Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore Revista Pentagrama 2011-1

Revista Pentagrama 2011-1

Published by Pentagrama Publicações, 2016-06-13 21:08:57

Description: revista-ano-33-numero-1

Search

Read the Text Version

pentagrama Lectorium Rosicrucianum Diálogo – Uma conversa sobre a criação, o homem e a linguagem da alma Vivemos em diálogo: tudo fala dentro de nós Uma conversa sobre a criação Sobre o homem Conversa consigo mesmoProfundidade, silêncio,pensamento, consciência,palavraA profundidade da palavrade Giordano BrunoA Edda: O destino dos deuses2011 1jAn/fEvnúmErO

Editor responsável Revista Bimestral da EscolaA. H. v. d. Brul Internacional da Rosacruz ÁureaLinha editorialP. Huis Lectorium RosicrucianumRedatores A revista Pentagrama dirige a atenção de seus leito-C. Bode, A. Gerrits, H.P. Knevel, G.P. Olsthoorn, res para o desenvolvimento da humanidade nesta novaA. Stokman-Griever, G. Uljée, I.W. van den Brul era que se inicia. O pentagrama tem sido, através dos tempos, o símboloRedação do homem renascido, do novo homem. Ele é tambémPentagram o símbolo do Universo e de seu eterno devir, porMaartensdijkseweg 1 meio do qual o plano de Deus se manifesta. Entretan-NL-3723 MC Bilthoven, Países Baixos to, um símbolo somente tem valor quando se tornae-mail: [email protected] realidade.O homem que realiza o pentagrama em seu microcosmo, em seu próprio pequeno mundo, está noEdição brasileira caminho da transfiguração.Pentagrama Publicações A revista Pentagrama convida o leitor a operar essawww.pentagrama.org.br revolução espiritual em seu próprio interior.Administração, assinaturas e vendasPentagrama PublicaçõesC.Postal 39 13.240-000 Jarinu, [email protected]@pentagrama.org.brAssinatura anual: R$ 80,00Número avulso: R$ 16,00Responsável pela Edição BrasileiraM.D. Eddé de OliveiraRevisão finalM.V. Mesquita de SousaCoordenação, tradução e revisãoM.J.Versiani, M.M. Rocha Leite, L.M.Tuacek,M.B. Paula Timóteo, A.C. Gonçalez Jr.,D.B. dos Santos, J. Jesus, U.B. Schmidt,M.S. Sader, M. Mölder, R.D. Luz, F. LuzDiagramação, capa e interiorD.B. Santos NevesTerceira capaH. RogelLectorium RosicrucianumSede no BrasilRua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo - SPTel. & fax: (11) [email protected] em PortugalTravessa das Pedras Negras, 1, 1º, [email protected]© Stichting Rozekruis PersProibida qualquer reprodução semautorização prévia por escritoISSN 1677-2253

p e n t a g r a m a ano 33 número 1 2011O Upanixade Taittiriya, de milhares de anos, remete- sumário-nos ao tema desta edição da revista Pentagrama:“Para que o conhecimento surja é necessário tanto diálogo - uma conversa sobre a criação,um mestre quanto um aluno. Além disso também é o homem e a linguagem da alma 2necessário um terceiro fator: um diálogo ou debate.”O poderoso arquétipo do homem original, semeado a essência e o efeito do onimovimento:na matéria, diálogo geral entre hermes e asclépio 6é animado j. van rijckenborghnesses diálogose demonstra, vivemos em diálogo:cada vez mais, tudo fala dentro de nós 13ao final de umdesenvolvimen- uma conversa sobre a criação 21to ao longo sobre o homem 26de eras, seus conversa consigo mesmo 34maravilhosos con- o destino dos deuses 40tornos. O homem uma boa conversa 44verdadeiro dispõe a profundidade da palavra dede uma consciênciaplena, da Gnosis. giordano bruno 47Miquelângelo,em seu diálogocom a pedra,nos mostra agênese desseser. Capa : Afresco do palácio do rei Minos em Cnossos (Creta) que expressa a atmosfera e a ati- tude de espírito correspondentes ao tema deste número da revista Pentagrama: diálogo com o outro, diálogo consigo mesmo.diálogo – uma conversa sobre a criação, o homem e a linguagem da alma 1

diálogoO tema deste número é Diálogo: uma conversa sobre a criação, o homem e a linguagemda alma.Todos os que se sentiram interessados por essas palavras que representamideias fundamentais perceberão que o diálogo que aqui iniciamos é algo que vai alémde uma simples troca de pontos de vista.Imaginemos que, ao abrir esta revista, esta­ mas sim como um interrogador respeitoso, ba­ mos entrando em um espaço comunitário, seado na verdade, que é sempre fundamentada e que vamos preenchê-lo inteiramente com em uma ideia bem estabelecida ou evidente.nosso tempo, nossos pensamentos, nosso dese­ O que permite a Sócrates direcionar seusjo de conhecimento e compreensão, e, talvez, diálogos é sua riqueza interior de bom senso enossa fome de libertação, de liberdade. Neste sabedoria. Conhecendo bem os preconceitosespaço tudo está presente, tudo é possível. Ele e a mentalidade superficial de seus interlocu­é extremamente efervescente, concretamente tores, ele não formula seus pensamentos deativo e trêmulo de energia – como uma crian­ forma doutrinária. Pelo contrário: ele se esfor­ça na véspera do dia de seu décimo aniversá­ ça para demonstrar que, por meio do diálogo,rio. Porém, ainda não há nada concretizado. pode ajudar seu interlocutor a alcançar umaUma simples exposição oral deixaria o assunto compreensão superior ou mais sutil. Quemmenos incisivo, menos expressivo. Um debate registrou essas conversas por escrito foi Platão.o transformaria em um campo de batalha. Um Por isso, é natural que nos perguntemos se elasdiálogo é exatamente o oposto: ele traz em si realmente aconteceram.o espaço fértil onde cada participante se torna Além desses diálogos gregos que se mostrammais rico, adquire mais experiência e se sen­ sempre tão convincentes, há os Diálogos italia­te “religado” ao assunto. Um diálogo sempre nos de Giordano Bruno (que, geralmente nãoacontece em determinado nível. Além disso, faz acontecem somente entre duas pessoas). O quecom que tudo o que existe nesse espaço se tor- esses diálogos têm de muito especial é a carac­ne livre, visível e concreto. A palavra “diálogo” terística de abordarem questões vitais essen­(do grego diálogos) significa “o que é transmi­ ciais e muito modernas para a época, tratandotido por meio da palavra”, e, no caso presente, dos mesmos valores.“por meio do que está escrito”. Com seu raciocínio que demonstra umaGeralmente o que mais pesa em um diálogo mentalidade liberta, com muita erudição esão os argumentos racionais. Porém, a maioriaperde seu objetivo exato ou se transforma em Dresses. As abstrações do artistauma conversa sem fim porque o encadeamen­ americano Derrick Hickman de Groveto da argumentação não é bem feito – e isso City, Ohio (EUA), colocam-se entre o es­acontece até no que chamamos de “diálogo pectador e a história que o quadro narra,aberto”. “da mesma forma que o romantismo, oNos diálogos clássicos de Platão, vemos como ego e o exagero (drama) falsificam nossasSócrates direciona seus interlocutores por lembranças”.meio de perguntas – não como um detetive,2 pentagrama 1/2011

DIÁlOGODIÁLOGO, UMA CONVERSA SOBRE A CRIAÇÃO,O HOMEM E A LINGUAGEM DA ALMAdiálogo – uma conversa sobre a criação, o homem e a linguagem da alma 3

Leis em escrita cuneiforme, por volta de 3000 a.C. qual ele dá testemunho – com base na Gnosis, que é sempre luz, força, conhecimento, in­humor, Bruno dá aos novos conceitos euro­ corporeidade – ele transmite um ensinamentopeus a oportunidade de ir além dos diálogos magistral. É esse ensinamento que revela o co­platônicos – e, de maneira especial, do pensa­ nhecimento, ou Gnosis, durante as conversasmento de Aristóteles. Giordano Bruno destaca com seus alunos. Quanto a esse conhecimen­a importância da sabedoria egípcia, no início to abarcante e profundo, não se trata de umde nossa era, que também foi retransmitida sob conhecimento intelectual comum: cada um dea forma de diálogo, por Hermes Trismegisto, seus interlocutores é um aluno iniciante.entre outros. Podemos qualificar de “horizontal” um diálo­Essa forma concentrada de reapresentar o anti- go entre pessoas semelhantes, que se baseiamgo ensinamento egípcio realmente demonstra nos mesmos valores. Os diálogos que acon­que o pensamento grego é apenas “uma crian­ tecem dentro de uma estrutura hierárquicaça pequena quando comparado à sabedoria podem ser vistos como “diálogos verticais” –egípcia”: Sólon já havia percebido isso cinco especialmente quando se trata de um diálogoséculos antes. interior, como o que o maravilhoso Pimandro,Hermes também nos oferece um ponto de de Hermes, nos faz vislumbrar. Pimandro évista racional. Com base no entendimento do nosso espírito interior, nossa natureza espiri­ tual intrínseca. Se quisermos ter um “diálogo aberto”, ele nos ensinará sabedoria e conheci­ mento: a Gnosis. A revista Pentagrama mostra como podemos ter um diálogo vertical, ou seja, um diálogo espiritual com nosso interior. Quando a razão, a lógica, a comunicação e o intercâmbio trans­ cendem os pensamentos cotidianos, tanto os diálogos verticais como os horizontais têm sua importância: têm a vantagem de ser, ao mesmo tempo, comunicação interior e comunicação entre duas pessoas. Para Hermes, o que é ne­ cessário para progredir são as oposições, e não os posicionamentos. Por sua vez, na Europa, Nicolau de Cusa (1401-1464) já falava da “uni­4 pentagrama 1/2011

Como a memória dos homens expressa opensamento em palavras, também podemos dizer:a palavra é o instrumento do espírito para transmitirpensamentos. Essa afirmação é verdadeira emdiversos níveis. Os pensamentos tornam-se visíveispela escrita. As palavras soam e formam um fluxovivo de pensamentos. As letras formam as palavrasno domínio material e formatam a imagem quese expressa na palavra, e a palavra carrega opensamento. Assim se instaura o diálogo.dade dos contrários”. Desse modo, forma-se A força da Gnosis ou do “conhecimento douma cruz, cujo centro é como uma janela que coração” apenas pode agir se admitirmos que ase abre para a dimensão espiritual da grandiosa personalidade, por si só, não pode transmitir-realidade. É assim que nós, leitores, prepara­ -nos sabedoria e força. As oposições aparentesmos nossa razão, nosso interior, para ser “o nos fazem perceber a natureza de sua unida­espaço para um diálogo vivente”, uma cruz… de, que é tão importante para o crescimentoDesse modo, com sabedoria, nós nos torna­ da consciência, tão favorável para as relaçõesremos conscientes da unidade final das con­ cotidianas no mundo.tradições que reinam dentro de nós. Quando Dentro de nós, a unidade das oposições so-procedemos desse modo, o diálogo começa a mente poderá ser alcançada quando desco­acontecer, estrutura-se, e há um intercâmbio: brirmos o quanto necessitamos dessa unidadedialogamos com nosso interior. para estabelecer o diálogo íntimo necessário ao nosso conhecimento interior. Portanto, aEste número da revista Pentagrama oferece maneira como esse processo se desenrola empedras de construção que podem ajudar-nos todos os que estudam a Gnosis hermética faza tomar consciência de tudo isso. Graças a parte do tema desta edição. Queremos de­vários exemplos de diálogos do tipo horizontal monstrar que o único processo a ser vivencia­ou vertical, tentaremos ilustrar esse tema, de do é o procedimento que chamamos atual­Sócrates a Jacob Boehme, de Platão a Giorda­ mente de “caminho da Rosacruz moderna”.no Bruno, e também com diálogos modernos. Apresentado com uma introdução de J. vanA sabedoria universal sempre se apresenta de Rijckenborgh, o Diálogo universal entre Hermesmodo muito variado. Por exemplo: nas escri­ e Asclépio dá um magnífico exemplo da manei­turas orientais como o Mahabharata (do qual ra elegante com a qual o pensamento hermé­faz parte o Bhagavad Gita), os Vedas, a literatu­ tico tão sutil dos discípulos de Hermes e suara taoísta e outros numerosos escritos. Todos filosofia demonstram a existência de Deus µesses textos mostram que, não importando oseu grau de autonomia, todas as almas sempretêm necessidade de um interlocutor com quempossam dialogar e trocar ideias.Em suas obras, J. van Rijckenborgh demonstraque a “razão” diz respeito ao aspecto racionale que a “moral” tem por objetivo o tipo devida correspondente. “Quem compreende élivre”, ensina-nos Espinosa. diálogo – uma conversa sobre a criação, o homem e a linguagem da alma 5

A ESSÊNCIA E O EFEITO DO MOVIMENTO UNIVERSALdiálogo geral entrehermes e asclépioJ. van RijckenborghAsclépio ou Esculápio foi, na Antiguidade, o deus da medicina, e, em sentido maisamplo, Esculápio representa também o auxiliador, o sanador. No sexto livro doCorpus Hermeticum (Diálogo geral entre Hermes e Asclépio), Hermes instrui um alu­no que, conforme diz o seu nome, se sabe convocado a caminhar na senda do ser­viço à Gnosis, para que possa cooperar na cura da humanidade enferma, no levan­tar dos caídos, no restabelecimento dos alquebrados. No sexto livro hermético,Asclépio, tendo em vista o que se disse, é profundamente introduzido na essênciado movimento, na causa e no efeito do movimento universal.A filosofia hermética, como ireis verifi- Mas por que justamente a Bíblia deva ser a car, desenvolve o seu raciocínio par- palavra de Deus, ninguém sabe. A conse­ tindo sempre de um início elemen- quência é que um afirma categoricamentetar, tomado como base, para elevar-se aos o que outro nega, enquanto que um tercei­aspectos mais abstratos. Quem faz uso des- ro não faz o que os dois outros fazem e per-sa chave e nunca se desvia desse método, manece indiferente. Com semelhante méto­avançará passo a passo, prosseguirá no pensa- do de pensamento, é óbvio que a verdade nãomento e, por fim, compreenderá o que deve é servida em absoluto, sendo substituída pelaser compreendido. Muitos, em seus proces- incerteza, pela mentira e por intensa disputa.sos de pensamento, têm o hábito de come- O método de pensamento hermético é o úni­çar com o que é abstrato, com o desconhe- co seguro e certo, porque, partindo do pen­cido, e depois procurar chegar ao concreto. samento relativo ao identificável, ao concre-Semelhante método de pensamento jamais to, indica o caminho seguro para o abstrato.poderá ser satisfatório e também sempre leva Por isso, esse método é sempre aplicado pelaà especulação, à mistificação. Assim, fre- Gnosis original, e todos os que anseiam equentemente, ouve-se o homem místico di- buscam a libertação recebem-no, porque elezer que isso ou aquilo deve ou não deve ser concede o resultado mais evidente. Assim,feito. O porquê, porém, fica, de modo geral, também podemos reconhecer, pelo seu modototalmente indefinido e é por isso, amiúde, de pensar, se alguém é ou não um verdadeiroou a causa da negação ou da afirmativa deci- buscador da verdade. Um modelo inequívocosiva. Então ouve-se: “A Bíblia é a palavra de no tocante a isso foi, na Holanda, por exem-Deus, e dela nenhum jota pode ser negado”. plo, Benedito de Espinosa. Ele utilizou, sem dúvida, o método de pensamento hermético.6 pentagrama 1/2011

Jan van Rijckenborgh e Catharose de Petri, DIÁlOGO fundadores da Escola Internacional da Rosacruz Áurea, descrevem e comentam para alunos e interessados o caminho que leva à libertação da alma com base em textos originais da Doutrina Universal, tais como o Corpus HermeticumFlor ornamental emum mosaico de pare-de no Taj Mahal, Índia a essência e o efeito do movimento universal 7

Para nós Deus é o mais elevado para o qual o pensamentopossa dirigir-se. Para nós, mas não para Deus mesmo!No Diálogo geral entre Hermes e Asclépio ve­ DIÁLOGO GERAL ENTRE HERMES E ASCLÉPIOrificamos que existe uma fonte de força onia­barcante, onipenetrante, fonte de força em Hermes: Asclépio, tudo o que é movido não éque todas as regiões cósmicas estão encer­ movido em algo e por algo?radas. A intenção do sexto livro de HermesTrismegisto é fazer com que nos tornemos Asclépio: Certamente!profundamente convictos desse fato. A inten­ Hermes: E não é necessário que aquilo em queção não é a de dar uma profunda explicaçãofilosófica do ser de Deus e da atividade da for­ algo é movido seja maior do que oça divina. Trata-se unicamente de tornar cla­ que é movido?ro ao aluno, a Asclépio, que se vê convocado Asclépio: Sem dúvida.à nobre missão por Deus e quer dedicar-se em Hermes: Além disso, o que cria o movimen­perfeita rendição à senda da Gnosis, que exis­ to é mais poderoso do que o que éte uma fonte de força universal oniabrangen­ movido!te e onipenetrante, e que, por conseguinte, é Asclépio: É claro.possível e também necessário entrar em liga­ Hermes: E não será que a natureza daqui­ção com ela. A nossa insignificante existên­ lo no qual se realiza o movimentocia como ser natural inconsciente sobre a mãe seja necessariamente oposta ao que éTerra constitui-se na mais ilógica das coisas movido?que possam existir na manifestação universal. Asclépio: É evidente.Quem está ligado com as radiações da salva­ Hermes: Pois bem. Então este universo éção, à fonte da força, torna-se santificado, isto maior do que qualquer outro corpo?é: sanado! E, mediante a maravilha da graça de Asclépio: Certamente.sua cura, ele se torna um sanador a serviço da Hermes: E não está completamente cheio, istoGnosis, um amadurecido Asclépio! é, com muitos outros grandes corposO Diálogo geral apela principalmente para o ou, mais corretamente, com todos osnosso discernimento, para o nosso pensar diri­ corpos existentes?gido para o interior. Ele não pede de nós que Asclépio: Isso mesmo.apenas ouçamos, mas que também acompa­ Hermes: Consequentemente, o universo é umnhemos, no pensamento e na penetração em corpo.nosso próprio ser, até onde pode ser ouvido e Asclépio: Justo.compreendido, em serena quietude e sossego, Hermes: A saber, um corpo que é movido.o eterno chamado da veradeira finalidade da Asclépio: Certamente.vida dos homens. Hermes: Quão grande deve então ser o espa­ ço dentro do qual o universo é movi­ do! E de que natureza? Ele tem de ser muito maior do que o universo para8 pentagrama 1/2011

poder admitir o movimento contí­ como espaço, mas como Deus; e se nuo, sem que o universo seja compri­ pensamos no espaço como Deus, ele mido pela estreiteza do espaço e te­ já não é espaço no sentido comum nha de parar o seu movimento. da palavra, mas sim a força ativa deAsclépio: Esse espaço deve ser extraordinaria­ Deus, que tudo encerra. mente grande, Trismegisto! Tudo o que se move não se move emHermes: E de que natureza? De natureza opos­ algo que é movido por si mesmo, mas ta, não, Asclépio? Pois bem, o con­ em algo que é imóvel; e a força mo­ trário da natureza do corpo é o triz mesma é igualmente imóvel, não incorpóreo. podendo partilhar do movimentoAsclépio: Sem dúvida. que ela produz.Hermes: Então o espaço é incorpóreo! Asclépio: Mas, Trismegisto, de que modo as Mas o incorpóreo é ou divino por na­ coisas aqui na Terra se comovimen­ tureza ou Deus mesmo! (Com divino tam com as que causam o seu movi­ não quero agora dizer o criado, mas o mento? Porque disseste que as esferas não criado.) Se o incorpóreo é divino pecaminosas são movidas pela esfera por natureza, é da natureza da essên­ sem pecado. cia da criação; e se é Deus, é uno com Hermes: Asclépio, aqui não se trata de um mo­ a essência. Aliás, podemos concebê-lo vimento em comum, mas de um mo­ com a mente, como segue: vimento oposto! Porque essas esferas Para nós Deus é o mais elevado para não são movidas na mesma direção, o qual o pensamento possa dirigir­ mas na direção oposta. Esse contraste se. Para nós, mas não para Deus mes­ oferece ao movimento um ponto fixo mo! Porque o objeto da reflexão, para de equilíbrio, porque a reação dos aquele que pensa, torna-se atingí­ movimentos opostos se manifesta na­ vel pela luz da compreensão. Portanto quele ponto como imobilidade. Deus não é para si mesmo objeto de Visto que as esferas pecaminosas são reflexão; porque, sendo semelhante movidas numa direção oposta à da à essência da reflexão, ele reflete so­ esfera sem pecados, elas, nesse con­ bre si mesmo. Para nós, porém, Deus tramovimento, são movidas pelo é diferente: por isso ele é objeto dos ponto fixo de equilíbrio ao redor da nossos pensamentos. esfera resistente. E não pode ser de Ora, se o espaço universal é objeto do outro modo. Vês as constelações da nosso pensamento, não pensamos nele Ursa Maior e da Ursa Menor, que a essência e o efeito do movimento universal 9

não se levantam nem se põem e sem­ causas fora do corpo, mas por cau­ pre giram em torno de um mesmo sas dentro do corpo, operantes do in­ ponto; julgas que são movidas ou que terior para o exterior por uma força estão paradas? racional-consciente, seja alma ou es­Asclépio: São movidas, Trismegisto. pírito, seja qualquer outra essência in­Hermes: E qual é o seu movimento, Asclépio? corpórea, porque um corpo físico nãoAsclépio: Elas giram continuamente ao redor pode mover um corpo animado, nem dos mesmos centros. qualquer outro corpo, tampouco umHermes: Justo. A marcha circular é, pois, nada corpo inanimado. mais do que um movimento em torno Asclépio: Que quereis dizer com isso, do mesmo centro, o qual, pela imobi­ Trismegisto? Não são pedaços de ma­ lidade do centro, é perfeitamente do­ deira e pedras e outros objetos ina­ minado. Pois o movimento circular nimados corpos que produzem impede o desvio e assim a revolução é movimento? mantida. Deste modo o contramovi­ Hermes: Certamente não, Asclépio. Porque mento no ponto de equilíbrio igual­ não é o corpo mesmo que produz o mente está em repouso, porque o mo­ movimento do que é inanimado, mas vimento resistente o faz estático. o que está dentro do corpo, e isso Vou dar-te um exemplo comum, pelo move ambos os corpos, tanto o cor­ qual podes verificar a sua justeza, me­ po que desloca como o que está sen­ diante o olhar. Pensa nos seres mor­ do deslocado, por isso, o inanimado tais, como, por exemplo, o homem não pode mover o inanimado. Vês, que está nadando: enquanto a água pois, quão pesada é a carga da alma corre, a resistência, a contraforça dos quando ela, sozinha, tem de carregar pés e das mãos cria para ele uma con­ dois corpos! É claro, pois, que o que é dição estável, de maneira que a água movido está sendo movido em algo e não pode atraí-lo para baixo. através de algo.Asclépio: Este exemplo é muito claro, Asclépio: Será que o movimento terá de se rea­ Trismegisto. lizar num espaço vazio, Trismegisto?Hermes: Cada movimento, portanto, se rea­ Hermes: Escuta bem, Asclépio. Nada que é real liza em algo e através de algo, sendo é vazio, nada que faz parte do que é este mesmo imóvel. O movimento do realidade é vazio, como já mostra a pa­ universo e de qualquer ser corpóreo lavra ser que quer dizer existir. Porque vivente não é, pois, ocasionado por o que é não teria realidade, não10 pentagrama 1/2011

existiria se não fosse preenchido de re- Hermes: Espírito, inteiramente incluído em si alidade. O que é real, o que existe em mesmo, livre de toda a corporalidade, realidade nunca pode ser vazio. sem erro, sem sofrimento, intocável,Asclépio: Mas não há objetos vazios, imovível em si mesmo, tudo envolven­ Trismegisto, como um jarro, um do, tudo salvando, libertador, curador; pote, um almofariz e todas as outras aquilo de que o bem, a verdade, o ar­ coisas semelhantes? quétipo do espírito e o arquétipo daHermes: Cala-te, Asclépio, como podes errar alma emanam como raios. tanto! Como podes considerar vazio o que é totalmente cheio e repleto! Asclépio: Mas o que é então Deus?Asclépio: Que queres dizer, Trismegisto? Hermes: Ele não é nada disso, mas a causa deHermes: O ar não é um corpo? Esse corpo não penetra tudo que existe? E não enche tua existência, e de tudo o que é, e tudo o que penetra? Não é cada cor­ igualmente de qualquer criatura em po composto de quatro elementos? particular, porque ele não deixou es­ Todas essas coisas que chamaste vazio paço algum para o não ser; tudo o que são, pois, repletas de ar, e, sendo pre­ existe vem a ser do que é e não do que enchidas de ar, elas o são também dos não é, porque ao não ser falta o poder quatro corpos dos elementos; assim do vir-a-ser, enquanto, por outro lado, chegamos a uma conclusão justamen­ o-que-é nunca deixa de ser. te oposta às tuas palavras: tudo o que Asclépio: O que disseste propriamente que chamas cheio está esvaziado de todo Deus é? o ar, porque o seu lugar está ocupa­ Hermes: Deus não é a razão, mas o fundamento do por outros corpos, não deixando dela; não é o alento, mas o fundamen­ lugar para admitir o ar, e todas essas to dele, não é a luz, mas o fundamen­ coisas que dizes vazias devem antes to dela. Por isso, Deus tem de ser ve­ ser chamadas de plenas e não vazias, nerado pelos nomes de Bem e de Pai, pois em realidade estão cheias de ar e nomes que convêm somente a ele e a de alento. nenhum outro, porque nenhum da­Asclépio: Tudo isso é claro, Trismegisto. Dize­ queles que são chamados deuses e ne­ me uma vez mais: o que é o espaço nhum dos homens e dos demônios no qual o universo é movido? pode ser bom em qualquer aspecto queHermes: É o incorpóreo, Asclépio. seja. Somente Deus, unicamente ele éAsclépio: E o que é então o incorpóreo? bom, e nenhum outro. Todos os ou­ tros não podem abranger a essência do bem, porque eles são corpo e alma e a essência e o efeito do movimento universal 11

Deus é o bem, não como expressão de honra,mas em virtude de seu ser!carecem de lugar onde o bem possa re­ Por isso Deus é o bem, e o bem ésidir. O bem contém o essencial de to­ Deus. O outro nome de Deus é Pai,das as criaturas, tanto das corpóreas porque ele é o criador de todas as coi­como das incorpóreas, tanto das per­ sas, pois criar é a característica do Pai.ceptíveis como das que pertencem ao Por isso, na vida daqueles cuja cons­mundo do pensamento abstrato. Isso ciência está bem sintonizada, o fazeré o bem, isso é Deus. Por isso, nunca nascer o filho é uma coisa da maior se­chames qualquer outra coisa de bom, riedade e zelo e da máxima afeição aporque isso seria impiedade. E nunca Deus; ao passo que a maior infelicidadechames Deus de outro modo do que o e o maior pecado é alguém morrer sembem, porque isto também é ímpio. essa descendência e depois ser julgadoÉ verdade que todos usam a palavra pelos demônios.“bom”, mas nem todos percebem o Eis portanto a sua punição: a alma semque seja. Por isso, todos não compre­ filho é condenada a adotar um corpoendem a Deus e em ignorância cha­ que não é de natureza masculina nemmam de bom os deuses e alguns ho- feminina, o que é uma execração sobmens, apesar de eles nunca poderem ser o Sol. Participa, pois, Asclépio, da ale­nem tornar-se bons, porque o bem é o gria se ninguém ficar sem descendên­absoluto imutável de Deus e insepará­ cia, mas envolve de compaixão aquelevel dele, por ser Deus mesmo. Todos os que se encontra na infelicidade, por­outros deuses são, como imortais, hon­ que sabe da punição que o aguarda.rados com o nome de deus, mas Deus Asclépio, possa o que te disse constituiré o bem, não como expressão de hon­ para ti, segundo a natureza e extensão,ra, mas em virtude de seu ser! A essên­ certo conhecimento introdutório emcia de Deus e o bem são uma só coisa: relação à essência do universo µeles formam, em conjunto, a única ori­gem de todos os gêneros, porque bom Fontes:é aquele que tudo dá e nada toma! Em Rijckenborgh, J. van. A Arquignosis egípcia. São Paulo: verdade, Deus tudo dá e nada toma! Lectorium Rosicrucianum , 1986. Tomo II, cap. XIII.12 pentagrama 1/2011

vivemos em DIÁlOGOdiálogo: tudo vivemos em diálogo: tudo fala dentro de nós 13fala dentrode nós“Mas como está escrito: As coisas queo olho não viu, e o ouvido não ouviu,e não subiram ao coração do homem,são as que Deus preparou para osque o amam. Mas Deus no-las reveloupelo seu Espírito; porque o Espíritopenetra todas as coisas, ainda as pro­fundezas de Deus.”Coríntios I, 2:9-10Tentemos imaginar algo que nenhum olho jamais viu e nenhum ouvido jamais ouviu… Tentemos fazer issosó porque somos seres humanos e quere­mos saber. “Querer saber” é exatamenteo que é típico do fenômeno humano.Quando, além disso, nosso saber se juntaao rico mundo das ideias, nós nos eleva­mos e ultrapassamos, aqui embaixo, todasas outras criaturas da Terra.Para começar, tomemos a fórmula bemconhecida do Evangelho de João: “Noprincípio era o Verbo”. Na dimensão in­finita do princípio está a fonte não apenasde um, mas de todos os universos. O oce­ano original das formas não passa de umsimples pontinho naquilo que os gnósticos

chamam de “profundidade” ou “abismo Vida é manifestação. Significa encontrar-seinsondável”… em uma forma na qual e pela qual algo podeÉ aí, no silêncio divino, no repouso eterno, manifestar-se. Esse algo que quer manifestar­que a energia do princípio se transformou em se poderia ser denominado o primeiro pen­primeiro alento, em primeira força do Espírito. samento: O “unigênito imortal” do primeiroNesse “repouso do universo” surgiu o movi­ pai. Com que finalidade? Talvez para aprendermento – como o denominou o Evangelho de a falar, a ser como o pai, a tornar-se perfeito!Tomé – ou “o Verbo”, como está escrito no “Sede perfeitos como vosso Pai!” É HermesEvangelho de João. “O ser humano surgiu de Trismegisto quem diz: “Assim como os deusesum pensamento de Deus” – é o que se diz. E são posse de Deus, o homem também o é. E afoi pelo Verbo, pelo pronunciar desse pensa­ posse do homem é o mundo: se não houvessemento, que o homem surgiu. Se tentássemos ninguém para ver o mundo, tudo o que vemosdescrever como foi isso, poderíamos dizer não existiria. Somente o homem pode ver oque, a partir dessas profundezas, desse silêncio, visível e compreender as coisas espirituais, poiselevou-se uma voz que disse: “Vem a mim!” O elas não lhe são estranhas. O homem tem duashomem foi chamado. Começou um diálogo… naturezas: a mortal e a imortal. Ele tem trêsQuando surge um movimento, ele é sempre formas: o ser do espírito, o ser da alma e o serseguido por outro. A vida é movimento, que da matéria” (Definições herméticas, VI, 1).1é som: portanto, tudo fala. Enquanto a criaçãoestá em movimento, o criador fala com sua TRÊS PONTOS DE PARTIDA Como seres huma­criatura. nos que somos, nascidos neste mundo, quandoCada um de nós nasceu de um casal, de um começamos essa aventura, conforme se diz, nohomem e de uma mulher, que são a causa de momento em que nossos olhos se abrem, ime­nossa existência. Eles conceberam uma criança. diatamente nos vemos frente a frente com essasMas será que foram eles que lhe deram forma e três formas de ser. Nós nos vivenciamos comovida? Será que eles podem determinar o tempo consciência, percebemos os outros à nossa volta,de vida que ela terá, sua saúde, seu caráter, sua observamos a natureza ao nosso redor. Combondade, seu modo de rir, o sofrimento pelo isso, três chaves nos são oferecidas para pergun­qual ela passará ou o que desejará? Poderão de­ tarmos e respondermos imediatamente, comterminar como serão seus olhos, essa maravilha toda liberdade: “Mas, afinal, o que será que euque o fará enxergar? vim fazer aqui?”Quando uma criança nasce, esperamos que ela E estas são as chaves para responder essadisponha de tudo o que é necessário para poder questão:expressar-se na vida tal como a conhecemos. 1. a natureza como mestre;14 pentagrama 1/2011

O papiro “Edwin Smith” do antigo Egito trata sobre remédios e tratamentos de ferimentos, por volta de1600 a.C. (Malloch, Sala de Livros Raros, Academia de Medicina de New York). © Malloch Rare Book Room of theNew York Academy of Medicine2. autoconhecimento adquirido pela convivên­ não ser: “Vem a mim!” – e é assim que a cria­cia com nosso semelhante; ção começa!3. aprender a conhecer o “Outro” dentro de Esse “insondável” traz consigo “uma profun­nós, a alma. didade, um silêncio, uma paz e um movimentoÉ assim que o mundo se apresenta a nós como secreto”. É um processo como esse que se re­uma fonte inesgotável de impressões, de coisas produz em cada nascimento de um ser humanoa serem vividas, e de uma sequência incessante na matéria. Ele conhece apenas o desejo da es­de novas sensações. Pode ser que a vida se tenha fera de onde ele provém: a mãe. É a única coisaoriginado porque “algo divino” quis dar forma de que ele tem consciência: a consciência dea algo, assim como o criador engendrou a vida, que algo dentro dele está chamando – “Volta!”a fim de poder perceber a si mesmo. Mas issolevanta uma questão: a ciência gnóstica fala UM FOGO QUE ALIMENTA A SI MESMO Todo osobre o “silêncio” e chama a isso de “o nada” nosso percurso de vida representa um caminhodo profundo “não ser”. E é dessa profundidade de desenvolvimento. Quando não acontece oinsondável que ressoa o chamado do Espírito intercâmbio, o diálogo entre nós e o mundo, aque, sendo secreto e sagrado, se oculta nesse vida para – e para também a evolução. A alma vivemos em diálogo: tudo fala dentro de nós 15

Vocês gostariam de ler a história do rei que nasceu de si mesmo? Então, precisam primeiro aprender a brilhan­ te língua do sol, das estrelas, os tímidos murmúrios da lua, a música dos planetas, e também a língua de nossa mãe terra, que cantarola sua cantiga de ninar para seus incontáveis filhotes que, quando sua alma desabrochar, pertencerão ao céu. James Morgan Pryse.se retira. Para preservar-nos disso, as três chaves mesmo”. Portanto, pensar é dialogar dentro desão uma fonte de inspiração que oferecem reno­ si mesmo.vação e aprofundamento.• A natureza é mestre do ser humano e o ensina SÓCRATES Há muitos diálogos maravilhosos,a arte de viver. É ela que nos mostra as carac­ redigidos por filósofos célebres, por grandesterísticas fundamentais da vida neste mundo: sábios e místicos humildes, por Jesus, por Buda.e disso surgem as grandes indagações. Se nos Em todos os tempos, em todas as partes do mun­aprofundarmos nesse assunto, veremos como do, encontramos diálogos que nos levam a tri­há intercâmbio entre tudo e como tudo está lhar os caminhos da busca no decorrer da vida.interligado e é coerente. A natureza é efêmera: Sem dúvida, Sócrates é um mestre nesse gê­sempre está mudando. O verdadeiro buscador nero de diálogo. Em todos os seus diálogos elereconhece tudo o que é passeiro como símbolo coloca a questão capital: “Como devo viver?”e parábola. Sócrates (469-399 a.C.) era um personagem• Em nossos contatos com nossos semelhantes e bem conhecido em Atenas. Ele consideravacom a natureza, obtemos o autoconhecimento. que sua missão era percorrer todos os dias essaPercebemos nossos limites, por exemplo, pela cidade, cercado de alguns alunos, muitos delesconvivência com os outros, mas também há a bem jovens, para conversar com todo o tipo depossibilidade de criar compaixão. Observamos pessoas a respeito “do bom, do belo e do verda­nossa própria impotência e nossas capacidades deiro”. E dizia sobre si mesmo: “Sou a parteirainalcançáveis – enfim, o que podemos fazer ou de meus amigos” (o que era uma alusão à suanão. Esses contatos nos fazem descobrir o fato mãe, que era parteira). “Não estou interessadode que somos únicos, mas, em seguida, vemos no corpo, mas sim na alma que precisa nascer.que os outros também estão vivenciando a mes­ Faço perguntas e perguntas, até que o frutoma experiência (ou podem fazê-lo um dia!). Em oculto da compreensão possa ver, de repente, aprincípio, somos todos semelhantes e, partindo luz do dia.”do individual, passamos ao universal. Ele queria “dar à luz” as qualidades divinas que• Mediante a solidão da autoconsciência e os humanos não sabem possuir, portanto prestarda vivência de nossos limites, chegamos ao uma espécie de assistência obstétrica espiritual.“Outro”. Quem conhece a si mesmo é capaz de A ignorância é a fonte de todos os males! Eleconhecer o Outro dentro de si: a alma. queria libertar os seres humanos de todos osÉ isso o que as escolas de mistérios ensinam. obstáculos e limitações que os atormentam eA iniciação é “silenciar e dialogar com o bloqueiam o desenvolvimento de sua alma.Outro dentro de nós”. É isso o que represen­ Em dois diálogos com Tat, Hermes chamata a imagem do “fogo que se alimenta a si de “atormentadores” todos esses entraves que16 pentagrama 1/2011

Ah, escuta minha prece! Vê como é ilustre e grandeQue eu nunca perca o contato o esplendor do mundo eterno,com o Um e Único que pode partilhar seu poder no jogo da multiplicidade. e sua glória por tantos espelhos, mas permanece Um,Rabindranath Tagore como ele era no princípio. Dantese colocam à nossa frente e nos manipulam nossa real situação e o que é a alma imortal, oinconscientemente: “Outro” em nós. Precisamos questionar-nos“Tat: Tenho, então, atormentadores dentro de sobre qual é o nosso real significado – nós, quemim, Pai? possuímos uma forma com a qual podemosHermes: Não poucos, meu filho, assustadores e expressar-nos. Como aproveitar ao máximonumerosos! essas circunstâncias e não deixar levar-nos pelosTat: Eu os não conheço, Pai. problemas aparentemente insolúveis levantadosHermes: Essa ignorância é, ela mesma, o pela nossa situação e pelas nossas escolhas?primeiro castigo, meu filho; o segundo é dor Um dos diálogos de Sócrates trata da busca dae aflição; o terceiro, incontinência; […] Esses natureza essencial da alma imortal e do cor­castigos são doze em número, porém entre esses po humano mortal. O diálogo começa pelahá numerosos outros que, mediante a prisão questão da importância da vida humana para ado corpo, pela natureza, forçam o homem a alma, uma vez que o homem morre, enquantosofrer pelas atividades dos sentidos. Afastam-se, a alma continua. Será que precisamos cuidar deporém, (embora não imediatamente) daque­ nossa alma? Citemos uma passagem da últimale a quem Deus mostra sua misericórdia; e conversa de Sócrates antes de sua morte:essa última explica a natureza e o sentido do “Achas, então, perguntou, que podemos admitirrenascimento!”.2 duas espécies de coisas: umas visíveis e outrasIgnorância é o grande flagelo que aflige a invisíveis?humanidade. E a Bíblia nos transmite esta Podemos.lamentação: “O meu povo está sendo destruído Sendo que as invisíveis são sempre idênticas a siporque lhe falta o conhecimento” (Oseias 4:6), mesmas, e as visíveis, o contrário disso?o que representa a mesma ideia. Por falta de Admitamos também esse ponto, respondeu.conhecimento devemos entender “não dialogar Então, prossigamos, uma parte de nós mesmoscom a Divindade”. Isso significa não conhecer não é corpo, e a outra não é alma?a existência da Divindade, não ocupar-se com Sem dúvida, falou.ela. A ilusão de que o corpo e suas percepções E com qual daquelas classes diremos que o cor­sensoriais são o que há de mais elevado na vida po é mais conforme e tem mais afinidade?do ser humano nos isola da Divindade! Ora, o Para todo o mundo é evidente que é com a dasser humano é duplo: seu corpo é mortal, e sua coisas visíveis.alma, imortal. E com relação à alma? É visível, ou seráPrecisamos preocupar-nos seriamente com invisível?a pergunta: “O que estamos fazendo aqui?”. Pelo menos para o homem, não o será,Precisamos esforçar-nos para compreender Sócrates, respondeu. vivemos em diálogo: tudo fala dentro de nós 17

Mas, quando falamos do que é ou não é visível, é repetido o chamado que soou em nosso nasci­é sempre com vista à natureza humana. Ou mento e sempre se repete: “Volta! Retorna!”achas que seja com relação a outra?Não; é com a natureza humana, mesmo. “Onde estás?”E a alma? Que diremos dela: poderemos vê-la Um texto de Martin Buber (1878-1965) relata ou não? como Deus está sempre nos chamando:Não podemos. “Alguém perguntou a um rabino: Logo, é invisível. […] – Como interpretar a pergunta que Deus fez a Mas também dissemos há alguns instantes, que Adão: ‘Onde estás?’quando a alma se serve do corpo para conside­ O rabino respondeu: rar alguma coisa por intermédio da vista ou do – Acreditas que a Escritura é eterna e abrange ouvido, ou por qualquer outro sentido – pois cada época, cada geração, e cada ser humano?considerar seja o que for por meio dos sentidos – Sim, acredito – disse ele.é fazê-lo por intermédio do corpo – é arrastada – Pois bem, Deus sempre se dirige a cada ser por ele para o que nunca se conserva no mesmo humano e pergunta: ‘Onde estás no mundo? estado, passando a divagar e a perturbar-se, e Já se passaram tantos anos e dias que te foram ficando tomada de vertigens, como se estives­ concedidos. Nesse meio tempo, até onde che­se embriagada, pelo fato de entrar em contato gaste em teu mundo?’com tais coisas? Essa resposta do rabino significa: Tu mesmo és Sim, dissemos isso mesmo. Adão. É a ti que Deus pergunta: ‘Onde estás?’E o contrário disso: quando ela examina sozi­ Se Deus nos faz essa pergunta é porque quer nha alguma coisa, volta-se para o que é puro, provocar em nós o conflito que pode susci­sempiterno, e que sempre se comporta do tar um tipo de questionamento e tocar nosso mesmo modo, e por lhe ter afinidade, vive com coração.ele enquanto permanecer consigo mesma e lhe Adão esconde-se para não ter de prestar con­for permitido, deixando, assim, de divagar e tas, para escapar à responsabilidade que tem pondo-se como relação com o que é sempre sobre a própria vida. É assim que cada um de igual e imutável, por estar em contato com ele. nós se oculta, pois todos nós estamos na mesma A esse estado, justamente, é que damos o nome situação de Adão. Para não termos de pres-de pensamento.” (Fédão, XXVI, XXVII).3 tar conta de nossa vida, a própria existência Nesse trecho, o problema é colocado de forma nos serve de esconderijo. É claro que há algo categórica: as duas situações não são nem cons­ em Adão que busca a Deus – mas Adão cuida tantes nem duráveis. Trata-se de resolver o que para que fique cada vez mais difícil para esse o homem significa. Durante toda a nossa vida, algo encontrar Deus. Fazendo essa pergunta 18 pentagrama 1/2011

Então, num relampejar de discernimento interior, o conheci-mento da alma pode manifestar-se em nossa consciência!questionadora, Deus quer sacudi-lo, arrancá­ energias elevadas – mas na realidade do mundolo de seu esconderijo, mostrar-lhe até onde ele ela é arrastada para uma aventura cada vez maischegou. Deus quer despertar nele uma vontade agitada através da vida, e aprende o prazer defirme de encontrar uma saída. Mas o hábito de conhecer a natureza. Isso vai tão longe que, desempre esconder-se também ajuda Adão a negar tão fragilizada que está, ela pensa que a vidaessa inquietação do coração. No entanto, essa deva ser assim mesmo…voz que chama não soa quando uma tempes­ Nossa característica como seres humanos é que,tade violenta ameaça a existência humana. graças à Gnosis, a partir dessa fragilidade queNão, a voz que chama e questiona é a de ‘um pode ser comparada a um sono, podem surgir asilêncio que aflora por um momento’, e é fácil inteligência gnóstica e a energia libertadora queabafá-la.”4 a acompanha.J. van Rijckenborgh, em seu livro A Arquignosis Então, num relampejar de discernimentoegípcia, tomo IV, trata esse assunto com bastante interior, o conhecimento da alma pode mani­concisão: “Por que tendes forma corpórea? Para festar-se em nossa consciência! Disso resultavos atolardes aqui durante alguns anos em todas uma mudança profunda e fundamental: desseas misérias possíveis e exercerdes uma ou outra momento em diante a alma toma as rédeas davocação burguesa, a fim de manterdes a cabeça situação. Ela questiona-se: “O que preciso fazerfora da água e então morrer? Para vos afogar para recuperar o meu primeiro amor?” µno éter nervoso todos esses anos? Na maldade?Sempre discutindo e lutando? É esse o objetivo Fontes:de vossa vida? 1 Trismegisto, H. De Hermetische Definities Por que tendes forma corpórea? A forma (Definições herméticas). In: Broek, R. van den. corpórea, diz Hermes, é um instrumento, um Hermes Trismegistus. Inleiding, teksten, commentarenatributo da alma para se poder apresentar a seu (Hermes Trismegisto. Introdução, textos, comen­serviço, como seu servidor.”5 tários). Amsterdam: Bibliotheca PhilosophicaO desejo da alma original é absolutamente Hermetica, 2006.puro: ela não quer nada mais do que refletir 2 Trismegisto, H. Corpus Hermeticum, Décimosobre sua criação original e desenvolver outras quarto livro. In: Rijckenborgh, J. van. A Arquignosisaptidões que recebeu do Altíssimo. E, como egípcia. São Paulo: Lectorium Rosicrucianum, 1981.ela é “invisível”, sua felicidade está nas peque­ Tomo IV.nas coisas intangíveis, pois ela foi criada para 3 Platão. Fédão. In: Protágoras, Górgias, Fédão.ligar-se ao espírito invisível e aí encontrar sua Belém: Editora Universitária UFPA, 2002.paz. Ela não quer nada mais do que receber, 4 Buber, M. Der Weg des Menschen nach der chas­das mais altas esferas, seu alento de vida ou suas sidischen Lehre (O caminho do homem segundo a doutrina hassídica). Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 2001. 5 Rijckenborgh, J. van. A Arquignosis egípcia. São Paulo: Lectorium Rosicrucianum , 1981. Tomo IV. vivemos em diálogo: tudo fala dentro de nós 19

Livre para sempre © G.Tijskens, Bélgica20 pentagrama 1/2011

diálogo sobre DIÁlOGOa criaçãoO diálogo sobre a criação trata sobre a vida e a convivência com a natureza.Apresenta o mundo em que podemos viver, ou melhor, em que precisamosviver. Fala sobre este mundo que está a nosso serviço, que nos aguarda emsua coesão espaço-temporal e nos cerca de sinais. Símbolos que, sem palavras,falam conosco e representam nosso próprio mundo, com o qual podemosvivenciar uma relação, mas do qual nunca participamos diretamente.Alinguagem da criação sussurra através das e se dissociam. […] A árvore não é uma impres­ árvores, rumoreja nos riachos, mostra­ são, nem um efeito de minha imaginação: ela não nos sua beleza nas flores, revela a vida à tem valor sentimental, mas está diante de mimluz do sol. Desvenda seus mistérios à luz da lua, com toda a sua vitalidade. Ela tem a ver comigo,a esperança, nas estrelas, e a alegria, no vôo dos como eu tenho a ver com ela, mas de forma to­pássaros. Podemos caracterizar Jacob Boehme talmente diferente”.2como “um filósofo da natureza”. Em seu livroChristosophia, ele diz: Alguém poderia dizer agora: a árvore produz o“Vemos a grandiosa construção de Deus na natu­ oxigênio necessário para minha respiração – por­reza e sabemos, por meio Dele, que sua vontade tanto, ela é necessária à minha existência e a na­é que seu Verbo se revele na luz da natureza. Essa tureza é minha fonte nutriz, pois sem ela eu nãoforça da natureza ainda não foi domada”.1 conseguiria viver. Mas esse é o sinal característicoPodemos vivenciar a natureza e estabelecer uma da criação como um todo: tudo se mantém uni­ligação com ela permitindo que a experimente­ do. Estudar a natureza é estudar sua linguagemmos. Em seu livro Eu e tu, Martin Buber dá um simbólica, ou sua organização estrutural e as leisexemplo que pode exprimir esses pensamentos pelas quais ela se manifesta.com mais precisão:“Contemplo uma árvore. Sou capaz de assimilá­ Olhemos agora para a natureza como um li­la como a imagem de um pilar que se ergue reto. vro surpreendente onde podemos ler e desco­A luz toca o verde resplandecente de seu cume, brir o que ela quer nos dizer sobre o pensamen­e, através dele, aparece o suave azul prateado do to hermético: “O que está embaixo é como o quecéu em segundo plano. Posso também percebê­ está em cima”. O “pequeno” é como o “gran­la como movimento, considerando suas veias que de”. Como microcosmo, o homem é um peque­correm, aderem e aspiram no coração da madei­ no mundo construído à imagem do macrocosmo,ra, a sucção das raízes, a respiração das folhas, a que é o grande mundo.circulação sem fim entre a terra e o ar – o pró­ Vemos o sol como o centro do sistema planetárioprio sombrio crescimento”. e como fonte de vida. O centro do ser humanoPosso, de certa forma, me incorporar a ela e ob­ é o coração, com seu núcleo divino. Onde está aservá-la como exemplo, de acordo com sua estru­ fonte do sol? Onde fica seu centro? E onde essetura e sua maneira de viver. Posso me despren­ núcleo está instalado? Essa é a questão que tantoder da forma da árvore para só reconhecer nela aproxima quanto distancia a religião e a ciência.a expressão das leis por meio das quais as forças É essa a pergunta com a qual nos deparamos, decontrárias conseguem, aos poucos, o equilíbrio. tempos em tempos: “Você acredita na existênciaOu então, posso ver como as matérias se juntam de Deus ou algo parecido?” diálogo sobre a criação 21

Que o Deus invisível é o mais revelado. […] Somente a consciência da alma vê o invisível, por ser ela mesma invisí­ vel. Se podes fazê-lo, Tat, ele se tornará visível diante dos olhos de tua alma-espírito, porque em generosa abundância o Senhor se manifesta no universo todo. Estás em condição de ver a tua consciência-alma, de tocá-la com as mãos e contemplar com admiração a imagem de Deus? Mas se o que está dentro de ti é invisível, como então Deus mesmo se tornará visível em ti mediante teus olhos materiais? Se quiseres vê-lo, dirige, então, a tua contemplação ao Sol, ao curso da lua, à ordenação das estrelas. Quem mantém aO QUE HAVIA ANTES DO BIG BANG? de átomos se encontra uma informação comple­ xa. ‘Substância’ significa, literalmente, ‘aquilo que Reconhecemos ou provavelmente admitimos a está subjacente’. Poderíamos dizer: ‘debaixo da in­resposta dada por Aries Bos, um clínico geral ho­ formação’. Portanto, qualquer substância represen­landês e professor de Filosofia da Ciência em seu ta informação – e podemos considerar esta pala­livro Hoe de geest de stof kreeg (Como o espírito re­ vra como um conceito moderno para ‘sabedoria’. cebeu a matéria?): “Afinal, por que existe algo e Quando mencionamos ‘informação’, estamos fa­não apenas o nada? Essa é uma pergunta impossí­ lando de sabedoria’ – portanto, de espírito. Isso vel de ser respondida, não é mesmo? Isso me im­ significa que não há matéria sem espírito. Os ho-pressiona incrivelmente. Bem, de acordo com a mens sempre imaginaram que a sabedoria poderia Física atual, admitimos que tudo começou com o flutuar livremente no ar. Assim como o Espírito Big Bang. É apenas um nome, uma teoria científi­ de Deus que ‘se movia sobre a face das águas’ ca. Quer dizer que antes disso não havia nada? O (Gênesis 1:2), ou como o Espírito Santo. A ciência Big Bang não teria uma causa? Vocês não acham física já aceita o fato de que ele não é visível. Na isso espantoso? Sempre tenho o sentimento de verdade, a única coisa visível é a matéria subjacen­que simplesmente não queremos ver o que havia te: a substância. E o verdadeiro princípio, a infor­antes, como fazemos sempre. E então: já que não mação primordial, nós a chamamos de Deus”.3há uma causa, foi Deus quem fez tudo? A conclusão do livro mostra que a finalidade da Esperem, ainda não abordei totalmente a ques­ criação é fazer com que a humanidade escolha o tão de Deus. O que quero dizer é que a energia amor em total liberdade. Afinal, o espírito ape­e os quarks têm uma causa, e essa causa somente nas se liga à matéria por meio de um ser que é pode ser descrita como informação. No princípio suficientemente livre para escolher seu próprio tudo era informação. No princípio havia o Verbo. caminho: o ser humano. ‘Verbo’ é tradução do grego ‘Logos’. Significa ci­ Sigamos agora um colóquio descrito por fra, número, palavra, pensamento (como conteú­ Giordano Bruno no livro Acerca do infinito, do do) e espírito (como força criadora). ‘Informação’ universo e dos mundos (primeiro colóquio entre poderia ser uma tradução moderna. O Big Bang Elpino, Filóteo, Fracastório e Búrquio), que dá causou ondas. As ondas podem funcionar como uma visão profunda da relação entre o homem e portadoras de informação, como os fótons. A ma­ a natureza:téria teria começado sob a forma de informação.Afinal, como já sabemos, a matéria é constituí­ Elpino: Como é possível que o universo seja da por partículas elementares – que na realidade infinito?não são partículas, mas sim pequenos ‘pacotes de Filóteo: Como é possível que o universo seja energia’ – e, mais uma vez, em forma de ondas. finito?[…] Por detrás de qualquer substância composta22 pentagrama 1/2011

ordem deles? Porque cada ordem é determinada exatamen­ e cobre o firmamento todo em sua rotação. Quem é ote pelo número e pelo lugar. O Sol, o supremo dos deuses possuidor desse instrumento? Quem estabeleceu ao mar osda abóbada celeste, a quem todos os deuses celestiais seus limites? Quem deu à Terra o seu fundamento?concedem reverente lugar como a seu rei e soberano, É, ó Tat, o criador e senhor do universo. Nenhum lugar,imensamente grande, maior que a Terra e o mar, permite nem número, nem medida como expressão da ordemque menores estrelas se movam acima dele. Por reverência cósmica seria possível sem aquele que os criou. Pois toda aou por temor a quem, meu filho? ordem é o resultado de uma atividade criadora. Unicamen­Não descreve cada uma dessas estrelas um mesmo curso te quando a ordem e a medida faltam, fica provada a suano céu? Quem determinou para cada uma delas sua nature­ ausência.za e a grandeza de seu curso?Veja a Ursa Maior, que gira em torno de seu próprio eixo Hermes Trismegisto. Corpus Hermeticum, oitavo livro, Hermes a seu filho Tat5Elpino: Julgam que se pode demonstrar essa bastante elucidativo e testemunho suficiente, oinfinidade? fato de os sentidos não terem força para nos con­Filóteo: Julgam que se pode demonstrar essa tradizer, e ainda mais, evidenciando e confessan­finidade? do a sua debilidade e insuficiência na aparênciaElpino: De que extensão falas? de finitude causada pelos limites do seu hori­Filóteo: E tu de que limites falas? zonte; e até nisto se vê a sua inconstância. Ora,Búrquio: Ainda que isso seja verdade, não que­ como temos por experiência que eles nos enga­ro crê-lo; porque não é possível que esse infinito nam, com respeito à superfície deste globo empossa ser compreendido pela minha cabeça, nem que nos encontramos, muito mais deveríamosdigerido pelo meu estômago; embora, na verda­ suspeitar deles, no que diz respeito ao termo quede, eu desejasse que fosse como diz Filóteo, pois nos faz compreender a concavidade estrelada.que, se por má sorte me acontecesse cair fora Elpino: Diz-me então: para que nos servem osdeste mundo, encontraria sempre outras terras. sentidos?Elpino: Decerto, Filóteo, se nós quisermos fazer Filóteo: Somente para excitar a razão; para, emdos sentidos juiz, ou dar-lhes a primazia que lhes parte, tomar conhecimento, indicar e testemu­cabe, pelo fato de todo o conhecimento provir nhar, não para testemunhar tudo; não servemdeles, concluiremos, talvez, que não seja fácil en­ para julgar, nem condenar. Porque, nunca, porcontrar o meio para chegar ao que tu dizes, de mais perfeitos que sejam, são isentos de algumapreferência ao contrário. Agora, se quiseres, co­ perturbação. Por conseguinte, a verdade em mí­meça por fazer-me compreender alguma coisa. nima parte brota desse débil princípio, que sãoFilóteo: Não existe sentido que veja o infinito, os sentidos, mas não reside neles.nem sentido a que se possa pedir essa conclusão, Elpino: Onde está, então?porque o infinito não pode ser objeto dos senti- Filóteo: No objeto sensível, como num espelho;dos; por isso, quem procurar conhecê-lo por essa na razão, sob o aspecto de argumentação e dis­via, é como quem quisesse ver com os olhos a curso; no intelecto, sob o aspecto de princípiosubstância e a essência; e quem a negasse por não ou conclusão; na mente, como forma própria eser sensível, ou visível, viria a negar a própria viva.4substância e o ser. Por conseguinte, deve havercautela em recorrer ao testemunho dos sentidos, HERMES E TAT Segue-se que o homem, que pro­que só admitimos em relação a coisas sensíveis, vém em grande parte da natureza e vive pore ainda com certa dúvida, se não concorrerem, meio dela, pode aqui fazer a experiência de quejuntamente com a razão, para o juízo. Ao inte­ há algo mais do que a natureza. Como ser da na­lecto compete julgar e dar razão das coisas afas­ tureza, ele não pode perceber um pouco quetadas no tempo e no espaço. Quanto a isto, é seja da realidade através da natureza tal como ela diálogo sobre a criação 23

Fragmento de um antigo manuscrito do Novo Testamento, parte do Códice Siniático, por volta de 350 d.C.é. Ele pode, mediante a natureza, receber im­ Pai; e essa ordem é mantida indestrutível me­pressões de outra coisa que torna possível to­ diante o retorno de cada um deles ao estado dedas as formas. De forma penetrante Hermes ex­ perfeição.põe no diálogo com Tat do nono livro do Corpus O retorno dos corpos terrestres ao seu estado an­Hermeticum, que essa outra coisa é a própria vida, terior consiste na dissolução da força conecto­que não cessa de fluir, de avançar e de encon­ ra, que volta aos corpos indissolúveis, isto é, aostrar sempre novas formas de expressão; e quem corpos imortais. Desta forma, surge a eliminaçãovê isso capta sempre mais profundamente que da consciência dos sentidos, mas não o aniquila­nada do que é real se perde, mas que, por enga­ mento dos corpos imortais.no, denominamos as mudanças de aniquilamen­ O terceiro ser vivente, o homem, criado segun­to e morte. do a imagem do mundo e que, segundo a von­Hermes: Da matéria que ele destinou a esse fim, tade do Pai, possui, acima dos outros animaiso Pai formou o corpo do mundo; ele lhe conce­ terrestres, a mente, não somente está ligado aodeu a forma esférica e determinou as qualidades segundo Deus por um liame de simpatia, mas,das espécies que o deveriam ornar, conferindo- em contemplação interior, aproxima-se tam­-lhe uma materialidade eterna, já que a substân­ bém da essência do primeiro Deus, porque per­cia material era divina. cebe o segundo Deus pelos sentidos, como sendoO Pai, após ter disseminado na esfera as qualida­ corpóreo, enquanto sua visão lhe faz reconhe­des das espécies, encerrou-as como numa gruta, cer o primeiro Deus como incorpóreo e comovisto que ele quis ornar sua criação com todas as Espírito, o Bem.qualidades. Tat: Então esse ser vivente não é aniquilado?E envolveu o inteiro corpo da Terra com imor­ Hermes: Fala, meu filho, uma linguagem ale­talidade, a fim de que a matéria, desatando-se da gre e jubilosa e concebe o que é Deus, o que éforça conectora do corpo, não voltasse ao caos, o mundo, o que é um ser imortal e o que é umque lhe é próprio. ser sujeito à dissolução; compreende que o mun­Porque, meu filho, quando a matéria ainda não do nascido de Deus está em Deus; que o homemhavia sido formada num corpo, era não ordenada. nascido do mundo está no mundo; e que Deus,Ela mostra isso em certa medida mesmo aqui, pelafaculdade do crescimento e do decrescimento, fa­culdade essa que os homens chamam de morte.Esse desordenamento, essa volta ao caos, apre­senta-se somente em criaturas terrestres. Pois oscorpos dos seres celestes mantêm a ordem úni­ca que desde o princípio lhes foi concedida pelo24 pentagrama 1/2011

Pouco a pouco, o homem reconhecerá interiormentea voz do Deus original que conversa com ele!a origem do todo, mantém tudo encerrado em simesmo e o guarda (Corpus Hermeticum, nono li­vro, Hermes a seu filho Tat).5ESPERA-SE PELA ALMA “E essa ordem é manti­ Fontes:da indestrutível mediante o retorno de cada um 1 Boehme, J. Cristosophia: der Weg zu Christo deles ao estado de perfeição”, diz Hermes na ci­ (Cristosophia: o caminho para Cristo). Frankfurt:tação acima. Por outro lado, tudo o que é da na­ Insel, 1992.tureza retorna para a natureza em um estado 2 Buber, M. Eu e tu. 10. ª ed. São Paulo: Centauro, 2006.de desintegração. Mas a força unificadora – “a 3 Bos,A. Hoe de geest de stof kreeg: de evolutie van het alma” dos corpos indestrutíveis – esta sim, retor­ ik (Como o espírito recebeu a matéria: a evolução do na. Isto é, ela poderá retornar se o ser humano, eu). Zeist: Christofoor, 2010.em contemplação interior, aproximar seu ser do 4 Bruno, G. Acerca do infinito, do universo e dos mundos.“Deus original”. 3.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.É nesse sentido que se espera pela humanida­ 5 Rijckenborgh, J. van. A Arquignosis egípcia. São Paulo:de. Isto é, pelo dia em que o homem se desco­ Lectorium Rosicrucianum, 1986.Tomo II.brirá, em que reconhecerá interiormente, poucoa pouco, a voz do Deus original, que conver­sa com ele. É essa voz que chamamos de “rosa­do-coração”: a voz que podemos escutar e seguirconscientemente. É isso o que se espera de todosos seres criados: que passem da ignorância e dainconsciência para o conhecimento verdadeiro– a Gnosis. A mensagem principal de Jesus, nosevangelhos é: “O reino de Deus está dentro devós”. Apesar de ele haver-se expressado de formatão clara, poucos são os que escutam essas pala­vras como se fossem dirigidas a si mesmos.No próximo artigo continuaremos a tratar daevolução da consciência através da natureza, aolongo do caminho do relacionamento com o“totalmente outro” – caminho que leva a um di­álogo interior, no qual, afinal, é o próprio serhumano que formula a resposta µ diálogo sobre a criação 25

sobre o homemApenas podemos viver por meio dos outros “Encontrei inúmeras pessoas, visitei muitos lugares onde, digamos,fica evidente que deveríamos encontrar aquilo que procuramos. Mas,ao final de cada dia, eu voltava para este quarto de hotel inundadode calor. E vocês podem imaginar que esse vazio me deixava inquietoe me inspirava até certa angústia. Portanto, foi no decurso de taisimpressões, no ambiente sinistro deste quarto, que minha consciênciaacordou, como que sob um choque.Eu percebia que nossa viagem e nossa procura não haviam dado, atéaquele momento, nenhum resultado: eu me perguntava por que, pois dequalquer forma era importante. Mas o que procurávamos se passava deforma totalmente diferente da que concebêramos. Não estava em outrolugar, está em todo lugar, inclusive aqui em W., neste horrível quarto dehotel. Devia haver um grande número de pessoas como nós, buscandoaqui. Muitos já deviam ter encontrado, enquanto apenas tateávamosna sombra. Nós não somos pessoas únicas ou especiais no meio dahumanidade. A humanidade é um todo. No fundo, era justamente o queeu compreendia, espremido nos vagões cheios dos trens.É bom procurar, viajar. Mas encontrar, no meu ponto de vista, é outracoisa. Pode ser: refletir num quarto vazio, tomado pelo silêncio. Eupreferiria expressar de outra forma, pois, de um jeito ou de outro, issointeressa muito às pessoas. O que procuramos tem um valor absoluto epode livrar-nos de todos os nossos males e de todas as nossas viagenssem resultados. Se nós o quisermos, bem entendido.Será uma missão impossível? A ideia de que somos numerosos me deixacheio de esperança.”Carta de um viajante26 pentagrama 1/2011

DIÁlOGOAté agora temos tentado descobrir como Jesus diz: “Se vos conhecerdes, sereis conheci­ o ser humano, desde a aurora dos dos e sabereis que sois filhos do Pai vivo. Mas, tempos, é chamado para voltar, para se não vos conhecerdes, vivereis na pobreza, eretornar: “Vem a mim!”. É a ele que são diri­ vós mesmos sereis essa pobreza” (Evangelho degidas essas palavras tão significativas dos mitos Tomé, logion 3).ancestrais da criação. Depois disso, considerando a natureza dasEsse chamado para o retorno do Omnia ab coisas, queremos ter uma atitude despojadaUno – Omnia ad Unum (tudo vem do uno e de egocentrismo. E aqui aparece uma arma­tudo retorna ao uno) chega a cada ser huma­ dilha. Será que o autoconhecimento serviriano. Significa o retorno ao fundamento de sua apenas para saber como é que o psíquico e oexistência: desde o começo, quando acaba emocional se associam? Os questionamen­de nascer e sua alma pura é ligada a um belo tos psicológicos como: “O que isso tem a vere magnífico corpo – o que, por si, já é uma comigo?” “Como estou me sentindo?” – ecompleta maravilha. Mas logo observamos outras perguntas como essas estão logo abaixoque o ser humano vive bloqueado em uma da superfície. Isso sem falar nas camadas doinércia existencial, passando pelos aconteci­ inconsciente, que afloram espontaneamente,mentos e tristezas da vida na terra. Ele mal chamando a atenção da consciência. Entran­consegue assegurar sua sobrevivência. A partir do nesse domínio, podemos dizer que não éde certa idade, as circunstâncias exigem todo assim que procuramos conhecer a nós mesmos.o seu tempo. Portanto, a partir de sua juven­ Conhecemos apenas as colunas, os pilares etude, ele chega à consciência, à compreensão cúpulas não demolidos do passado, que são, nade sua situação. Isso faz com que ele veja o verdade, uma construção cambaleante – entre-que pode fazer quanto a seus parentes pró­ tanto, perfeitamente real: trata-se da consciên­ximos e observar os erros que comete em cia que chamamos de “eu”, e que muitas vezesrelação aos outros. se apresenta amável, brilhante, vergonhosa,Vemos como tudo isso nos impulsiona em di­ ciumenta e assim por diante. Definitivamen­reção à consciência, ao conhecimento do que te, não é a imagem de um verdadeiro homemé o mundo ao nosso redor, e ao conhecimento superior.de nós mesmos neste mundo. Conseguimosdescobrir por que está gravado no frontão do De certo modo, intuímos que o ser verdadeirocélebre Templo de Apolo em Delfos: “Ho­ deve encontrar-se em outro plano e agir pormem, conhece-te a ti mesmo”. São palavras meio de outras faculdades. E é nessas trocasoriginadas no Egito e completadas pela frase: com o outro ser humano, e com o “Outro no“E conhecerás a natureza e os deuses”. ser humano”, que aprendemos a conhecê-lo. sobre o homem 27

O homem, representação na forma de sequências CTAG (citosina, timina, adenina, guanina) do código do ADN(ácido desoxirribonucleico, ou DNA, em inglês).VIVER POR MEIO DO OUTRO Segundo o coisas imateriais. Todas essas “outras coisas”filósofo lituano Emanuel Lévinas (1906-1995) são da mesma natureza: elas constituem nossopodemos dizer que vivemos exclusivamente “eu”, são suas propriedades. Mas com o tem­por meio do outro. Com o nosso nascimento, po, essa forma de vida e essas posses já não noscomeçamos, antes de tudo, a nos familiari­ satisfazem, pois não nos colocam em situaçãozar com os que nos rodeiam. É o primeiro de aprender a conhecer a realidade do que é ohorizonte, onde tudo se vai delineando. Os outro. É assim que deixamos para trás a facul­outros fazem parte de nós à medida que se dade mais importante que poderia elevar-nosalegram com nossa existência e a tornam mais acima de nosso instinto de conservação. Essafácil. Desde o início, possuímos o instinto de faculdade é o amor.conservação, e, em função disso, nos servimos Os grandes pensadores dizem que não háde todas as coisas que estão ao nosso alcance. felicidade maior do que conhecer o outro. NaAsseguramos nossa autonomia ao apropriar­ filosofia hindu, os Vedas ensinam que não hános de tudo. Absorvemos alimentos e bebi­ diferença entre o outro e nós. Tat tvam asi,das, alugamos filmes, utilizamos nosso carro, ou seja: “Tu és isso”. E comparam o outro apossuímos livros, uma moradia, e também Brahma. Com o mesmo espírito, Jesus disse:28 pentagrama 1/2011

O ser humano é aquele que aprende, que dá e toma,que pode dizer: tenho necessidade de você!“Ama a teu próximo como a ti mesmo”. Um não vejo apenas o seu olhar, mas muito mais.poeta persa fala de forma lírica do “fogo que Vejo um mundo, uma história no futuro, aalimenta a si mesmo”, assim como da “fonte necessidade que essa pessoa tem de mim. Tudoinesgotável” – outra coisa que estimula a nossa isso é muito comum, aqui, no tempo. Mas severdadeira natureza: o amor. Ser interpelado eu conseguir enxergar nessa pessoa o homempelo outro é o começo da verdadeira liberta­ original, é porque, em meu imo, o homemção. Para começar, servimo-nos da criação em original já foi despertado e meus olhos se abri­torno de nós a fim de assegurar nossa própria ram, iluminados pelo Espírito!existência. Em seguida, a criação se abre paranós e nos interessamos por essa maravilhosa TRANSCENDER O INSTINTO DEcriação que nos rodeia. Então, começamos aperceber o outro ser humano, pela primeira CONSERVAÇÃO A primeira e maior etapavez. E, assim, passamos da surpresa para a ad­ rumo à libertação definitiva acontecemiração, e da admiração para “uma balbucian­ quando nos abrimos e sentimos amor ete adoração”, nas palavras de J. van Rijcken­ preocupação com o outro. Essa é uma novaborgh. E nos damos conta de que, sem esse responsabilidade: podemos aprender a estaroutro ser humano, não existiríamos. unicamente a serviço do outro, a nos abrirmosO ser humano é aquele que aprende, que dá completamente para o outro, esse ser único,e que recebe. Ele pode dizer: “eu preciso de tão especial. Não é que o próprio ser humanovocê” e suplicar “tenha necessidade de mim!” não seja importante – ao contrário! Não éEle sabe se fazer pequeno como Lao Tsé acon­ Jesus, o portador do Cristo, que nos diz:selha: “Ele é como a água e busca os lugares “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”?mais baixos para acumular-se e correr em Daí as sábias palavras dos rosa-cruzes: “Servirdireção ao vasto oceano” (Tao Te King, capítu­ em autoesquecimento é sempre o caminholo 66). mais curto e mais alegre para se chegar a Deus”. É um fabuloso segredo, talvez o maiorSomente numa vida com os outros e para de nossos deveres em nossa época.os outros é que podemos ser alguma coisa e Segundo Lévinas, o ser humano precisa trans­realizar nossa autodescoberta. O que acontece cender seu instinto de conservação. Viver équando encontramos alguém? Na maioria das estar em todo lugar, pensando e dando sen­vezes, ficamos meio conscientes um do ou­ tido à vida: é poder ajudar, instruir, de olhostro, e nada mais fazemos do que passar diante abertos para o bem-estar de todos. “O reinodessa pessoa. Por exemplo: alguém chega para de Deus está dentro de vós”, diz o Evangelho.falar comigo, e, num instante, tudo muda – eu Mas somente o encontraremos no serviço ao próximo. sobre o homem 29

O não ser é o espelho do ser absoluto. Nele se refletem os raios da realidade, e esse reflexo jorra a cada segundo. A unidade se manifesta sob o aspecto da multiplicidade, assim como quando você conta apenas ‘uma’ coisa e vê que existe uma multidão delas. Todos os números começam com o um, mas não têm fim. O não ser é puro em si mesmo, e o “tesouro escondido” se reflete nele. ShabistariO homem-alma, o ser verdadeiramente ma­ meio que os cerca, com o que está fora deles.duro interiormente, levanta seus olhos em Digamos que, pelo contato com nossos se­direção ao Espírito, embora seu coração esteja melhantes, aprendemos a nos conhecer. Masvoltado para todos os seus irmãos. Estas pala­ onde anda nossa capacidade de conhecer? O quevras são ainda mais claras: “Se vossos guias vos é conhecer, de fato? Espinosa responde em suadisserem que o reino está no céu, então as aves Ética: “A compreensão sem o poder mental dovos precederam; o reino está no mar, então espírito é o método pessoal do ser: ela o man­os peixes vos precederam. Mas, o reino está tém fixo em si próprio” (Espinosa. Ética, 14).dentro de vós, e também fora de vós. Se vos Com nossos sentidos, percebemos as dimen­conhecerdes, sereis conhecidos (Evangelho de sões do espaço-tempo. Visto que nossas per­Tomé, logion 3). cepções desencadeiam nossos pensamentos,Aqui o reino está diretamente ligado ao pro­ sentimentos e vontades, chegamos a uma com­cesso de autoconhecimento: é a vida espiritual preensão com base em nossas percepções. É as­propriamente dita. O reino é “um estado de sim que nos identificamos, e isso nos conduz àconsciência, aqui e agora”, verifica Jacob Sla­ consciência experimental. A natureza circun­venburg em seu livro Inleiding tot het esoterish dante nos estende um espelho que nos oferecechristendom (Introdução ao cristianismo eso­ nossa visão da vida. Na verdade, é esse espelhotérico), e ele acrescenta que os ensinamentos que constitui a base de nossa existência. Se, node Jesus incitam seus ouvintes a se tornarem decorrer de nossas experiências, ficarmos blo­conscientes de si mesmos, tal é o reino. queados nesse ponto e nada fizermos com essaTrata-se da consciência da realização total do sabedoria, nosso desenvolvimento estagnará.ser humano – mas isto apenas pode ocorrer “Nós nos fixamos em nosso próprio ser”, dizem colaboração com o outro. E apenas pode Espinosa. Vemos o mundo através da consci­acontecer onde a verdadeira ligação se torna ência que nós próprios constituímos e vemospossível: no domínio da alma. É aí que se dá o tudo através de nós mesmos. Não vemos overdadeiro “diálogo”. sol, mas sim a idéia que fazemos dele: vemos apenas nossas próprias projeções. Não ouvimosESPINOSA Diálogo é uma conversa entre duas nossos interlocutores, mas sim nossas própriaspessoas que respondem, cada uma na sua vez: é interpretações do que ouvimos.uma troca de ideias, de opiniões – uma ligação Espinosa também fala a respeito de um conhe­mútua. Os dois oferecem, um ao outro, um cimento que nos permitiria entender as coisasreflexo de si próprios. Nesse reflexo, tentam em sua essência. Nosso poder mental não éalargar suas visões, aprender um com o outro. espiritual. Somente o será quando nossa inteli­É uma oportunidade de aprenderem com o gência for guiada pelo poder mental do Espíri­30 pentagrama 1/2011

Homem e vacas sobre uma ponte na Geórgia. © Archil Kikodzeto e aí perceberemos a essência das coisas. Ele respeito desse conhecimento, dessa sabedoriaacrescenta: “O Espírito tem o poder de nos do amor. Essa “essência das coisas” fala comodar todas as imagens ou impressões formais uma voz interior. Hermes diz ao buscador:das coisas – e isso até chegar à idéia de Deus”. “Porque o que é criado, vem a ser, como já“Todas as imagens, à medida que se referem a foi dito, por outro; ora, nada pode existir, queDeus, são verdadeiras, porque todas as imagens já não fosse antes que tudo viesse a ser, comexistem em Deus e correspondem inteiramen­ exceção do que ele mesmo nunca veio a ser: ote ao que ele representa, logo são verdadeiras” criador. […] Além disso, todas as criaturas são(Espinosa. Ética, 32). visíveis; ele porém, é invisível. É justamente por isto que ele cria; para tornar-se visível!O AMOR “Quem faz do amor uma verdadei­ Assim ele cria incessantemente; e assim se fazra imagem, sabe que sua concepção é justa e visível. Desse modo deve-se pensar, e, dessenão pode duvidar de sua verdade” (Espinosa. modo, chegar à admiração, e a considerar-seÉtica, 43). bem-aventurado por ter aprendido a conhecerUma grande quantidade de interpretações e o Pai” (Hermes Trismegisto, Corpus Hermeti­de informações não traz o conhecimento da cum, Livro XV, vers. 3-5).essência das coisas. A essência das coisas per­ Podemos vivenciar esse pensamento esbo­tence a um estado que se encontra muito além çado por Hermes quando nosso pensamentode nosso espaço-tempo: é um estado com o comum, nossa faculdade de entendimentoqual, em princípio, só temos algo em comum descobre que é “pobre de espírito”. Quando– o amor. Nosso ser microcósmico – que é o o Espírito ainda não pode manifestar-se nahomem verdadeiro, cuja transcendência nos alma, ele em realidade não vive. Essa compre­envolve e penetra – fala-nos constantemente a ensão é a porta que leva à verdade. sobre o homem 31

Realizar a iniciação é silenciar e encontrar-se em verdadeirointercâmbio com o outro. No silêncio, o outro fala!Amor é ligação. É o amor que lança uma pon­ Logos, irá glorificar-se no diálogo mantidote entre o buscador que aspira à libertação e o com sua criatura, o homem criador. Esse é omundo do “reino de Deus”. Afinal, no mundo significado da expressão “o fogo que alimentaverdadeiro, somos semelhantes ao que vemos, a si mesmo”, ou “a fonte única e inesgotável”.às coisas que atraem nosso coração. Então, o ser humano estará sobre outro funda­Sobre isso, Felipe diz em seu evangelho: mento existencial. O que é conhecido já não“Ninguém pode ver algo das coisas impere­ estará fora do conhecedor µcíveis a menos que se torne como elas. Não éassim que se passa com o homem neste mun­do: ele vê o sol, sem ser o sol; vê o céu, a terrae todas as outras coisas, mas não é essas coisas.Mas, se vês algo do reino da verdade, tornas-teverdade. Se vês o Espírito, tornas-te Espírito.Se vês o Cristo, tornas-te o Cristo. Se vês oPai, tornas-te o Pai. Assim, aqui neste mundovês todas as coisas e não vês a ti próprio. Nooutro mundo, contudo, vês a ti mesmo, por­que o que nele vês, nisso tu te tornas” (Evan­gelho de Felipe, logion 36).Deus quer ser conhecido por todos. E, paraisso, ele nos oferece tanto o outro ao nosso re­dor como o “Outro” em nós. Ele nos oferece afaculdade do não ser, que é, em si, a pureza. Onão ser é como um espelho no qual Deus vê asi mesmo e nós nos vemos nele.Realizar a iniciação é silenciar e encontrar-seem verdadeiro intercâmbio com o outro. Nosilêncio, o outro fala! Se nós, seres humanos,abandonarmos nossa lógica limitada, Deus, o32 pentagrama 1/2011

Página de umaalocução do mestreEckhart (Universi­dade Georg-August,em Göttingen). sobre o homem 33

conversa consigo mesmoConhece a luz e estabelece amizade com elaHermes, PimandroQuero marcar uma entrevista. — Que suposição? — O Senhor tem hora marcada? — A suposição de que existe um mestre invisível — Pra dizer a verdade, não. Mas preciso que realiza o trabalho.marcar uma entrevista. — A base de tudo é a sabedoria – tanto a ociden­— Qual seria o assunto? É alguma coisa grave, tal como a oriental. E a sabedoria universal, comoséria? Seria a respeito de Deus? Ou a respeito de a conhecida tradição do cristianismo ocidental,futilidades? diz: “Meu jugo é suave, e meu fardo é leve”.— As duas coisas. É sobre a vida dos homens, que Com isso, quero dizer que o mestre interior tornaé pesada para muitos e leve para poucos. leve o que é pesado. É isso o que chamam de— Por que o Senhor gostaria de discutir sobre “caminho da cruz”.isso? — Mas você está se baseando na fé das autorida­— Quero sondar se é possível tornar mais leve a des. Ainda não compreendeu nada por si mes­vida de um grande número de pessoas, oferecen­ mo e, além do mais, não encontrou resposta àsdo-lhes a possibilidade de se desvencilharem do perguntas: “Por que todos as pessoas precisam ser“peso” de sua vida. libertadas?” e “Quem realizará essa tarefa, você?”— Resumindo: trata-se de conquistar a libertação? — Entendo que preciso sondar mais profunda-— Isso mesmo. mente. Gostaria que pudéssemos fazer isso juntos,— Acho que desejar obter libertação para si mes­ pois acredito que vale a pena. Mas acho que seriamo é uma atitude bastante egocêntrica. melhor começar depois da minha “entrevista”.— Mais ou menos. Imagino que, para libertar Está combinado?outras pessoas, seja preciso primeiro libertar-me, — Sim, claro que vale a pena! Sinceramente,com base em certas condições favoráveis. Esse não também me preocupo com esse tema. Não só oseria o único meio viável? considero interessante como também acho que os— Quanta pretensão! Quem o senhor pensa que homens deste mundo precisam aprender a livrar­é para decidir que deve ser o primeiro a livrar-se se do peso de sua vida.do peso da vida para que os outros sejam libertos? — É por isso que estou solicitando uma entrevista— Olhe só o que acontece comigo: não con­ de seleção.sigo libertar a mim mesmo, mas quem opera — Muito obrigado.esse trabalho em mim, sem que eu compreendaexatamente como, é uma força magistral, que FALAR DEMAIS, FUGINDO DO TEMA Um bomnão consigo controlar, invisível. É por isso que eu diálogo é o que envolve interlocutores que acre­gostaria de marcar essa entrevista. ditam nos mesmos valores, são dotados do mesmo— Tudo bem. É possível. Mas qual é a base dessa bom senso e pensam que as almas – tanto as almassuposição? que somos quanto as que nos tornamos – possam34 pentagrama 1/2011

DIÁlOGOFragmento do manuscrito da Doutrina Secreta, de Helena Petrovna Blavatsky (cerca de 1880)encontrar-se no plano mental para trocar ideias. para a igualdade de posições. Poderes, institui­Essa troca deve conduzir à compreensão mútua. ções, interesses, lucro, apologias, lutas… todos es­Mas, sobretudo, deve levar a uma nova e mais ses sistemas do mundo organizam-se de tal modoampla compreensão das situações com as quais que um diálogo “aberto” se torna coisa rara.somos confrontados nesta vida. Muitas vezes, o início de um “diálogo aberto”Essa compreensão pode consistir em uma se­ degenera rapidamente e vira uma batalha verbal,quência de ideias cada vez mais sublimes, ligadas na qual um dos campos precisa sair vencedor. Umde modo vivente a cada pessoa que se comunica, comediante holandês, André van Duijn, definiuà consciência de cada uma delas. esse fenômeno como “falar demais, fugindo doPodemos dizer que um diálogo deve ser “esta­ tema”. Na sua opinião, essa é a marca registradabelecido”? Ele deve desenvolver-se baseado na da comunicação moderna. Só muito excepcional­crença dos “mesmos valores” e no “mesmo bom mente é que as pessoas se encontram para trocarsenso”? ideias com base nos mesmos valores e no mesmoSim. Afinal, no palco deste mundo não há lugar bom senso. Afinal, por que alguém conversaria conversa consigo mesmo 35

Sinto-me leve, aliviado, como se um peso diminuísse, quando a alma éatraída para o alto, onde ela aprende sobre si mesma e sua origem.“abertamente” se não existe lucro ou interesse tal da compreensão: a célebre máxima “penso,em jogo? Para obter um lucro espiritual ou para logo existo”.progredir espiritualmente? Quem poderia verdadeiramente expressar, aindaSabemos que a verdadeira humanidade é qualifi­ que parcialmente, a ideia ou a suspeita daquilocada de “maravilha” nas considerações herméticas que carrega em si de imortal ou eterno? Quemfundamentais desta edição da revista Pentagrama. poderia formular pensamentos correlatos a essaE podemos ler no livro A Gnosis original egípcia: ideia numa conversa com outras pessoas? Trata­“O homem é uma admirável maravilha”. Nosso se realmente de uma questão de saber por quecorpo é surpreendente por si só, pois carrega con­ motivo a consciência desse tipo de ideia parecesigo a possibilidade de transmitir as ideias mais muito especial. Por que expressá-las exige talentoremotas. de artista? Porque as imagens transmitidas pelas palavras e pela própria língua são muito subjeti­O ETERNO É UM MISTÉRIO Quanto ao homem, vas, o significado cai rápido em desuso, dissolve-essa admirável maravilha, no contexto hermético se e desaparece.se trata sobretudo do termo homem no sentido Muitos pioneiros como Lao Tsé e Buda poucomais antigo: “manas” – que, em sânscrito, sig­ falavam e geralmente ficavam calados. Os sábiosnifica “o pensador” e também “filho do sol”. jamais falam inutilmente. Do mesmo modo, osNa civilização grega, vemos a estreita ligação do discípulos da filosofia gnóstica e da gnosis hermé­homem com seu pensamento autônomo. Tudo tica cristã são pessoas que pouco falam. Segundoisso é escrito e relatado por Sócrates e Platão. a tradição, o que é eterno e divino no homemUm diálogo “aberto” acontece sobretudo quando é secreto. Essa afirmação ainda é válida nos diashá troca de pensamentos entre pessoas plenas de de hoje. E é extremamente delicado evocar esserazão. Aqui não se trata, hermeticamente falando, segredo, pois cada palavra proferida a esse respei­de um “sistema fechado”, mas sim da consciên­ to vai perdendo sua força – e, com certeza, issocia da presença de um elemento imortal, eterno, acontece em presença dos que, por exemplo, seporém latente. E, mesmo que esse elemento não esforçam para obter poder, sucesso, riqueza e pos­esteja atuante, ou vivificado durante um período tos elevados. Os rosa-cruzes clássicos conheciamcurto ou longo, ele alimenta pensamentos reple­ a expressão “sub rosa”, que significa “manter-setos de razão. sob a rosa, sob o segredo”. E também a frase que“Nas profundezas de meus pensamentos, sou diz: “não se deve oferecer rosas aos burros”.um deus”. Essa é uma citação de William Kloos,escritor holandês do século XIX. Os iluministas O DIÁLOGO VERTICAL Na filosofia do sécu­Descartes e Espinosa levaram uma vida humana lo XX também há uma afirmação semelhante:verdadeira, unicamente com base no poder men­ “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar”36 pentagrama 1/2011

(Wittgenstein). Saber calar é uma grande virtude, aprende sobre si mesma e sua origem.do Ocidente ao Oriente, de épocas antigas até os — Pergunta difícil. Isso depende. Em que medidadias de hoje. O silêncio não profana a serenida­ penso em minha responsabilidade pelo bem-estarde ambiente. Quando nos mantemos próximos de minha alma? Consigo distinguir dois estadosdessa atitude, o diálogo espiritual se estabelece de ser. Posso sentir-me humano, ocupar-me dede modo muito especial. No Ocidente, graças coisas cotidianas e viver incrivelmente. Mas tam­aos textos herméticos greco-egípcios, estamos bém posso sentir essa vida de outra maneira.abertos à troca de ideias. Frequentemente trata-se — Pergunto novamente: como devo compreen­de diálogos verticais interiores, ou seja, diálogos der isso?entre consciências esclarecidas numa relação de — Seria mais fácil compreender se falássemos demestre e aluno. Assim – e isso é parte do segre­ “manifestação”.do – também ocorre uma relação de mestre para — Um desses estados é melhor do que o outro?aluno, em nosso íntimo! Esse diálogo é puramen­ — O que há de bom em alguém que tropeçou ete espiritual: ele é leal e claro como cristal. Num caiu? Não. Como já disse, trata-se de uma ques­diálogo desse gênero, conosco mesmo ou em tão de responsabilidade.nosso íntimo – se quisermos chegar a conclusões — Ter boa consciência, a satisfação de ser boarazoáveis – devemos formular bem o assunto e pessoa…não concluí-lo. Abaixo, um exemplo de seme­ — Não. Não se trata de ser bom, mas sim de, emlhante troca interior de pensamentos: ambos os casos, saber que somos seres humanos.— No que se refere à minha alma, em que ponto — A alma é a consciência?me encontro? — Não. Ela não é a consciência – mas pode ser— Boa pergunta. como uma voz. A consciência é um auxílio para— Sei que ela existe, e preocupo-me com seu que possamos assumir seriamente nossas respon­bem estar. sabilidades e preservar-nos do esquecimento, da— Como deduzir em que ponto se encontra sua cólera cega.alma? — Estou gostando muito dessa nossa conversa.— Talvez se me perguntasse: sinto-me mais pesa­ Não me leve a mal. Gostaria de fazer mais umado ou mais leve? pergunta. De onde vem a preocupação com esse— Mais precisamente, o que isso significa? misterioso ser interior que, imagino, seja imate­— Sinto-me pesado pelo fato de minha alma ser rial?puxada para baixo perpetuamente, correndo atrás — Eu não invento nada. Eu o conheço. Isso nadade necessidades e desejos demasiado humanos. tem de intelectual. É algo superior: é precisoSinto-me leve, aliviado, como se um peso dimi­ que haja intuição. Uma intuição que ultrapas­nuísse, quando ela é atraída para o alto, onde ela sa o intelecto – que é direta, universal, eterna. conversa consigo mesmo 37

No number (Sem número). Obra abstrata expressionista de Jackson Pollock (cerca de 1955)Essa sabedoria não pode ser encontrada mediante vibrante, iluminadora, esclarecedora.raciocínio: ela vem do coração. A alma possui a — Sim! E é isso que quero dizer com o termopossibilidade de reconhecer o ser divino no âma­ responsabilidade. Quando pensamos sobre o cami­go de si mesma. nho que a alma deve percorrer, percebemos cla­— Acho que estou começando a entender. O ramente e compreendemos que podemos desfazerque transforma esse diálogo é a clareza que se nossas ligações. Nesse momento, sabemos estabe­conquista com ele. A clareza, o brilho da alma, lecer a distinção entre a alma corporal – a nossaenvolve-nos porque é com esse brilho que per­ alma, que nos aprisiona – e a nova alma, quecorremos o caminho. O que a alma diz chega até nos liberta. Percebemos o que devemos fazer ounós através de certa capacidade de conhecimento. deixar de fazer. Mas, caso não estejamos atentos,É assim que acontece o contato com a Luz, de confundimos o bem e o mal. É daí que surgem aonde esse brilho provém, realidade totalmente confusão e o esquecimento.38 pentagrama 1/2011

Sobre a natureza divina da alma, Krishna explica derá. Ela jamais nos abandonará. Ela está ligada aa Arjuna: “Se a luz de todas as luzes permanece, cada um de nós até o sangue!ela transcende as trevas da nossa ignorância. Ela Por sabermos a respeito dos dois mundos, dasé conhecimento, a única realidade a estudar ou a duas naturezas, e por termos obtido esse conheci­conhecer que habita o coração”. mento vivo, por temos permanecido em diálogo, podemos dizer que, nesse diálogo vertical, os doisO “OUTRO” ESPIRITUAL NO SER HUMANO Se amigos espirituais tornaram-se um único ser. Elesnos aprofundarmos interiormente até chegar ao já não precisarão desaparecer do microcosmo.conhecimento verdadeiro – à nossa alma, ao fun­ Muito pelo contrário: eles o conduzirão a um de­damento divino da nossa existência – compreen­ senvolvimento glorioso no novo campo de vida.deremos certamente o que se encontra no início Quem assim estabelece um diálogo como essedo pensamento hermético. Hermes o denomina está ligado a um saber completamente diferente, a“pensamento superior das coisas essenciais”, e um novo gênero de conhecimento vivente – queassim se fecha o circuito. A partir desse momento, é a própria Gnosis µeleva-se no microcosmo a forma original do serhumano cuja alma recebeu essa possibilidade, eele ascende completa e perfeitamente, com grandefelicidade, ao “outro” espiritual. É assim que po­demos liberar a força e a luz para todos os nossossemelhantes, de maneira excepcional, vivendo etrabalhando na sociedade atual. E há realmentegrande necessidade de que isso aconteça.A força e a luz que emanam da vida universaloriginal podem ser vivenciadas e, desse modo,podem agir. Explica-se: o microcosmo foi estru­turado outrora, em tempos imemoráveis, combase nessa vida original. A luz é vibração. Nomundo da matéria não existe nenhuma velocida­de superior à velocidade da luz. À luz também seassocia à alegria. A luz concede à terra sua belezae a torna visível. Quando iluminamos um local,podemos observar se ele está bem arrumado. Porisso, podemos dizer que a luz vem a nós quandoouvimos ou experimentamos algo interiormente.Quando caminhamos num bosque, podemosobservar como a luz cai sobre os ramos atravésdos galhos, como ela brinca com o orvalho sobreo verde da folhagem, em rico e cintilante bailado,enquanto numerosos raios atravessam os ramosque pendem até o chão. A cada passo dado, pode­mos perceber uma nova gama de cores, inúmerose variados matizes de raios de luz.A luz original é muitas vezes mais viva – ela é oconhecimento dos dois mundos. Do âmago donosso ser, nós o sabemos: jamais essa luz se per­ conversa consigo mesmo 39

Inúmeros mitos foram-nos transmitidos por civilizações dos períodosmais diversos. Eles revelam concepções da antiga humanidade sobreo aparecimento do mundo, sobre a atividade das forças naturais,sobre os deuses, e sobre o nosso destino após a morte.o destino Eddados deusesOs mitos reunidos na Edda, uma coletâneade contos e poemas nórdicos, falam sobre osmistérios do desenvolvimento do mundo.AEdda transmite a verdade universal em imagensvariadas que correspondem ao poder de imagi­nação dos ouvintes da época.A terceira partedessa série fala sobre o destino dos deuses.Oque Völwa ou Wala nos relata é apenas um mito, em sua narrativa não há nada de histórico. Das brumas de um passadolongínquo, completamente desaparecido, a Völwacontempla, com muita clareza, alguns aconte­cimentos singulares, e registra-os muito nitida­mente na consciência da comunidade do Althing,que a escuta. Essa comunidade era formada pelosanciãos das famílias, pelos homens livres e pelosguerreiros. Eles eram filhos de “Heimdall”, o que“resplandece sobre o mundo”, que equivale a luzda primeira criação. Ele é a Luz do Mundo, queprovém diretamente da fonte original do Espírito40 pentagrama 1/2011

e da perfeição divina. Quando Heimdall sopra reflexo de si mesmo – que é o homem material, osua trompa de chifre, ela ressoa através de todos ser terrestre.os períodos do mundo como um segredo. Ouvir Odin possui doze forças ou poderes criadores,a “sonoridade” da luz é sempre o sinal atemporal que emanam da energia central do Invisível, dode uma recriação do ser humano. Único. Simbolicamente, observamos o que éA Völwa fala em nome do deus Odin, também transmitido pelos doze Æsires, os doze deuses quechamado de “Pai universal”, ou Walvater (Pai conferem sua expressão à criação como um todo.Wal). Ele é o criador de todas as almas; é ele Podemos observar seu reflexo nos doze pares dequem anuncia aos homens a evolução do mundo nervos cranianos, essa rede de natureza sutil edesde seus primórdios, na noite dos tempos, até extremamente sensível que toca cada uma dasseu desaparecimento final. A imagem do homem células do corpo humano e permite uma estreitaperfeito pode vir até os homens como chega a au­ ligação entre o corpo, a alma e o espírito.rora que desponta. O primeiro verso da profecia A criação de três mundos provém de Asgardda vidente diz: “Silêncio peço às estirpes divinas, ( jardim ou mundo do Um). O “ás” é a carta defilhos de Heimdall, grandes e pequenos. Desejas, baralho que representa o número 1, o trunfo queó Odin, que eu proclame as lendas antigas dos vence todas as outras cartas e, como unidade,homens que recordo.” interconecta tudo. Em seguida, encontramos os doze princípiosQUEM É ODIN? Diz-se que Odin tem doze originais, as doze correntes que jorram da fontenomes diferentes. Isso significa que a energia de Niflheim (Lar das Névoas). Também vemosque dele emana comporta um grande número de aí os doze princípios que deram origem ao nossoaspectos criadores. Ele e sua esposa, Freya, são os zodíaco astrológico, também chamado de “círcu­pais dos deuses mais importantes, como Baldur, lo dos deuses”. Odin é a fonte original, o criadorThor, Heimdall e Tyr. Esses deuses agem no pla­ de todas as almas, o pai dos valentes guerreirosno da natureza e desenvolvem a forma e o caráter que não morrem no leito, mas que perdem ado homem material. vida no campo de batalha da existência terres­Odin é filho de Bor e da gigante Bestla. Ele é tre. Aqui podemos ver novamente a referência ào símbolo de um ser espiritual que está a cami­ luta interior em que o herói vence as forças quenho, entre as diferentes formas da natureza. Na o aprisionam ao plano inferior. Odin leva a almaDoutrina Universal, podemos considerar que o dos guerreiros para o Valhalla, que é o salão ondenome Odin indica determinado tipo de micro­ são recebidos os que morreram honradamente emcosmo: ele representa a imagem espiritual ori­ combate: eles “morreram” no decorrer do proces­ginal do homem verdadeiro que, em seu cami­ so de transformação de sua alma e despojaram-senho natural, tenta lançar um chamado para esse de seu antigo ser. o destino dos deuses 41

Os mitos devem seu surgimento às experiências antiquíssimas da alma e do espírito. Essas experiências são objeto de represen­tações míticas transmitidas inicialmente por via oral e depois por escrito. Essas imagens revelam uma verdade que não é nem ra­cional nem histórica. Devem ser compreendidas intuitivamente, no nível da alma e do espírito. Nossa mentalidade atual, racional,tem a tendência de duvidar dessas sugestões. A lógica pura tem dificuldades diante de uma verdade que nos chega sob a formade imagens. Já não há nada de familiar: tudo parece estar envolto em mistério, como se quisesse transmitir uma mensagem.Quem encontra a chave pode decifrar esse segredo. E, como todos nós possuímos essa chave no coração, podemos receber amensagem secreta de modo consciente.COMO SURGIU A FALA HUMANA No nome fazem pressentir, mesmo que muito vagamente, aOdin também estão ocultos os vocábulos “odem, própria essência do ser de Cristo e de sua missão.adem” (sopro, alento) e “Adam” (Adão), a alma Por meio das palavras da vidente, os ouvintesinsuflada em segredo. No antigo alemão, Odin se sentiam dentro de si o destino dos deuses. Dentrorefere também a Wuodan ou Wotan: o que impul­ deles, alguma coisa revivia: aspectos de umasiona para frente, com força, que reina na tem­ reminiscência original. Eles “vivenciavam” Odinpestade, que, na respiração, enche o pulmão de como uma energia resplandecente e vitalizante,ar. É o vento que corre nos bosques e faz que os como uma ligação com um aspecto superior dofenômenos naturais “falem”. espírito.A Edda narra que Odin ficou pendurado na Para os germânicos, Odin era o dispensador oni­árvore da vida por nove “noites” (nove níveis de presente do destino. No entanto, ele próprio tam­consciência), enquanto escutava todos os tipos bém se submetera ao destino. Ele personificava ade impressões e ruídos da natureza. Com base força e o poder que opera em toda parte e repre­nessas impressões e ruídos ele formou a lingua- sentava, dentro de cada ser humano, a vontade,gem humana, tão rica de imagens. Afinal, não a sabedoria e a ação divinas. Ao mesmo tempo,é verdade que, em todas as línguas, há segredos a vidente mostra como Odin morreria em cadaocultos, que escondem as ligações entre o espírito homem. Em nossa linguagem moderna, diríamose a natureza? O espírito aprende a se conhecer que Odin “deslizaria para nosso inconsciente”.com o auxílio da natureza e, no decorrer de eras O processo corre paralelamente à individualiza­e eras imensas, ele transforma e espiritualiza a ção. À medida que o “eu” humano se desenvolve,natureza. Nesse processo, o tempo não desempe­ começa a ter uma percepção de si mesmo e nãonha nenhum papel! Quem vai registrando tudo é da ação dos deuses dentro dele. Ele já não se vêMimir, a memória da natureza. O sopro de Odin como um reflexo de uma entidade espiritual, masestá presente em todas as línguas. como um ser independente.O fato de Odin ter ficado dependurado em uma A vidente percebe, também, os sinais que pressa­árvore durante nove ”noites” dá a impressão de giam um futuro cheio de infelicidades e profetizaum tipo de descida, de uma queda do espiritual um destino ameaçador e inevitável µpara o material. Assim, para que um dia tivésse­mos a possibilidade de efetuar nosso desligamen­to da natureza no tempo previsto, seria precisoacontecer a crucificação deliberada de um sermuito superior – e esse fato anunciaria nossaespiritualização e transfiguração. Precisamos estarbem conscientes de que os mistérios nórdicos nos42 pentagrama 1/2011

Ilustração do século XVIII representando a árvore do mundo, Iggdrasil.(J.C. Cooper, Enciclopédia ilustrada dos símbolos tradicionais, Londres, 1978). o destino dos deuses 43

uma boa conversaEm nossa época, comunicação é uma palavra mágica. No entanto, uma boa conversa nuncaesteve tão pouco em evidência. O verdadeiro diálogo parece ter perdido grande parte de suaimportância, agora que a comunicação humana acontece mais por meio de e-mails, sms ou Fa­cebook.As mídias estão dominando nossa vida e nos sobrecarregam de uma quantidade incrí­vel de informações.As conversas giram principalmente em torno do que as mídias nos trazem,e falamos cada vez menos sobre o que poderíamos dizer a nós mesmos. O mais importante éestar por dentro das novidades, estar bem informado. Quem não estiver, só pode calar-se, nãopode dizer nada, nem participar da conversa.Acomunicação pessoal deixa transpare­ brigas, e sempre nos perdemos em uma avalanche cer muito da confusão de informações de palavras. que mantém nossa “comunidade global” Por isso, estamos chegando a um ponto emaprisionada. Todas as pessoas, individualmente, que vale mais ter razão do que dizer a verdade.precisam ter uma opinião bem formada, cheia de Trata-se de uma antiga técnica de discussão pra­argumentos e justificada com veemência. Durante ticada entre os sofistas na antiga Grécia – e elesalguns confrontos de estudantes da Universidade chegavam até a ser remunerados por ela! Venciade Colúmbia, em Nova Iorque, alguns jornalistas quem tinha razão, e a vitória era dada a quementrevistaram o filósofo Jacob Needleman, profes­ pronunciasse a última palavra.sor e autor do livro Lost Christianity (Cristianismo Nessa tentativa de definir o que qualificamosperdido), para saber sobre sua opinião a respeito como “boa conversa”, a quem poderíamos nosdos acontecimentos. “Não tenho nenhuma opi­ referir melhor do que ao filósofo grego Sócrates?nião a respeito”, respondeu ele, tranquilamente. Se Por ser o “pai do diálogo socrático”, ele atraíaas pessoas não se conformassem com essa resposta a hostilidade dos sofistas. Sócrates não era uminsignificante, ele a repetia, pois era verdade: ele mestre da conversa cotidiana sobre “tempo bom”não sabia o que pensar a respeito daquele fato. ou “tempo ruim”. Pessoalmente, ele tambémMesmo quando insistiam, ele não queria tomar não queria convencer ninguém a qualquer preço.uma posição, e os repórteres o olhavam com certo Mas ele acabou colocando em dúvida todas asestranhamento, perguntando: “Isso quer dizer que falsas certezas de seus interlocutores. Como iao senhor não tem nenhuma opinião?” Needleman fazendo perguntas cada vez mais profundas, eleteve a impressão de que não ter opinião alguma era os levava a tomar consciência de que realmentepior do que cometer um crime. É claro que esse não sabiam nada. Desse modo, resumia a conver­diálogo não foi transmitido pela mídia, pois não sa e dava fim a toda tagarelice das pessoas muitoé comum alguém não receber bem os jornalistas. seguras de si. Sócrates colocava-se como umNosso mundo de informações está ameaçado por exemplo, pois dizia que também não sabia nadauma polarização a ponto de ser quase uma obriga­ a respeito de nada e que não achava que poderiação tomar o partido de um lado e menosprezar o saber de tudo. De certa forma, só de dizer issooutro. Para sermos claros, apegamo-nos a opiniões ele já se mostrava mais sábio do que os outros.radicais. A hesitação e a incerteza tornam difícil a Karen Armstrong tem razão quando se refere aoformação de opinião. Exige-se uma opinião firme método de diálogo socrático em seu novo livro,a respeito dos assuntos mais divergentes possíveis Em nome de Deus1 (The Case for God). Segundo– e sempre precisamos justificar, dar exemplos ela, as polêmicas sobre as grandes questões vitaispara fundamentá-la. Isso é bem lógico, pois nossas são sempre improdutivas, pois impedem que aconversas geralmente caem em discussões, debates, pessoa vivencie experiências espirituais autênti­44 pentagrama 1/2011

DIÁlOGOcas e nunca conduzem à iluminação. ouvir mais nada, mas sim quando há uma esperaEm um bom diálogo, precisamos confrontar tranquila pela palavra libertadora que faz comnossas opiniões com a de outra pessoa e deixar que, em nosso interior, se eleve “o indizível, oclaro, logo de início, que não pretendemos saber inexprimível”.tudo a respeito do assunto. Ao fazer isso, não Esse silêncio também pode descer em nós quan­registramos um resultado imediato, sobretudo se do cessa a onda interminável de reflexões pesso­nos esforçarmos muito conscientemente. Nesse ais, do diálogo que se desenvolve dentro de nóscaso, é importante reconhecermos isso honesta­ e que é definido por James Joyce como “fluxo demente: assim, poderemos dar uma nova direção consciência” (stream of consciousness). É que o de­ao diálogo. Afinal, é preciso manter uma atitu­ bate a respeito de palavras nem sempre está forade aberta e receptiva, que nos permita perceber de nós. Na maior parte do tempo, ele continuaonde discordamos, para nos livrarmos de nossas dentro de nós como um interlocutor imaginário,certezas cristalizadas e da fortaleza inexpugnável um adversário que gostaríamos de convencerde nossa personalidade presunçosa. Se um dos com base em nosso próprio raciocínio. Quantasdois interlocutores apresenta suas ideias como vezes não ficamos cansados de tanto imaginarse fossem absolutas e totalitárias, como verdades argumentos para um próximo debate, argumen­indiscutíveis, a conversa para por aí. Portanto, tos que gostaríamos de ter continuado a tecer,além de nos abrirmos para a outra pessoa, tam­ quando na verdade ficamos de boca calada?bém precisamos relativizar nosso discurso. Críticas pedantes? A história da religião dá inú­De fato, uma boa conversa pode tornar-nos meros exemplos de pessoas que dialogam comreceptivos ao mistério desse terceiro elementoimperceptível: o silêncio que se estabelece entreos interlocutores, o “Outro”, que é tão diferen­te de nós, e que está presente entre as palavrasexpressas ou entre as linhas escritas – o “Outro”,que jamais poderá ser reduzido a uma verdadeque possa ser demonstrada e definida objetiva­mente e que permanece quando tudo já foi dito.Ora, esse “Outro” apenas pode manifestar-se emnós no silêncio: não somente o silêncio da voz,mas principalmente o silêncio do coração, quese faz quando o diálogo chega a um ponto emque nos faltam palavras, quando o silêncio não éo silêncio teimoso e decidido de quem não quer uma boa conversa 45

o Deus “delas”. Fazendo isso, elas entram em cípio e que era Deus”, como a única verdadeuma luta desigual com o produto de sua própria inexprimível, mas cuja ação podemos sentir emimaginação, sob o império de uma criação de­ nós. Esse Verbo se expressa também por meio demoníaca que as força a uma obediência muda e nossas ações e de nossa atitude de vida, por umaque submete sua fé de forma autoritária. No fim, afirmação que acaba com nossas “belas palavras”elas acabam perdendo totalmente a fé e negam a que, no entanto, são vazias. Esse Verbo fala emexistência de Deus. nós no momento em que o vivenciamos e oNo entanto, uma negação como essa também escutamos em silêncio. O que podemos dizerpode ter um efeito purificador, pois o choque quando o Verbo divino do “Outro em nós” seda ignorância pode fazer-nos transcender a nós faz ouvir? Quando esse Verbo ressoa em umamesmos e tornar-nos acessíveis interiormente ao conversa? Já não pretendemos convencer, persu­mistério indizível da vida, como podemos ler, adir nem sustentar opiniões contrárias: convida­por exemplo, na Bíblia, no Livro de Jó. O silên­ mos uns aos outros a ultrapassar as palavras e acio interior pode formar a terra que nos alimen­ descobrir a verdade transcendente que ultrapassatará: a base em que os impulsos pessoais naturais todas as palavras. A partir de então, a comunicaçãoacabam permitindo a escuta da palavra divina. já não é uma troca de ideias diferentes, mas, sim,Nesse momento, dentro de nós somente resta­ uma união, no sentido verdadeiro desse termo µrá uma única expressão – o anseio pelo únicoVerbo verdadeiro: “Fala, e serei curado”. Já não Fontes:se trata de falar de modo puramente informativo 1 Armstrong. K. Em nome de Deus: O fundamentalismo ou descritivo, mas, sim, de formular o pedido no judaísmo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.por uma transformação, por uma mudança fun­damental. Quando a polêmica interior se reduzao silêncio, o único Verbo divino pode fazer-seouvir e renovar-nos inteiramente.Na tradição gnóstica cristã, trata-se do Logoscriador, do “Verbo de Deus que era no prin­46 pentagrama 1/2011

DIÁlOGOGIORDANO BRUNO E OS DIÁLOGOS ITALIANOSa profundidade da palavrade giordano brunoGiordano Bruno está entre os personagens mais conhecidos do final do século XVI e é umdos mais difíceis de ser interpretado. Sua obra complexa é difícil de ser entendida em nossosdias, pois o contexto desapareceu, e as ideias, as figuras míticas e históricas já nada represen­tam para nós. No entanto, seu final de vida atroz, em Roma, na fogueira montada em Campodi Fiore, marca o fracasso de todos os que não toleram a liberdade de pensamento.A inter­pretação de que Bruno teria sido um charlatão, um pretenso mago, ainda turva sua imagem.Filippo Bruno nasceu em 1548 em Nola, atacar determinado teólogo, em seguida chegar uma localidade ao sul da Itália, próxima a a confundi-lo por meio de debate, e depois ser Nápoles – e ele nunca tentou esconder sua forçado a fugir ou a apresentar desculpas.origem. Em suas obras aparecem membros de Giovanni Mocenigo, um conterrâneo venezia­sua família, o que lhes confere uma vivacidade no, convida-o a ir a Veneza e, depois de algunsdramática e um tom pessoal bastante particu­ meses, entrega-o à Inquisição, que o faz passarlar. Filippo tinha quinze anos quando entrou por um longo processo, primeiro em Veneza epara a ordem dos dominicanos de Nápoles. depois em Roma. Bruno começa dando teste­Foi quando escolheu seu nome monástico: munho de contrição, mas em seguida se recusaGiordano. Logo se revolta contra a vida mo­ a revogar suas ideias. Por isso foi condenadonacal e é acusado de exercer má influência em à fogueira, que era a punição usual para osseus confrades. hereges.Ameaçado de processo por heresia, ele fogepara Roma e depois para o norte da península. TRÊS DIÁLOGOS EM UM As obras dePor fim, ele se refugia em locais em que o ca­ Giordano Bruno, escritas na maior parte sobtolicismo não é tão predominante. Em Gênova, a forma de diálogo, são redigidas em latimele reúne-se com os calvinistas e logo entra em e italiano. O latim era a língua utilizada nasconflito com seus dirigentes, seguindo um pro­ universidades, e o italiano era importante pelocedimento que irá repetir-se frequentemente: fato de ser a língua das pessoas cultas nas cortes giordano bruno e os diálogos italianos 47

A “Roda da memória” de Giordano Bruno, dolivro De Umbris Idearum (Da sombra das ideias),tal como foi reconstruida por Frances Yates em1952. Fragmento, © Warburg Institute, londresda França e da Inglaterra. Também não é de se gosespantar que muitas de suas obras tenham sido epublicadas em italiano em Londres, quando filósofos.Bruno aí residia, entre 1584 e 1585. Em Spaccio Por isso,della bestia trionfanti (Expulsão da besta triunfan- Júpiter atri­te), três diálogos se desenrolam em dois níveis. bui a culpa à bestaDois personagens estão conversando: Saulino e “pior do que a Hidra deSofia, a Sabedoria. Mercúrio aparece em cena Lerna, que espalha seu venenoduas vezes. Sofia conta a Saulino o que está mortal por meio de uma multidão de heresias”acontendo no mundo dos deuses. Júpiter está (Lutero), e, para combatê-la, resolve enviarmudado, pois o “ano do mundo” dos trinta e Hércules à Terra. Assim, Momo, que desempe­seis mil anos de seu império estão quase termi­ nha o papel de um crítico celestial e, ao mes­nando, e o deus supremo teme ser destronado. mo tempo, de um alter ego de Bruno, formulaEntão, ele convoca os deuses e propõe uma re- soluções radicais: “Basta acabar com essa seitaforma: todas as constelações que povoam o céu de bandidos pedantes que não fazem nenhume dão testemunho de fatos antigos – principal- bem de acordo com as leis divinas e naturais,mente os fatos marcantes da volúpia dos deu­ que acham que são agradáveis aos deuses e que-ses – seriam retiradas do céu depois de serem rem ser considerados como eles; de acordo comjulgadas. Em lugar delas, seriam instaladas as seu catecismo, acham que fazer o bem é bom evirtudes, que iriam expulsar os vícios capitais e fazer o mal é mau, mas pensam que não é pelosecundários, e deveriam indicar o caminho para bem que fazem ou pelo mal que não fazem queuma renovação ética e religiosa. as pessoas se tornam dignas e agradáveis aosA passagem iminente de um século a outro (do deuses, mas sim pela esperança e pela fé.”século XVI ao XVII) constitui a razão deter­ No segundo diálogo, Bruno passa a palavra aminante desse diálogo, que se relaciona dire­ Sofia: “Júpiter deu ordem para que o julga­tamente com a Reforma. O diálogo alegórico mento se realize: ele a deu e ordenou a fim derelativamente longo foi ressaltado pelos ataques descobrir se é verdade que eles (os católicosferozes dos heterodoxos, principalmente teólo- tradicionalistas) incitam o povo a desprezar os48 pentagrama 1/2011


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook