lugar azo uma performance audiovisual pseudo-sinestésica nicole karniol lambert pontifícia universidade católica de são paulo faculdade de filosofia, comunicação, letras e artes comunicação e multimeios são paulo 2020 1
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lugar azo uma performance audiovisual pseudo-sinestésica nicole karniol lambert Memorial apresentado para a conclusão da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso II, Curso de Comunicação e Multimeios da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Orientadora: Profa. Dra. Elisabete Alfeld
lugar azo uma performance audiovisual pseudo-sinestésica aprovada em __/__/__ banca examinadora _______________________ prof. dra. elisabete alfeld PUC SP _______________________ prof. dr. marcus vinicius fainer bastos PUC SP _______________________ prof. dr. sérgio roclaw basbaum PUC SP
“we might of course say — especially as performers — that we “really don’t care” and that we are “more interested in doing than explaining.” (CARVALHO; LUNDS, 2015, p. 8)
agradecimentos À Katara, ironicamente agradeço em primeira mão, o ser que me tirou dos trilhos durante facção deste projeto. Agradecida pela companhia nas manhãs, tardes, noites e madrugadas e, principalmente, por ainda estar comigo neste plano. À minha mãe, pelo apoio incondicional que sempre depositou em meu caminho mesmo sem nem imaginar para onde poderia apontar. Sempre na tentativa do meu não-surto e torcida. Por deixar claro que eu podia pedir ajuda e também por me ajudar, por estar firme e perto, mesmo longe. Pelos macarrões com cogumelo enquanto lia e produzia, pelos croissants com chocolate e todo o amor do mundo. Pela alegria de quase me rolar na areia ao passar na faculdade ter permeado todos os anos em que estive na mesma. Aos meus avós, Marcos e Rebeca, por me proporcionarem esta graduação e por estarem ao meu lado, sempre vibrantes e curiosos. Nem com este projeto consegui com que entendessem o que estudei, isso é multimeios. Ao Alan, meu amigo-comparsa dessa e de algumas outras vidas, profissionalmente e pessoalmente, pelos projetos que surgiram em meio a este e outros, por toda ajuda e suporte, pela assiduidade e admiração recíproca e todas as trocas possíveis e necessárias. À Camilla, por toda a força, perto no começo e a 10.500 km de distância no final. Por ser um grande e enorme pedaço meu, que transborda amor e arte, perambulando outros lados do oceano. Por me inspirar e me ver com os olhos que somente ela tem. E, principalmente, por sentir felicidade com a minha felicidade.
À minha irmã Krol por todo companheirismo diário e apoio necessário. Por alguns estresses também porque é assim que a gente aprende que a vida não é bolinho. A futura pedagoga da família que me disse inúmeras vezes que, em algum momento, teria de parar de ler e começar a fazer. À Bella, Bruna, Viviana e Yasmin, que me acompanham de outras formações e com certeza outras vidas por, diariamente, serem um punho de muita força, colocando sempre meus vagões nos trilhos. Por todos os “vai que vai” mesmo sem entender o que eu estava fazendo, por todas as trocas e diferenças, regadas de coincidências e amor genuíno. À Julia e à Luiza, o casal mais amado por mim, que se dedicou de todas as formas possíveis a me ajudar em tudo o que precisei. Por todo companheirismo, inclusive em alguns nascer do sol. Pelos dias, noites e madrugadas em vídeo-chamada e pessoalmente, ouvindo as confusões e inseguranças que permearam minha cabeça durante o processo maluco de TCC. Por em meio a pandemia terem conquistado um lugar ainda mais profundo dentro do meu coração. Pela torta de frango com meu nome, também. Ao Teti e ao Sill, meus irmãos de outras mães que também me acompanham de outras formações. Por se fazerem presentes neste processo das formas mais inesperadas. Por me proporcionarem distrações extremamente necessárias sempre recheadas de risadas e carinho. Ao Arthur, Igor, Macarena e Nathan por todos os anos de parceria e amores vividos nessa faculdade e curso. Por todos os projetos que surgiram dentro e fora da universidade. Por serem minha duplinha de cinco.
À Ligia e à Mari, por terem pegado na minha mão e não terem largado mais, por todo afeto virtual que este ano careceu. Pelas manhãs de yoga, tardes de estudos, revisões de projeto e conversas profundas, pelas noites jogando, conversando e cantando e pelas noites de consolo e ajuda em meio aos demônios e às delícias que este projeto me proporcionou. Por toda força e incentivo acompanhadas de muito companheirismo. À Amanda, Julia, Larissa, Luiza e Luiza por serem as amigas que sempre pedi pra ter. Por terem convivido comigo e me apoiado diariamente nesses anos de graduação. Por todo apoio e todo amor em todas as caminhadas dessa vida. À Bete, por toda paciência e dedicação, por me responder nos horários malucos que a pandemia e o TCC me fizeram adotar. Pelo “mãos à obra, vamos fazer esse projeto!” quando achei que não seria possível. Por abraçar e acreditar no meu projeto (e em mim) depois de muita frustração. Por último mas não menos importante, ao Marcus, por ao longo destes quatro anos de graduação ter sido um professor que me cativou a estudar, arriscar e explorar, por estar sempre presente e sempre incrivelmente disposto a me ouvir e também me ajudar, nas mais inesperadas horas e momentos. Por inspirar a mim e aos meus colegas de turma de forma que nem imagina. O seu trabalho é muito especial, Marcus, e sei que o faz com muita dedicação.
resumo O presente memorial teve como objetivo a produção de uma performance audiovisual pseudo-sinestésica, intitulada LUGAR AZO. Para tanto, realizou-se um estudo sobre a sinestesia na arte, tendo obras sinestésicas como aquelas que abordam dois ou mais sentidos. A performance consiste na criação de um lugar efêmero, sinestésico e imersivo ao espectador, focando nos sentidos da visão, audição e olfato, a partir de experimentações feitas ao vivo com vídeo, som e cheiro. O visual se dá com base em um estudo sobre a possível abstração através da pós-produção; a parte sonora através do estudo das ondas de baixa frequência e a possibilidade de acessar um outro sentido, sendo ele o tato; e o olfato realiza-se através de um estudo sobre cheiro, memória e sabor. Palavras-chave: Performance, audiovisual, efêmero, sinestesia.
abstract The purpose of this memorial was to produce a pseudo-synesthetic audiovisual performance, entitled LUGAR AZO. Therefore, a study was conducted on synesthesia in the field of art, with synesthetic works such as those that address two or more senses. The performance consists on creating an ephemeral, synesthetic and immersive place for the viewer, focusing on the senses of sight, hearing and smell, based on experiments performed live with video, sound and smell. The visual is based on a study of possible abstraction through post-production; the sound part through the study of low frequency waves and the possibility of accessing another sense, being the touch; and smell is accomplished through a study of smell, memory and taste. Key-words: Performance, audiovisual, ephemeral, synesthesia.
Fg. 1 Cartaz de divulgação 36 Fg. 2 Foto da obra Solomon’s Case 37 Fg. 3 Foto do Órgão de Emoção 39 Fg. 4 Foto do Órgão de Emoção 39 Fg. 5 Foto da performance “Lumière I” 61 Fg. 6 Foto da performance “Lumière I” 61 Fg. 7 Foto da performance “Paisagem Digital” 62 Fg. 8 Foto da performance “_zero point two” 63 Fg. 9 Foto da performance “Indeterminada” 63 Fg. 10 Foto da performance “a.cinema” 64 Fg. 11 Frame da performance “Água” 65 Fg. 12 Frame da performance “Água” 65 Fg. 13 Foto da instalação “Osmodrama” 66 Fg. 14 Foto da instalação “Osmodrama” 66 Fg. 15 Foto da obra “Olfactoric Memory” 67 Fg. 16 Experimentação de tinta na água 70 Fg. 17 Três cores diferentes nas seringas 70 Fg. 18 Exemplo de tinta na água gravada 71 Fg. 19 Exemplo de sons gravados 71 Fg. 20 Materiais necessários para a produção de cheiros 72 Fg. 21 Perfumes prontos 72 Fg. 22 Planta expográfica 73 Fg. 23 Frame 1 original 78
Fg. 24 Frame 1 editado 78 Fg. 25 Frame 2 original 79 Fg. 26 Frame 2 editado 79 Fg. 27 Frame 3 original 80 Fg. 28 Frame 3 editado 80 Fg. 29 Frame 4 original 81 Fg. 30 Frame 4 editado 81 Fg. 31 Frame 5 original 82 Fg. 32 Frame 5 editado 82 Fg. 33 Exemplo de curvas do frame 5 83 Fg. 34 Exemplo de Matiz vs. matiz do frame 5 83 Fg. 35 Exemplo de correções básicas do frame 5 84
introdução 20 o acaso das possibilidades 24 26 performance como meio audiovisual 28 ao: vivo sinestesia 30 31 fenômeno neurológico X busca artística 36 a pseudo-sinestesia em prática o uso da pós-produção como possível abstracionismo 40 arte.sonora.experimental 46 49 o som e o sentido o cheiro 52 55 cheiro é sentido individual? conceituação da obra 58 etapas de realização 68 pós-produção 76 estratégias de visibilidade 86 considerações finais 88 referências bibliográficas 90
introdução LUGAR AZO é uma pesquisa que se consolida por meio de uma performance audiovisual, pensada e desenvolvida visando a discussão e experimentação acerca da sinestesia na arte. Em vanguardas artísticas sempre existiram experimentações ao vivo, em especial na década de 50 surgem a experimentações ao vivo acerca da linguagem audiovisual. Tomando como exemplo o grupo Fluxus, que originalmente nomeou uma publicação da vanguarda artística, mas logo em seguida passou a caracterizar uma série de performances produzidas pelos EUA, tendo como seu momento mais ativo o entre as décadas 60 e 70. Com a evolução das tecnologias até então existentes e surgimento de novas outras, Ana Carvalho (2012) disserta: Desde 2005 que se vêm movendo esforços no sentido de contribuir para o desenvolvimento e reconhecimento da performance audiovisual ao vivo como expressão resultante de um desenvolvimento histórico na convergência entre tecnologia, arte e percepção. (CARVALHO, 2012, p. 11) Atualmente, a performance audiovisual tem ganhado espaço dentro das cenas independentes artísticas brasileiras. Sabendo-se que obras sinestésicas são aquelas que abordam quaisquer dois ou mais sentidos, neste trabalho de conclusão de curso me propus a explorar o sentidos da audição, visão e olfato. A partir do uso das linguagens convencionais da performance audiovisual, som e imagens em movimento, que exploram respectivamente os sentidos da audição e visão. Não se limitando a estes, o trabalho expande-se também ao sentido do olfato a partir da emissão de odores. O Brasil possui grande área de pesquisa acerca do tema da performance audiovisual, embora ainda seja difícil encontrar grandes eventos e até mesmo reconhecimento para os artistas que buscam trabalhar com este tipo de linguagem. Como citado anteriormente, a performance tem ganhado espaço na cena independente 21
artística brasileira, sendo possível o acesso por meio de pequenos eventos muitas vezes organizados pelos próprios artistas. Os espectadores costumam ser artistas que também produzem performances, pesquisadores da área e pessoas que se visam produtos audiovisuais que perpassam por limites experimentais. Outro público possível é aquele derivado de outras linguagens e áreas da arte ou comunicação que, a partir de seus objetos de estudo ou de interesse, acabam por encontrar produções deste meio. Este trabalho deu conta de sustentar investigações advindas da vontade da artista, procurando expandir o conhecimento teórico acerca dos temas que o envolvem. Visando dessa forma acrescentar sua própria prática. Sua estrutura divide- se em em cinco capítulos. O primeiro se propôs a tratar da arte da performance e seus desdobramentos, abordando a arte da performance e seu possível caráter efêmero, também propondo a necessidade da troca entre o artista e o espectador. O segundo capítulo aborda o conceito de sinestesia, expondo sua definição científica, explorando sua utilização dentro do campo artístico e propondo uma discussão a respeito do uso do conceito de pseudo-sinestesia para se tratar das obras de arte feitas por artistas não-sinestetas. O terceiro capítulo discute o uso da pós-produção como possível meio para o abstracionismo, a fim de sustentar as ideias contidas na obra final para o sentido da visão. O quarto capítulo aborda a arte sonora e a música experimental, questionando o uso dos graves e ondas de baixa frequência com a finalidade da extrapolação da linguagem, propondo que exista na relação som-corpo, um novo sentido. Por fim, o quinto capítulo aborda o olfato e a sua relação com a memória, cientificamente e subjetivamente, também propondo uma ligação direta entre o olfato e o sabor. A materialização desta pesquisa se deu por meio de uma performance audiovisual intitulada “LUGAR AZO”. A proposta desta performance consistiu na criação de um lugar que teve como objetivo proporcionar uma possível experiência sinestésica ao espectador, através de experimentações com vídeo, som e cheiro, que foram produzidos simultaneamente ao decorrer da pesquisa teórica. 22
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o acaso das possibilidades Neste capítulo será abordada a arte da performance, primeiramente, contextualizando brevemente, sem uma linha temporal propriamente dita, sendo que a finalidade da contextualização é somente buscar explorar possíveis diálogos com o tema principal desta pesquisa. Por fim, o capítulo apontará a performance no meio audiovisual e seus escopos, tanto por formato quanto por sua efemeridade. “Performance é um nome genérico herdado do inglês, no campo da arte refere-se a eventos com a presença humana.” (MORAN; CARVALHO. 2011, p.4) A performance como arte surge no começo do século XX, se consolidando com o movimento futurista, na Itália. Roselee Goldberg, em seu livro “A Arte da Performance” (2012), disserta sobre a admiração de Marinetti1 pela performance, por considerá-la anti acadêmica, primitiva e ingênua, abrindo espaço ao inesperado. Aqui viso por não dar o enfoque que a autora Roselee Goldberg dá ao futurismo, a fim de não mascarar a complexidade que cercava os primórdios de tais apresentações futuristas, que possuíram alinhamento direto ao fascismo italiano. Ao mesmo tempo em que a performance tornava-se uma crescente na Itália, em 1911, Alexander Scriabin, compositor e pianista russo, apresenta sua performance “Prometeus, o poema do fogo” (1911), na qual concebe o “órgão de cores”, um instrumento que tinha como finalidade projetar luzes de diferentes cores em uma tela por trás da orquestra, a fim de “traduzir” visualmente o que a orquestra dramatizava no som. Wassily Kandinsky, em 1909 cria sua peça experimental Der Gelbe Klang (1909), em português “O som amarelo”2, em que o artista russo destaca a cor, o movimento e a música. Em ambos trabalhos, de Scriabin e Kandinsky, abordam-se a teoria da cor (e sua correspondência com o som), a sinestesia e múltiplas formas de arte e mídia, utilizando-se de técnicas de iluminação e inovações para estender sua gama de expressões artísticas. Tendo apresentado o começo do que foi nominado de arte da performance, 1 Autor do “Manifesto Futurista” (1909) 2 Tradução livre. 25
pretendo abordar a performance no contexto da contemporaneidade, quando os meios tecnológicos tornam-se extensões de nossos corpos e a tecnologia passa a ser vista como um novo caminho estimulante para a arte da performance por alguns artistas; a performance com vídeo ganha mais espaço no mundo artístico, tornando-se uma crescente. A expressão “arte da performance” passa a abraçar qualquer apresentação artística que se dê ao vivo. O público consumidor de arte passa a desejar a presença do artista em museus, tanto quanto deseja a contemplação das obras. No século XXI a performance é moldada com a mesma intensidade que foi moldada no século passado; com grande fluidez multidimensional, multidisciplinar e atrelada diretamente à fluidez de uma mídia emergente com artistas emergentes. Aqui, a internet torna-se um enorme facilitador de tal fluidez, plataformas online gratuitas como Vimeo e Youtube são de enorme importância para que seus registros percorram em diferentes cidades e países. Portanto, segundo Roselee Goldberg: “A performance continua refratária à definição, tão imprevisível e provocadora como sempre”. (2012; p.242) Performance como meio audiovisual Ao falarmos do meio audiovisual estamos diretamente falando da conexão de áudio e de visual, sendo que dentro deste podemos encontrar diversos desdobramentos artísticos e não-artísticos. Os trabalhos artísticos deste meio encontram-se em constante desenvolvimento e descoberta, aqui irei me referir ao audiovisual ao vivo e/ ou as performances que utilizam-se do audiovisual em sua produção. De uma performance audiovisual há a potencial entrega de uma linguagem carregada de sentidos históricos e culturais, levando em consideração a herança secular da arte da performance. Ao atrelar a performance com as tecnologias atuais utilizadas em recentes obras audiovisuais o espectador pode receber tal obra de forma mais imersiva, tendo em vista que este, na maioria das vezes, está em um ambiente criado pelo artista. Os componentes áudio e imagem em movimento traduzem-se em forma de diálogo no momento performativo, a fim de entregar uma experiência, na 26
maioria das vezes, multissensorial e única. Em seu artigo “Experiência e fruição nas práticas da performance audiovisual ao vivo”, Ana Carvalho diz: Performance audiovisual ao vivo, é um conjunto de práticas artísticas interdisciplinares com pontos de cruzamento comuns; é um conjunto de práticas performativas, contextualizado como pertencendo a um outro conjunto, mais abrangente, que também compreende as práticas de expressão corporal ou de ação, que implicam a presença de um ou mais artistas e de espectadores; é um conjunto que recorre das características que definem um evento ao vivo, pois embora muitas vezes existam bases de dados e possivelmente uma pauta de composição, tal como um concerto de música, cada apresentação é um momento impossível de repetir; por último, é um conjunto de práticas que são essencialmente constituídas por estímulos sensoriais áudio e visual. (CARVALHO, 2012. p. 233) Steve Dixon em seu livro “Digital Performance” (2007) disserta sobre a performance digital [..] ser uma extensão de uma história contínua de adoção e adaptação de tecnologias para aumentar a performance e o efeito estético das artes visuais e a sensação de espetáculo, seu impacto emocional e sensorial, seu jogo de significados e associações simbólicas e seu poder intelectual. (DIXON, 2007 p. 40, tradução nossa)3 Ou seja, em formato de performance a linguagem audiovisual assume caráter de espetáculo “digital”, a presença da arte e do artista no mesmo ambiente ressignifica a 3 Tradução livre “is an extension of a continuing history of the adoption and adaptation of technologies to increase performance and visual art’s aesthetic effect and sense of spec- tacle, its emotional and sensorial impact, its play of meanings and symbolic associations, and its intellectual power.” (DIXON, 2007, p. 40) 27
arte visual com o até então somente valor de culto, o audiovisual como performance passa a ter além do valor de culto, a necessidade de experienciar algo único, porque jamais será capaz de ser reproduzido da exata mesma maneira. Ao: vivo A arte da performance é efêmera, ou seja, passageira, temporária e transitória. Tratando-se do contexto performativo é perceptível a relação entre o artista e sua audiência, sendo dessemelhante à arte-objeto4, na qual o espectador tem o objetivo de contemplar e interpretar, normalmente direcionado ao espaço em que a obra ocupa. Na performance, ou arte-momento5 o espectador se depara com o momento, no qual a obra encontra-se ali por tempo determinado, de forma efêmera e com dinâmicas pertencentes a um certo propósito, “Todos – momento, espectadores e artistas – são, portanto, posições instáveis e efêmeras.” (CARVALHO; 2012, p. 20) Ana Carvalho, em sua dissertação “A materialidade do efémero” (2012), define três condições para que a performance aconteça, sendo a primeira o “ao vivo” que se dá como a prática da arte-momento; a segunda a presença do artista; e por último a interdisciplinaridade, que propõe cruzamento entre conhecimentos. (p. 47); Considero a interdisciplinaridade também como um cruzamento de mídias e meios, utilizados muitas vezes em performances audiovisuais da atualidade, podendo até mesmo ser consideradas performances multimídias, nas quais faz-se o uso de linguagens que vão além do áudio e do visual. Ao vivo no português e live em inglês refere-se à simultaneidade entre o acontecimento e sua transmissão. (…) O ao vivo têm frescor, como no jornalismo de primeira mão, entradas ao vivo na TV primam pela novidade, é uma primeira apresentação em que há a novidade do fato e a espontaneidade da câmera. (MORAN; CARVALHO, 2011, p. 2) 4 Conceito utilizado por Ana Carvalho em “A materialidade do efémero” (2012 p. 19-20). 5 Conceito utilizado por Ana Carvalho em “A materialidade do efémero” (2012 p. 19-20). 28
As autoras discorrem sobre o poder do ao vivo e o que faz com que seja desejado por um público que procura por arte-momento; a performance ao vivo está sujeita ao acaso das possibilidades e permite aos seus espectadores que possam experienciar a obra enquanto é feita. Ela está sendo produzida e manipulada enquanto o público experiencía e assiste sendo que, assim que acabar, não existirá mais, ou pelo menos, não da mesma forma em que se deu naquele momento específico. Passa então a existir somente em registros que, por sua vez, costumam não apresentar realidade total. As performances de imagem e som no vídeo ao vivo não são produtos audiovisuais acabados, feitos para serem vistos pelo monitor de TV. Há nessas propostas o diálogo criativo com o conceito de improvisação, da obra em aberto, do efêmero e da impermanência do trabalho artístico. (MELLO; 2008, p. 155). O artista ali presente assegura a concomitância entre a realização e a exibição. O artista está presente’ (…) Sem o artista, o que era oferecido aos espectadores seria algo semelhante à exibição de um filme ou a um qualquer evento pré gravado. (…) “A audiência espera experienciar a aura” (Thornton, 1996, p. 81). A performance poderá ser mais ou menos ensaiada, com mais ou menos componentes de manipulação e de pré-gravação, ou poderá ser completamente improvisada. A metodologia encontrada em nada destitui a performance da sua legitimidade. (CARVALHO, 2012, p. 48) Portanto, na arte-momento, o público acaba por ser também um legitimador, assim como os artistas. Existe um valor de culto mas também um valor de experimentação, que é fundamental para que a obra exista. 29
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sinestesia Neste capítulo será abordado o tema da sinestesia, primeiramente apresentando o que é a sinestesia, depois debatendo sobre a diferença entre a sinestesia como fenômeno neurológico e a sinestesia na arte. Por fim, serão explorados os sentidos da visão, audição e olfato, que foram disparadores para a realização da obra final contida neste trabalho. A palavra sinestesia vem do grego “synaísthesis”, que significa “sentir junto”. A etimologia de syn é “ao mesmo tempo”, “junto”, “união”, e esthesia é “sensação”, “percepção”. A sinestesia é uma condição neurológica que se dá através do misto de sentidos. Pessoas não-sinestetas estão acostumadas a sentir uma sensação por vez, se um copo de água está sendo ingerido, ali se dá somente o gosto da água e nada mais. Já os sinestetas, podem, ao sentir um gosto, ver cores, formas, ouvir sons, sentir algo além do gosto, e vice-versa. Na arte, a sinestesia pode por muitas vezes acabar por ter outras interpretações, pois a arte está sempre sujeita às metáforas. Fenômeno neurológico X busca artística A sinestesia pode ser compreendida de diversas formas, diferentes autores apresentam diferentes perspectivas acerca de que forma a sinestesia pode ser definida, pensada e conceituada. Segundo Sérgio Basbaum, a sinestesia pode ser dividida em categorias, entre elas: sinestesia fenômeno-neurológica, sinestesia na arte, depoimentos em primeira pessoa de experiências s e metáforas sinestésicas. Neste capítulo pretendo discutir a sinestesia enquanto fenômeno neurológico e a sinestesia dentro do campo das artes. A “sinestesia fenômeno-neurológica, reúne todas as abordagens que dizem respeito à percepção sinestésica, distinguindo sinestesia constitutiva, sinestesia induzida pelo uso de drogas, sinestesia adquirida, associações cross-modais em não sinestetas” e a “sinestesia na arte: reúne as propostas e/ou realizações artísticas que buscam de alguma forma e deliberadamente, as fusões de dois ou mais sentidos” (BASBAUM, 2002, p. 28). 31
Enquanto fenômeno neurológico a sinestesia demorou para começar a ser investigada, pois acreditava-se que a sinestesia se daria por influências da infância, como por exemplo, se brinquei com cubos alfabéticos coloridos, isto poderia me induzir a ver tal letra de tal cor. Um pouco mais tarde, descobriu-se que a sinestesia realmente se dá na infância, mas não necessariamente por influência de formas, cores e sons apresentados à criança, e sim por ser um fenômeno neurológico. Rebeca Torrezani, em sua dissertação “Ouver - a relação entre a cor e o som na percepção (2008)” relata de forma mais detalhada as características que definem a sinestesia como condição neurológica, fazendo uso de Cytowic, Bragança, Cohen-Kadosh e Henik para fundamentá-las. De acordo com Rebeca, a sinestesia é involuntária e automática, não sendo então uma decisão consciente ou racional, e sim uma experiência passível; é consistente, ou seja, a sensação despertada pelo estímulo não se altera com o tempo, então se um sinesteta sente gosto de cereja ao ver a cor vermelha, é possível que sinta isto sem fim à vista; é idiossincrática, manifestando- se de maneira pessoal para um mesmo estímulo, se um sinesteta vê a letra “A” vermelha, não necessariamente todos os sinestetas veriam a letra “A” vermelha; é aditiva, sendo assim, não substitui nem mascara a percepção normal; e é unidirecional para a maior parte dos sinestetas, logo, um número pode despertar uma cor, mas não necessariamente esta cor despertará o mesmo número (TORREZANI, 2018). A busca artística dentro do campo da sinestesia se manifesta a partir de mais uma ramificação teórica, com divergências, pensamentos complementares e até mesmo opostos. Segundo Bergantini (2016), a sinestesia na arte pode ser vista como a arte feita por sinestetas; o sinesteta não-artista como espectador, que está sujeito à diversos modos de apreciação artística a partir de uma mesma obra; e as obras artísticas sinestésicas, que podem ser executadas por artistas não-sinestetas mas a fim de expressar a ideia da sinestesia ou até mesmo induzir o espectador a união de dois ou mais sentidos. Alguns pesquisadores afirmam que grandes pintores poderiam ser possíveis sinestetas, como Kandinsky, David Hockney e até mesmo Van Gogh, tais afirmações são feitas com base em relatos, cartas e informações deixadas pelos próprios pintores. 32
Em meados de 1925 já se discutia a relação entre os sentidos na arte, ano em que o padre jesuíta Louis-Bertrand Castel criou seu cravo de cores consolidando as relações ficcionais entre música e cor. Em seu cravo de cores Castel corresponde cada tecla a uma cor, ao acionar o teclado, cada nota acabava por levantar um pequeno espelho que refletia determinada cor. Desde então, aparelhos com a mesma finalidade foram criados, por nomes como Bainbridge Bishop, William Schooling, Thomas Wilfred, Alexander Wallace Rimington, o último acabou por criar o instrumento que causou maior impacto dentre eles. Estes artistas-criadores ainda acreditavam na correspondência direta entre os sentidos como uma possível metáfora da sinestesia, já Basbaum, em seu livro “Sinestesia, arte e tecnologia — fundamentos da cromossonia” diz que [...] se estamos falando da sinestesia na arte, convém, ao menos correr os olhos - de maneira não ostensiva - por sobre momentos em que a sinestesia surgiu como metáfora, estimulando e enriquecendo uma determinada linguagem artística, relacionada a uma modalidade perceptiva, com procedimentos e analogias que remetem a uma outra, sem que haja um estímulo direto a ambas. (BASBAUM, 2002, p. 57) Em outras palavras, se antes acreditava-se ser necessário um estímulo simultaneamente correspondente, agora é possível considerar na expressão da sinestesia, obras que remetem a dois ou mais sentidos somente, sem a necessidade de uma correspondência simultânea. Portanto, através da metáfora sinestésica ou a pseudo-sinestesia (conceito a ser explicado), a experiência sinestésica pôde ser “visível” aos outros, ela acaba por se tornar comunicável e expor a visão pessoal de cada um que a compartilha. O artista que usa a sinestesia como metáfora em suas obras tem a intenção de explorar diferentes sentidos e sensações, convidando o espectador para tal provocação. Tal visão pessoal é dada de diferentes formas, a visão e junção pessoal do artista- criador, que é desenvolvida durante a criação de sua obra que se dá através de sentidos que o mesmo propõe, e a recepção e junção particular de cada pessoa 33
que presencia tal experiência, que podem ser na maioria das vezes, diferentes. Basbaum em seu livro considera o conceito de “pseudo-sinestesia” estabelecido por Baron-Cohen e Harrison sendo ele a “Metáfora como pseudo-sinestesia: os trabalhos de arte, por exemplo, nos quais a sensação associada à determinada modalidade sensória é traduzida em signos relativos a uma modalidade diversa” (BASBAUM, 2002, p. 27) sendo assim, a tradução destes signos em relação à modalidade sensória concederia o sentido da metáfora no que, por eles, é chamado de pseudo-sinestesia, conceito que aqui irei fazer uso para nominar e classificar as obras produzidas por artistas não-sinestetas. Sean A. Day, autor do livro Synesthetes: a handbook, em seu site, possui uma página que nomeia como “famous syns” e nesta página, separa autores e artistas em diferentes páginas, chamadas de true synesthete artists, true synesthete authores, true synesthete composers and musicians e pseudo-synesthete authors, pseudo-synesthete composers and musicians. Entre os artistas que Sean Day considera verdadeiros sinestetas, temos nomes como David Hockney, Carrie Firman e Marcia Smilack, já entre os artistas considerados pseudo-sinestetas temos Sofia Gubaidulina, Miles Davis e Alexander Scriabin. O autor usa o termo pseudo-sinestesia, assim como Baron-Cohen, Harrison e Basbaum, para nomear as obras que fazem uso da metáfora sinestésica em sua concepção. Nas últimas décadas, artistas do mundo todo acabaram por fazer uso do termo sinestesia para nomear e conceituar seus trabalhos que fazem uso de dois ou mais sentidos. Desde então, se intensificou a pesquisa para com os aspectos de percepção e cognitivos nas obras artísticas, para Julio Plaza, “As noções de interação, interatividade e multisensorialidade intersectam-se e retroalimentam as relações entre arte e tecnologia” (PLAZA, 2003, p.17) assim também, como a presença do espectador se torna fundamental para falar de percepção e cognição, como citado acima, o meio do artista-criador pode não ser a mensagem recebida por quem assiste sua obra, podendo haver diversas interpretações. Sendo assim, é possível relacionar com o fenômeno neurológico da sinestesia, pois os sinestetas estão propensos a diferentes e diversas combinações diferentes de sentidos. Plaza em seu artigo “Arte e interatividade: Autor-obra-recepção (1990)” comenta 34
sobre as polêmicas após a exposição Cybernetic Serendipity que ocorreu em Londres no ano de 1968, as mesmas giravam em torno dos questionamentos de se o computador poderia fazer arte ou se as obras de arte criadas a partir de computadores poderiam possuir valor estético. Algumas décadas depois, estes questionamentos podem nos soar até absurdos já que nos dias atuais lidamos com a arte digital de maneira direta e sua validação não é questionada. Em 2008, Carla Patrícia Magalhães Presa discute em seu artigo de mestrado “Sinestesia na arte” sobre a era digital e as consequências dos novos aparatos tecnológicos, A Era Digital é considerada a era da interactividade e da realidade virtual, onde surgem os ambientes imersivos, permitindo ao utilizador experiências nas que participam todos os seus sentidos, e por tanto torna-se possível os cruzamentos destes, logo, a sinestesia estará cada vez mais presente nesta era. A evolução tecnológica abriu novas portas aos artistas para estes conseguirem da melhor maneira expor e criar as suas obras. O aparecimento de interfaces hápticas, sensores, hologramas ou capacetes de realidade virtual, são alguns exemplos de tecnologia usada para superar os limites da imaginação, para criar reacções interactivas e assim provocar um ambiente sinestésico, tanto para o artista, no acto de criar, como para o utilizador, que vai emergir por completo na obra. Por estas razões, a sinestesia na arte está cada vez mais em voga. (PRESA, 2008, p. 84) Aqui vemos um pensamento totalmente diferente dos que ainda se davam no ano de 1968, e podemos ver que as inovações tecnológicas não só podem fazer arte, como podem ajudar artistas a chegarem em campos cognitivos e de sentidos que não seriam possíveis sem os mesmos. A arte pseudo-sinestésica faz uso destas inovações tecnológicas principalmente ao querer proporcionar mais de dois sentidos ao mesmo tempo para um espectador. “Ainda aqui, ciência e criação convergem” (BASBAUM, 2002, p.160). 35
A pseudo-sinestesia em prática Artecittá é uma fundação internacional que visa a promoção do estudo, investigação, desenvolvimento, promoção e divulgação da arte contemporânea. A fundação já conta com mais de seis congressos internacionais de arte e sinestesia, em que encontram-se artistas, neurologistas, músicos, entre outros pesquisadores da área, vindos de diferentes partes do mundo. Além de realizar os congressos, realizam eventos como o “MuVi”, um festival de vídeos e imagens em movimento na sinestesia e visual music. Em 2019, colaboraram com a “II Conferência Internacional da Associação Internacional de Sinestetas, Artistas e Cientistas (IASAS)” organizada pela faculdade estadual de psicologia e educação de Moscow, contando com a colaboração também de The Russian Synaesthesia Community, Playtronica (um grupo que explora a curiosidade usando música, jogos e oportunidades criativas, fazendo uso de toques e materiais condutores para transformá-los em som), entre outros. Figura 1: cartaz de divulgação da II Conferência Internacional da Associação Internacional de Sinestetas, Artistas e Cientistas. Fonte: http://www.synaesthesia.ru/ O evento contou com Richard Cytowic como palestrante e reuniu artistas de diversos lugares com diferentes obras, dentre elas, uma obra que me chamou bastante atenção foi a do artista MastroKristo, sua instalação “Solomon’s Case” (2019). Por meio da instalação, o artista tenta criar experiências diversas para o 36
espectador, convidando-o a experienciar o fenômeno da sinestesia por meio de uma experiência interativa em que se faz o uso de todos seus sentidos. Ele propõe instigar a visão por meio de pinturas digitais, a audição através de uma trilha sonora original, o olfato através de perfumes, o paladar é instigado por bebidas e o tato por meio de construções em madeiras esculpidas. A obra além de explorar a sinestesia, trouxe consigo a exploração de vida de um famoso sinesteta, Solomon V. Shereskevsky. As descrições sinestésicas de Solomon para os seis números foi o que motivou o artista a criar seis pinturas digitais e seis peças musicais. Assim então, o espectador está assistindo a seis pinturas digitais, que podem ouvir, provar, cheirar e tocar. Figura 2: retirada do vídeo de apresentação da obra publicado pelo próprio artista. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=sBIvgQBCkOQ&ab_channel=%CE%BCastroKristo) Partindo de obras que abordam mais de dois sentidos, a artista Amanda Steggell criou em 2006 uma máquina chamada “The emotion organ”, em tradução livre, o órgão da emoção, considerado pela artista uma máquina de simulacro sinestésico onde o espectador pode explorar a interação do sentir, ver, ouvir, cheirar e mover. É uma máquina de 1895 reprojetada combinando a tecnologia antiga e a tecnologia emergente. A artista diz se basear em uma trajetória de vários séculos de ideias sobre fenômenos sinestésicos. Sem eletricidade, o órgão da emoção pode ser tocado como 37
um instrumento musical convencional, mas quando conectado à eletricidade, o órgão produz combinações e intensidades variadas de som, luz, cor, perfume, vibração e movimento. Quando acionado, estimula uma imersão sensorial de causa e efeito altamente subjetivos. A subjetividade do espectador é modulada por meio dos efeitos visuais hipnóticos de uma tela de hélice, sons emitidos pelo instrumento e os odores emitidos. 38
Figura 3: retirada do http://www.liveart.org/motherboard/synaesthesia/EMO/EMO_main_how.html, Órgão de Emoção visto de trás, explicando detalhadamente o que cada coisa faz/representa Figura 4: retirada do http://www.liveart.org/motherboard/synaesthesia/EMO/EMO_main_how.html, Órgão de Emoção visto de frente, explicando detalhadamente o que cada coisa representa/faz 39
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o uso da pós-produção como possível abstracionismo Neste capítulo será abordado o uso da pós-produção, sendo ela por meio de softwares de edição a fim de criar abstrações com captações do mundo real e seus signos. A arte de transformar o real em algo abstrato é o principal fundamento visual desta pesquisa e projeto, a finalidade de construir o abstrato a partir de algo real tem como principal propósito a desconstrução do real. Nicolas Bourriaud em seu livro “Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo” (2009) disserta sobre a experiência no campo das artes sonoras, no qual através de um som qualquer é possível modificá-lo com a função de alcançar seu objetivo, É possível produzir uma obra musical sem saber tocar uma única nota, utilizando os discos existentes. De modo mais geral, o consumidor costumiza e adapta os produtos comprados à sua personalidade e às suas necessidades. (BOURRIAUD, 2009 p. 41) Com a imagem é capaz de acontecer o mesmo. A partir de captações do real é possível corromper e desfragmentar até que a imagem original não tenha vínculo direto com o que foi modificado. Bourriaud também comenta sobre Duchamp e sua emblemática obra “A Fonte” (1917), em que o artista dá outro sentido à um mictório e o transforma em peça artística, o sentido aqui é outro, mas ambos partem do mesmo princípio, a modificação do signo originário. Tratando de procedimentos que contam com a transformação e ressignificação do real, Christine Mello discorre: Diferentemente da geração pioneira que trabalhou com o tempo real do vídeo, a tendência geral desse período é fragmentar o corpo e decompô-lo em um ritmo alucinante. Da reconstituição desses fragmentos, surge uma nova visão de organismo e uma nova 41
possibilidade imagética para o corpo, que acolhe em sua constituição sígnica toda ordem de interferência no vídeo. Nesses procedimentos, o corpo é reticulado, multifacetado e segmentado. Os inúmeros efeitos introduzidos pelo computador na edição, as alterações de velocidade, as fusões, os frenéticos movimentos de câmera e os compassos ritmados dos cortes impedem que o corpo seja visto nas variações lineares do tempo real. (MELLO, 2008. p.147) Na citação acima a autora faz alusão ao corpo como objeto a ser fragmentado, reconstituído e transformado com a finalidade de uma ressignificação sígnica, faço uso desta citação para propor o pensamento desta mesma disposição para a imagem real, não ligada ao corpo, mas sim a qualquer captação possível, tornando concebível a decomposição de elementos reduzindo-os a puros símbolos. Na pós-produção, a primeira fase consiste na apropriação, isto é, a escolha entre objetos existentes, pois como se vê, não se trata mais de criar um objeto, mas de utilizar ou modificar um item escolhido segundo uma intenção específica e logo após, o próximo passo está no remix (…) Enfim, sua intenção é demonstrar que os artistas atuais não compõem, mas programam formas, no lugar de transfigurar um elemento bruto como uma tela branca, eles utilizam os dados. (CODEVILLA; 2011 p. 49) A utilização de uma possível gravação, como por exemplo, de água corrente pode ser utilizada para dar a ideia de movimento e até mesmo textura, sem que haja a necessidade de produzir uma animação propriamente dita a partir do zero, podendo ser transformada com a pós-produção em qualquer forma que se mova seguindo o movimento da água. “Com a introdução de novas ferramentas, tornaram-se mais comuns as infinitas possibilidades de criação e recriação.” (VARGAS; SOUZA. 2011 p.53) 42
Para Arnheim (1986) a análise de uma imagem classifica-se em três diferentes níveis, seriam eles: A imagem representacional, em que a representação faz busca do mais fiel possível, tratando-se do real, como fotografias ou ilustrações realistas; A imagem simbólica fazendo alusão à uma representação abstrata, atribuída à elementos que compõem uma imagem, na busca de proporcionar sensações/interpretações ao observador e; a imagem signo, que possui preocupação com a representação dos valores da imagem através de seu significado, o signo na imagem faz relação de acordo com o quão abstrata a imagem é, permitindo com que o próprio espectador defina qual sentido a imagem terá. Isto porquê o espectador pode relacionar a imagem diretamente ao seu repertório pessoal, seja ele visual ou cultural (ARNHEIM; 1986). Expondo estes pensamentos, proponho uma relação direta entre os conceitos de imagem simbólica e imagem signo pois, ao fazer alusão própria a uma imagem abstrata que proporciona sensações e interpretações, estamos diretamente dando nosso próprio sentido a tal imagem. Isto porque parte-se de um repertório pessoal, ou seja, a imagem pode estar carregada de sentidos e finalidades do criador, mas a recepção dos sentidos é pessoal e sempre será. Marlene Fortuna em seu artigo “Arte abstrata: uma comunicação peculiar” (2006) fala sobre a imagem e disserta: Ela é geradora de uma emissão plural de signos. Os recursos icônicos da arte abstrata tendem a ser “subversivos” por conta da extinção da realidade fenomênica e reconhecível. O cerne de sua natureza é procurar caminhos de inconformidade e ruptura. (FORTUNA; 2006 p.2) Nesse sentido, a arte abstrata, bem como a imagem em sua abstração, é capaz de propor diversos signos partindo de um só e abre caminhos para a extinção do reconhecível. Com o rompimento de imagens reconhecíveis pode-se propor uma nova ligação, interpretação e ressignificação de diversos símbolos e formas, derivados novamente de um repertório individual, pessoal e de sentido próprio. Fortuna discorre 43
sobre a arte abstrata como interface especial de comunicação, porque obriga tanto criadores como espectadores a realfabetizarem-se6 visualmente e familiarizar-se com uma inusitada articulação ótica (FORTUNA; 2006 p.2) Bourriaud refere-se à reapropriação cultural, colocando o artista pós-produtor como um operário da mesma. Novamente, propondo que voltemos ao caminho da transformação, tanto imagética como até mesmo sonora, a partir da pós-produção do que já se tem como existente. O que se costuma chamar “realidade” é uma montagem. Mas a montagem em que vivemos será a única possível? A partir do mesmo material (o cotidiano), pode-se criar diferentes versões da realidade. Assim, a arte contemporânea apresenta-se como uma mesa de montagem alternativa que perturba, reorganiza ou insere as formas sociais em enredos originais. O artista desprograma para reprogramar, sugerindo que existem outros usos possíveis das técnicas e ferramentas à nossa disposição. (BOURRIAUD, 2009, p.83) Em suma, o conceito de realidade pode ser pensado, e até mesmo re-criado, para uma nova noção do real. Os artistas que tem como finalidade a distorção e reconstrução do real possivelmente se enquadrem como criadores de novos contextos e novas visões. A partir dos conceitos apresentados por Bourriaud, desprogramar e reprogramar, entendo que a noção de real, a partir da pós-produção, pode ser transformada em abstrato. 6 Conceito utilizado por Marlene Fortuna em “Arte abstrata: uma comunicação peculiar” (2006 p. 2). 44
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arte.sonora.experimental Este capítulo tem como intuito o caráter breve e expositivo do som como linguagem artística, se propondo a fazer comparações entre o sentido despertado pelo som com outros possíveis sentidos. O termo “Arte Sonora” se consolida em meados da década de 70, na fronteira entre as artes visuais e a música. A Arte Sonora era vista como um contexto expandido do som, no qual o processo criativo para a mesma, seria muito mais ligado a criação plástica do que a criação convencional, como era a música até então, podendo ser considerada [...] a reunião de gêneros artísticos que estão na fronteira entre música e outras artes, nos quais o som é material de referência dentro de um conceito expandido de composição, gerando um processo de hibridização entre o som, imagem, espaço e tempo (CAMPESATO; IAZZETTA, 2006, p. 2). Já o termo “música experimental” não se sabe exatamente quando ou porquê surgiu, mas vem para descrever uma área da música contemporânea que rejeita a tradição pós-renascentista da música europeia. (SMALLEY; 1975) [...] por sua óbvia natureza de experimento, de tentativas e descobertas, acabou sendo enraizado como um sinônimo (e muitas vezes, substituto) do que seria música de vanguarda, contemporânea, atual, eletroacústica, eletrônica, moderna; muitos dos experimentos artísticos desse período utilizavam técnicas avançadas de composição, rupturas com a tradição europeia, extensão física da instrumentação, novo gestual na performance, uso da improvisação como material de composição, uso de equipamentos eletrônicos, entre outros procedimentos. (MARTINS; 2016 p. 64) 47
Pretendo utilizar ambos os termos, som experimental e arte sonora, pois compreendo que ambos possam contemplar os pensamentos propostos, complementando um ao outro com o que o capítulo anseia por fundamentar. Campezato e Iazetta (2006) dissertam sobre a utilização do som na música ser encadeado de um discurso essencialmente temporal, enquanto nos trabalhos de arte sonora as relações com o tempo não são fundamentais para sua concepção como obra, no qual o repertório da obra une de forma híbrida outras fontes materiais, como luz, cor, espaço e objeto; enquanto a relação com o espaço se dá de forma inversa, pois na música possui papel secundário e na arte sonora é fundamental. (CAMPEZATO; IAZETTA, 2006, p. 776) Ou seja, quando falamos de arte sonora não falamos somente de uma concepção sonora, e sim de uma construção artística multimodal. Alan Licht em seu livro “Sound Art” (2007) explica de forma metafórica comparando a música (e usando exemplo da música pop) com um passeio em um parque de diversões, no qual [...] há começo, meio e fim, sendo uma experiência curta e consolidada de emoções e arrepios que podem ser prontamente revividos, simplesmente voltando para o passeio ou ouvindo a música novamente. Já a arte sonora, além de sua conotação pretendida (ou de indício literal) de uma viagem a uma galera ou museu, também pode ser como uma viagem ao zoológico, ao canil, ao parque, à lua ou à sua geladeira, dependendo de sua orientação. (LICHT; 2007 p. 14) Aqui, interpreto como se o autor enxergasse a complexidade da Arte Sonora como linguagem artística que, de certa forma é para ser contemplada e não como “um passeio a um parque de diversões”. O artista, ao invés de fazer uso da voz para se comunicar com o ouvinte de maneira usual, usa sua arte. 48
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