.v. Hooreweeghe, P. Huijs, H.P. Knevel, nova era que se inicia.F. Spakman, A. Stokman-Griever, O pentagrama tem sido, através dos tempos, o sím-G. Uljée, L. v.d. Brul bolo do homem renascido, do novo homem. Ele é também o símbolo do Universo e de seu eterno de-Diagramação vir, por meio do qual o plano de Deus se manifesta.Studio Ivar Hamelink Entretanto, um símbolo somente tem valor quando se torna realidade. O homem que realiza o penta-Secretaria grama em seu microcosmo, em seu próprio pequenoK. Bode, G. Uljée mundo, está no caminho da transfiguração. A revista Pentagrama convida o leitor a operar essaRedação revolução espiritual em seu próprio interior.PentagramMaartensdijkseweg 1NL-3723 MC Bilthoven, Países Baixose-mail: [email protected]ção brasileiraPentagrama Publicaçõeswww.pentagrama.org.brAdministração, assinaturas e vendasPentagrama PublicaçõesC.Postal 39 13.240-000 Jarinu, [email protected]@pentagrama.org.brAssinatura anual: R$ 80,00Número avulso: R$ 16,00Números de anos anteriores R$ 8,00Responsável pela Edição BrasileiraM.V. Mesquita de SousaCoordenação, tradução e revisãoJ.C. de Lima, N. Soliz, J.Jesus, S.P. Cachemaille, M.M.R.Leite, L.M. Tuacek, L.A. Nepomuceno, M.B.P. Timóteo,M.D.E. de Oliveira, M.R.M. Moraes, M.L.B. da Mota,R.D. Luz, F. Luz, R.J. Araújo, U.B. Schmid, J.A. ReisDiagramação, capa e interiorD.B. Santos NevesLectorium RosicrucianumSede no BrasilRua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo - SPTel. & fax: (11) [email protected] em PortugalTravessa das Pedras Negras, 1, 1º, [email protected]© Stichting Rozekruis PersProibida qualquer reprodução semautorização prévia por escritoISSN 1677-2253 tijd voor leven 4

pentagrama ano 35 2013 número 5 Estrada para o sol“Em seguida, deixei para trás esse lugar e subi para o cântico de louvor secreto 2a primeira esfera que brilhava sobremaneira, e era, sobre o renascimento e a iniciaçãoportanto, quarenta e nove vezes mais forte do que naocasião em que estive no firmamento. Quando cheguei sol 5, 35, 43, 46ao portal da primeira esfera, os portões moveram-se eabriram-se todos ao mesmo tempo. Entrei nas casas da sobre o noûs e o homem 6esfera, que brilhava intensamente em imensurável luz, e i pérolas do hermetismotodos os arcontes e habitantes da esfera ficaram aflitos.” ii deus, cosmo, homem 9 iii o homem é um deus mortal 11(Pistis Sophia, Livro I, versículo 12) iv a inspiração pelo noûs 13 v o despertar do noûs 14Aqui se fala a respeito do campo solar. O evangelhoPistis Sophia denomina esse campo “a primeira esfera”. como um sorriso que vem do céu 16É o campo do sistema solar ao qual pertence a Terra.Para conseguir sair desse campo, a luz da terceira ves­ pitágoras e sua escolate-de-luz deve ter uma luminosidade quarenta e nove – uma investigação em sete partes 18vezes mais forte do que durante a viagem através daesfera refletora. O que é fundamentalmente dialético, i uma ideia de 2.600 anosfraco, insignificante, torna-se forte, majestoso, porque ii o mito de dioniso 19uma força gnóstica vibra e irradia através de todo o iii a tetractys 21Universo da morte, resistindo a qualquer controle iv a recuperação da tríade 23dialético e contrariando toda a compreensão científica. v os versos áureos 24Se o homem está ligado a essa força gnóstica como vi sobre as quatro ciênciasfilho de Deus, escapa do âmbito dialético e de todos osseus dirigentes. objetivas 28 vii detrás da cortina 30J. van Rijckenborgh, Os mistérios gnósticos da Pistis Sophia a revolução mundial da alma 37 impressões sobre o caminho: experiência de um aluno vagando na terra de ninguém 44 sobre o não saber e além 11

SOBRE O RENASCIMENTO E A INICIAÇÃOo cântico de louvor secretoA gnosis hermética de Hermes Trismegisto oferece sobre o mundo e o homem umavisão tríplice da criação perfeitamente manifestada na forma, à qual o ser humano podeintegrar-se de modo consciente. Para tanto, é necessário que ele aprenda a conhecer aalma e tomá-la por guia. Em seguida, a alma interioriza-se a fim de refletir sobre o queé verdadeiro e justo. No Tratado 14 do Corpus Hermeticum, Hermes e Tat – isto é, oNoûs (a alma-espírito) e o homem que sabe ouvir – elevam um cântico de louvor aoCriador único e infinito.T at: Ó Pai, eu gostaria de ouvir o cân­ coisa ao nascer do sol, porém agora voltado tico de louvor que, como me contaste, para o Leste. E então, meu filho, silencia-te. ouviste cantar às forças quando atin­giste a Ogdóada! O CÂNTICO DE LOUVOR SECRETO Que aHermes: Conforme o que Pimandro desvelou inteira natureza do cosmo escute este cânticona Ogdóada, aprovo tua pressa em demo­ de louvor! Abre-te, ó terra! Que as águas dolir essa tenda; porque agora és inteiramente céu abram suas comportas ao ouvir minhapuro. Pimandro, o Espírito, nada mais me voz! Permanecei imóveis, ó árvores! Porquerevelou do que escrevi, sabendo que eu mes­ quero cantar louvor ao Senhor da criação, aomo estou em condição de tudo compreender Todo e ao Uno! Abri-vos, ó céus! Silenciai, óe ouvir, e ver tudo o que quiser; e ele me ventos! A fim de que o ciclo imortal de Deusmandou fazer tudo que fosse bom. Por isso, possa ouvir a minha palavra. Porque vouem todas as coisas as forças que estão em mim cantar o louvor daquele que criou o Todo,cantam. que indicou à terra seu lugar e estabeleceu oTat: Ó Pai, eu também quero ouvir e conhe­ céu; que ordenou à água doce sair do oceanocer tudo isso. e estender-se sobre a terra habitada e desabi­Hermes: Silencia-te, então, meu filho, e escu­ tada, a serviço da existência e da continuaçãota o cântico de louvor, o hino do renascimen­ da vida de todos os homens; que ordenou aoto. Não era minha intenção fazê-lo conhecido fogo arder para todo o fim que deuses e ho-sem mais, com exceção de ti, que chegaste mens quiserem dar-lhe.ao fim dessa iniciação. Esse cântico de louvor Que todos nós, em conjunto, louvemos a ele,não se ensina, porém fica oculto no silêncio. que está acima de todos os céus, o criador daColoca-te, então, num lugar em pleno ar, inteira natureza. Ele que é o olho do Espírito;com o rosto voltado em direção ao vento sul a ele seja o louvor de todas as forças.após o pôr do sol, e aí adora; e faze a mesma Ó vós, forças que estais em mim; cantai o2 pentagrama 5/2013

Hermes é. Hermes é o verdadeiro homem celeste que passou pelas portas da Cabeça Áurea. Por isso ele é denominado também “Trismegisto”, o “Três Vezes Grande” ou o “três vezes elevado”. É evidente que o homem celeste está elevado em sentido tríplice, ou seja, no sentido religioso, no sentido científico e no sentido artístico. Religião, ciência e arte formam nele um triângulo equilátero. J. van RijckenborghGiovanni Fattori (1829–1908), Pôr do sol à beira-mar, cerca de 1890 o cântico de louvor secreto 3

louvor do Uno e do Todo; cantai conforme Tat: Vi como, segundo a tua vontade, essea minha vontade, ó vós, forças que estais em cântico de louvor deve ser cantado, Pai.mim. Gnosis, ó sagrado conhecimento de Enunciei-o agora também em meu mundo.Deus, iluminado por ti, é-me dado cantar Hermes: Dize, meu filho: no verdadeiro mun­à luz do saber e regozijar-me no júbilo da do, no mundo divino.alma-espírito. Ó vós, todas as forças, cantai Tat: Sim, no mundo verdadeiro, Pai, tenhocomigo esse cântico de louvor! E, ó tu, mo­ esse poder. Graças a teu cântico de louvor edéstia, e tu, justiça em mim, cantai por mim a tua expressão de gratidão, a iluminação deo justo. minha alma-espírito tornou-se perfeita. AgoraÓ amor ao Todo em mim, canta em mim o quero também dar graças a Deus do imo deTodo; louva, ó verdade, a Verdade; louva, ó meu ser.bondade, o Bem. Hermes: Não o faças imprudentemente, meuDe ti, ó vida e luz, vem o cântico de louvor e filho!a ti ele volta. Tat: Ouve, Pai, o que digo em minha alma­Agradeço-te, Pai, que manifestas as forças. -espírito: “A ti, ó primeiro autor do renasci­Agradeço-te, Pai, que impeles a potência à mento, a ti ofereço, meu Deus, a oferenda doatividade. Verbo. Ó Deus, tu Pai, tu Senhor, tu Espírito:Teu Verbo por mim canta teu louvor. Recebe aceita de mim a oferenda que desejas de mim.por mim o Todo, como Verbo, como oferenda Porque todo esse processo do renascimento sedo Verbo. realiza conforme a tua vontade”.Ouve o que as forças em mim clamam: elas Hermes: Ofereces, meu filho, assim, a Deus,cantam o Todo, elas cumprem tua vontade. o Pai de todas as coisas, uma oferenda que lheTua vontade dimana de ti, e tudo retorna a ti. é agradável. Porém acrescenta: Pelo Verbo! µRecebe de todos a oferenda do Verbo!Salva o Todo que está em nós. Ilumina-nos, ó Corpus Hermeticum,Tratado 14.Vida, Luz, Alento, Deus! Porque a alma-espí­rito é a guardiã de teu Verbo!Ó portador do Espírito, ó Demiurgo, tu ésDeus! Isso proclama o homem que te perten­ce, pelo fogo, pelo ar, pela terra, pela água,pelo espírito, por tuas criaturas.Recebi de ti esse cântico de louvor vindo daeternidade, assim como a quietude que bus­quei, e encontrei pela tua vontade.4 pentagrama 5/2013

sol O sol visível é expressão do sol espiritual invisível, chamado Rá ou Aton pelos egípcios, Hélioou Apolo pelos gregos e Vulcano pelos romanos. Ele não é apenas uma imagem do sol invisível. O sol visível transmite forças que o sol invisível e espiritual – o Logos do sistema solar – libera e irradia no nosso cosmo. Dessa maneira, o sol é como um chamado que vem do Oriente e,ininterruptamente, vai de leste a oeste na vida cotidiana e espiritual de cada um. Por isso é dito:“Trabalha enquanto é dia e usa bem o teu tempo”. Dessa forma o homem pode testemunhar da glória intangível do Criador único e infinito. sol 5

sobre o noûse o homemI PÉROLAS DO HERMETISMO Compenetra-te do pensamento de que nada é im­possível para ti, considera-te imortal e em condiçãode tudo compreender, toda a arte, toda a ciência, anatureza de tudo o que vive. (Tratado 2, vers. 80)O que é hermetismo? Podemos interpretá-lo Em nossa vida atormentada e caótica,como uma corrente espiritual que prova­ as pérolas do hermetismo, da sabedoriavelmente nos acompanha desde o início de de Hermes Trismegisto, são um privilé-nossa era. Sua origem, entretanto, está liga­ gio e um presente precioso.da ao mundo dos deuses egípcios de perío­dos mais distantes da Antiguidade, a Hermes © Giovanni Fattori, A Torre de Marzocco, ca.Trismegisto, o Três Vezes Grande. Mas essa in­terpretação perde-se na escuridão da História. de 1895, Museo civico Giovanni Fattori, LivornoE permanece a questão se ela é correta ou não.Quando observamos a história da humanidadeaté onde podemos alcançá-la, vemos uma mul­tiplicidade de correntes filosóficas ou espirituaisque vêm, vão, voltam a emergir e desaparecem.Estejam orientadas para a filosofia ou para areligião, elas são sempre parte integrante de umcontexto cultural. É como uma corda formadapor fios coloridos que ora aparecem na super­fície da corda, ora se ocultam em seu interior.Um desses fios é o hermetismo. Outros sãoos mistérios do antigo Egito, a filosofia hele­nística, o judaísmo, o cristianismo, a gnosis, obudismo, o islã, o sufismo, o racionalismo, aciência; não pretendemos citar todos aqui. Nãoque essas correntes nada tenham a ver umascom as outras; frequentemente elas têm aspec­tos em comum. O hermetismo tem muito emcomum, por exemplo, com aspectos da filosofiahelenística e com o ideário gnóstico.O hermetismo aparece primeiro em escritos6 pentagrama 5/2013

como o Corpus Hermeticum. Podemos aí obser­ O hermetismo não é um sistema fechado, masvar que o conceito hermetismo por certo não tem uma natureza cambiante. Há cientistas quefoi cunhado pelos primeiros hermetistas, mas é veem grandes diferenças nos livros que o com­uma criação posterior. Entretanto, a referência põem. Elas existem, mas quem se apega a elasa Hermes surgiu cedo. talvez deixe de ver o aspecto essencial. sobre o noûs e o homem 7

O hermetismo é uma filoso­ contexto social daquela época e não satisfazemfia fundamentada na religião. os gostos atuais. Alguns ainda são tidos comoEle explica as correlações en­ didáticos, hipócritas ou ingênuos.tre Deus, cosmo e homem e Entretanto, esses aspectos secundários refe­como elas se desenvolvem. rem-se apenas ao estilo. O essencial desses tex­ tos permanece magnífico, e sua influência sobreO Corpus Hermeticum foi descoberto entre os a história do espírito humano perdura. É muitoanos 100 e 300 d.C. Ele abrange 18 tratados comovente, emocionante mesmo, quando lemosna forma de diálogos entre mestre e aluno, as notas do Corpus Hermeticum: alguém escrevede prédicas e orações isoladas. Suas fontes são sobre mim. Alguém me compreende. Há quasediversas, sendo que alguns textos não foram es­ 2000 anos, alguém viveu e experimentou ocritos em grego, mas, por exemplo, em copta e mesmo que vivo e experimento hoje. É comoarmênio, de modo que sua autoria não é clara. se esses 2000 anos não contassem. E olhandoInfluências helenísticas, egípcias, judaicas e bem, eles não contam.gnósticas são perceptíveis. O hermetismo é uma religião fundamentada naO Corpus Hermeticum surgiu em Alexandria, filosofia. Ele explica as correlações entre Deus,grande centro cultural da Antiguidade, onde cosmo e homem e como elas se desenvolvem.se localizava a conhecida e gigantesca bibliote­ Temas importantes são a criação, a relaçãoca que a tornou famosa. Poderíamos designar entre Deus, o mundo e o homem; a essênciaAlexandria como a Nova Iorque daquela época. da verdade, do bem e do mal; a constituiçãoDurante muitos séculos, o Corpus Hermeticum do homem, sua vocação e sua missão. Muitosficou esquecido e só era citado por seus críti­ poderão fazer aqui uma escolha pelos valorescos. Isso mudou quando Marsílio Ficino, no herméticos fundamentais: a relação entre Deus,século XV, na Florença dos Médici, traduziu os cosmo e homem, o homem como divindademanuscritos do grego para o latim. mortal e a inspiração e o despertar por meio doO Corpus Hermeticum não foi um best-seller (caso “Noûs”. µfosse possível imprimir livros naquela época), etambém não é atualmente. Não porque seja di­fícil de entender, mas por tratar de temas mui­to esotéricos, profundamente espirituais, algunsdos quais apenas podem ser interpretados no8 pentagrama 5/2013

sobre o noûs e o homemII DEUS, COSMO, HOMEMNa verdade, o fundamento do universo é Deus, o Até é ainda mais justo dizer que ele não temPai, o Bem, e nenhum outro nome é tão adequado todas as criaturas em si, senão que em verdadepara ele. (Tratado 17, vers. 5) ele mesmo é todas elas! […] Porque Deus tudo mantém encerrado em si, nada há fora dele, e eleQual é a causa última? A essa antiga questão fi­ está em tudo. (Tratado 11, vers. 23 e 24)losófica o Corpus Hermeticum responde: “Deus”.Assim fica evidente que, para o homem, Deus Que Deus está em tudo é, naturalmente, umaé desconhecido – ou seja, o homem passa por mensagem maravilhosa. Alguns avançam eum desenvolvimento interior para superar a sua concluem daí que somente devemos admitirseparação de Deus. esse fato de modo limitado, que devemos aban­Deus é também designado com “o Bem” ou donar a ilusão de que estamos separados dele –“Bem Único”: “O Bem e nenhum outro nome e, com isso, já superamos a separação de Deus.é tão adequado para ele”. Por que? Noções De acordo com isso, trata-se apenas de percebercomo “o Bem” mostram uma preferência signi­ que Deus está em tudo. Teríamos, portanto,ficativa para o duradouro, o imutável, a eter­ unicamente um problema de percepção.nidade. Mudança é considerada como negativa Contudo, uma atitude diferente a esse respeito– bem ao contrário dos tempos atuais. Hoje, evidencia-se no Corpus Hermeticum. Não temosquando falamos de algo dinâmico, isso significa apenas um problema de percepção, mas umalgo positivo, porém o Corpus Hermeticum re­ problema de vibração. Não é necessária ape­presenta outra visão. Ele não procura o movi­ nas uma mudança de percepção para superar amento, e sim o repouso. separação de Deus, é necessária uma transfor­ mação interior, um renascimento do divino emEis a causa do sofrimento do mundo: a marcha nós. Que “Deus está em tudo” não significacircular e o desaparecer no que se chama morte. que tudo está em uma condição divina; signifi­Mas uma marcha circular é repetição, giro da ca, porém, que, por princípio, para tudo existeroda, e desaparecer é renovação. (Tratado 2, vers. 62) a possibilidade de retornar a Deus. O Corpus Hermeticum diferencia nitidamente oIsto consta no Corpus Hermeticum e não em al- mundo terrestre do mundo divino. Em outrasgum escrito budista! Há, portanto, uma notória palavras isso é salientado na Tabula Smaragdina,distinção entre o mundo por nós conhecido outro testemunho do hermetismo:(com suas oposições, com a finitude, com amudança, com a morte, com sua complexida­ O que está embaixo é como o que está em cima, ode) e o Bem Único. E, mesmo assim, Deus está que está em cima é como o que está embaixo, paraimanente em tudo. que os milagres do Uno se realizem. sobre o noûs e o homem 9

O retorno do que está embaixo para o que está sendo, declaro que a aparência é obra da verdade.em cima faz parte dos milagres do Uno. Osmilagres do Uno caracterizam a atuação de (Tratado 17, vers. 21)Deus. Nesses milagres nós podemos participar.Podemos fazer isso não apenas de modo cons­ O plano do em cima reproduz-se no embaixo;ciente e ativo – mas também como espectado­ nesse sentido o que acontece embaixo não éres e, então, certamente, em nossa consciência igual ao que está em cima, mas é uma prova danão se realizam milagres, mas somos, sem o ação do em cima. E pode ser uma metáfora dele.compreender, atraídos a outros estados. Aliás, o Corpus Hermeticum, com “em cima” e“O que está em cima é como o que está em­ “embaixo”, não indica o “Além” e o “Aquém”.baixo” não significa que dois mundos paralelos O em cima não é a região dos mortos.se assemelhem e existam em pé de igualdade,um ao lado do outro. Significa antes que eles O homem […] eleva-se até o céu e averigua suasse influenciam mutuamente. Assim o mais sutil(o em cima) penetra o mais grosseiro (o embai­ medidas; conhece tanto as sublimidades do céuxo). O que está embaixo junta-se à ação do emcima – nas palavras do Corpus Hermeticum: quanto as coisas de baixo; tudo percebe em si mesmo com grande exatidão e o que acima de tudo é grandioso: para elevar-se ao céus, não precisa abandonar a terra. (Tratado 12, vers. 75)Mesmo essas atividades inverídicas aqui em baixo Portanto, não é preciso estar morto para viven­dependem do alto, da verdade mesma. E, assim ciar esse céu. µ10 pentagrama 5/2013

sobre o noûs e o homemIII O HOMEM É UM DEUS MORTALDepois de explicada a relação entre o em cima e o corpo e imortal segundo o homem verdadeiro.o embaixo, passamos ao homem. (Tratado 1, vers. 38) É por isso que, dentre todas as criaturas da natu- reza, só o homem é dual, isto é, mortal segundo Porque o homem é um ser divino, que não deve ser comparado a outros seres quem vivem na terra,TransformingtheFragmentedCommunityThroughDeepDialogue.AshokGangadean.www.http://thelearningcontinuum.biz sobre o noûs e o homem 11

senão com aqueles que são do alto, os celestes, que renascer em nós. O ser divino e o homem terrestre, por assim dizer, não se suportam.são chamados deuses. (Tratado 12, vers. 73) Poderíamos dizer também: não há lugar para os dois ao mesmo tempo. Também não pode­Ousamos, por isso, dizê-lo: o homem terrestre mos simplesmente fazer uma troca, caso isso nos pareça justamente o correto; não há comoé um deus mortal, o Deus celeste é um homem “migrar” do homem terrestre para o divino. O Corpus Hermeticum afirma que, como ho-imortal. (Tratado 12, vers. 76) mens terrestres, estamos sujeitos às paixões. Somos criaturas emocionais. Isso é algo queO homem é um ser divino, um deus mortal. nós conhecemos bem, com seus aspectosEste é um axioma hermético. Um deus mortal, agradáveis e desagradáveis. Mas muitos sabemnaturalmente, é uma contradição. Mas a morta­ também o que é ser arrastado para lá e para cálidade não diz respeito à humanidade inteira. O entre vozes diferentes dentro de nós mesmos.homem terrestre é mortal, o “homem verda­ Muitos mantêm distância e observam o seudeiro” é imortal. Sob esse ângulo, o homem eu; eles conhecem a voz interior que apontaé um ser composto, um ser dual. Ao dizer o para o divino. Se ouvirmos essa voz, isso não“homem” é um ser dual, digo também: todos é mera imaginação. Não somos apenas criatu­somos seres duais. Conhecemos nossa parte ras terrestres, mas também deuses adormeci­terrestre, mas quem é esse homem verdadeiro? dos. Ou, nas palavras do Corpus Hermeticum:Aí entram em jogo os conceitos de Pimandro e deuses mortais, isto é: na verdade, deuses,Noûs. São alusões à alma-espírito, ao ser divi­ mas, no momento, mortais. A imortalidadeno em nós. Com Noûs também não se indica o do homem verdadeiro não é entendida aqui nocaráter de uma personalidade, mas um aspecto sentido de uma alma que retorna a Deus apósdo imortal em nós. a morte. A viagem de retorno, ao contrário, deve começar antes da morte. De conformi­Porque é impossível que o Noûs, devido a sua es­ dade com o Corpus Hermeticum, a morte leva a uma nova encarnação, e esta, de novo à mor­sência, estabeleça-se em um corpo terrestre, porque te. Esse é um elemento da filosofia hermética. Como conseguir, então, o renascimento doum corpo terrestre não consegue suportar tão gran­ homem imortal? µde divindade, nem uma força tão magnífica e purasuportar o contato direto com um corpo sujeito apaixões. (Tratado 12, vers. 51)O Noûs é uma parte do homem “verdadeiro”.Não está simplesmente presente em nós, maspode estabelecer-se em nós, ou, como é ditoem outro ponto do Corpus Hermeticum, pode12 pentagrama 5/2013

sobre o noûs e o homemIV A INSPIRAÇÃO PELO NOûSE tudo isso veio a mim porque recebi de – em última análise, o Bem Único –, e, por outro, porque o Evangelho de João e o CorpusPimandro, meu Noûs, o ser que é de si mesmo, Hermeticum são próximos do ponto de vista da época e da cultura.o Verbo do princípio. (Tratado 1, vers. 72)Como o homem verdadeiro se desenvolve em Viste em teu Noûs a bela forma humana ori­nós é também uma questão de conhecer eentender o que deve acontecer. Não obtemos ginal, o arquétipo, o princípio primordial doesse conhecimento porque alguém nos ensina.Ele vem de dentro, de um diálogo interior: o começo sem fim. (Tratado 1, vers. 23)diálogo com Pimandro.Ora, poderias dizer: “Mostra-me Pimandro!” O Corpus Hermeticum não apresenta comPimandro não é perceptível diretamente. Não clareza o que o Noûs realmente é – se é apodes acionar Pimandro. Ele se manifesta alma-espírito ou se designa a consciência queem ti quando estás preparado para recebê-lo. foi tocada pelo Espírito. Mas isso tambémE, então, receberás o Verbo do princípio. O não é de importância central. Não se trataque é o Verbo? O paralelo com o início do de explicar o Noûs, ou seja, Pimandro, masEvangelho de João é nítido: No princípio era o de despertá-lo e de viver guiado por ele. NoVerbo. Naturalmente isso não é por acaso, e entanto, quando o Noûs vive em nós, vemosisso por dois motivos: por um lado, porque por mais além; o homem interior concretiza-se etrás do Verbo existe uma realidade espiritual toma feição, e a forma humana original mos­ tra-se em nós.Quando o Noûs vive em nós, vemos mais além; o homeminterior concretiza-se e toma feição, e a forma humana originalmostra-se em nós. sobre o noûs e o homem 13

sobre o noûs e o homemV O DESPERTAR DO NOûSOra, podes pensar: despertar o Noûs é algo Se percebermos a nós mesmos apenas como ho-que não consigo. Talvez te sintas indigno mens mortais, a ideia de ser imortal é um merodisso. O Corpus Hermeticum conta com esse sonho e uma negação da realidade. Mas assimsentimento. negamos nossa parte imortal, o Noûs.Compenetra-te do pensamento de que nada é im­ Cresce e eleva-te a uma grandeza incomensurá­possível para ti, considera-te imortal e em condiçãode tudo compreender, toda a arte, toda a ciência, a vel, ultrapassa todos os corpos, vai além de todonatureza de tudo o que vive. (Tratado 2, vers. 80) o tempo; torna-te eternidade. Então compreen­ derás a Deus. (Tratado 2, vers. 79)14 pentagrama 5/2013

Mas o Corpus Hermeticum não proporciona sim­ Porque, antes de mais nada, ela [a alma] templesmente uma visão fantástica. Ele afeta não de lutar contra si mesma, operar uma grandeapenas nosso desalento, nossa tão nobre modés­ separação e deixar a uma parte dela a vitóriatia, que talvez apenas disfarce nossa preguiça, sobre si mesma. Porque surge entre uma parteele também indica o auxílio que recebemos ao e duas outras um conflito do qual a primeiraseguir o caminho. procura fugir, enquanto as duas a arrastam para baixo. A consequência é luta, um grande Ao seguires tua senda, em toda parte o bem virá confronto entre aquela que quer fugir e as duas ao teu encontro; em toda parte na senda ele vai re- outras que se esforçam em conservá-la embaixo. velar-se a ti, mesmo onde e quando menos esperas. (Tratado 5, vers. 10) (Tratado 2, vers. 85) O conflito interior entre tempo e eternidade é Buscai Aquele que vos tomará pela mão e vos delineado de maneira drástica. conduzirá pelas portas da Gnosis, onde irradia a clara luz, na qual não há trevas; onde ninguém está Se primeiro não odiares o teu corpo, meu filho, não embriagado, mas todos são sóbrios e elevam o coração para Aquele que quer ser conhecido. (Tratado 3, vers. 4) poderás amar o teu verdadeiro ser. Mas se amaresSomos, portanto, levados pela mão e guiados! E o teu verdadeiro ser possuirás a alma-espírito e,isso, no Corpus Hermeticum, não é transfiguraçãomística – ou apenas em dose mínima (a mão uma vez possuindo-a, participarás também de seupela qual somos levados). Não é algo interpreta­do com sentimentalismo barroco, mas sem mui­ conhecimento vivente. (Tratado 7, vers. 16)to floreio e, assim, de forma surpreendentemen­te moderna. Nota-se também que é dito que A afirmação é significativa e indubitável. Hojetodos elevam o coração (elevam – veneram). Isso praticamente já não falaríamos de “odiar”é também referência ao homem verdadeiro e à o corpo – isso pode causar mal-entendidos.relatividade dos órgãos dos sentidos. No Corpus Contudo, trata-se de dar prioridade ao ser ver­Hermeticum os sentidos não são muito levados dadeiro e imanente.em consideração – talvez, para o gosto atual, atébem pouco. Os sentidos são apresentados como Assim, ó Tat, exemplifiquei-te uma imagem deenganosos – porque distorcem e desviam. Na Deus, até onde isto foi possível. Se te aprofun­rejeição do homem terrestre e seus recursos, o dares nisso íntima e minuciosamente, olhando-aCorpus Hermeticum é radical. com perseverança, com os olhos do teu coração, encontrarás, crê-me, meu filho, o caminho para o céu. Ou, ainda mais justo, a imagem mesma de Deus te conduzirá nesse caminho. (Tratado 7, vers. 30) µ sobre o noûs e o homem 15

como um sorrisoque vem do céuUm adolescente de boa família visita seus novos amigos com frequência. Seu pai,consciente de suas responsabilidades, questiona-o a esse respeito. Imediatamenteesse questionamento causa um conflito. “Você não precisa me controlar!”, argu­menta o filho. Por fim, a relação entre os dois chega a tal ponto que o pai decideconfiar no filho.Apesar de sua aparente ingenuidade modesta, que permita a uma alma perdida e de suas consequências previsíveis, reconhecer sua origem através do nevoeiro a confiança dada revela seu caráter e, graças à fé, restabelecer sua ligação commágico e luminoso, que me faz lembrar a ela. No ato impessoal se cria um campo deseguinte frase sufi: “Vem! Mesmo que tenhas respiração e uma abertura: já não existe euquebrado cem vezes teu juramento, vem!” nem você. De repente, aquele canal obstruídoMas, em alguns casos bem conhecidos, até começa a fluir: a porta que estava fechadamesmo cem vezes está abaixo do número se entreabre, e uma luz sem treva algumareal! Subitamente, uma atividade cerebral se difunde. É um reflexo da Terra Santa, aintensa e repentina me faz buscar todos os nova Jerusalém! É apenas um clarão, mas émeios para limitar essa confiança. Depois, suficiente para mostrar o primeiro degrau dofaz-se silêncio em meu ser, e a luz realiza caminho de retorno – a terra firme, tambémseu trabalho: compreendo que uma confiança chamada de “fé”.limitada não é confiança. Sentir ou depo­ As palavras confiança, consolo e fé fazem partesitar confiança não é nada fácil. A própria do vocabulário e do imaginário deste mundoluz – Cristo – descobriu que seus discípulos terrestre, mas pertencem, de fato, ao mundomais próximos eram “homens de pouca fé”. da luz. Isso explica e justifica por que temosA confiança na magia da luz deve ser bus­ certa reserva em utilizá-las. É que, em nossocada e cultivada no mais profundo do ser. mundo, onde a trapaça (o oposto da confian­Afinal, confiança é luz! Ela não depende ça) constitui uma realidade inegável, podedo que acontece em uma relação amigável parecer sem graça o sentido por trás dessasou conflituosa. Ela é vasta, ilimitada, livre. palavras.“Vem! Mesmo que tenhas quebrado cem Realmente: a trapaça faz parte desta natu­vezes teu juramento, vem!” Isso quer dizer: reza. Por isso, chega a alcançar o nível da“confio na luz que também está em você, e “arte de viver” – até entre os animais, plan­lhe dou essa confiança, sem nenhum ressen­ tas e minerais, que não deixam de utilizá-latimento ou ansiedade”. É a aceitação plena e para sua própria sobrevivência, com certototal de qualquer reação, de qualquer tipo de refinamento. A minúscula aranha transfor­consequência. ma-se em monstro; a flor paradisíaca cap­ tura visitantes ingênuos em sua armadilha.Quem se confiou à luz pode repartir a luz Quanto às atividades humanas, estas oscilame pode consolar. Não se trata de clichês entre o comércio justo e a fraude legal, sem­do tipo “Coragem, amanhã será melhor!”, pre enfeitados com uma piscadinha e umamas sim de ser uma fonte de luz, mesmo pitada de humor.16 pentagrama 5/2013

Na busca por sabedoria encontramos o sentido. © fotógrafo desconhecidoNo homem, dois mundos se interpenetram, que depende em grande parte do nível ouligando o céu e a terra. A confiança tem do campo em que nos encontramos. Ela é asua origem em Deus, o princípio cujo toque porta aberta para um tipo sutil de percepção.nos faz reconhecer a luz em todas as coisas. Essa percepção nos dá a possibilidade de per-Talvez ainda inconscientemente, ela também ceber, sem julgamento, e apesar dos inúmerosfaz reconhecer as relações corretas e justas. fracassos, que a confiança realiza milagres,Nesse caso, compreensão e autoconheci- tanto para quem a dá como para quem a re­mento podem determinar nossa conduta, cebe. Como um sorriso que vem do céu. µ como um sorriso que vem do céu 17

pitágoras e sua escolaI UMA IDEIA DE 2.600 ANOSUm ser humano da nossa época pode sen­ Você, porém, poderia fazer isso. Você tem a tir-se perdido, como um ponto fugidio, tarefa e a possibilidade de criar esse órgão. Ao solitário no tempo e espaço. Ele mora, trilhar um caminho espiritual, seu ser imortalpor acaso, numa cidade e tem relações familiares poderia adquirir consciência de si próprio, dee sociais aparentemente por acaso. Ele vê e ouve sua origem divina, da eternidade e do mundoas pessoas a seu redor e sente simpatia ou antipa­ divino. Isso transformaria completamente seutia por elas; teme o futuro e está em busca de corpo e a consciência da sua personalidade.amor e segurança. Não se parece ele com uma Então você veria com olhos novos, espirituais,pequena chama no universo escuro, que brilha que a sua vida atual, aparentemente como umpor um instante, para depois apagar-se? Que ponto incidental no espaço-tempo, é a conse­sentido tem essa vida? quência necessária de inúmeras encarnações.Se ele encontrasse o sábio Pitágoras, talvez num Você reconheceria o sentido da atual encarna­livro, por exemplo, ouviria dele as seguintes ção. Então desapareceriam as coincidências e apalavras: “Você existe com seu corpo e sua arbitrariedade, que parecem ser parte integranteconsciência pessoal em determinado ponto do da sua existência agora. Você reconheceria comoespaço-tempo infinito. são pequenos e limitados seus interesses atuais,Como corpo dotado de um eu, porém, você é a seus desejos e temores, e como são grandes e ili­encarnação perecível de um ser eterno, de um mitados os contextos nos quais seu corpo e seupensamento de Deus que, como o próprio Deus, eu se encontram”. µpode atravessar conscientemente todos os tem­pos e espaços e desenvolver-se em glória maior Desenho deainda. Agora, porém, você não ouve as eternas Pitágoras, segun-e divinas ‘harmonias das esferas’, que envolvem do uma esculturae interpenetram todo o mundo espaço-tempo­ em alto-relevoral com amor, liberdade e paz. Não ouve por­ na Catedral deque seu corpo e seu eu não possuem um órgão Chartres, séc.12sensorial para isso. Seu ser imortal criou, desdeo início dos tempos, um novo meio de expres­são mortal, um corpo com o seu eu. Tais cor­pos constituem uma corrente de reencarnaçõesatravés das profundezas do tempo e do espaço.Até agora, nenhum elo dessa corrente desenvol­veu um órgão capaz de perceber as ‘harmoniasdas esferas’.18 pentagrama 5/2013

UMA INVESTIGAÇÃO EM SETE PARTESII O MITO DE DIONISOP itágoras (569–474 a.C.) afirmava co­ Por trás de todos os regulamentos e regras da nhecer suas encarnações anteriores; na escola de mistérios de Pitágoras estava o seu última, teria sido certo Euforbo. Dizia conhecimento da existência de uma ordem etambém ouvir as “harmonias das esferas”, pois uma força divinas que trespassam o universo eteria desenvolvido os órgãos de percepção querem tornar-se conscientes no ser humano.espiritual nas escolas de mistérios do antigo Um autor da Antiguidade escreveu: “Tudo oEgito, da Pérsia, Fenícia e Grécia. No transcur­ que eles (os pitagóricos) determinam acercaso de vários séculos ele se teria tornado o que do que fazer e não fazer tem em vista o divi­se denomina um “liberto” ou um “iniciado nos no… Pois os homens fariam algo ridículo casomistérios da existência”. Isso o autorizaria a au­ esperassem a salvação (eterna) de outros quexiliar outros buscadores da verdade a alcançar não fossem os deuses”. Esse objetivo de ligar-seuma condição semelhante. Tratou, portanto, de conscientemente ao divino no universo impreg­construir uma escola espiritual ou de mistérios nou e marcou a vida dos alunos, provendo-ospara todos os que almejavam conhecer o sen­ de força para o caminho. O cotidiano na escolatido oniabrangente da própria existência. Em incluía a oferenda regular de comida, bebidaCrotona, cidade no sul da Itália, ele encontrou, e incenso, por meio dos quais o mestre e seuspor volta do ano 530 a.C., um bom número de discípulos sempre garantiam sua relação com ospessoas que o aceitaram como instrutor. deuses. pitágoras e sua escola 19

Deve ter havido inclusive um culto especial e retoma seu lugar no mundo divino. Comoa Dioniso, cujos ritos, infelizmente, não nos meio de expressão, ele dispõe agora do filhoforam transmitidos, o que, aliás, não é de se imortal, que pode atuar no mundo.admirar, considerando-se o estrito sigilo man­ Talvez este mito tenha sido apresentado pelostido nas escolas de mistérios da Antiguidade. alunos de Pitágoras como peça dos mistérios,Sabemos, porém, que o mito de Dioniso era o em festas especiais. Talvez houvesse, no edifí­ponto central do culto. cio da escola, pinturas e estátuas representan­Dioniso representa o êxtase espiritual, a divin­ do os personagens do mito. De qualquer for­dade imortal no homem. Ele é despedaçado ma, os alunos sempre eram lembrados de suapelos Titãs, símbolo das forças de atração e tarefa, por meio dos respectivos ritos, adqui­das paixões do mundo não divino. Contudo, rindo, assim, a força necessária para realizá-la.uma divindade feminina, representante da Eles deveriam, no próprio ser, fazer o deusforça regeneradora da alma, reúne seus peda­ Dioniso, aparentemente morto, voltar à vida,ços. Dioniso gera um filho com essa divin­ por meio de sua nova força-alma; deveriam,dade, Dioniso Zagreu, que vence os Titãs. ainda, dissolver as ligações com o mundo ter­Dessa forma, Dioniso, aparentemente morto, reno, os “Titãs”, para ressuscitar como um serpode ressuscitar. Despedaçado pela força de imortal novo, como Dioniso Zagreu. µatração do mundo perecível, o deus ressuscita20 pentagrama 5/2013

pitágoras e sua escolaIII A TETRACTYS (TÉTRADE)Como eles se dedicavam a esse grande temas teóricos e práticos. A teoria consistia objetivo no cotidiano? Imaginemos na descrição da formação da natureza origi­ que um jovem tivesse sido aceito por nal, do mundo divino e do ser humano.Pitágoras como aluno. Então começava para Pitágoras explicava que a origem de todo serele um período de ouvir e aprender, que é Deus, que consiste em quatro aspectos:durava cinco anos. Ele aprendia a ouvir e 1. Ele é a vontade criadora, que tudo inter­não julgar nem criticar imediatamente o queouvira, mas a calar e reconhecer que ele, na penetra, o “pai”, o Espírito.realidade, nada sabia de essencial. Ele abria 2. Deus é também uma substância prime­o coração totalmente e deixava o ensinamen­to de Pitágoras fazer efeito em seu interior e va que tudo preenche, uma espécie detornar-se ativo nele. energia-matéria, como diríamos hoje, aEssa condição de ouvir e calar-se encontrava qual recebe em si a vontade do Pai. Ela ésua expressão simbólica na escola pitagóri­ a mãe, a alma do mundo.ca. Costumava-se colocar os neófitos sen­ 3. Como resultado da cooperação entretados diante de uma cortina, atrás da qual esses dois aspectos, que se espelhamPitágoras, invisível para eles, expunha seus reciprocamente, surge a luz, o filho, aensinamentos. Assim, ficava claro para os consciência.ouvintes que ainda era preciso afastar a cor­ 4. Dos três aspectos se formam emanações,tina situada entre eles e a experiência direta criaturas, pensamentos da mente divina,do mundo divino. Em outras palavras: tor­ microcosmos do macrocosmo. Entre estesnava-se claro que os sentidos e a mente não também o ser eterno do homem – nósestão em condição de perceber a ordem e a mesmos como seres da eternidade.força do mundo divino. Para isso são neces­ Existe, portanto, uma tétrade no início desários outros órgãos, espirituais, que ainda toda a vida, um macrocosmo em desenvolvi­devem ser desenvolvidos. mento, interpenetrado e mantido por Deus,Desde então é feita uma distinção entre e não simplesmente um mecanismo mundialexotéricos e esotéricos. Os exotéricos estão que surgiu do Big Bang, guiado pela causali­fora, diante dos mistérios, e somente ouvem dade ou pelo acaso.a respeito deles. Os esotéricos já desenvolve­ Era típico em Pitágoras o reconhecimento deram algo da percepção espiritual; eles estão relações numéricas por toda parte no uni­nos mistérios e os vivenciam. verso divino, eterno, bem como no mundoNesse estágio em que seus ouvintes silencia­ espacial e temporal. Uma conhecida máximavam, os ensinamentos de Pitágoras abrangiam de Pitágoras diz que “tudo é número”. O número não era para ele apenas algo quan­ titativo como para nós, mas cada número pitágoras e sua escola 21

representava, sobretudo, uma qualidade. A microcosmo, o quatro. 1 mais 2 mais 3 maisorigem primeva era representada pelo um, o 4 é igual a 10. Essa é a famosa tetractys (tétra­próprio Deus, a unidade oniabarcante. Ela é, de) de Pitágoras, que, por sua vez, se trans-em si, polar desde o início, isto é, divide-se forma no um acompanhado do zero, o dez,em dois polos: pai, mãe – o dois. Aqui vemos que, por assim dizer, é a oitava superior doque o dois não resulta da adição quantitativa um. µde dois uns, mas da divisão do um, por meioda qual surge uma nova qualidade: a polari­dade, ou seja, o dois. Da dinâmica entre osdois polos resulta o três, o filho, o um que sedesmembrou de forma harmoniosa. E dessetrês, por sua vez, surge uma nova criação, o22 pentagrama 5/2013

pitágoras e sua escolaIV A RECUPERAÇÃO DA TRÍADEO aluno devia refletir muito e profun­ solitária, desligada, perdida em uma esfera damente sobre esse esquema. Aos espaço-temporal muda. O que ela cria, o poucos, descobria que ele era a des­ quatro, são criaturas altamente imperfeitas:crição tanto do macrocosmo como do micro­ guerras, enfermidades, condições sociais caó­cosmo, o próprio aluno. Porque nele também ticas, deformações psíquicas. E mesmo o queatua o pai, temporariamente ainda como surge de bom e belo muitas vezes é volátilvontade criadora, divina, inconsciente, como e destinado a desaparecer – sabemos disso.Dioniso ou, poderíamos dizer, como cente­ Seja como for, acorrentamo-nos ao mundolha do Espírito. Nele a mãe, uma divindade dos Titãs, o mundo das representações, dafeminina, uma substância original tempora­ multiplicidade de paixões, desejos, interessesriamente ainda não diferenciada, uma ener­ e ilusões, e assim despedaçamos o Deus emgia-matéria, recebe, como alma, o Espírito. nós, o Um.Também nele pode surgir o filho, Dioniso No entanto, o aluno de Pitágoras quer exata­Zagreu, pela atuação conjunta do pai e da mente colocar um fim nesse estado infeliz e,mãe, como iluminação, como nova luz da por isso, trilha o caminho. O que ele podeconsciência. E nele ainda reside a possibilida­ fazer? Ele cuida para que haja espaço para ade de fazer surgir de todos os três aspectos alma, a fim de que nele a “mãe” recupere aalgo imortal: o quatro, a tétrade. sua pureza, para poder receber consciente­ Ao mesmo tempo, o aluno descobria que mente o “pai”, o Espírito, que retornou aoele, em sua condição atual, de forma alguma estado natural, incólume. Dessa díade surgiráconstituía essa tétrade perfeita. A centelha então uma personalidade imortal, um verda­do Espírito, o pai em nós, está quase inati­ deiro ser que, em harmonia com o pai-mãe,vo; a mãe, nossa alma original, está soter­ realizará suas obras. µrada sob as paixões e envolvimentos com asformas perenes, de modo que não há espaçopara receber o Espírito. E o que aconteceucom a nossa consciência, o filho?Nossa personalidade consciente deveria sera expressão imortal da vontade divina e dapura alma divina, um verdadeiro ser, “umaimagem de Deus”, como diz a Bíblia. Emvez disso, desenvolvemos uma personalida­de-eu mortal, que vive sob um horizontemuito limitado. Muitas vezes ela se sente pitágoras e sua escola 23

pitágoras e sua escolaV OS VERSOS ÁUREOSOaluno aprendia a base inicial desse ca­ dominar estas coisas: sobretudo, o estômago, o minho, o lado prático dos ensinamentos sono, a sexualidade e a ira”. Portanto, o aluno de Pitágoras, nos primeiros cinco anos, precisa aprender a ter “moderação”, não apenasdiante da cortina. Os chamados “versos áureos” no tocante aos alimentos para “o estômago”,de Pitágoras, que nos foram transmitidos de for­ mas também no consumo em todos os aspec­ma completa, descrevem todo o caminho espi­ tos, hoje, por exemplo, especialmente no que seritual como uma espécie de matriz, partindo do refere à mídia. Ele deve superar sua preguiça eestado de inconsciência do divino e da personali­ comodidade, o “sono”, e refrear qualquer formadade-eu mortal até a ressurreição do microcosmo de “voluptuosidade”. E também precisa colocarem plena consciência, com uma personalidade rédeas na “ira” isto é, em sua agressividade eimortal. A primeira metade dos versos áureos em sua crítica destrutiva. Desse modo, conseguerefere-se à formação de uma nova alma, pura, ordenar de alguma maneira sua consciência cor­por meio de um comportamento adequado, que o poral centralizada nos chacras inferiores, ajustan­aluno deve aprender e praticar. do-a às exigências da nova alma.Nossa personalidade original, imortal, possuía Da mesma forma ele procede com o centro datrês grandes centros de consciência: um na pelve, consciência no coração. Ele precisa substituir oonde atuavam as energias do amor divino; um no medo pela coragem; a dependência da opiniãocoração, onde a unidade com Deus era sentida; alheia, pela independência; a indiferença frentee um na cabeça, onde governava, em liberdade, a exigências éticas, pela dignidade e a objetivi­a sabedoria divina. A nossa atual personalidade dade. “Nunca faças algo vergonhoso, quer commortal também possui esses três centros, mas em outros quer sozinho. Mais que tudo a ti mesmoestado de degeneração. Na pelve estão concentra­ respeita”, dizem os Versos Áureos. O conceitodos os impulsos egoístas, as paixões e os desejos; de “coragem” praticamente engloba todas essasno coração, ao lado de impulsos do bem e de es­ qualidades. Na cabeça, desenvolve-se o pensa­forços honestos, encontram-se também sentimen­ mento independente, uma “sabedoria” que sabe otalismo, ciúme, despotismo e medo; na cabeça, as que convém à saúde e à situação familiar e social.ideias de moral e as convicções mal conseguem “Ninguém jamais deve levar-te, por palavras oucontrolar os efeitos negativos provenientes dos por ações, a fazer ou a dizer algo que não seja odois outros centros. No caminho espiritual é melhor para ti.”preciso suspender, inicialmente, a degeneração de Os três centros devem trabalhar de forma har­cada centro em particular e da sua relação recí­ moniosa: o pensamento, o sentimento e a energiaproca. A primeira metade dos Versos Áureos nos vital. Essa é a “justiça”, a quarta grande virtudedá as instruções para isso. que o discípulo de Pitágoras e todo aluno de umaAli está escrito, por exemplo: “[…] habitua-te a escola espiritual deve aprender.24 pentagrama 5/2013

Porque quem volta seu olhar para o interior Também não se tratava de transformar o alu­e desenvolve essas qualidades, como Dioniso no num mestre sobre as condições exteriores eZagreu, filho de Dioniso, liberta-se das inúmeras interiores, para então gozar de prazeres, podercomplicações, expectativas, medos e ilusões do ou realização de ideais. Os meios serviam tãomundo perecível, liberta-se dos “Titãs” que não somente para fazer que os discípulos se tornas­querem deixá-lo ser ele mesmo e “despedaçam” sem “menos” no seu afã por prestígio, poder ea sua unidade. Em suma: ele constrói uma nova felicidade, a fim de que a alma verdadeira e puraalma, pura e quaternária, que novamente está pudesse tornar-se “mais”.em harmonia com a tetractys: o pai (pensar com Assim, o aluno entrava na segunda grande fase dea cabeça), a mãe (sentir com o coração), o filho seu caminho: a despedida definitiva da fome de(a energia vital consciente) e, em quarto lugar, a vida, poder e felicidade terrenos. Ele entrava emação em consonância com os demais. ligação com os próprios mistérios. O chamadoA escola de Pitágoras incentivava esse processo “juramento de Pitágoras”, situado precisamen­por meio de ditados simbólicos, tarefas que se te entre a primeira e a segunda parte dos Versosassemelham aos koans, imagens do cotidiano, que Áureos, expressa essa grande transformação: “Não,sempre lembram aos alunos quais são as suas tare­ por aquele que deu a tétrade à nossa alma, fontefas. “Calçar, em primeiro lugar, o sapato direito.” da Natureza eterna!” O aluno declarava, portan­Pense, logo ao se levantar, que você está a cami­ to, um “não” irredutível à dependência das pai­nho de um grande objetivo com “o sapato certo”, xões, da ignorância e da maldade, de influênciase submeta a esse objetivo as ações cotidianas, o externas, ilusões e medos, e um “sim” definitivo“sapato esquerdo”. E há vários outros exemplos. ao mundo divino, onde ele entrava, hesitante,Com base nas quatro grandes virtudes, temperan­ após longa preparação. µça, coragem, sabedoria e justiça, Pitágoras levouseus alunos a trabalhar numa nova personalidadeem consonância com a ordem do macrocos­mo divino. Mas os seguidores de Pitágoras nãoestavam empenhados em ser heróis virtuosos ousantos. Tudo isso eram meios, instrumentos para aobtenção de um objetivo que somente poderia seralcançado com as forças do Espírito, com as ener­gias que fluíam livremente no campo de força daescola de Pitágoras. A iluminação, a elevação daconsciência, determinava a forma da preparação eos meios necessários. pitágoras e sua escola 25

os versos áureosPrimeira parte 20 que aos bons o destino não dá muito desses sofrimentos.1 Primeiro, honra os deuses imortais, como a lei estabelece, 21 Muitos palavras vis ou virtuosas são pronunciadas diante dos homens;2 e venera o juramento, depois os heróis dignos de honra, 22 que elas não te turbem; e não te permitas 23 desviar-te delas. Se alguma mentira for dita,3 e os gênios do mundo inferior, executando as 24 sê brando. O que te digo se cumpra em qualquer prescrições da lei. circunstância:4 Honra também teus pais e parentes mais próximos; 25 Ninguém jamais deve levar-te, por palavras ou5 e, entre os outros, escolhe como amigo o melhor em por ações, virtude; 26 a fazer ou a dizer algo que não seja o melhor para6 cede às palavras doces e aos trabalhos úteis,7 e não te desavenhas com teu amigo por causa de ti. 27 Delibera antes da ação, para não haver pequena falta,8 tanto quanto possas, pois o poder habita junto à consequências censuráveis: 28 pois agir e falar sem reflexão são coisas de um necessidade.9 Sabe que essas coisas, por um lado, são assim; por homem fraco; 29 mas cumpre essas coisas, a fim de que mais tarde outro, habitua-te a dominá-las:10 sobretudo o estômago, e o sono, e a sexualidade, não te entristeçam.11 e a ira; e nunca faças algo vergonhoso, quer com 30 Nada faças de que não entendas, porém aprende outros tudo o que é necessário; e levarás assim a mais12 quer sozinho; porém, acima de tudo respeita a ti agradável vida. 31 Também não negligencies a saúde do corpo: mesmo. 32 porém na bebida, na comida, na ginástica sê13 Depois, sê justo em palavras e ações; comedido.14 e habitua-te a nunca comportar-te sem refletir; 33 Chamo medida tudo o que não te entristecerá.15 porém, sabe que morrer é o destino de todos. 34 Habitua-te a um modo de vida puro e sem16 Quanto às riquezas, aceita por vezes adquiri-las, indolência; 35 e evita fazer tudo que cause inveja. e por vezes perdê-las; 36 Não gastes fora de medida, como o que ignora a17 e tudo o que, pelos destinos divinos, aos mortais beleza, 37 nem sejas avarento: a medida em todas as coisas é recebem de dores; excelência.18 se disso tens tua parte fatal neles, suporta-a e não 38 Faze o que te não prejudicará e reflete antes de agir. 39 Não permitas que o doce sono cerre teus olhos te indignes,19 porém é a cura que convém, tanto quanto te seja possível, e reflete desta maneira:26 p entagrama 5/2013

40 antes de teres examinado cada um de teus atos do 56 nem os escutam: raros são os que sabem livrar-se dia. desse mal.41 Em que errei? O que fiz? O que não fiz que 57 Essa é a sina que extravia o espírito dos mortais; e deveria ter feito? como cilindros que rolam,42 Começando no primeiro ponto, vai até o fim e 58 são jogados para lá e para cá e padecem males então: infinitos.43 se cometeste coisas vergonhosas, repreende-te; mas, 59 Triste companheira, a discórdia inata neles, sem se agiste bem, regozija-te. que percebam, os extravia.44 Nessas coisas esforça-te e exercita-te; é preciso que 60 Não deves fazê-la avançar, porém cedendo a ela, as ames. dela fugir.45 Elas levar-te-ão aos caminhos da virtude divina. 61 Zeus pai, por certo livrarias de muitos males todos os homensO juramento de Pitágoras* 62 se lhes mostrasses de que demônio eles se servem.46 Não, por aquele que deu a tétrade (tetractys) à 63 Tu, porém, arma-te de coragem, pois divina é a nossa alma, ascendência dos mortais,47 fonte da Natureza eterna! 64 aos quais a Natureza sagrada revela todas asSegunda parte coisas. 65 Quando algo dela tornar-se parte tua, dominarás48 Agora passa à ação49 após orar aos deuses para que as realizem. o que te ordeno. 66 E após teres curado tua alma, salvá-la-ás desses Quando tiveres dominado essas coisas,50 saberás qual é dos deuses imortais e dos homens males. 67 Abstém-te, porém, dos alimentos dos quais mortais a constituição,51 e até que ponto se diferenciam e onde se unem. falamos e, tanto nas purificações52 Conhecerás então, segundo a medida da justiça, 68 como na libertação da alma, decide e reflete sobre que a Natureza é em tudo semelhante, cada coisa,53 de modo que para ti não haja nenhuma esperança do 69 após ter estabelecido como condutor o juízo cheio que é sem esperança, e que nada te permaneça oculto. de excelência que vem do alto.54 E saberás que os homens têm os males que eles 70 Após abandonares o corpo, se chegares ao éter mesmos escolheram. livre,55 Infelizes, que não veem os bens que estão 71 serás imortal: um deus que não morre, já não um próximos deles mortal. * O juramento de Pitágoras consiste nos versos 46 e 47. os versos áureos 27

pitágoras e sua escolaVI SOBRE AS QUATRO CIÊNCIAS OBJETIVASPara estimular o desenvolvimento da esfera mágica. Ele sabia com exatidão quais alma na escola interna de Pitágoras, as melodias e instrumentos tinham um efeito assim chamadas ciências objetivas eram calmante sobre o ânimo e os estímulos quede grande importância. Obter discernimento eles causavam. Ele utilizava esse conheci­desinteressado sobre as relações existenciais mento para fins terapêuticos. Música exci­era muito importante para os pitagóricos. tante não era permitida em sua escola. NãoEles estudavam quatro ciências objetivas: havia instrumentos de sopro, que excitama Aritmética, a Música, a Geometria e a o ânimo, nem tambores, que estimulam oAstrologia. Tudo é determinado por núme­ abdome. Assim era conservada a harmoniaros. Da mônada, Deus, origina-se, mediante conciliadora (a justiça) entre os aspectos dadivisão em dois polos, a díade, o princípio alma: sabedoria (cabeça), coragem (coração) epai-mãe. De sua cooperação recíproca surge moderação (pelve).a tríade, pai-mãe-filho, e dela se desenvolve A terceira ciência necessária aos pitagóri­um processo criativo, a tétrade. A segun­ cos para o desenvolvimento da alma era ada ciência praticada pelos pitagóricos era a Geometria. Aos alunos de Pitágoras era mos­Música. Pitágoras trouxera do Egito o co­ trada a relação entre os catetos e a hipotenu­nhecimento de que os intervalos da escala sa de um triângulo retângulo. Eles ficavammusical, a terça, a quarta, a quinta, a oitava, maravilhados de a soma do quadrado dosbaseavam-se na razão entre números intei­ catetos ser igual ao quadrado da hipotenusa,ros. A razão entre a quinta, por exemplo, e qualquer que fosse o triângulo retângulo:a nota fundamental era 3:2. Em nós também b²+c²=a², onde b e c são o comprimento dosdeve estar presente um princípio semelhan­ catetos e a é o comprimento da hipotenusa.te, baseado em números inteiros, por exem­ Quem se aprofundava com um pensamen­plo no ouvido ou em partes do corpo, que to desinteressado nesse conhecimento podiaguardam uma relação entre si com base em transferi-lo para outros fatos na vida, ounúmeros inteiros, o que permite uma resso­ neles encontrá-lo. Pensemos, por exemplo, nonância mútua. Por isso esses intervalos nos conflito de gerações. Os pitagóricos compa­soam agradáveis. Existe uma harmonia entre ravam as concepções de um jovem com as deas notas, um movimento interior do ânimo um adulto, que se contrapõem como catetose uma vibração exterior do ar. Isso permite e formam um ângulo reto entre si. Entãocompreender como é possível perceber inte­ procuravam levá-las a um novo contexto, emriormente as vibrações das trajetórias dos pla­ concordância com a hipotenusa do triângulonetas, portanto, ouvir a “música das esferas”. retângulo. Assim, o pensamento, median­Pitágoras também colocava a Música em uma te a ocupação neutra com a Geometria, era28 pentagrama 5/2013

colocado na posição de distinguir a igualdade então surgiu a Astrologia? Talvez pela obser­e a desigualdade de cada situação na vida e vação e pelos cálculos que as pessoas faziamexaminar as possibilidades de uma compa­ dos pontos que se moviam no céu e eramração. Quanta infelicidade seria poupada associados ao destino de um recém-nascido?aos seres humanos se, antes do casamento, o Isso é bem pouco provável! Não, elas perce­homem e a mulher obtivessem clareza sobre biam os campos de radiação dos planetas, ea igualdade e a desigualdade de seu caráter como eles influenciavam o caráter e o destinoe de suas circunstâncias de vida, sem serem do recém-nascido. Dessa maneira, reconhe­atrapalhados nisso pela força de atração entre ciam a conexão entre o que está em cimaos sexos ou por ilusões românticas! com o que está embaixo. µA última ciência era a Astronomia, ou me­lhor, a Astrologia, a lógica, o entendimentodos corpos celestes. Aqui, também se tratavade relações e analogias qualitativas. A posi­ção macrocósmica dos planetas no instantedo nascimento de um ser humano permitereconhecer, por analogia, as relações micro­cósmicas entre as qualidades de seu caráter.O horóscopo descreve isso de maneira siste­mática. Cada planeta não é apenas um corpo,porém uma esfera, um campo de radiação,que preenche o inteiro sistema solar. Comoos campos de radiação dos planetas e do solse interpenetram, tanto a terra como qual­quer ser vivo que nela habite, sente essasinfluências. Por ocasião do nascimento deum ser humano, a constelação macrocósmicaaplica seu selo sobre a totalidade do carátere das forças do destino do recém-nascido.Quando um ser humano desenvolvido espi­ritualmente reconhece esses fatos, ele podeajudar a outros, que tenham progredido nonovo pensar, a também perceber isso. Paraisso não é necessário um mapa astral. Como pitágoras e sua escola 29

pitágoras e sua escolaVII DETRÁS DA CORTINAApartir de então, o discípulo encontra­ surgem novas causas. Se estas não forem tra­ va-se frente a frente com Pitágoras balhadas ou eliminadas durante a vida, serão detrás da cortina, no interior dos mis­ repassadas à próxima encarnação, e esta irátérios, que lentamente ele deveria aprender colher o que todas as encarnações anterioresa conhecer. A consciência e a mente estavam plantaram.livres dos próprios interesses. Uma nova alma Isso pode ser uma pesada carga. Os carmase uma percepção objetiva haviam surgido. individual e coletivo podem se tornar tãoEsta era a base para mais uma etapa do desen­ pesados que as pessoas mal consigam supor­volvimento de um novo órgão de percepção tá-los. Os Versos Áureos assim o formulam: Essaespiritual. O que poderia favorecê-lo? é a sina que extravia o espírito dos mortais; e comoInicialmente, firmando-se o novo estado de cilindros que rolam, são jogados para lá e para cáalma. Para isso havia um método maravilhoso e padecem males infinitos. No entanto, o serna escola pitagórica. Nos Versos Áureos lemos, humano pode reconhecer como sempre estápouco antes da passagem para a segunda par­ criando novo carma. É devido à sua consciên­te: Não permitas que o doce sono cerre teus olhos cia de conflito, à luta, à luta pela existência,antes de teres examinado cada um de teus atos do ao impulso à vida, a impor-se; isso é o quedia. Em que errei? O que fiz? O que não fiz que determina a sua vida e traz ao mundo todosdeveria ter feito? Começando no primeiro ponto, vai os males da existência. Sobre isso, Pitágorasaté o fim e então: se cometeste coisas vergonhosas, chega a falar de um “demônio”. Triste compa­repreende-te; mas, se agiste bem, regozija-te. Por nheira, a discórdia inata neles, sem que percebam,meio desta autodeterminação, um autorreco­ os extravia. Não deves fazê-la avançar, porémnhecimento repetido todas as noites, o novo cedendo a ela, dela fugir. É o que recomendamestado de alma era fortalecido enormemente. os Versos Áureos.Os alunos de Pitágoras sabiam que o homem Quando um aluno reconhece esse demôniomortal não está entregue ao seu destino ou com o auxílio das forças divinas e de umao carma, mas que pode aprender a lidar com mestre como Pitágoras, ele pode ser liberta­ele de modo a não haver obstáculos na sen­ do da luta, do impulso à vida e da ignorân­da da libertação. Ele pode criar novo carma cia. Ele pode aceitar seu destino, com baseou eliminar o velho. Todas as ações de uma nas forças auxiliadoras. […] e tudo o que, pelospersonalidade mortal são registradas no ser destinos divinos, aos mortais recebem de dores; seimortal, no microcosmo. A soma dos regis­tros de todas as vidas, isto é, das encarnações As imagens do texto grego dos Versos Áureos foramanteriores, determina o carma da encarnação tiradas da obra Pythagore, Les Vers d’Or, na caligrafia deatual. Do que se semeia numa encarnação, Marcel Boin, Bourges, 194830 pentagrama 5/2013

disso tens tua parte fatal neles, suporta-a e não te após ter estabelecido como condutor o juízo cheioindignes, assim formulam os Versos Áureos, que de excelência que vem do alto. Após abandonarescontinuam com estas palavras: porém é a cura o corpo, se chegares ao éter livre, serás imortal: umque convém, tanto quanto te seja possível […] Um deus que não morre, já não um mortal.aluno na senda da libertação não é um fatalis­ Onde ficou então a solidão, a sensação data. Sobre o fundamento das forças espirituais falta de sentido como um grãozinho de areiaem seu microcosmo, paulatinamente ele será no universo? Uma ordem nova e grandiosalibertado. Zeus pai, por certo livrarias de muitos preenche esse ser humano, ele possui umamales todos os homens se lhes mostrasses de que consciência da onipresença, a unidade comdemônio eles se servem. Deus, todas as coisas e criaturas e a liberda­Quando o aluno de Pitágoras deixava atuar de dentro das leis divinas. Ele coopera comem si as leis e forças do mundo divino, em si o amor criador de Deus em prol de todas ase fora de si, ele tornava-se livre de todas as criaturas da terra. O Dioniso imortal nele, oataduras que o ligavam ao mundo terrestre espírito que aparentemente havia sido des­e recebia o Espírito, a iluminação. E quando membrado e estava morto, ressuscitou, gra­agia de forma permanente com base nas leis ças ao auxílio de uma nova alma purificada,e forças divinas, esse estado tornava-se parte e dispõe agora de uma nova personalidadedele. Por isso, os Versos Áureos dizem, no final: imortal. pitágoras e sua escola 31

Entre as numerosas correlações entre Pitágoras e Jesus, quer se trate de seusensinamentos ou de suas vidas, a pesca ocupa um lugar particular. Um dia,Pitágoras encontrou pescadores reunidos na praia; ele lhes disse que era capazde predizer quão abundante seria sua pesca e até o número exato de peixes. Acondição que impôs foi que soltassem os peixes se sua previsão estivesse cor-reta. Todos os peixes saíram vivos da água, e seu número revelou-se conformeo predito. Pitágoras os comprou, e eles foram novamente jogados no mar. ospescadores espalharam a novidade; desde então, Pitágoras foi venerado comosemideus. Salvator Rosa, 1662. Museu Nacional, Berlim.32 pentagrama 5/2013

É claro que quem consegue libertar-se noéter não é o eu limitado, que se autoafirma eimpõe. Pelo contrário, ele resultou da separa­ção de Deus e mantém essa separação, conti­nuamente, por meio da sua autoafirmação, a“luta”. A consciência mortal, seja ela grosseiraou refinada, capaz de impor-se ou clarivi­dente, é um empecilho para o verdadeiroser. Todavia, no longo caminho na escola dePitágoras, ela aprendia a calar-se e a servir overdadeiro ser. Esse é o princípio fundamen­tal de todas as escolas espirituais do passado edo presente.Os alunos dessas escolas precisam continuartrabalhando no cotidiano a fim de formarnovos órgãos cognitivos. Por intermédioda centelha espiritual em seu coração, eleslibertam-se das expectativas, dos medos eilusões, e dessa maneira concretizam uma li­gação cada vez mais consciente com o mundodivino. Invocações, orações ou canalizaçõesnão fazem sentido neste processo. O máximoque se pode obter mediante essas tentativasé entrar em contato com o mundo dos mor­tos, o Além, denominado por Pitágoras de“mundo inferior”. O discípulo de Pitágorascontava com o mundo do Além e o honrava:honra os deuses imortais, como a lei estabelece,porém não se ocupava com ele.Auxiliares do mundo divino encarnam porvontade própria, para apoiar os seres humanosem seus esforços em prol da independênciae liberdade espiritual. Eles suportam todasas dificuldades relacionadas com a vida no pitágoras e sua escola 33

mundo da matéria densa, a fim de ajudar seus deveria haver um marco político correspon­alunos a alcançarem vitória. dente, exteriormente, um estado aristocráti­Assim também procedeu Pitágoras. Sua escola co. Pitágoras esperava até poder influenciare ele próprio foram perseguidos, após duas positivamente a situação política por meio dasdécadas de intenso trabalho. Ele foi obri­ forças que emanavam de sua escola.gado a deixar o país, e seus alunos disper­ No entanto, em toda a Grécia a aristocra­saram-se. A principal causa foi de natureza cia foi substituída pela democracia. O siste­política. Pitágoras havia estabelecido um bom ma instituído então na Magna Grécia e narelacionamento com a aristrocracia reinante Sicília, por exemplo, baseava-se em liberdadede Crotona. Da mesma forma que, em sua irrestrita e egoísmo desenfreado. Isso contra­escola, os melhores homens deveriam de­ dizia os ensinamentos da escola pitagórica,senvolver-se interiormente, assim também segundo os quais a moderação e a amizade deviam vigorar para todos. Uma escola espi­Pitágoras ritual sempre fica em uma situação delicadaVida – Escola de Mistérios – os Versos Áureos quando se torna dependente de condiçõesKonrad Dietzfelbinger políticas ou econômicas.o artigo baseou-se numa conferência do autor A título de conclusão, podemos dizer quewww.rozekruispers.com não há melhor orientação na preparação para o caminho espiritual do que a frase que Pitágoras sempre repetia a seus alunos: “Não despedaces o Deus em ti!” O ser humano é uma imagem de Deus, um Deus em poten­ cial, não como eu, mas como ser espiritual, como microcosmo. Não despedacemos esse princípio espiritual, perdendo-nos nos mui­ tos aspectos do mundo material, sem con­ seguir reencontrar-nos. E, se estivermos no caminho, não continuemos a despedaçar esse Deus, mas restauremo-lo. Retiremos nossa alma das identificações com as muitas coisas boas e más da terra, e recuperemos, assim, a unidade, o poder sobre as forças divinas presentes em nós. “Não despedaces o Deus em ti!” µ34 pentagrama 5/2013

sol“É imprescindível saber que existem dois sóis, um espiritual e um natural. Um sol espiritual para os que estão no mundo espiritual e um sol natural para os que vivem no mundo natural. Sem compreender isso, nada pode ser convenientemente entendido no que concerne à criação do homem…” Emmanuel Swedenborg (1688–1772), Amor e sabedoria divinos E Juliano, o Apóstata (331–336), ensinava: “Há três sóis em um; o primeiro é a causa universal do todo, bem supremo e perfeição; o segundo é a força, a razão soberana que domina todos os seres racionais; o terceiro é o sol visível”. O anjo no sol. William Turner, 1846. sol 35

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a revolução mundial da alma a revolução mundial da alma 37

IMPRESSÕES SOBRE O CAMINHO: EXPERIÊNCIA DE UM ALUNO“Anualmente, os árabes e os africanos se reúnem e se consultam mutuamente sobre as artespara saber se alguma coisa melhor foi descoberta ou se seus conceitos foram superados pelaexperiência. Desse modo, a cada ano algo novo se apresenta para melhorar a Matemática, aFísica e a Magia, pois nisso os habitantes de Fez são muito avançados. […] Em Fez ele travouconhecimento com os que chamamos comumente de habitantes originais, os quais lhe re­velaram muitos de seus segredos, do mesmo modo que nós, os alemães, poderíamos reunirmuito do que é nosso se uma unidade semelhante reinasse entre nós e se aspirássemos àpesquisa com toda a sinceridade.” Fama Fraternitatis, 1614I que mantemos? O que sobra quando precisamosA mídia nos apresenta o que somos: vitórias no passar sem elas? Desde criança e adolescentefutebol, acidentes graves nas estradas, final trá- eu tinha a sensação de que alguma coisa estavagico em briga passional, crescimento das expor- errada. Somos diferentes das pessoas que cruzamtações, presidente em viagem à China, o show nosso caminho. Não conseguimos encontrar-nosdo nosso cantor preferido. Mas será que somos integralmente. Mantemos contato somente ba­somente isso ou somos algo mais? Nosso ser se seados em nossas partes, em nossos fragmentos.resume às informações que captamos, às relações O resultado é uma porção de coisas exageradas,38 pentagrama 5/2013

deformadas, caricaturais, fictícias. Por mais que está o espaço da minha existência, o espaço quealgo mais profundo esteja operando dentro de ninguém mais a não ser eu pode ocupar? Aquelenós, essa essência continua escondida! Por mais lugar onde minha presença é indispensável noque nos comuniquemos, não existe entre nós cosmo, lugar que é a morada indescritível donem comunhão, nem unidade. Os pensamen­ meu ser? A vida de tantas pessoas que buscamtos e as palavras criam sua própria realidade. esse lugar é como um grito sem palavras. AEstamos todos ligados e, no entanto, muito resposta ainda não chegou. Durante toda a vida,distanciados uns dos outros. É como diz a canção giramos em torno de alguma coisa – não importaDie Königskinder (O príncipe e a princesa): “Eles o que façamos. Giramos ao redor do nosso sernão conseguem aproximar-se porque as águas mais profundo, sem conhecê-lo. No entanto,são muito profundas”. muitas vezes deixamos escapar um suspiro: umaComo conseguimos viver desse modo? Na reali­ estranha emoção toma conta de nós. Ficamos emdade, não temos alternativa. Simplesmente verifi­ silêncio e lançamos um olhar sobre nosso modocamos o que somos e tentamos agir da melhor de viver. Temos vontade de deixar tudo de lado,forma possível. Muitos rebelam-se contra esse de escapar do nosso círculo de existência. Masmodo de viver. Recusam-se a viver assim, são será que isso nos ajudaria? De repente, minhacontra alguns pontos ou são totalmente contra. vida parece ser uma representação que acontece na periferia. No centro está o ser interior. SeráII que tem sentido esse deslocamento para a peri­Podemos ser dominados por correntes de pensa­ feria? A distância para meu ser interior continuamentos ou convicções e, com base nelas, de­ imutável: apenas preciso percorrê-la. Gostaria determinar nosso comportamento por um longo receber informações vindas desse centro. Parecetempo. Um dia, mostramos uma faceta; no que minha vida está acontecendo no palco depróximo, outra. Afinal, quem somos? Não sabe­ um teatro invisível! Nele represento diversosmos, pois não recuperamos a consciência. Onde papéis, mas percebo que o palco continua inal­ terado, imóvel, imutável. Que sentido têm essesA Madrasa Nou Inania é uma escola corânica em Fez papéis que desempenho? Personagens, forças,(Marrocos), construída em 1350. segundo a Fama turbilhões, intrigas – tudo isso atua em mim:Fraternitatis, esse foi o local onde se encontraram parece com tudo o que a mídia me traz. Minhaos sábios árabes e africanos “que, vivendo tão longe participação no mundo é a imagem exata douns dos outros, não somente estão unidos entre si, que se passa dentro de meu ser. Desse modo, omas também são contrários a toda polêmica e estão mundo vive dentro de mim e me anima: minhasempre dispostos a revelar seus segredos”. Foi ali psique coloca em movimento o que se passa notambém que Cristão Rosa-Cruz travou conheci- mundo. Sou parte de tudo o que acontece!mento com aqueles que se costumava chamar deindígenas. Fotos © Ivar Hamelink a revolução mundial da alma 39

Meu passado cristão me faz chamar o ser interior de:Salvador, Emanuel, Deus, Cristo, o Outro em mim.III transcendental, fora do tempo. É um flash rápi­Já faz tempo que me observo; sinto-me um ser do, como um clarão! O mundo é engolido peloestranho – estranho a tudo o que se passa, apesar vácuo. Sete bilhões de seres humanos sufocamde estar preocupado. Muitas vezes, quando con­ o ser interior. Eles formam uma roda que girasigo vislumbrar alguns espaços ocultos de minha e arrasta tudo. Cada pessoa é como um planetaconsciência, identidades que ainda não haviam orbitando o sol interior. Quem conseguirá sairsido descobertas, penso que seria capaz de retirar disso? Imaginemos que um grande número deo véu. Nessa hora, alegria e desejo me invadem planetas decida seguir uma trajetória diferente ee sei que algo grandioso me aguarda: algo tão aproximar sua órbita do centro, mergulhando nagrande que precisa ser desvendado. O papel que transcendência. A lei de interdependência deverianosso ser interior quer nos dar está esperando engendrar uma reação conjunta do “sistema hu­por nós! Estou intimamente ligado às árvores. manidade”. As antigas certezas desapareceriam, eElas me transmitem a experiência de sua espe­ surgiria a incerteza. O aspecto espiritual da almara silenciosa. Uma paciência cósmica opera por seria intensificado no mundo e viabilizaria novosmeio delas. Os animais também parecem estar e possíveis processos de desenvolvimento. Não éesperando. Até o espaço que envolve a terra dá exatamente isso o que está acontecendo hoje noa impressão de estar esperando. E as estrelas nos mundo? O transcendente quer oferecer-nos outraobservam. Tudo está esperando. Mas, esperando identidade, quer despertar em nós o transpessoalo quê? Nossa decisão de seguir o caminho que e o universal, quer despertar a unidade, pois aconduz ao nosso ser interior. Quando tomarmos ultrapassa. Ele é a unidade. Para nós, seres huma­esse rumo, haverá uma mudança fundamental, nos, a unidade que nos envolve é a humanidade –uma intervenção no mundo: a revolução mundial não somente no sentido exterior, mas também emda alma mudará tudo! Quando, no decorrer de sentido profundo: a humanidade eterna, como or­uma vida humana, chega o momento crítico, na ganização e comunhão de almas livres do corpoencruzilhada onde se desvela a senda que leva ao físico, da mortalidade, dos envolvimentos confu­ser interior, a evolução e o fluxo do tempo pare­ sos, das âncoras que nos prendem, das estratégiascem parar por um instante. Abre-se a possibilida­ que usamos. Seria apenas uma opinião visionária?de de uma decisão importante, já desembaraçada Já tive muitas, quando era jovem. Hoje, digo:do peso do passado. O homem livra-se da trama o ser interior trouxe esse impulso, suscitou isso.de todas as redes que o prendem. Gostaria de comparar essa situação com a de um alpinista atraído pelo cume da montanha. SeusIV amigos recomendam que ele continue embaixo.Sem que ele perceba, o ser interior vai-se desve­ “Por que ir lá para cima? Por que expor-se aolando, como uma porta que conduz a uma região perigo?” E a resposta é: “Eu tenho de ir. Não40 pentagrama 5/2013

consigo agir de outro modo”. E então ele escolhe pertence ao ser interior. Como é que eu nãoseu equipamento e deixa uma porção de coisas consigo encontrá-lo? Um dia, as “escamas” caempara trás. Minha esposa e eu estamos seguindo de meus olhos. Quando perscruto as profunde­esse caminho. Já buscamos e exploramos muitas zas, usando a luz da consciência, chego ao quepassagens antes de descobrir um grupo com o me pertence e corresponde a mim. Contudo,qual tivéssemos afinidade. Continuamos partici­ desse jeito não posso descobrir o ser verdadeiro,pando desse grupo. A característica da senda que imortal e eterno. Ele não se reflete nas forças depercorremos é a da autoentrega ao ser interior, minha consciência. Ele faz parte de outra di­ao espelho do campo mais interno do grupo. Isso mensão. E essa dimensão representa uma toma­parece um pouco vago? É que a razão, por si só, da de consciência libertadora. De repente, comnão pode compreender. Por outro lado, em nosso um sorriso, liberto-me das minhas tentativascoração houve um reconhecimento, uma espécie inúteis. Compreendo por que um ateu diz comde pré-memória. Aquela região de vida que havia convicção que não conseguiu encontrar Deus.sido absorvida acaba de emergir novamente, ao ar No entanto, consigo vivenciar o ser interior.livre, como um futuro que precisa ser reconquis­ Como ele se deu a conhecer? Muitas vezes eutado. Uma certeza acaba de tomar forma em nós. o conheço melhor nas reuniões da comunidadeO grupo utiliza palavras para dar nome ao cami­ da qual faço parte. É nessas ocasiões que semprenho. Palavras do Evangelho, mas também de Lao vivencio a luz da alma espiritual. Como isso éTsé, de Buda, e outras palavras mais atuais. Qual possível? Pertenço ao grupo, abro-me às palavrasé o efeito delas? Elas nos permitem distinguir as que falam sobre o caminho – sem esperar nada.divergências, estimular as possibilidades ocultas E então a luz reflete-se em mim, comunica-sena consciência. Elas atualizam e manifestam, comigo durante ou após as reuniões. Tornou-seno espaço, a energia do caminho. É assim que evidente: o ser interior precisa dessas ocasiõesessas forças operam em quem as pronuncia. Logo para construir em mim sua teia de ressonância.surgem, igualmente, efeitos de sombra, reações O ser eterno precisa encontrar o que em mimopostas. Essas reações originam-se das facetas do está em ressonância com ele: um espelho límpidonosso caráter. Então, pensamos: “Você não pode para nele refletir-se.tirar a si mesmo da lama, como fez o Barão de Compreendi que, ao sentir medo, tenho emoçõesMünchhausen. Você não pode escapar do fato de fortes, e, quando meu raciocínio prevalece, ape­você ser quem realmente é”. Então, o ser interior nas consigo embaçar e obscurecer esse espelho.se revela e ensina que é completamente diferente Esse espelho é algo completamente diferente ede minha simples pessoa. corresponde a outro nível de consciência. Na antiga corporeidade, vai-se formando o nível deV uma nova consciência-alma. A partir de então,Meu passado cristão me faz chamar o ser interior as duas consciências – a velha e a nova – dizemde: Salvador, Emanuel, Deus, Cristo, o Outro “eu” com a mesma boca.em mim. Ele é o oposto do que sou. Posso cha­má-lo de você, com intimidade. Eu sei que ele VIé o meu eu verdadeiro. Mas também me sinto O grupo do qual participo deu-me a ajuda de­bastante irritado quando decido orientar-me por cisiva para gerenciar as energias e informaçõesele e sinto a escuridão, o vazio, o nada. Surgem que iam surgindo. O que determina tudo issopensamentos acompanhados de alterações emo­ é o nível de consciência. Como se faz a trocacionais e corporais, desejos, frutos de velhas de uma consciência para outra, da inferior paraheranças do subconsciente, desaparecidas há a superior? Precisei refletir sobre isso durantemuito tempo, inexplicavelmente. Mas nada disso muito tempo – e, no entanto, era tão simples! a revolução mundial da alma 41

das velhas energias, que são próprias da perso­ nalidade. Tudo isso é acompanhado da possibi­ lidade de dirigirmos a própria vida de maneira completamente nova. De fato, nossas relações com todos os seres vivos mudam por completo. Tudo é novo! É assim que vivenciamos “encon­ tros de almas”. É o que nos faz indizivelmente felizes quando podemos observar que outra pessoa possui nobreza de alma. Se continuarmos fiéis ao caminho, ele também será fiel a nós. A nova órbita se estabelece. O novo nível de consciência torna-se a estrutura da alma. De modo totalmente novo, o ser inte­ rior vai ocupando seu lugar. É muito diferente de quando ocupávamos apenas a periferia! O Salvador, o transcendente, constrói um novo corpo anímico na antiga corporeidade: pode­ mos sentir isso como uma grande força que nos sustenta. Agora, os dois níveis de consciência podem de­ senvolver-se juntos. O que é novo já adquiriu sua estrutura, e o que é velho pode integrar-se a ele.A causa de tudo é o ser interior. É ele quem VIIdesperta o nível de consciência superior, e isso Acho que se trata da próxima etapa da evolução.tem efeito no nível inferior. Ele faz nascer uma Acho que é isso que o mundo está esperando!nostalgia no velho eu. Ele desperta o que é ideal Estamos ligados a tudo. É indispensável haver di­e estimula, acima de tudo, a disposição para a ferentes caminhos espirituais. Afinal, o transcen­rendição. A rendição é a chave mais importan­ dente apenas pode refletir-se na diversidade! Suate para todo esse processo de desenvolvimento. riqueza interior apenas pode exteriorizar-se sobSomente ela permite passar por novas experiên­ múltiplas formas. Todas as pessoas, individual-cias e criar, por exemplo, a faculdade de distin­ mente, podem empreender o caminho que con­guir as novas energias, próprias do ser interior, duz à única senda. A felicidade suprema, a graça soberana, é reconhecer-se no outro. Tudo está à espera do despertar do coração. Tudo está à espe­ ra do despertar do ser interior. Um grupo unido pela mesma orientação pode tornar-se o espelho côncavo, com possibilidades bem mais intensas de reflexão para servir à energia do ser interior – bem mais do que as possibilidades de um indi­ víduo isolado. Precisamos de núcleos de energia espiritual da alma, que expandam a luz para todo o mundo! Esses núcleos formam-se independentes das culturas e das religiões. Às vezes, eles provo­ cam a revolução mundial da alma. µ42 pentagrama 5/2013

sol O sol divino de que falamos envia sete espécies de raios ao mundo perdido e decaído. Esses raios formam um espectro completo, constituído de: vermelho, laranja, amarelo, verde,azul, índigo e violeta. São os sete raios do sol divino, aos quais ligamos os alunos da Escola, de vez em quando, mediante um canto mantrâmico: Eis que avançamos no vermelho da aliança sanguínea, vivendo do esplendor alaranjado do prana divino. Nosso é o áureo coração da glória solar de Cristo. Unidos permanecemos no verde país da esperança. Poderosamente a amplidão azul se nos abre à distância… A nuvem do Senhor, colorida de índigo, nos precede. Então a face é despojada de todo o véu, e o manto violeta dos reis-sacerdotes nos espera. J. van Rijckenborgh, O advento do novo homem Hélio conduzindo a carruagem solar – vaso ateniense, ca. século V a.C. sol 43

vagando na terra de ninguémUns são curiosos e simplesmente querem saber. Outros queremsaber tanto quanto eles – talvez mais, e até melhor. Alguns queremadquirir um saber absoluto que vá além da verdade suprema, damais profunda sabedoria. Quem não conhece esse desejo ardente,essa fome voraz de saber?Oser humano gosta de saber. O saber sobre alicerces sólidos e seguros, procurando traz segurança, organiza, protege, preenchê-la e completá-la. Enquanto isso, tranquiliza. O saber subjuga, inves­ nunca muito longe, está o não saber, sempretiga e supervisiona o caos. Saber significa ter, nos corroendo silenciosamente por dentro epossuir, controlar, dominar. O saber sustenta, por fora. Desviando a cabeça ou enterrando-aatua como ponto de apoio e reveste o não na areia, procuramos proteger-nos, colocan­saber. O saber constrói um muro ao redor de do-nos fora do alcance do não saber. O nãosi mesmo, posiciona-se como uma fortaleza saber, em contrapartida, é paciente e gosta denas regiões em volta do não saber. O saber vias sub-reptícias. Um dia, acontece: ficamosimpõe condições à existência. Primeiro, as mergulhados no não saber até os joelhos, atémateriais: manter o emprego, a saúde, um o pescoço. Imperceptivelmente, ou muito deteto acima da cabeça, e também as imateriais: repente, o saber nos abandona à porta dashonestidade, justeza, autenticidade, humilda­ grandes questões existenciais. Quem nuncade, sensatez, mansidão, equilíbrio. sentiu a opressão, a desorientação, a angús­Se as satisfizermos, o que acontecerá? “Tudo tia, o mal-estar, a mágoa de precisar ceder,vai dar certo”, diz o saber, de si para si. ou até mesmo a vergonha ou a dor de umaO saber tenta estabelecer nossa existência punhalada na nossa presunção, quando nossa44 pentagrama 5/2013

SOBRE O NÃO SABER E ALÉMsede de tudo saber continua insatisfeita? De lembranças, nem de demência. Não se trataum modo ou de outro, todos nós conhecemos de conhecimento barato, nem do pequenoisto: não saber, o não saber, já não saber. não saber.Aqui queremos deixar bem claro: não estamos O não saber sobre o qual estamos falandofalando de falta de conhecimento. Não é o emudece e recusa-se a colaborar quandonão saber que provoca nosso desespero dian­ precisamos de respostas às nossas questõeste do manual de instruções para montar um impacientes sobre os assuntos mais profundosmóvel ou diante de um motor ao abrir o capô ou mais elevados.de um carro. Não é o não saber que nos deixa Impulsionados pelo nosso desejo de saber,boquiabertos e sem respostas às questões insis­ os golpes insistentes de nosso “quero saber”tentes ao nosso redor. soam à porta. Todavia, desta vez ela continuaNão é o não saber ligado ao mundo senso­ fechada. O que pertence ao domínio do defi­rial e transitório dos fenômenos. Também nitivo não cede diante de nossos termos.não estamos falando do não saber relativo à Assim, somos confrontados com o não saber.árvore do conhecimento do bem e do mal. “O não saber. Graças ao artigo definido, esteNão é também o caso de se falar de estupi­ não saber se torna reconhecível, determiná­dez, de perda de memória, de diminuição de vel, identificável: ele é o não saber especial vagando na terra de ninguém 45

sol Da mesma maneira que na cabeça humana existem dois órgãos para ouvir, dois para ver, dois para cheirar, e um para falar, e que seria vão exigir que os ouvidos falem ou que os olhos percebam sons, assim também houve épocas em que se viu, outras em que se ouviu, e outras ainda em que se cheirou. Ora, resta ainda à língua chegar a uma posição de honra completa, o que acontecerá em um espaço de tempo acelerado e que será abreviado, a fim de que o que antes foi visto, ouvido e cheirado possa agora finalmente ser falado, depois de o mundo ter dormido até fartar-se, curando-se assim da embriaguez causada por sua taça cheia de venenos e soporíferos. Então, ao raiar do dia, alegre e jubiloso, com o coração aberto, a cabeça descoberta e descalço, ele irá ao encontro do sol nascente. Confessio Fraternitatis, cap. VIII. Imagem: Pássaro-alma egípcio ou “Bá”, ca. 330 a.C.46 pentagrama 5/2013

Temos uma bagagem repleta de saber e conhecimento, resultado de incontáveis anos de experiência, no entanto somos ignorantes quanto ao essencial. O que fazer, então?e notável de um mundo totalmente diferente indica uma decisão. O não saber nos empur­do mundo do nosso pequeno não saber. O rou para a busca do saber. Será que, depoisartigo definido transforma nosso não saber de termos percorrido tantos caminhos, deem um substantivo neutro, sem lados, sem termos acreditado tantas vezes saber, admi­margens, aberto em todas as direções, ilimi­ timos finalmente – honestamente, mas nãotado. Linguisticamente falando, ele transfor­ à vontade – nada saber? Assim, para cada euma os polos opostos “definido” e “ilimitado” que quer saber a qualquer preço, chega o mo­deste não saber em significante único. O mento do insondável nada saber – depois deartigo “o” como nome independente, como oscilar inúmeras vezes entre Caifás e Pilatos.substantivo que se encontra na base, oferece Exausto, o eu cede. Ele começa a parar e aestabilidade a tudo o mais; o “o” é capital, balbuciar. Nosso saber gagueja, e, derrotados,núcleo, suporte, é exatamente aquilo que caímos no não saber, cujo primeiro efeito éignoramos. levar-nos ao completo desespero.E perguntamos mais uma vez: “Do que se Não saber! Quanto mais vasta é a superfícietrata? Trata-se de uma resposta insuficiente de nosso saber, tanto mais larga é a fronteiraàs questões primeiras e últimas sobre o que é que toca o não saber, tanto mais aguda é aessencial? Trata-se da maravilhosa e inaces­ nossa consciência da extensão incomensurá­sível ‘Inglaterra fechada’ da canção infantil vel do nosso não saber. Então, cada caminho,‘Cisnes brancos, cisnes negros’!” cada saber levado pelo eu até o extremo, até o pico ou até as profundezas, termina finalmen­Cisnes brancos, cisnes negros! te no mais profundo vale da incompletude, daQuem navegará comigo para a Inglaterra? falta, do vazio – quando tudo falha, quando jáA Inglaterra está fechada nada resta, nem um milímetro sequer, quandoporque a chave se quebrou. nosso saber cessa. É quando nosso pequenoHaverá um carpinteiro no país saber, essa segurança tão ansiada para a defesacapaz de consertar a chave? da existência, demonstra ser insuficiente e a saída de emergência somente traz inseguran­O “o” como porta para a Inglaterra, o ça. Temos uma bagagem repleta de saber eNirvana, o outro reino, o último reino? Que conhecimento, resultado de incontáveis anoschave abre essa porta? O saber? Mas qual de experiência, no entanto somos ignorantessaber? quanto ao essencial. O que fazer, então? DarNão qualquer saber, não o pequeno saber. um grito lancinante? Xingar? Suplicar? FazerEste nós já possuíamos, mas sejamos francos: um silêncio glacial? Esse não saber é a revira­neste momento nós não sabemos mais. Mais volta em nossa busca! vagando na terra de ninguém 47

Desce mais fundo, desce apenas esse não saber não é um jogo. Apesar disso,Ao mundo da perpétua solidão, poderíamos chamá-lo de divertido, rela­Mundo não mundo, mas que não é mundo, xante, revelador, arrebatador. Seria esse oEscuridão interior, privação suspiro libertador do sapo inchado, dema­E destituição de toda propriedade, siado cheio de saber? No entanto, é neces­Ressecamento do mundo dos sentidos, sário cuidado! O não saber consciente ori­Esvaziamento do mundo da fantasia […] gina imediatamente o perigo de imitá-lo e transformar o insondável em algo tangível.(T. S. Elliot, Four Quartets, Burnt Norton, III, 114–120.) O não saber não é um plano de ações, algo a ser incluído em nossa lista de tarefas. Ele nãoÉ bom manter-se calmo e sereno, sem entrar pode ser alcançado por procedimentos reco­em pânico nem fugir para o porto seguro de mendados na sequência correta e na direçãonosso saber – geralmente nossa primeira rea­ certa. O não saber apenas surge quando oção. Assim, descobriremos como o não saber eu tentou e ansiou ao extremo alcançá-lo;pode ser claro e amplo, cheio de oxigênio. ao nos curvarmos – cansados, esgotados eÉ bom ficar imóvel, sem usar muletas – dar contra a nossa vontade – diante da insignifi­os primeiros passos trêmulos e hesitantes cância do nosso não saber. Não saber equiva­– e conceder-se o direito de não saber. É le à pobreza de espírito. O poder da matériabom ficar imóvel nessa imensidão de ideias, enfraquece. A matéria diminui. O não saberideologias, princípios e imagens. Quando anuncia para o eu uma parada, mas esta nãoo querer, o dever e o desejar tentarem de é a estação terminal. Não saber é como umatodos os modos reter-nos, quando nosso “eu” dobradiça, uma porta giratória, uma passa­recarregar uma vez mais as baterias para uma gem. Ou uma transição, a qual – sejamos ho­nova investida do não saber, permaneceremos nestos – pode levar muito tempo e repetir-seserenos e perseverantes. várias vezes. O eu devorador de saber, esta lagarta, transforma-se em crisálida medianteEu disse à minh’alma: faz silêncio o não saber e fica aguardando. O mais im­e deixa as trevas descer sobre ti, portante não pode ser “realizado”, apreendi­que serão as trevas de Deus. do. É necessário esperar. Não saber equivale a soltar as amarras. O não saber toma o leme(T. S. Elliot, Four Quartets, East Coker, III, 112–113) e coloca-o nas mãos do Outro. No não saber residem milagre e mistério. Não saber é ale­Permanecer no não saber não é o mesmo que gria. No não saber, buscar e encontrar ces­desistir. O não saber requer ousadia inco­ sam; nós é que somos procurados e encon­mum! O não saber significa levantar, en­ trados. Esperar significa continuar. E então,treabrir a porta, é sangue novo, é criar uma inesperadamente, tomamos consciência deabertura para a renovação, para o Outro. um saber verdadeiro, um saber de outra na­O não saber implica perceber, ponderada­ tureza, um saber que não provém do eu, masmente, que neste mundo cada face tem seu do Outro. Nesse grande saber não penetra ooposto, cada direito tem seu avesso e todos pequeno saber, ainda que sejam inseparáveis.os lados não são lados, mas procedem do Aqui, nesta terra de ninguém, aguardemos aUm. Seja qual for o ângulo que olhemos, borboleta. µ48 pentagrama 5/2013


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