longo do tempo e em dado contexto. De forma exemplar neste pro- Batizado de Antônio de Luca cesso estão as fotografias de família. Limeira, SP? - 24 de fevereiro de 1909 Pode-se dizer que a existência e a história dos retratos de família Papel confundem-se com a própria história da fotografia. Segundo o soció- logo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), “a prática fotográfica existe – e subsiste – a maior parte do tempo, por sua função familiar ou, melhor dito, pela função que lhe atribui o grupo familiar, por exemplo: solenizar e eternizar os grandes mo- mentos da vida da família, reforçar, em suma, a integração do grupo familiar reafirmando o sentimento que tem de si mesmo e de sua uni- dade” (1989, p 38, tradução nossa). Ana Cláudia Cermaria Berto | 49
Família de Alfredo Ferraz de Abreu Por família, contudo, não se deve tomar a ideia restrita da exis- Limeira, SP? - Entre 1900 e 1920 tência de laços sanguíneos. Deve-se, pois, entender como sendo tudo Papel que inclui ancestrais comuns, indivíduos unidos por matrimônio, por Dr. Trajano de Barros Camargo e Família adoção ou mesmo por consideração e/ou respeito, como os amigos Limeira, SP? - Entre 1910 e 1930 e pessoas da comunidade a qual fazem parte, ou seja, entendendo-a Papel como sendo uma forma de organização ou disposição de um número de componentes que se interrelacionam de maneira específica e re- corrente. Deste modo, pode-se considerar como fotografia de família as imagens de casamento, de casais, de pais com seus filhos, de irmãos e primos, de várias gerações reunidas, de piqueniques e até mesmo de classes escolares. Dispostos em álbuns, em molduras ou simplesmen- te em caixas de sapato, com dedicatória, data, legenda ou nenhuma inscrição, tais retratos são capazes de representar o ambiente e toda trama de relações da célula familiar, demonstrando como eram as fa- mílias na época retratada e os costumes da sociedade, além de traçar um panorama do estilo fotográfico. Essas imagens, portanto, carregam uma série de elementos que as determinam enquanto tal: a memória, as questões técnicas, uma de- manda sociocultural que estabelece padrões e olhares para se produzir uma fotografia, e até mesmo o desejo da família em se ver represen- tada. Trata-se, portanto, de um objeto muito valioso para a produção do conhecimento histórico. A fotografia deve ser pensada por seu papel cronista, capaz de representar as pessoas em suas funções ao invés de captar somente sua individualidade. As fotos são capazes de conservar aspectos fun- damentais da vida material e das relações sociais, revelando uma visão familiar, uma estrutura visual que “situa sujeitos humanos na ideolo- gia, na mitologia, da família como instituição e projeta uma película de mitos familiares entre a câmera e os sujeitos” (HIRSCH, 1997, p 11). Embora produzidas em locais distintos, com famílias diferentes, é possível notar certa homogeneidade nas representações fotográfi- cas. A fotografia de família é idealizadora, não retrata ressentimen- tos, mágoas ou rivalidades, mas sorrisos, abraços, carinho, união e 50 | A documentação fotográfica no acervo do museu \"Major José Levy Sobrinho\"
respeito. O advento da fotografia permitiu uma mudança no modo da Retrato de João Carlos Baptista Levy família compreender e ver a si mesma. Limeira, SP? - Entre 1920 e 1930 Entre os papéis que uma fotografia pode desempenhar, sobre- Porcelana tudo no caso do retrato de família, pode-se ressaltar a questão da me- mória. Memória esta que muitas vezes só é possível de se reconstruir Retrato de Maria Thereza Silveira de Barros Camargo por meio das fotografias. São dotadas de reminiscências visuais capa- Limeira, SP? - Década de 1930 zes de trazer nova voz ao passado, fazendo com que seus observadores Fotopintura reconheçam uma série de conhecimentos e memórias ao observarem as imagens, as quais habitualmente só são inteligíveis para os que tem Ana Cláudia Cermaria Berto | 51 as chaves de seus conteúdos e de suas conjunturas simbólicas. Neste contexto destacam-se os álbuns de família, um arranjo espe- cífico de uma retórica familiar guiada, acima de tudo, pela memória, por aquilo que se recorda ou que se deseja fazer recordar. Desta forma, po- de-se entender que os álbuns evocam uma memória construída, isto é, o autor seleciona de forma deliberada imagens e/ou informações que toma como importantes e as arranja da melhor forma. A ideia central, por- tanto, é passar para as demais gerações uma dada visualidade do passado, do modo como se gostaria de lembrar. As fotos aguçam nossa percepção em diversos sentidos. Nos acalmam e inquietam, alegram e entristecem, incomodam e divertem. Cada uma delas pode ao mesmo tempo dizer ou calar, dependendo somente daquele que a observa. A visão é diferente entre aquele que manuseia a câmera e aquele contempla as fotografias, ou mesmo quem se contempla nelas. O Museu “Major José Levy Sobrinho” tem em seu acervo mais de 6000 fotografias, cujas temáticas são as mais diversas. A coleção foi sendo formada desde a inauguração da instituição e continua a ser acrescida anualmente, seja por doações ou pelo encaminhamento de materiais vindos do arquivo e da assessoria de imprensa da Prefeitura Municipal de Limeira. Em linhas gerais, o acervo encontra-se pra- ticamente inexplorado, o que suscita possibilidades infindáveis de pesquisa. Além das imagens que se associam às figuras de destaque na cultura, política, economia ou sociedade locais, há ainda aque- las que revelam o cotidiano de uma cidade e sua comunidade em
desenvolvimento, do século XIX aos dias atuais. Somam-se a elas ima- gens de prédios e espaços das mais diversas naturezas (escolas, estabe- lecimentos comerciais, hospitais, clubes, praças, teatros e cinemas, monumentos, casarios, igrejas, fazendas, cemitérios etc), ações do poder público, eventos sociais e religiosos (procissões, desfiles, festas tradicionais etc). Tais imagens apresentam-se sob formatos, técnicas e suportes variados (fotopintura, imagens sob porcelana etc), o que revela características da própria história da fotografia. As fotografias assim, colocam-se em um limiar interessante nos mu- seus: ao mesmo que tempo que dialogam com outros itens, ajudando a contextualizá-los, as imagens tem uma natureza própria que dificilmente conseguimos apreender na totalidade. Mais que mero instrumento ilus- trativo, elas permitem vislumbrar uma realidade extremamente complexa. Longe de apenas uma “verdade” ou uma espécie de “realidade fetiche”, a fotografia é parte de uma construção da realidade, que diz muito mais res- peito aos indivíduos que as pensam, articulam, patrocinam e executam que àquilo que, de fato, se vê representa- do. É na polissemia de discursos que a imagem se funda e isso deve estar sempre claro a quem a analisa: ela é criada para um fim e é esta finalida- de que devemos interrogar de forma crítica. Acrescenta-se a isso o próprio ato de continuar ou não guardando a imagem e, mais ainda, a ação de pos- tergar sua existência em um museu. Gruta Limeira, SP? – Década de 1980 Painel 52 | A documentação fotográfica no acervo do museu \"Major José Levy Sobrinho\"
PHOTO IRIS G. CAMARGO Interior de Serralheria Limeira, SP – Entre 1900 e 1930 Papel REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. La fotografia: un arte intermedio. México: Nueva Imagen, 1989, p. 38. HIRSCH, Marianne. Family Frames: Photography, Narrative and Postmemory. Cambridge: Harvard University Press, 1997. KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico- Fotográfico Brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002. KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 5ª edição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014. MRAZ, John. “Famílias e fotografia”.O Olho da História, Edição n. 7. SILVA, Armando. Álbum de Família: a imagem de nós mesmos. Tradução de Sandra Martha Dolinsk. São Paulo: Editora Senac/ Edições SESC SP, 2008. SONTAG, Susan. Sobre fotografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Construção do Estádio Major José Levy Sobrinho Limeira, SP – Março de 1976 Papel Ana Cláudia Cermaria Berto | 53
ANGELO PERILLO (Vallo della Lucania-Itália, 1890 - Limeira-SP, 1976) Matriz de Nossa Senhora das Dores Limeira, SP – 1927 Acrílico sobre tela
TRADIÇÃO E MODERNIDADE NA PINACOTECA DO MUSEU DE LIMEIRA João Paulo Berto* * Doutor em História da Arte pela Entre as coleções que compõem o acervo do Museu “Major José Universidade Estadual de Campinas. Levy Sobrinho”, a de artes plásticas, atualmente com quase Docente do curso de Arquitetura e três centenas de itens, é uma das mais representativas, tendo Urbanismo das Faculdades Integradas sido iniciada já em 1964 com a fundação da instituição museológica. Einstein de Limeira (SP). Profissional Datadas de meados do século XIX aos dias atuais, as obras são assina- de Organização de Arquivos no Centro das por artistas de renome local, nacional e internacional, os quais de Memória-Unicamp. as compuseram nos mais variados suportes, técnicas e materiais. Os temas representados também são diversificados, podendo ser encon- tradas paisagens, retratos, pinturas de natureza histórica e de gênero, naturezas-mortas e nus, além de obras abstratas. No período de criação do Museu, o desejo era sedimentar ima- geticamente um discurso sobre a cidade de Limeira, ajudando a cons- truir uma identidade para o município que teria nascido de um rancho à beira da estrada nos princípios do século XIX, projetou a região no cenário nacional pela substituição da mão de obra escrava pela livre, destacou-se no comércio agrícola com seus laranjais e, depois, com a manufatura da joia folheada, e se tornou, já na segunda metade do século XX, uma das mais fortes economias do cenário paulista. Assim, verifica-se a criação de uma verdadeira “iconografia limeirense”, dis- seminada largamente entre a população. Entre os artistas importantes nesse processo, destaca-se o italiano Angelo Perillo. João Paulo Berto | 55
Perillo nasceu na comuna de Vallo Della Lucania, província de Salerno, Itália, em 26 de fevereiro de 1890. Em busca de melhores con- dições de vida, ele, sua mãe Marianna e seus três irmãos migraram para o Brasil em junho de 1901, país onde tinham familiares na cidade paulista de Araraquara. No Brasil, todos da família passaram a trabalhar, sendo que Angelo, ainda jovem, começou a ajudar o irmão como entregador na sua sapataria. Desde cedo demonstrando aptidão às artes, durante suas andan- ças por São Paulo deparou-se com artistas italianos decorando igrejas nos bairros paulistanos do Brás e da Mooca. Inspirado e incentivado por estes pintores, Perillo começou a pintar, e, depois, passou a atuar como aju- dante de letrista. Buscando ampliar sua clientela e atuação, em sociedade com Miguel Barbato, criou a empresa de cartazes publicitários Barbato & Perillo. Casou-se em 1914 com Seria Teribelli e teve quatro filhos. Além da concepção de material de divulgação e de marcas de diversos produtos e empresas, Perillo também decorou diversos palacetes na capi- tal e no interior, como na residência da família de Fortunato Faraone na então Villa Americana (atual cidade de Americana), na década de 1920. Foi pelo sucesso desta obra que foi convidado para vir para Limeira ainda na mesma década, recebendo a incumbência de ornamentar a casa e outras propriedades do fazendeiro Thomaz de Lucca. Fixou-se com sua família na cidade ainda na primeira metade dos anos 1920, onde passou a rea- lizar obras de pintura mural em diversas residências, sendo destacável o trabalho decorativo da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção, de propriedade da confraria homônima, obra que manteve em ritmos va- riados entre 1929 e 1950. Perillo faleceu em 11 de janeiro de 1976, sendo decretado luto oficial de três dias no município. Muitas de suas obras, sobretudo em acrílico sobre tela e madeira, foram produzidas a partir de acervos fotográficos, mas sem deixar de lado a criatividade e romantismo trazido pelo artista italiano que dava cores ao monocromatismo das imagens. Grande parte destas obras foi adquirida pela Prefeitura Municipal de Limeira durante a segunda gestão do prefeito Palmiro Paulo Veronesi d’Andrea (1973-1977) e encaminhadas aomuseu, compondo uma sala com o nome do artista. 56 | Tradição e modernidade na pinacoteca do museu de Limeira
Entre essas obras, uma de destaque, especialmente por suas grandes di- ANGELO PERILLO (Vallo della Lucania-Itália, mensões, é a intitulada Freguesia de Nossa Senhora das Dores de Limeira, datada de 1961. 1890 - Limeira-SP, 1976) Nela, Perillo busca trazer uma representação dos anos iniciais do povoado Capela de Santa Cruz oitocentista. Entretanto, a imagem em cores, advinda do imaginário do artista Limeira, SP – 1941 italiano, foi retomada a partir de uma outra obra: um pequeno desenho, feito Acrílico sobre tela a lápis, datado de 1839 e de autoria do desenhista, tipógrafo, pintor, litógrafo, professor, inventor e fotógrafo Antoine Hercule Romuald Florence (1804- João Paulo Berto | 57 1879), francês radicado no Brasil e considerado o pai da iconografia paulista, obra que teria inaugurado, segundo sabe-se, a iconografia sobre Limeira. O obra de autoria de Perillo retrata a primitiva capela de Nossa Senhora das Dores e o projeto urbanístico inicial da aglomeração urba- na definido pela Sociedade do Bem Comum, cujo mordomo era o se- nador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (1778-1859). Na imagem, vê-se em destaque a capela com torre única lateral, muito sim- ples, a qual domina a paisagem e divide o aglomerado de pequenas casas com quadras definidas em torno de 1600 braças (7744m²), quarteirões de 40 braças (88m) e ruas de 60 palmos (13,2m) de largura (BUSCH, 2007, p 107). Em relação à localização da atual catedral diocesana limeirense, em sua terceira construção, é provável que a modesta capela fizesse face à Rua Barão de Campinas (antiga Travessa da Matriz) sendo o adro frontal que aparece no desenho de Florence a área da atual Praça Dr. Luciano Esteves. Nas laterais da capela, já se observam as abertu- ras das antigas ruas da Limeira (à
ANGELO PERILLO (Vallo della Lucania-Itália, direita, atual Alferes Franco e Santa Cruz), bem como, na porção esquerda 1890 - Limeira-SP, 1976) da imagem, a Rua das Flores, hoje Rua Senador Vergueiro. Freguesia de Nossa Senhora das Dores do Tatuibi Limeira, SP – 1961 Além desta, outras obras de sua autoria apresentam pontos importantes Acrílico sobre madeira da paisagem cultural da cidade, muitos dos quais hoje inexistentes, sendo um registro significativo das transformações urbanas sofridas pelo município entre os séculos XIX e XX. Entre elas, pode-se destacar a segunda Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores (1927), inaugurada em 1876 e demolida em 1949; a Capela de São Benedito (1929), construída pela irmandade de mesmo nome em 1883 com projeto de Miguel Arcanjo Benício de Assunção Dutra (1812-1875), e de- molida na década de 1950 para a construção da atual igreja matriz da Paróquia São Benedito; e a Capela de Santa Cruz (1941), edificada por volta de 1842 pelo juiz de paz José Pedroso do Amaral e pelo fazendeiro Pedro Franco de Moraes e demolida entre os anos de 1944 e 1947 para a construção da atual Escola Estadual Leovegildo Chagas Santos (terceiro grupo escolar de Limeira). Além delas, há obras que representam tipos populares, como Zé Sessenta (1965), além de outros retratos e paisagens da cidade ou região. 58 | Tradição e modernidade na pinacoteca do museu de Limeira
ANGELO PERILLO (Vallo della Lucania-Itália, 1890 - Limeira-SP, 1976) Zé Sessenta Limeira, SP – 1965 Acrílico sobre tela João Paulo Berto | 59
TONY KOEGL (Hall, 1989 – São Paulo, ca. 1978) Outro conjunto de obras im- Holandeses portantes presentes no acervo do mu- seu de Limeira são aquelas de autoria Limeira, SP – Entre 1928 e 1938 do artista Tony Koegl. Imigrante do Óleo sobre tela Tirol, região que enviou ao Brasil mais de 70 mil pessoas entre 1834 e 1938, Koegl chegou em São Paulo por volta de 1923 e ali residiu até provavelmen- te 1928. Segundo relatos, foi neste período que Koegl teria tido contato com o seu mais importante mecenas e amigo, o geólogo limeirense Martinho Levy (1892-1967), um dos sete filhos de Simão e Ana Quintus Levy, imi- grantes alemães que vieram para tra- balhar na Fazenda Ibicaba. Dada a grande formação acadêmica, especial- mente aquela adquirida na Alemanha, Martinho Levy tornou-se uma pessoa extremamente culta e com forte admi- ração pelas áreas das artes, música e li- teratura. No Brasil, dedicou-se a valo- rizá-las, sendo que foi neste contexto que conheceu Tony Koegl. A data exata é desconhecida, mas é possível afirmar que este encontro deve ter ocorrido antes de 1927, devido a existência de uma tela com temas alusivos à família Levy produzida neste ano. Seja em Limeira ou depois no- vamente em São Paulo, para onde retornou no final da década de 1930, Koegl deixou grande legado de obras, 60 | Tradição e modernidade na pinacoteca do museu de Limeira
hoje disperso em coleções públicas e particulares. Com um forte traço acadêmico, seus nus, retratos, alegorias e obras de caráter político-par- tidário conseguiram cobrir um nicho importante nos mundos paulista e paulistano, no qual começavam a fervilhar os debates modernistas. Em linhas gerais, Koegl tinha um traço refinado, utilizando-se de cores claras e composições harmônicas. O pintor faleceu em São Paulo, aproxima- damente no ano de 1978, deixando um grande legado para a história da arte nacional de matriz imigrante. Além de diversas pinturas, também integram o acervo do museu a paleta do pintor e sua máscara mortuária. Paleta de pintura de Tony Koegl S.d. Madeira e tinta à óleo Máscara Mortuária de Tony Koegl São Paulo-SP, ca. 1978 Gesso TONY KOEGL (Hall, 1989 – São Paulo, ca. 1978) Prece Limeira, SP – 1937 Óleo sobre tela João Paulo Berto | 61
TONY KOEGL (Hall, 1989 – São Paulo, ca. 1978) Muitas de suas pinturas possuem 1932 (Alegoria ao Movimento Constitucionalista de 1932) grande carga simbólica, entre as quais Limeira, SP – ca. 1932 podemos apontar a obra Prece, de Óleo sobre tela 1937. No interior do que parece uma gruta, vê-se um homem moreno de 62 | Tradição e modernidade na pinacoteca do museu de Limeira meia idade, nu e de costas, que escul- pe uma parede de pedras. Com mar- telo e cinzel, ele vai retirando da pedra bruta a figura de uma cruz latina, sen- do que os fragmentos de pedra extraí- dos lhe cobrem os pés. O homem tem exímio tratamento anatômico. Tendo por base fotografias de Tony Koegl, é possível afirmar que o homem retra- tado corresponde a seu autorretrato. Simbolicamente, seria possível en- tender a obra como um esforço pró- prio do artista em (re)descobrir a sua própria fé, representada pela imagem da cruz, símbolo da redenção cristã. Ao mesmo tempo, poderia se pensar a obra como um manifesto acerca da fé verdadeira, isto é, para que ela seja forte e verdadeira, deve ser constante- mente lapidada. Um aspecto ainda a ser estudado é a relação do artista com o Movimento Constitucionalista de 1932, tema de diversas de suas pinturas. Uma pos- sibilidade estaria novamente no con- texto da família Levy, uma vez que o Major José Levy Sobrinho (1884- 1957) foi o responsável por liderar o
Posto de Alistamento e Assistência Pública em Limeira, Abertura do I Salão Limeirense de Arte organizar os batalhões limeirenses no movimento, além Contemporânea (SLAC) de angariar donativos e fornecer informações para a linha de frente. Além disso, Major Levy fez parte do Limeira, SP – 1 de setembro de 1973 Partido Republicano Paulista (PRP), assumindo, inclu- Papel sive, cargos na comissão de direção do partido. Catálogo do I Salão Limeirense de Ainda no contexto do Movimento de 1932, houve Arte Contemporânea (SLAC) também em Limeira uma Seção Feminina, liderada por Maria Tereza Silveira de Barros Camargo (1894-1875), Limeira, SP – agosto ou setembro responsável pela confecção das fardas e por equipar o de 1973 hospital da Santa Casa de Misericórdia local com mate- Papel riais médicos, roupas de cama, colchões e travesseiros e pela organização de cursos de enfermagem para volun- tários. Tendo em vista que tanto o Major Levy quanto Maria Tereza Camargo foram também mecenas do ar- tista, tais constatações podem ter despertado no artista o interesse em criar obras alusivas ao tema, cujo conteúdo panfletário e de defesa dos ideais paulistas é inequívoco. Além das doações de artistas locais e regionais, um grande impulsionador da formação da coleção de artes visuais da instituição foi a criação, no ano de 1974, do Museu de Arte de Limeira (Lei nº 1425 de 29 de maio de 1974, incorporado ao Museu \"Major José Levy Sobrinho\" pela Lei nº 6240, de 5 de julho de 2019). Em linhas gerais, a entidade tinha como objetivo instituir um espaço específico para reunir conjuntos de obras de artistas limeirenses ou que re- sidiam na cidade. Na lei de criação previa-se também que as obras premiadas no Salão Limeirense de Arte Contemporânea (SLAC) fossem entregues ao Museu de Arte de Limeira. Contudo, deve-se destacar que desde sempre o referido museu coexistiu junto ao en- tão Museu Histórico e Pedagógico, mas com registros João Paulo Berto | 63
Catálogo do I Salão Limeirense de Arte Contemporânea (SLAC) individualizados. Somaram-se ao Limeira, SP – agosto ou setembro de 1973 acervo, ainda, os prêmios aquisiti- Papel vos das edições do Salão Limeirense Em destaque, a obra Zé Ambrósio, do artista Jair Sarti de Belas Artes (SBAL), de grande representatividade nacional. O SLAC teve sua primeira edi- ção no ano de 1973, realizada pela Prefeitura Municipal de Limeira por meio da Coordenadoria de Educação e Cultura, especificamente entre os dias 1 e 15 de setembro nas depen- dências da Câmara Municipal de Limeira, período em que esta ocupa- va o prédio do Palacete Tatuibi. Na abertura do evento, além das autori- dades municipais, estiveram também presentes o governador do estado, Laudo Natel (1920-) e o deputado José Salvador Julianelli (1917-1990). Apesar da especificação tipológica do título, na sua abertura o salão rece- beu tanto obras de arte moderna quanto arte acadêmica, arte decorativa e escultura. Do salão de 1973, por exemplo, podemos apontar a incor- poração ao acervo da obra Zé Ambrósio (1973), retrato de um tipo popular limeirense de autoria do artista Jair Sarti. Em 1974, por ocasião da se- gunda edição, foi criada uma lei instituindo o SLAC como uma atividade oficial do município (Lei nº 1.424). Já em 1992, houve a criação de um novo salão, o SBAL, propon- do uma separação entre obras de vertente contemporânea das deno- minadas belas artes, ou seja, acadêmicas e estritamente figurativas. Tal propositura baseava-se no disposto na Lei 2597, de 3 de junho de 1992, a qual regularizava a existência e funcionamento dos dois salões, que deveriam ocorrer bianualmente e de forma intercalada, preferencialmente no mês de setembro, por ocasião do aniversário da cidade (Lei nº 2.597 de 3 de junho de 1992). Neste ano, a primeira edição do SBAL foi sediada nas dependências do Palacete Levy, perío- do em que o prédio ainda estava em restauração. 64 | Tradição e modernidade na pinacoteca do museu de Limeira
Do ponto de vista cronológico, as pinturas com JAIR SARTI (Rio Claro-SP, 22 de datação mais antiga pertencentes à coleção do Museu março de 1940 – Limeira-SP, 6 de “Major José Levy Sobrinho” são três óleos sobre tela da década de 1870, todos retratos relativos à fa- janeiro de 1986) mília Barros Silva. Um deles, representando Bento Zé Ambrósio Manoel de Barros (1791-1873), o primeiro Barão de Campinas, tem autoria atribuída ao arquiteto práti- Limeira, SP – 1973 co de origem florentino Aurélio Civatti (1837-1917), Óleo sobre tela realizado após 1872. Civatti teria sido trazido da Itália por iniciativa de Barros para a direção do acabamento João Paulo Berto | 65 da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção de Limeira, para a qual dispensou grandes quantias em dinheiro. O retrato, contudo, não é único, pos- suindo outro exemplar idêntico no acervo da Igreja Boa Morte, local onde o Barão encontra-se sepulta- do. Vale ressaltar que a atribuição da autoria parte de registro no livro de ata da própria Confraria da Boa Morte, a qual em reunião de 15 de abril de 1868 cobra de Civatti, na época provedor interino, a finalização de um retrato de Bento Manoel de Barros para ador- nar as paredes do templo do qual era um dos mais importantes beneméritos. Os outros dois retratos oitocentistas são de auto- ria do pintor austríaco Ferdinand Piereck (ca. 1844- 1925), representando o casal Sebastião de Barros Silva (1836-1896) e Gertrudes Alves Branco. Netos do Barão de Campinas (Gertrudes era prima de Sebastião), fo- ram proprietários da Fazenda Itapema e responsáveis pela construção de um grande palacete neoclássico no centro de Limeira, ao lado da Igreja Boa Morte (es- quina das atuais Rua Boa Morte e Alferes Franco), obra finalizada pelo avô e que ficou conhecido em Limeira como Palacete Levy. Um ponto interessante
AURELIO CIVATTI (atribuição) (Florença-Itália, FERDINAND PIERECK (Áustria, 10 de setembro de 1837-Itápolis-SP, 1917) 1844 – Recife-PE, 11 de dezembro de 1925) Retrato de Bento Manoel de Barros, primeiro Barão de Campinas Retrato de Sebastião de Barros Silva Limeira, SP – Década de 1870 São Paulo, SP? - 1879 Óleo sobre tela Óleo sobre tela 66 | Tradição e modernidade na pinacoteca do museu de Limeira
é a proximidade das poses dos retratados e dos ce- FERDINAND PIERECK (Áustria, 10 de setembro de nários com as fotografias em estúdio produzidas no 1844 – Recife-PE, 11 de dezembro de 1925) período. Em linhas gerais, vários artistas trabalha- Retrato de Gertrudes Alves Branco vam em conjunto com fotógrafos ou inspirados em São Paulo, SP? – 1879 fotografias. No caso de Piereck, este teve profunda Óleo sobre tela relação com Carlos Hoenen, proprietário da em- presa Photographia Allemã, aberta na cidade de São João Paulo Berto | 67 Paulo em 1875. Conforme Boris Kossoy (2002, p 180), a partir de 1877 Hoenen começou a atuar em conjunto com Piereck, que, com base na fotografia, realizava os retratos a óleo ou aquarela. Outro ponto interessante na análise integral do acervo de artes visuais é a possibilidade do ma- peamento das redes de ensino e aprendizagem de artistas. Como exemplo, podemos citar a presença de obras da rioclarense Ilara Luz Machado (1922- 2007), artista responsável por manter uma impor- tante escola de arte que formou diversas gerações de pintores, entre os quais o limeirense Marciel Oehlmeyer (1959-2012), de extensa trajetória na- cional e internacional. Outra obra destacável da coleção é o quadro Los Gatos, de Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo (1897-1976), datada de 1955, cujo tema é recorrente em outras obras do artista carioca que esteve na base da fun- dação do Clube dos Artistas Modernos (CAM) em São Paulo, junto com Flávio de Carvalho, Antonio Gomide e Carlos Prado.
Em linhas gerais, a diversida- de das obras de técnicas e estilos va- riados do acervo é capaz de revelar as transições entre o ensino e mo- delo artístico acadêmico e figurati- vo do século XIX e as novas mani- festações das artes na contempora- neidade, do moderno ao abstrato. Seja pelo traço de artistas locais ou regionais, nacionais ou internacio- nais, é possível percorrer as inten- sas transformações das artes plás- ticas do período, demonstrando o quanto os movimentos não são coesos, mas dinâmicos e com re- verberações muitos distintas. Além disso, somam-se as possibilidade de entrever o quanto as obras artís- ticas não são neutras, mas frutos da íntima relação entre artistas e me- cenas e seus projetos de ordem po- lítica, econômica, social e cultural. ILARA LUZ MACHADO (Rio Claro-SP, 1922-2007) Frade Rio Claro, SP - 1986 Óleo sobre tela 68 | Tradição e modernidade na pinacoteca do museu de Limeira
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUSCH, Reynaldo Kuntz. História de Limeira. 3ª edição. Sociedade Pró-Memória de Limeira. Limeira, SP, 2007. KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002. MARCIEL OEHLMEYER (Rio Claro-SP, 1959-Limeira-SP, 2012) Natureza morta Limeira, SP – 1992 Óleo sobre tela EMILIANO AUGUSTO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE E MELO (Rio de Janeiro- RJ, 1897-1976) Os Gatos 1955 Óleo sobre tela João Paulo Berto | 69
Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo Limeira, SP – Entre 1920 e 1950 Papel
VESTÍGIOS DA APRENDIZAGEM André Luiz Paulilo* * Professor livre-docente da Faculdade Os artefatos escolares que muitos museus conservam não de Educação da Universidade Estadual só provocam a curiosidade do seu público como lhe in- de Campinas. Diretor do Centro de quieta a memória. Se entrados nos anos, os visitantes Memória-Unicamp. rememoram seu próprio tempo de escola. Quando jovens ainda, comparam a própria experiência escolar às condições da escola- rização do passado. Na visita ao Museu, entre o regime de crença que governa a fidelidade da memória e a vontade de verdade que rege a operação historiográfica (cf. Chartier, 2009), experimen- ta-se o testemunho de uma presença material. As fotografias, os materiais didáticos ou o mobiliário e os utensílios escolares à vista em uma vitrine de museu afirmam o triunfo da escola como es- paço predominante da nossa sociabilização. Quem se debruçou sobre a cultura material escolar reconhece-o de fato. Escolano Benito (2017, p. 178) entende que “o desenho, a er- gometria e a funcionalidade dos elementos que compõem a cultura material das escolas chegaram a sobredeterminar práticas corporais, gestualidades, formas de escrita e grafismo, modos de oralidade, técnicas de cálculo e topologia, além de outros padrões de nossas formas de estar no mundo”. Há estudos que também chamam a atenção para o lugar da escola e da educação em uma história das André Luiz Paulilo | 71
Colégio São José sensibilidades. Vidal e Silva (2010, p. 43) afirmam que uma história Limeira, SP – Entre 1921 e 1930 sensorial da escola e da escolarização “requer dar destaque às experiên- Papel cias individuais e coletivas de construção de subjetividades, esquemas perceptivos, gostos, corporeidades, memória e afetos”. Do 1º Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo, do Colégio São José ou do Colégio Santo Antônio o Museu \"Major José Levy Sobrinho\" evoca múltiplas formas de memorização do passado escolar e de construção de laços afetivos entre os sujeitos e o mundo físico, chamando a atenção para alguns aspectos da própria identi- dade da cidade. Em Limeira, o edifício do Museu \"Major José Levy Sobrinho\", onde também funciona a Escola Municipal de Cultura e Artes Prof. Maestro Mário Tintori, pertenceu ao 1º Grupo Escolar e foi expressão da concepção pedagógica, arquitetônica e social da es- cola primária pretendida pelo regime republicano (Gordinho, 2013). 72 | Vestígios da aprendizagem
Colégio Santo Antônio Limeira, SP – Década de 1930 Papel Creche Berçário da Boa Vontade Grupo Escolar Brasil Limeira, SP – Década de 1950 Limeira, SP – Década de 1980 Papel Papel André Luiz Paulilo | 73
Turma de alunos com a Profa. Izaudina e Prof. Vicente À história dos edifícios escolares, somam-se ainda um univer- Limeira, SP – Década de 1930 so material todo feito de utensílios corriqueiros na escola quando da Papel passagem do século XIX para o XX como a pena, o tinteiro, o ma- ta-borrão, o lápis e o apontador de mesa. Nesse período, o quadro negro, o relógio de parede, as carteiras escolares e os armários para livros, globos terrestres, quadros parietais distribuíam-se pelos edi- fícios escolares como o do Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo. No modo como hoje a história da educação foi capaz de associar a cultura material da escola à experiência e à memória 74 | Vestígios da aprendizagem
dos sujeitos, cumpre reconhecer com Escolano Benito (2017, p. 227) Turma de alunos com a Profa. que “os restos da escola são, pois, materialidades com memória”. Izaudina e Prof. Vicente Sobretudo porque na materialidade da escola “está inscrita uma tra- dição, à qual frequentemente é necessário recorrer para nos orientar- Limeira, SP – Década de 1930 mos, ao menos em parte, na necessária construção de rotas de sentido Papel pelas quais possamos nos conduzir para novos futuros possíveis”. Por todo o Estado de São Paulo a política de expansão educacio- nal resultou na construção de escolas como o Grupo Escolar Coronel André Luiz Paulilo | 75
PHOTO IRIS G. CAMARGO Flamínio Ferreira de Camargo e, igualmente, na circulação de obje- Docentes do Grupo Escolar Coronel Flamínio tos para uso escolar. Entre o fim do século XIX e meados do século Ferreira de Camargo XX, a relevância da escola pública se consolidou como um valor e Limeira, SP – Entre 1920 e 1940 uma demanda social por direitos. Não por acaso, além das institui- Papel ções e modelos didáticos, também quem contribuiu com a educa- ção popular mantém presença na memória da cidade. Os inspetores 76 | Vestígios da aprendizagem escolares, Antonio Rodrigues Alves Pereira e Osório Germano da
Silva, junto aos inspetores federais Pedro Martins Ferreira, Roberto Pessoa e José Paulino de Araújo Vargas atuaram na institucionali- zação das escolas da cidade. Também, nesse sentido, o diretor do Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo, Emílio Augusto Ferreira, as diretoras do Colégio São José, Maria José Jesus Silva e Maria Teresa de Jesus Mendonça e o diretor do Colégio Santo Antônio, professor Antônio de Queiroz frequentam os registros dos memorialistas e historiadores da educação na cidade. Entre muitos outros professores, o de Pedagogia e Didática do curso Normal do Colégio São José, Pedro Crescente, e os docentes de escolas isola- das masculinas dos primeiros tempos da República como Eugênio Pinto da Fonseca, João Teixeira de Lara e Nestor Martins Lino ser- vem à lembrança como exemplos de mestre-escola que atuaram na cidade. Igualmente muitas, as professoras das escolas mistas Izabel Baptista de Oliveira, Maria José de Arruda Ribeiro, Eliza Corrêa Borges, Izaltina de Barros Cotrim e Izabel de Toledo foram aquelas que atuando nos anos iniciais do novo regime somam-se àqueles que atuaram no magistério de Limeira. Em meio aos edifícios, aos artefatos e às pessoas que a documen- tação conservou acerca da educação em Limeira, há mais vestígios que não só os do esforço político em expandir o alcance da escola ou aqueles do protagonismo de docentes e beneméritos ilustres na obra educacional. Principalmente, importa destacar na coleção de objetos e documentos que o Museu \"Major José Levy Sobrinho\" reúne so- bre a educação da cidade, os vestígios da aprendizagem dos alunos. Percebe-se nas fotografias, em materiais didáticos como os sólidos geométricos e o ábaco, nos impressos escolares ou na própria distri- buição do espaço que antes foi de uma escola as pistas que gerações de estudantes deixaram acerca da sua aprendizagem dos tempos de esco- la. A aprendizagem da leitura, da escrita, do cálculo, mas, também, dos comportamentos higiênicos, civis e operosos foi marca do sistema educacional que então se quis construir. André Luiz Paulilo | 77
Formatura do 1º ano B do Grupo Escolar Coronel MUSEU PEDAGÓGICO E PEDAGOGIA DO MUSEU Flamínio Ferreira de Camargo Limeira, SP – Década de 1920 A importância de objetos simples em torno dos quais a escola or- Papel ganizou a aprendizagem dos seus estudantes, atualmente, não escapa à atenção de quem estuda a história da educação. Hoje há à disposição 78 | Vestígios da aprendizagem histórias sobre a lousa, o mobiliário escolar, os cadernos, os uniformes, a sala de aula e os álbuns fotográficos que alcançam o âmago da cultura escolar: as práticas ordinárias do dia-a-dia da escola. De fato, a preocu- pação com a organização do espaço e do tempo escolar e com os usos de materiais diversos na escola abriu importantes perspectivas de análise. Desde uma história social da escola e da educação até as apostas mais recentes na compreensão da dimensão econômica da organização da es- cola ou em uma história cultural dos saberes pedagógicos, o estudo da cultura escolar tem contribuído para a compreensão da escola não como um mero aparelho ideológico, mas, sobretudo, enquanto resultado de variadas práticas dos atores educacionais. Deste ponto de vista, ainda que a historiografia da educação tenha se debruçado sobre o sentido e o significado dos fazeres cotidianos do ensino e da aprendizagem, são nos museus onde parte dessa história foi conservada. Memoriais técnicos da educação como o da capital paulista, centros de memória nos moldes do Centro de Referência Mario Covas ou das diversas escolas técnicas do Centro Paula Souza mantém coleções de objetos em espaços museográficos que tanto servem de fonte para os pesquisadores como nos evocam lembranças da escola de outrora. Trata- se de iniciativas associadas ao esforço de preservação histórica da memó- ria institucional da educação do Estado e, especialmente, de educação patrimonial. De fato, os Memoriais, Centros de Memória e Documenta da Educação ocupam-se de aspectos fundamentais das práticas das co- munidades e do poder público para lembrar-nos da escola e do traba- lho educativo do passado. Tanto porque preservam quanto porque nos mobilizam a memória sobre o que antes foi a escola e a educação, essas instituições contribuem para a compreensão de uma dimensão central do modo como a cidadania foi construída no país.
Por outro lado, também os museus municipais conservam entre Grupo de alunas do Colégio São José os vestígios da história local, artefatos e documentos acerca dos seus Limeira, SP – 1928 serviços de instrução pública. Em Limeira, o Museu \"Major José Levy Papel Sobrinho\" é um exemplo que atesta o lugar da escola e da educação na história da cidade. Entre as telas, os manuscritos, as fotografias e artefatos do acervo do Museu, há diplomas, plantas de escola, impres- sos, materiais escolares e muitas fotografias das principais instituições e professores e autoridades de ensino. A história que, assim, contri- buem para contar diz respeito ao empenho da municipalidade peran- te o governo do Estado para a implantação da escola republicana em André Luiz Paulilo | 79
Formatura do Colégio Santo Antônio Limeira e aos resultados desse empreendimento. Assim, os diferen- Limeira, SP – 7 de dezembro de 1940 tes arranjos institucionais dessa escola estão documentados no acervo Papel do Museu. Desde o grupo escolar até o colégio, passando pela escola ginasial e o ensino técnico e profissionalizante reúnem-se vestígios 80 | Vestígios da aprendizagem acerca do funcionamento escolar na cidade. Nas relações que a escola mantém com a cidade chama especial atenção as fotografias acerca das cerimônias cívicas e escolares pelas ruas. Os desfiles comemorativos ao dia da independência, a festa do dia 1º
de Maio e a banda escolar reúnem material suficiente para perceber o Comemoração de 7 de setembro em frente ao modo como a escola pautou as práticas de sociabilidade da cidade. Por antigo Colégio Santo Antônio outro lado, as homenagens aos formandos e os retratos dos professores Limeira, SP – 1930 ilustres deixam ver as estratégias de emulação escolar tão zelosas do pres- Papel tígio social que conferiam aos seus egressos e principais colaboradores. Por muitos modos a escola se fez presença na cidade. As festas e expo- André Luiz Paulilo | 81 sições escolares, os exames finais, os grêmios estudantis, as associações
Manifestação escolar contra a devastação de pais e mestres foram iniciativas e Limeira, SP – Entre 1970 e 1989 práticas de uma sociabilidade vol- Papel tada para o exercício da cidadania num tempo de afirmação desse re- 82 | Vestígios da aprendizagem gime de governo. Assim, a forma como a escola ocupou a cidade não teve apenas uma dimensão espacial ou um aspecto de pedra e cal, mas foi, fundamentalmente, simbólica. Em um museu, as mediações que a exposição da materialidade escolar propõe não apenas tira a memória da letargia, mas, sobretudo, coloca em relação as lembranças e valores presentemente dominantes. Outra forma de olhar para es- tas instituições de guarda patrimo- nial e da memória local que são os museus diz respeito aos seus aspectos educativos. De fato, além das políticas de guarda do passado, a inteligibilidade ao vivido que os mu- seus pretendem oferecer ao seu público fomentam práticas educati- vas. A educação no interior dos museus envolve o ensino da história enquanto “entendimento de mudanças espaço-temporais, reconhe- cimento de permanências e embate entre diferentes sujeitos e grupos em torno de suas propostas políticas simbolizadas pelos bens que pro- curam preservar” (Salvadori, 2008, p. 37). Ao que Salvadori (2008, p. 38) compreende como educação patrimonial corresponde a capa- cidade de fazer perceber que os bens, móveis ou imóveis, registram uma vivência compartilhada. Enquanto ação no presente, as ativida- des educativas nos museus proporcionam “informações que permi- tem às pessoas em geral (...) perceberem a importância do passado na formação de sua identidade individual e coletiva e na construção da realidade em que estão inseridas”.
Tanto em razão daquilo que conserva sobre a educação da ci- Ábaco dade quanto por também ter sido e ser ainda um equipamento de Entre 1900 e 1920 educação dela, o Museu \"Major José Levy Sobrinho\" contribui para a compreensão dos códigos subjacentes à cultura empírica da escola. Madeira e metal Trata-se de espaço e de acervo ímpares para nos apercebermos como Pertenceu ao Grupo Escolar Coronel a cultura material da escola contribuiu para a construção de alguns aspectos da nossa própria subjetividade. Nesse enfoque, além do pré- Flamínio Ferreira de Camargo dio, os relógios em 8 e as carteiras das salas de aula, o armário e o sino Sólidos Geométricos da escola, o compasso, o esquadro, o tinteiro e o guarda penas e mais Entre 1900 e 1920 a escrituração escolar que o Museu reúne no seu acervo expressam Madeira condutas aprendidas na escola. Conforme lembra Escolano Benito (2017, p. 201), tanto a atitude que adotamos para ler quanto o gesto Pertenceu ao Grupo Escolar Coronel com o qual a mão segura e usa os instrumentos da escrita “foram con- Flamínio Ferreira de Camargo figurados nas práticas de aprendizagem da escola”. Uma vez em exposição, aquilo que esses fragmentos da escola de outrora comunicam serve aos espaços expositivos dos museus como o de Limeira para mostrar a educação como uma das dimensões de sociabi- lidade das cidades. Por outro lado, a construção de espaços expositivos com sessões educativas bem programadas beneficia a nossa sociabilidade Carteira Entre 1900 e 1920 Madeira e metal Pertenceu ao Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo André Luiz Paulilo | 83
Fachada do Grupo Escolar Coronel Flamínio com uma formação permanente para Ferreira de Camargo a cidadania. É, enfim, como um lo- Limeira, SP – Década de 1980 cal onde o público desenvolve os seus Papel conhecimentos e expande a sua com- preensão do mundo que o cerca que 84 | Vestígios da aprendizagem os museus afirmam sua relevância atualmente, tal qual a escola que hoje abriga o Museu foi um dia. EDUCAÇÃO DO OLHAR O lugar onde em Limeira as- sociam-se as dimensões cultural e educativa da conservação da memó- ria e do patrimônio histórico local é o antigo prédio do Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo. Com arquitetura projeta- da por José Van Humbeek a partir do projeto padrão identificado como tipo 1901 – 10 classes – Avaré (Correa, Mello, Neves, 1991, p. 43), compunha-se “de um único bloco compacto em dois pavimentos, ocupando as seções masculinas e femininas, os andares térreo e superior respectivamente.” À época da sua construção, compar- tilhava a mesma planta com outros quatro grupos escolares do Estado: Avaré, Mogy das Cruzes, São Carlos do Pinhal e Ribeirão Preto.
Conforme lembram Bettini (1993), Santos (2011) e Heflinger Relógio de Parede Jr. (2017) o 1º Grupo Escolar de Limeira inicialmente funcionou em Entre 1900 e 1920 imóvel cedido pelo Coronel Flamínio Ferreira de Camargo e locali- Metal e vidro zado atrás da Igreja Matriz. Construído em 1906 na praça central no Pertenceu ao Grupo Escolar Largo do Rosário, o novo edifício recebeu o nome do Coronel como Coronel Flamínio Ferreira de homenagem. Também em Limeira, como nas demais cidades do inte- Camargo rior do Estado e na capital, o Grupo Escolar trouxe uma organização escolar mais complexa, racional e moderna. Conforme reconhecem Souza e Faria Filho (2006, p. 25) “a história dos grupos se confunde com a história do ensino primário e está no centro do processo de institucionalização da escola pública”. Especialmente em São Paulo, os grupos escolares expressaram o projeto político republicano de re- forma social e de difusão da educação popular. Rosa Fátima de Souza (1998, p. 29) mostrou que o grupo escolar foi “uma escola identifica- da com os avanços do século, uma escola renovada nos métodos, nos processos de ensino, nos programas, na organização didático-peda- gógica; enfim, uma escola moderna em substituição à arcaica e precá- ria escola de primeiras letras existente no Império”. De fato, o chamado patrimônio edificado da educação em Limeira atesta a participação da cidade no projeto republicano de escolarização e o seu significado para a história da cultura local. E, assim, também os colégios São José e Santo Antônio e os 2º Grupo Escolar (1934) e 3º Grupo Escolar (1940) somam “testemunhos” acerca dos primeiros tem- pos do aparelhamento escolar da cidade. A série de fotografias de escola e na escola que o acervo do Museu \"Major José Levy Sobrinho\" reúne não apenas retrata aspectos centrais de uma época em que a educação foi parte intrínseca das estratégias de legitimação do novo regime. Vale de exemplo do esforço de então para documentar os cenários, os protago- nistas e os momentos celebres da concretização desse projeto. Para a compreensão da abrangência da coleção de fotografias de escolas do Museu Major Levy Sobrinho é útil se valer da classificação André Luiz Paulilo | 85
Construção da Escola Industrial Trajano Camargo proposta por Rachel Duarte Abdala (2013, p. 115) quando estudou ma- Limeira, SP – Entre 1946 e 1953 terial equivalente na capital do Estado. A partir de quatro grupos temá- Papel ticos – arquitetura, práticas escolares, retratos e eventos – Abdala (2013, p. 116) empreende um olhar sobre os atores sociais, as relações interpes- soais e as práticas empregadas na realização do registro fotográfico capaz de esmiuçar aspectos das mais cotidianas práticas escolares. 86 | Vestígios da aprendizagem
Tanto externas quanto inter- nas, as fotografias da arquitetura das escolas mostram, por um lado, paredes, jardins, pérgulas, portas, janelas, balaustres, estruturas e de- talhes decorativos. Por outro lado, retratam as salas, os laboratórios, as oficinas e os elementos arquite- tônicos e de decoração internos da escola. Das práticas escolares, além do ensino, aos fotógrafos também importou documentar o trabalho e o cotidiano escolar. Assim, as au- las, o ensino profissionalizante e as ações rotineiras da escola também ganharam farto registro fotográfi- co. Os eventos periódicos ou em torno de efemérides relevantes à vida cívica ou moral da cidade in- variavelmente reúnem crianças em atividades como desfiles, solenida- des, cerimônias, formaturas, ex- posições e festas escolares que não escaparam ao registro fotográfico. Centro Estadual Interescolar Trajano Camargo Limeira, SP – Entre 1975 e 1980 Papel André Luiz Paulilo | 87
Livro de Visitas do Grupo Escolar Coletivos ou individuais, os retratos escolares seguem, segundo Coronel Flamínio Ferreira de Camargo observa Abdala (2013), uma série de padrões. No retrato individual Limeira, SP – 1901-1984 ou nos álbuns de formatura pode-se, por exemplo, observar a recor- Papel e tecido rência das poses ou do perfilamento das turmas. Do mesmo modo, é Livro de Carga e Descarga do Grupo Escolar recorrente nas fotografias dos patronos, diretores, professores, po- Coronel Flamínio Ferreira de Camargo líticos, alunos graduados e personalidades ligadas à escola a mesma Limeira, SP – 1931 preocupação com o enquadramento, a moldura ou a composição do Papel retrato. Por outro lado, fotos de grupos de professores, das turmas de discentes, das turmas de discentes com professores ou do corpo administrativo também apresentam recorrências de enquadramento e composição. A educação retratada em Limeira das primeiras décadas do sé- culo passado não escapa aos padrões identificados por Abdala. Em seu conjunto, portanto, o registro fotográfico da escola e da vida escolar da cidade obedece a uma semântica da imagem que também é uma gramática do olhar. Longe de se prestar à mera averiguação, ver a escola e a educação de outrora a partir da fotografia implica per- ceber a relação da memória com o presente, perscrutar o incessante trabalho da memória do qual fala Eclea Bosi (1971). Para essa tarefa exige-se do olhar algum preparo, uma certa prevenção contra o pi- toresco e o exótico ao se dirigir a atenção para a escola do passado e, fundamentalmente, uma preocupação com a imagem de escola, de professor, de aluno que é construída pela fotografia. Além dos objetos e utensílios, do patrimônio de pedra e cal e das fotografias, há para se olhar no Museu um farto registro pro- veniente da escrituração escolar: livro de visitas, de atas, de carga e descarga de material, diários de classe. Nesse tipo de material não escapa à vista de quem se interessa pela história da escola a caligra- fia, os ornamentos impressos nos livros de registro e a variedade dos registros. Por meio dos manuscritos o âmago da escola descortina-se aos olhos. É toda uma atividade de averiguação, controle e organi- zação que se vê reunida nos papeis produzidos pela escola. Dessa incessante atividade emergem histórias, impressões acerca das escolas 88 | Vestígios da aprendizagem
e o cotidiano de uma infinidade de avaliações de desempenho e ren- Diário de Classe do Grupo Escolar dimento, de apontamentos de assiduidade e de testemunho acerca Coronel Flamínio Ferreira de Camargo das práticas de ensino e aprendizagem. Limeira, SP – 1978 De fato, junto aos mapas de movimentos dos alunos, correspon- Papel dências, ofícios e impressos, a escrituração escolar conservou regis- tros da compra de materiais hoje distantes dos alunos como a almo- André Luiz Paulilo | 89 tolia, a escarradeira, a goma arábica ou o mata borrão. Também há o registro de donativos, como o aparelho cinematográfico doado pelo
Major Levy Sobrinho ao Grupo Escolar Coronel Flamínio Ferreira de Camargo. Marcas da escola de outro tempo, os quadros Deyrolle, a capa para piano, o corpo humano em cartão são outros tantos re- gistros de aquisição. A escrituração traz ainda o registro de intrigas, admoestações, emulações e de orientações quanto ao trabalho educa- tivo das escolas. Sob a aparente trivialidade da rotina escriturária da organização escolar repousa o vívido trabalho cotidiano que resulta do exercício do magistério e da aprendizagem das crianças. Trata-se de material que quando se beneficia de um olhar atento retribui o leitor com as cogitações próprias à memória, tão cheias das interações de sentidos recriados e bem presentes em seus diversos tempos quanto de senhas de passagem para enfrentar e superar o imediato e o agora. Mapa de Movimento Geral dos Grupos Escolares Limeira, SP – 1907 Papel 90 | Vestígios da aprendizagem
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Estação Ferroviária de Limeira Limeira, SP – Entre 1876 e 1890 Papel
A FERROVIA EM LIMEIRA NO SÉCULO XIX E AS INTERVENÇÕES NO PANORAMA URBANO Eduardo Alberto Manfredini* * Pós- Doutor em Geografia, Doutor As estradas de ferro paulistas no século XIX transportavam tan- em Engenharia Urbana, Docente dos to o café quanto as demais mercadorias produzidas, além de cursos de Arquitetura e Urbanismo passageiros, atuando sob a forma de concessão do governo das Faculdades Integradas Einstein de imperial. Ligavam as áreas interioranas à capital - configurando um Limeira (SP) e Centro Universitário eixo que atravessava a cidade de São Paulo, de norte a sul - e daquela Unar de Araras (SP). localidade a área portuária litorânea. Para Saes (1981) as ferrovias não se constituíam em meros apên- dices da produção cafeeira, inclusive conflitando-se com este capital e até se impondo em relação ao mesmo por intermédio de políticas próprias, muito embora o café tenha se constituído em produto de valor considerável para o equilíbrio financeiro e expansão do sistema ferroviário paulista. Já na opinião de outro autor, Cano (1998) quando este anali- sou o processo de industrialização no Estado, a ferrovia era uma Eduardo Alberto Manfredini | 93
oportunidade de inversão ao capital dos cafeicultores, pois o café ti- nha o maior valor comercial dentre os produtos brasileiros exportá- veis até a década de 1930, tanto que o monopólio em seu transporte garantiu às companhias do setor uma lucratividade de porte eleva- do. Milliet (1982), para elucidar a importância da produção cafeeira para a expansão ferroviária em São Paulo, fez uma divisão das terras paulistas em espaços regionais1 para elucidar o que determinou como “marcha do café” e, analogamente, promoveu a ampliação dos con- tingentes de população interiorana. Nota-se, deste modo, que a implantação da malha ferroviária paulista no século XIX, auxiliou diretamente na expansão da rede de cidades e ainda nas alterações de fluxos relacionados ao transporte nas localidades existentes, promovendo, dentre outros fatores, o desen- volvimento urbano e a evolução econômica. A FERROVIA EM LIMEIRA Em Limeira, a instalação da ferrovia, substituiu o meio de trans- porte pautado na tração animal – conduzido em lombos de burros e carroças, que trazia perdas e atrasos nas entregas de cargas e viagens - e alterou o espaço da centralidade urbana, promovendo o desenvol- vimento da região próxima ao Ribeirão Tatu e trazendo, em especial, nova realidade temporal relacionada ao transporte. Como comentou Busch, a notícia da chegada da Estrada de Ferro em Limeira, deu-se em 10 de abril de 1876, quando o Jornal “O Limeirense” estampou em suas páginas: “Esta folha está informada que por todo o mez de junho próximo será inaugurada a estrada de ferro do Oeste (Paulista) na secção que vem terminar em Limeira” (apud. BUSCH, 1967, p 305). A implantação da Estação Ferroviária da Companhia Paulista, que abrigava as atividades de transporte de cargas e passageiros ocasionou o prolongamento de algumas ruas até o local, bem como a abertura de um pátio defronte a Estação, para as atividades de traslado entre o trem e a cidade. 94 | A ferrovia em Limeira no século XIX e as intervenções no panorama urbano
Os prolongamentos mencionados se deram, por exemplo, na Passageiros na Estação Ferroviária de Limeira Rua Augusta (atual Barão de Cascalho), na Rua Barão de Campinas Limeira, SP – Década de 1890 (antiga Rua Travessa da Matriz) e na Rua Conde D’Èu (atual Rua Papel Tiradentes), vias que concentravam o fluxo de cargas e passageiros. A localização da Estação em meados da década de 1870 configurou um novo eixo central no contexto da urbanização, tendo numa de suas ex- tremidades a Matriz e, logo atrás da mesma a Rua do Comércio (antiga Rua do caminho para Campinas). Eduardo Alberto Manfredini | 95
OSWALDO FAVORETTO (Itobi-SP, Década de 1940 - IMPACTOS RESULTANTES DA INSTALAÇÃO FERROVIÁRIA Limeira-SP, 1998) Rua do Comércio, início do século XX A ferrovia, marcada pela instalação da gare e da estação, começou Limeira, SP – Entre 1970 e 1990 a atrair o prolongamento da área comercial de Limeira - que na dé- Aquarela sobre papel cada de 1880 já se estabelecia nas áreas de entorno do largo da Matriz e Rua do Comércio (FIGURAS 3 e 4), a aproximadamente quinhen- tos metros da estação - impondo certa tendência de ocupação Leste- Oeste à malha urbana – acompanhando o leito da própria ferrovia – seguindo paralelamente ao eixo anterior à urbanização, representado pela Estrada Campinas - Morro Azul e Rio Claro. 96 | A ferrovia em Limeira no século XIX e as intervenções no panorama urbano
A estação representava tam- Farmácia Fanelli na Rua do Comércio bém, um marco da presença do Limeira, SP – Entre 1900 e 1920 capital econômico, político e do Papel poder do Estado, aproximando a cidade dos centros de decisão do Eduardo Alberto Manfredini | 97 império e trazendo da capital e do exterior as recentes novidades, produtos e inovações da época. Embora tenha se caracteri- zado como marco do desenvolvi- mento socioespacial e econômico, a presença da via férrea, não se deu sem interferências negativas na vida cotidiana de Limeira. No contexto de Limeira, os trilhos foram assentados nas co- tas de nível inferiores em relação à topografia do local, acompanhan- do naquele período, a várzea do Ribeirão Tatu, local entrecortado por alguns afluentes, que por vezes cruzavam a linha – esta se manten- do na maior porção do percurso urbano lindeira ao “Tatu” o que denotava certa preocupação de or- dem técnica e, em especial, econô- mica no projeto, evitando a insta- lação de transposições aos corpos d’água secundários. PHOTO SERRA Vista da Praça João Pessoa Limeira, SP – Década de 1930 Papel
Vista da Rua Tiradentes e a transposição da Ferrovia O posicionamento da via férrea, pela sua própria condição de Limeira, SP – Década de 1940 transpor a urbanização passando pelo eixo central, ocasionou transtor- Papel nos e discussões, estes atrelados, por exemplo, as questões do tráfego local, escoamento de águas pluviais e divisas com o espaço público e pri- vado, como demonstram alguns documentos analisados na sequência. No Livro de Atas da Câmara Municipal, na sessão do dia 28 de feverei- ro de 1875, indicação do Vereador Coronel Joaquim Sertório (LIMEIRA, 1875, p 140-141v), apontava a necessidade de se realizarem obras na por- ção ocupada pela ferrovia, pois ali se formavam alagamentos nos perío- dos de chuva. Também o posicionamento do edifício da Estação provocou 98 | A ferrovia em Limeira no século XIX e as intervenções no panorama urbano
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