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O Último Adeus

Published by D'Almeida ©, 2017-07-01 06:03:51

Description: Editor: Edição de Autor * Autor: António José Veiga Henriques © * Capa: Raquel Henriques © Tipografia de capa: D'Almeida Ateliê * Paginação, arte final, impressão e acabamento: D'Almeida Ateliê

Keywords: autores portugueses,livros ciência,edição de autor,artistas plásticos,antónio henriques,d'almeida studio

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Título Original: “O Último aDeus” Autor: António José Veiga Henriques Capa: Composição sobre pintura de Raquel Ribeiro, “Amanhecer” óleo s/ telaExecução gráfica: Diva’lmeida, atelier gráfico Encadernação e acabamentos: MJ Real Imo ISBN 972-8670-60-5 2006

À memória do meu Pai António José Veiga Henriques “Tudo o que alcançamosE tudo o que deixamos de alcançar É consequência directa Dos nossos pensamentos” - James Allen



Neste livro escrito por meu Pai está a minha origem.O projecto do que eu seria concretizou-se com o nascimentoda minha mãe. Tive apenas de esperar que o desejo dela seunisse ao do meu pai para ser inevitavelmente atraída paraeste mundo. Ser eu a fazer a apresentação a este aDeus, encheu-mede responsabilidade e orgulho. Responsabilidade por ser suafilha, e orgulho por ser meu pai. Que as palavras que irão ler de seguida, sabiamenteescritas por ele, vos transmitam o êxito dele enquanto serhumano. Que esse êxito não residiu na quantidade de bensmateriais que possuiu. Também não residiu na forma como serelacionou com as aflições do momento, mas sim na maneiracomo utilizou o que possuía, como enfrentou os desafios, ecomo os transformou em crescimento e numa vida cheia deamor. Penso na temporalidade da existência e, apesar da dorque me causa, fico convicta de que a vida humana, por maislonga que seja, é apenas uma gota no caminho da eternidade. No fim de contas é isso que importa. Que alguém perdure na memória graças ao poder dassuas palavras. E as minhas para ti, são: Querido papá, parte em paz e que as palavras teacompanhem. Quando ao morrer fechaste os olhos, eu abri omeu coração, e por esse motivo acredito sempre que dias maisfelizes estão por vir… Tua filha Xana



O Último aDeusAntónio José Veiga Henriques



PreâmbuloO mistério do maravilhoso merece que se fale dele.



Prefácio Se a vida tem algum sentido, este reside na tentativa decompreender todo o mistério que é a nossa vida, o porquê e opara quê da nossa existência. Muito se tem escrito, falado e discutido, desde a anti-guidade até aos nossos dias: filósofos, cientistas, pensadores; afé e ciência na sua ânsia de se completarem mais se afastam,principalmente devido aos progressos desta, mostrando assim afalta de argumentos daquela. Sem quaisquer pretenciosismos, assumindo-me comoentre todos os seres mortais, que só pela razão de o sermos,nos leva a tantas interrogações, decidi, depois de muito pensar,compartilhar com quem a isso estiver disposto, as minhasdúvidas, incertezas, convicções. Será que alguém nunca pôsnada em causa? Não creio. Assumindo-me, não como estudioso, mas como leitorinteressado em ser mais esclarecido, e muito tenho lido dostais intitulados filósofos, pensadores, cientistas, homens de féentre outros, restando, de todo esse tempo despendido e nãoperdido, pois serviu como recreio de todo o meu espaçotemporal, um vazio, um todo repleto de interrogações quedecidi passar a escrito. Para que as palavras sejam mais que isso, decidi criarduas personagens, uma o António que valoriza a parte maisracional do seu cérebro, o outro o José que dá mais valor aolado intuitivo, amigos desde a concepção, unidos num únicoser que responde de António José, este vosso amigo. António José Veiga Henriques



“O QUE É O HOMEM?” O que é o Homem? Ao longo dos séculos, foram-sesucedendo, numa lista quase interminável, as tentativas deresposta: um animal que fala, um animal político, um bípedesem penas, um animal racional, uma realidade sagrada, um serque pensa, um ser que trabalha, um ser que cria, joga, ri,chora...... saído da aventura cósmica com 15000 milhões deanos. Simplificando – É um ser humano, qualquer ser nascidode dois seres humanos – ·Homem que sabe e sabe que sabe que não sabe ilimitadamente, tem consciência do limite e, por isso, pergunta e procura para lá de todos os limites até ao infinito. Outras capacidades poderiam acrescentar- -se: o choro, a contemplação, a beleza, a inveja, o ódio, o saber não só que é mortal como o não saber o que o espera para além da morte... Trata-se agora de dar um salto e passar à pergunta decisiva: o que é realmente o homem? Qual é a sua constituição, qual a sua reali-dade constitutiva? ·Ao longo da história do pensamento religioso e filosófico surgem duas respostas: o materialismo e o dualismo. O monismo materialista reduz o espírito humano e o eu a processos físicos e químicos ao nível do cérebro e apesar de avanços e investigações neste domínio, não será exagerado afirmar que a auto- consciência e o eu manterão uma reserva de inson- dável e incompreensível para a ciência objectivamente. Mas se se defende o dualismo como se o homem fosse um composto de corpo e alma – uma alma espiritual criada e infundida directamente por Deus – é preciso perguntar, por exemplo, se os pais, que teriam apenas dado origem ao corpo – a alma viria de fora – ainda são verdadeiramente pais dos seus filhos. 13

·Perante a complexidade da questão, Pedro Entralgo (1908-2001) um dos maiores pensadores de Espanha, cientista, filósofo, humanista cristão, pro- curou um terceiro caminho que deu lugar ao que chamou uma “antropologia integradora, cosmológica, dinâmica e evolutiva” compatibilizando as afirmações cristãs sobre o homem criado à imagem e semelhança de Deus e titular de uma vida que não morre com a morte e a concepção actual das ciências que considera o homem como resultado da evolução do cosmos. Uma vez que estamos no domínio do enigmático, é razoável admitir que se possa ser agnóstico, crente ou ateu. ·Afinal o que é que se espera: Que a vida pessoal possa ter dois fins distintos; a aniquilação total para quem crê e pensa que não é possível uma exis- tência trans-mortal ou uma sobrevivência misteriosa para lá da morte. Quem espera? É o homem todo. Para muitos, é atese mais tradicional no mundo cristão – o homem é oresultado da matéria cósmica (a que dá consistênciamaterial ao seu corpo) em união com uma forma subs-tancial específica e pessoalmente humana chame-se alma,espírito ou mente. A morte separa estes dois princípios: ocorpo apodrece, e a sua matéria passa à dinâmica materialdo cosmos, e a alma fica como “forma separada à esperada nova vida que a ressurreição dos mortos lhe dará.Frente a eles, não são poucos os cientistas e os filósofospara os quais o homem, cada homem é todo e só o seucorpo. ·Ciente de que a realidade e o destino final do homem nunca deixarão de ser para a nossa mente um enigma, há que ter em conta que o homem é uma estrutura material – o seu corpo – que apareceu na evolução do universo como resultado de uma mutação biológica do corpo do hominídeo Australopithecus. 14

Uma vez que a esperança pertence ao nosso psiquismo,quando eu espero, o que na realidade espera é o meucorpo, um corpo a cujo modo de ser pertence apossibilidade de dizer “EU”, a esperança poderá ter namorte a aniquilação total de quem morre, ou umapassagem súbita e misteriosa a uma vida nova quetradicionalmente se chamou “ressurreição”. ·Na filosofia, há duas perguntas essenciais:quem sou eu? O que será de mim? ·Se pela morte, a resposta à segunda perguntafor: no fim “nada”, isto é, “ninguém”, a primeirapergunta anula-se a si própria, isto é, ainda terásentido perguntar “quem sou eu?”. Mas se ser homemé ser alguém, como é que se passa de “alguém” a“ninguém”? 15

A CONCEPÇÃO (DIÁLOGO) António – Olá, José, como estás? José – Eu estou bem, graças a Deus, e tu? A – Menos mal, mas talvez não tão bem como tu, poistens sempre alguém a quem podes dar graças. J – Só não tens porque não queres. A – As coisas não são assim tão fáceis, não dependemdo nosso querer. Olha, já pensaste porque existes? J – Que pergunta, foi Deus que assim o quis! A – Pois para mim, nascemos de um acto comple-tamente arbitrário dos nossos progenitores, voluntário ouinvoluntário, isso pouco importa, sem o nosso consentimento,sem nos impor quaisquer obrigações, sem nos traçar quaisquerobjectivos, e espero bem que tenha sido por amor ou quemsabe na ressaca de um prévio amuo. J – Mas com eles já sucedeu o mesmo e nós com osnossos filhos. A – É verdade, mas isso não invalida o que eu disse.Está nas nossas mãos o arbítrio de trazermos ao mundo ascriaturas que quisermos e quando quisermos sem ter que darsatisfação a quem quer que seja. J – Um filho é uma dádiva de Deus. A – Pois, conversa, ele resulta de um acto de prazer, emais, uma vez nos braços dos pais estes pensam que são suapropriedade que os utilizam no seu belo prazer como setratasse do brinquedo que nunca conseguiram ter quandocrianças. Olha, amigo José, tu só tens um filho e, sendo umadádiva de Deus, porque não tens um rancho, ou Deus te disseque não tens direito a mais nenhum? As dádivas não serecusam. J – Um filho custa muito a criar e a situação nãopermitia ter mais. A – Podias pedir a Deus a Sua ajuda, pois se Ele é o 16

Criador porque não ajudar as tuas e as Suas criaturas? J – Tu tens três filhos, uma mulher completamentediferente de ti na maneira de pensar, de se expressar e até deabordar os problemas, vivem numa harmonia de compromissopossivelmente a única forma de irem envelhecendo juntos, tenstrês netas que vão acompanhando e ajudando a crescer, fosteuma pessoa de sucesso na tua vida profissional e tivestesempre a teu lado este teu amigo como a tua sombra quenunca conseguiste agarrar, como é natural, ninguém agarra asua própria sombra, eu tive o filho que sempre quiseste termas as circunstâncias da vida não te permitiram, enfim, souaquele pouco que gostarias de também ter sido, enfim juntossomos como dois em um, como se diz, mas António, a partemais visível de ambos és tu e eu me oculto na tua consciênciacrítica a quem recorres aquando das tuas interrogações,principalmente as de natureza mística, as mais difíceis deentender e que tento dar resposta, mas crê meu amigo semgrandes certezas. A – Mas meu caro José, certezas ninguém as tem, sendoo último patamar do nosso conhecimento sempre a incerteza.Olha, voltando à conversa sobre a liberdade que temos de fazeros filhos que quisermos, quando quisermos, como quisermos,que certeza temos de ter criado génios ou monstros? Quandomuito teremos a esperança que no mínimo sejam como nós jáque têm grande parte dos nossos genes. J – É assim connosco como com todos os seres vivos, éa lei da natureza, conforme Deus quis, nascemos destinados amorrer e neste percurso vamos crescendo, por venturaprocriando, sem quaisquer condicionamentos, até me custadizer, no salve-se quem puder. A – É a selecção natural, segundo Darwing, a lei domais forte que tantas contrariedades criou na Igreja aindaagarrada ao Génesis da Bíblia, à criação do homem à imageme semelhança de Deus. J – Mas apesar de ter que aceitar a evolução natural, 17

conseguiu contornar essa evidência e continuar a considerar ohomem à parte dos outros seres vivos como seres de eleição. A – Bem, meu caro José, já se está a fazer tarde, masfica-te com esta, sendo o homem o mais inteligente àsuperfície deste calhau que habitamos, sendo o único quereconhece que um dia irá morrer e mesmo dizendo, alguns,que acreditam na vida eterna, têm um medo terrível da mortee assim procuram sempre argumentos para atenuar essedesidrato, mas isso será assunto para outro dia. Até amanhãJosé, beijinhos lá em casa. J – Até amanhã, António, beijinhos à tua mulher. 18

A REALIDADE DA VIDA (REFLEXÕES) Sendo verosímil que possa existir vida noutros astros, aúnica realidade que conhecemos é a vida terrestre. Por estudosde achados paleontológicos admite-se universalmente que osprimeiros seres vivos se formaram há mais de 3.000 milhõesde anos. Que teve que suceder para que os organismosincipientes se tornassem “matéria viva”, com capacidade deauto-replicação, sem outra possibilidade para além da conti-nuidade da sua existência? Não é nossa intenção dissertar sobre o assunto mastentando dar uma resposta científica muito sucinta mediante oconhecimento de que a análise química do universo foiensinando, elementos biogénicos: hidrogénio e hélio, queformam mais de 98% da matéria do cosmos, o néon carbono,azoto e oxigénio, cerca de 1%; moléculas interestelares : água,amoníaco, monóxido de carbono, alguns aldeídos e ácidos poroutro lado os biomonomeros (aminoácidos, lipídios, etc.) e osbiopolímeros auto-explicativos (do ARN ao ADN) podem tersido os responsáveis pelo aparecimento de vida no universosegundo um esquema cronológico e evolutivo deste tipo: Hidrogénio-elementos biogénicos-moléculas interestela-res-monomeros bioquímicos-biopolímeros (4,5*10*9 anos)-mi-crofósseis-primatas e humanos (de 3 a 4 milhões de anos). Como os progressos actuais da bioquímica e da biologiamolecular poderá ser que consigamos reconhecer em brevesinais indicando a existência de vida inteligente extraterrestree deduzir que não estamos sós no universo. Suceda o quesuceder, e ainda que o homem chegasse a desaparecer, o cicloeterno da matéria e da vida continuará tal como foi escrito hámuito tempo “ÉS PÓ E AO PÓ HÁS-DE VOLTAR”. A vida do ser humano tem algum sentido? Ou é apenasuma máscara sem sentido por detrás da qual se esconde o nadavazio? Pois bem, temos de viver de alguma maneira a nossa 19

vida, mesmo que ela seja apenas o resultado de um acasoabsurdo que nos lançou no mundo. Há alguma razão para nãofalar assim? Muitas pessoas opor-se-iam à ideia pelo simplesfacto de um dia se transformarem em pó, pois é possível levaruma vida com sentido atribuindo objectivos a si próprioindependentemente de concordarmos ou não com eles, ten-tando fazer o melhor da sua vida. É evidente que estaargumentação é subjectiva, podendo dizer-se que homens comoAdolf Hitler nela se inclui. Será então razoável estabelecerem-se critérios que trans-cendem o sujeito, e portanto, vão para além dele? Alguém sepreocupa com a existência dos seres humanos? O ser humano faz parte dum mundo perceptível atravésdos sentidos e que para muitos dos contemporâneos resultadum “big bang” sem sentido. Para nós, este mundo, estemaravilhoso universo é uma incógnita e, de acordo com onível dos nossos conhecimentos permanecerá para semprecomo tal. O ser humano, cuja vida constitui uma parte domaravilhoso, se quiser conceder à sua vida algum significadonão pode prescindir de uma interpretação do universo. Seestão excluídos os esclarecimentos objectivos e subjectivos ououtras construções intelectuais, poderá existir um sistema deinterpretação cultural baseado no pensamento ao longo demilhares de anos que no contexto da cultura ocidental ocristianismo é um exemplo, ficando ao critério do ser humanoa aceitação ou rejeição desta interpretação. Em geral o homem actual vive de acordo com a suaprópria consciência, para muitos há uma crise existencial, oeterno está completamente fora do seu alcance, só podendoexistir uma única religião, a religião do próprio eu. O sentido do universo, o sentido da vida, não encontrouna filosofia uma solução que resistisse à razão crítica dandoalgumas interpretações só possíveis através de uma decisão dafé. “Acreditar num Deus significa compreender a questão 20

do sentido da vida. “Acreditar num Deus significa ver que asrealidades do mundo não bastam. Acreditar num Deus si-gnifica que a vida tem um sentido. Deus é a totalidade domundo (Deus é como tudo é)”. Evidentemente que isto é impensável e inexplicável porpalavras, só é compreensível num acto místico. 21

A EVOLUÇÃO (DIÁLOGO) José – Bom dia António, aí sentadinho na esplanada, agozar este belo dia de Outono, com um ar tão triste, olhossemicerrados, será que não estás bem? António – Olá José, é verdade, a minha saúde anda apreocupar-me e estava precisamente a pensar como passeitantos anos sem que ela me preocupasse e agora é quaseexclusivamente a minha única preocupação. J – É verdade, António, a vida é isto mesmo, quandomenos esperamos as coisas aparecem, mas há que ter fé e tudose resolverá. A – Pois é! É preciso ter fé. Olha, quando vinha paraaqui, estavam uns miúdos a jogar à bola ali no jardim e eurecordei-me da nossa juventude e o prazer que nos dava unschutos na bola, na pileca, no jardim da casa dos nossos pais,junto a uma palmeira que lá existia. Como o tempo passa, já lávão mais de cinquenta anos, o que o mundo evoluiu, comoquase tudo é diferente hoje, só os putos continuam a darchutos na bola como no nosso tempo. J – É verdade, parece que naquele tempo, quase semautomóveis, sem televisão, sem telemóveis, sem computadores,as pessoas andavam mais bem informadas do que agora; bemsei que o nosso conhecimento era aquele que o Salazar queria,e agora com tanta informação é possível que as pessoas andemum pouco mais baralhadas. A – Se fosse só isso! J – Estava agora a observar-te, as pessoas passam poraqui e cumprimentam-te e a mim não. A – Pois é amigo José, eu agora sou a face visível destafraterna amizade, tu és a parte da minha consciência que meinterroga sobre a nossa razão de ser, a parte invisível para osoutros e nisso reside a nossa cumplicidade. Mas lembras-te?Houve tempos, quando éramos meninos, que era ao contrário. 22

Todos os Domingos íamos à missa, fizemos a primeira comu-nhão, a comunhão solene, o crisma e cumpríamos todos ospreceitos que a Igreja nos ordenava. Até me lembro que an-dávamos com pedras nos sapatos, a conselho do Sr. Padre, paraque com o sofrimento do corpo obtivéssemos o perdão dosnossos pecados. Fomos educados, tanto em casa como nocolégio, na fé e moral cristã. J – E tu eras muito cumpridor desses princípios, rezavasquando era para rezar, ias à missa todos os Domingos e diassantos e com a tua fé e comportamento eras sempre umexemplo a seguir. A – Fazia-o com sinceridade e sem hipocrisias, nãopensava naquilo que me ensinavam ou impingiam, era o quese pode dizer um bom cristão, era cumpridor de tudo o queme ensinavam, era um bom aluno e um bom menino. Masainda na barriga das nossas mães começámos a crescer,começámos a ser gente. J – Desculpa interromper-te, mas veio-me à lembrançaas brincadeiras que fazíamos no jardim da nossa velha vi-venda, as touradas em que tu, por seres o mais velho, eportanto o que tinha mais força, fazias quase sempre de touro,e o medo que tínhamos em sermos colhidos. A – Esta mania das touradas, era porque os nossos Paiseram ribatejanos e, nas férias grandes, íamos para o Ribatejopara casa da nossa tia, irmã mais velha da nossa Mãe e, poraltura das festas da nossa vila, em Agosto, o nosso Pai, umgrande aficcionado dos touros, ia assistir às touradas e levava-me sempre com ele. Naquele tempo, a festa brava era muitodiferente do que é hoje. Havia cavaleiros, espadas e forcados, eos touros por serem corridos várias vezes conheciam tão bem oque era uma arena, que mal entravam em praça, saltavam atrincheira para fugirem ao castigo, e depois era ver toda agente que estava lá a saltar para a arena e o touro dentro datrincheira, a situação estava invertida e o público delirava. J – E lembras-te também das corridas de carros que 23

fazíamos no quintal à volta dos canteiros, com o carro debebés, que nos serviu a todos, grandes correrias com o nossocão atrás de nós e um casal de gansos a soprar-nos sempre quepassávamos ao pé deles? A – Esse casal de gansos foi-nos dado pelo colega decolégio, onde o nosso Pai dava aulas, que morava na linha deCascais, e quem os foi buscar fui eu, de comboio. Vinhamdentro de uma alcova, o comboio vinha cheio e, por vezes, ospatos punham o pescoço de fora e sopravam por baixo dassaias das mulheres, e estas gritavam, foi um burburinhonaquele comboio. J – Foi esse nosso professor, e muito amigo do nossoPai, que nos incutiu o bichinho do Benfica. Lembras-te, asvezes que fomos assistir aos jogos, como sofríamos e atéchorávamos quando o Benfica perdia, pois naqueles tempos onosso Benfica era o maior, não é como agora, uma verdadeiradesgraça, os jogadores não têm amor à camisola, são unsautênticos mercenários, só visam o dinheiro e ganham umdinheirão. Olha que ainda me lembro da equipa do Benfica,tínhamos nós aí uns doze anos; queres ouvir? O guarda-redesera o Costa Pereira, os defesas eram: Jacinto, Félix e Fer-nandes; os médios eram: Moreira e Chico Ferreira (capitão) eos avançados eram: Carona, Arsénio, Águas, Rogério e Rosário.Por volta dos anos 60, apareceu então a equipa maravilha doBenfica, com estrelas como José Augusto, Julinho, Simões,Torres e outros, entre outros o maior, o Eusébio que se com-parava com o Pelé. Foram os tempos gloriosos em que oBenfica ganhou duas taças dos Campeões Europeus, foi à finalvárias vezes, e fez com que a Selecção Nacional, com base naequipa do Benfica, ficasse em terceiro lugar no campeonato domundo disputado em Inglaterra. Bons tempos! A – Mas nós não pensávamos só em futebol, éramoscumpridores dos nossos deveres escolares. Eu era muito bomem matemática e físico-químicas, fui sempre o melhor daturma e tu eras muito bom em português, lembras-te? Nas 24

restantes disciplinas éramos razoáveis. Os professores queleccionavam a maioria das disciplinas, eram fracos ou poucointeressados. No 5.º ano passei com distinção em matemática ecom deficiência a história. Lembro-me de o nosso pai meperguntar porque é que eu não estudava história, e eu ter ditoque não me interessava a vida dos outros, e que portanto sótinha estudado a pré-história e a revolução francesa. J – E lembras-te de um nosso amigo, guardador decabras que se juntava a nós quando íamos brincar aos cow-boys no pinhal mesmo junto à nossa casa? A – Se me lembro, foi com ele, que era um pouco maisvelho que nós, que aprendemos muitas malandrices, foi ele queme deu o primeiro cigarro, e porque não dizê-lo que foi eleque incutiu o vício que durou até aos meus 63 anos. J – Até eu comecei a fumar, e acho que não apreciava ovício, mas fumando tornávamo-nos mais homens, porquenaquele tempo quase todos os homens fumavam, não é comoagora pois a percentagem de mulheres a fumar é superior aoshomens; outros tempos, outra moral, outra maneira de estar navida. A – Bem, José, temos que ir andando e eu sei que paraonde for, tu me acompanhas sempre. J – Então até já, António. 25

DEUS, A REALIDADE E A MORTE (REFLEXÕES) A vida do ser humano tem algum sentido? Ou é apenaso estar vivo por trás do qual se esconde o nada vazio? Pois bem, temos de viver de alguma maneira a nossavida, mesmo que ela seja apenas o resultado de um acasoabsurdo que nos lançou no mundo. No fim, a morte destróitudo, também as nossas lamentações sobre a nossa caducidade.Há alguma razão para não falar assim? É evidente que quem pensa assim, é possível levar umavida cheia e ocupar os seus dias com coisas que têm sentido.O ser humano pode atribuir objectivos a si próprio, dando,assim, sentido à sua vida. Todo aquele que tentar fazer omelhor da sua vida tem um objectivo à sua frente e, assim, umsentido para a sua vida. É evidente que já falámos disto atrás evoltamos a falar aqui, porque o tema não se esgota. Todo o ser humano deseja ser feliz, e tem esse direito,se bem que seja muito difícil definir o que é, propriamente, afelicidade. Não podemos ser nós próprios a criar o sentido paranós, temos de o encontrar. O maior contexto no qual o serhumano vê a sua vida é o sentido da totalidade, da qual omundo constitui uma parte, pelo que daí resulta o sentido davida e da morte. A religião cristã no contexto da nossa cultura ofereceuma interpretação da totalidade; ela convida os seres humanosda época científica à compreensão existencial da sua men-sagem. De onde provêm os critérios de acordo com os quais onosso cérebro constrói o mundo? Talvez seja mais razoáveldizer que o mundo, tal como o percebemos com os nossossentidos, é uma construção do nosso cérebro. Verificamos issocom os êxitos da ciência e da tecnologia. Se as construções 26

estivessem em desacordo com o mundo real não teríamosnenhuma hipótese de sobrevivência. A nossa razão é o softwareque precisa do hardware que é o nosso cérebro para podercolocar as questões e também poder resolvê-las. Ao nível doquotidiano ou ao nível científico, a nossa razão fornece-nosresultados bastante satisfatórios. O pensamento só se deparacom dificuldades quando passamos para o nível do funda-mental e colocamos questões sobre os últimos princípios donosso mundo, quando queremos tirar conclusões que vão paraalém da nossa experiência e que são relativas à totalidade, daqual o mundo da ciência constituiu apenas uma parte. Asestruturas do nosso cérebro e do nosso pensamento são oproduto da adaptação às condições de vida na terra. Daparamécia a Einstein, na perspectiva evolucionista, vai apenasum passo para a compreensão do mundo, pelo que o nossocérebro é um produto dessa evolução. A amiba ou qualqueroutro animal, desde o mais simples ao mais complexo, tem asua percepção do mundo que lhes garante a sua sobrevivência.Assim, com rigor, não vivemos no mundo, mas só na imagemque os nossos cérebros projectam dele através do pensamento eda experiência adquirida no contexto da adaptação. No en-tanto, pelo menos, desde Einstein sabemos que o espaço écurvo e que o tempo tem, na realidade, características di-ferentes daquelas que nós imaginámos. A teoria da relatividadeensina que o tempo não é universal. Isto significa que mesmoque a razão do ser humano seja um resultado da evolução, oseu conteúdo transcende a evolução. Chamamos espírito aoconteúdo da razão, pelo que temos de distinguir entre a razãoque foi criada pela evolução e a sua capacidade de participarna dimensão das verdades intemporais. Por exemplo, para o macaco a noção de ramo é umaforma de saber profundo, mas ele não tem qualquer ideia dequem é Eça de Queirós nem sabe o que é um computador. Oseu mundo é limitado assim como o nosso mundo o é peloque ele não possui o nível que possa penetrar em todos os 27

graus de complexidade do universo, o mundo em que vivemosé uma muito pequena parte do mundo real. Há muito tempo que o domínio que excede o nossosaber é designado como o Além. Existe uma realidade paraalém da nossa razão; se bem que o pensamento evolui nosentido do Além, em última análise, ele permanece inacessível,temos também acesso à realidade da dimensão espiritual, noentanto, só nos é acessível um pequeno domínio. Por con-seguinte, podemos falar em um Além material e um Alémespiritual. É-nos difícil perceber questões que se referem à tota-lidade, sobretudo na questão de Deus é preciso contar comdificuldades. Isto mesmo revelam as provas de Deus que foramelaboradas com a mesma subtileza intelectual com que foipossível pô-las em dúvida. O nosso mundo é uma construção do nosso cérebro,assim como da nossa razão, o software do cérebro, produtos deadaptação da evolução. Resumindo, existe um Além materialassim como um Além espiritual. O nosso conhecimento é como uma pequena ilha nomar do insondável e nele se inclui a definição de Deus, só areligião arrisca uma interpretação de Deus. A verdade absolutaestá inacessível ao ser humano conhecendo este só as sombras,mas não a verdade das coisas. Sendo a totalidade o resultado das leis da naturezapodemos compreendê-la como o universo investigável atravésde observatórios e de satélites. A dimensão da validade,independentemente do tempo, também pertence à totalidade,portanto esta é mais que o universo físico, sendo este apenasum espaço parcial. A totalidade só pode ser aquilo quecompreende sujeito e objecto apresentando-se assim como“englobante”, sendo esta a designação que a filosofia, desdesempre, chamou Deus. Assim, como englobante, segundo a tradição, Deus cons-tituiu o fundamento de todo o ser, do ser-sujeito e do ser- 28

objecto. A partir deste conceito, foi elaborada uma definiçãoformal, compreensível, e que corresponde à tradição cristã.Deus permanece um conceito-limite e um mistério para onosso saber. Porém, é necessário chamar a atenção para o factode este Deus ser o Deus da razão e da filosofia. Para dar“vida” a esta definição, é necessária a religião. Nesta pers-pectiva, a ideia de um Deus que exista como uma coisaenorme ao lado ou diante do universo é, naturalmente, umdiscurso infantil. Deus é, e em termos filosóficos, não épossível dizer mais sobre Ele. Einstein diz “o mais belo que podemos experimentar éo misterioso. Este é o sentimento fundamental que se encontrano berço da verdadeira arte e da verdadeira vivência. Quemnão o conhece e quem já não é capaz de se admirar, de seespantar, está, por assim dizer, morto. O saber acerca daexistência daquilo que é insondável para nós, acerca damanifestação da razão mais profunda e da beleza maisbrilhante, que só é acessível à nossa razão nas suas formasmais primitivas, este saber e este sentir constituem a ver-dadeira religiosidade”. Quem sou eu afinal? A REFLEXÃO SOBRE MIMPRÓPRIO ATIRA-ME PARA UMA INCERTEZA PRO-FUNDA. Penso de uma maneira errada? Sonho? Sou apenasum fantasma? Uma coisa é certa: tenho a certeza absoluta queexisto. Apenas não sei como o devo pensar. Santo Agostinhodizia “a dúvida só é possível se eu existo”. Se quisesse provara mim próprio ou a outro ser humano, que existo, não con-seguia fazê-lo. Em última análise, eu permaneço sempre ummistério para mim próprio, que não posso desvendar. Eu existosempre no “agora”. No entanto, este “agora” escapa ao meupensamento, tal como à própria existência. Se eu quiser com-preender o “agora”, tenho de o objectivar. E, assim, ele jáperdeu o seu carácter e tornou-se passado. Por isso, é ne-cessário distinguir o tempo existencial do tempo medido, no 29

qual se encontra o mundo das coisas. Qual é o resultado destas reflexões? - O ser humano sabe que existe, com base na ex-periência imediata, embora não possa provar este facto atravésda lógica. - Cada ser humano permanece um mistério para sipróprio; nunca se pode compreender completamente. - O mistério da existência está frente ao mistério deDeus. É entre estes dois pólos que se desenrola a vidaquotidiana e o mundo das coisas. «POR VIR A PROPÓSITO, aqui faço eco de umafamosa observação de Einstein: “quero conhecer a forma depensar de Deus, tudo o mais não passa de pormenor”. Por serum visionário espero que Einstein aceitasse como ponto departida o seguinte mapa da forma de pensar de Deus. Domínio virtual – o campo do espírito Domínio quântico – o campo da mente Realidade material – o campo da existência física O poder milagroso é sagrado e mítico, e passa pelasfases atrás descritas, se bem que a ciência lhe diminua aimportância, em vez de o procurar explicar. O aparato religioso muitas vezes ofende o rigor doscientistas. Lembro a história verídica de um doente que sofria deum cancro linfático em fase terminal. Isto ocorreu nos anos50, quando a medicina vivia de uma onde de optimismo acercade ser imediatamente encontrada a cura para o cancro; ficandoos doentes mortos ou à beira da morte, pois era-lhes admi-nistrado gás mostarda, que igualmente foi a primeira cruelquimioterapia. Este homem pedia desesperadamente que lhefosse ministrada a última palavra em tratamento conhecida por“crebiosene”. O seu médico, duvidando da eficácia da droga,por uma questão de piedade, conseguiu uma única dose doproduto. Regressando de fim de semana constatou que o 30

doente estava rejubilante. Todos os vestígios de cancro tinhamdesaparecido, os nódulos linfáticos tinham regressado aonormal e o homem sentia-se bem pelo que lhe deu alta, bemsabendo que uma única dose de “crebiosene” não poderia terpossibilidades de ter actuado numa questão de poucos dias.Após algum tempo, o doente leu num jornal que os testestinham mostrado ser o “crebiosene” ineficaz. Em poucos diaso cancro regressou, o que o levou de novo ao hospital emestado terminal. O médico nada tinha para lhe ministrar, peloque recorreu ao mais drástico dos paliativos. Disse ao homemque seria injectado com uma nova e melhorada versão de“crebiosene”, mas na verdade o que lhe estava a dar era umasolução salina. De novo o homem melhorou numa questão de dias,pelo que partiu sem quaisquer evidências de cancro no seucorpo. O desfecho não foi feliz, pois mais tarde descobriu quetoda a esperança no “crebiosene” tinha sido abandonada, tendoo cancro linfático surgido pela terceira vez, matando-o deimediato. Todavia, a essência da história é o espírito ao actuar,vogar do nível virtual para os níveis quântico e material. Isto éo que existe de comum com os milagres. No entanto a fé nareligião não deve ser descurada, de forma a abrir as linhas decomunicação para além do material, tal como o são a oração ea esperança. A mente não o pode fazer unicamente pelo pensamento.Se alguma vez existir uma ciência dos milagres, terá o seuinício nas coisas intangíveis que estão enraizadas no espírito». Estes factos consubstanciam o título deste capítulo:Deus, a realidade e a morte. Quando uma rã observa com idílio um lago de águabanhado de sol, ela não está a ver nada, pois ela só vê aquiloque se mexe, o imóvel é inacessível à sua vista. Ela vê oinsecto esvoaçando mas não a flor onde está pousado. 31

Com os seres humanos, passa-se algo semelhante. Sóreconhecemos aquilo que constitui para nós objecto do nossopensamento ou da nossa percepção. Até a nós próprios só nosconhecemos na medida em que nos podemos objectivar.“Conhece-te a ti mesmo” – está escrito por cima da entrada dotemplo de Delfos. No entanto, uma parte do conhecimentonunca está terminada porque uma parte de mim permanecesempre incognoscível. Cada autoconhecimento pressupõe um“eu” que é conhecido e um “eu” que conhece. O “eu” queconhece garante que eu sou sempre mais do que aquilo que seisobre mim próprio. Represento uma espécie de sistema aberto,sobre o qual não é possível um juízo definitivo. Se alguémquiser saber se as minhas opiniões são em si isentas decontradições, teria pela frente uma tarefa impossível deresolver. No entanto, as opiniões são apenas um aspecto re-lativamente secundário da individualidade humana. Existemoutros aspectos que revelam a mesma infinidade de in-sondabilidade. Neste caso, tal como a rã, CONHECEMOSAPENAS UMA PARTE DA REALIDADE. O ser humano ésempre mais do que a química, a psicologia, a medicina, abiologia ou a sociologia podem descobrir a seu respeito. Karl Jaspers escreve “O ser humano na sua totalidadenunca será objecto do conhecimento. Não existe nenhum sistemado ser humano...... O conhecimento acerca do ser humano pro-cessa-se todo em aspectos particulares, revela sempre uma re-alidade, mas não a realidade. O ser humano é sempre maisdo que ele sabe e pode saber sobre si próprio e do que qual-quer outro sabe sobre ele. A ciência não foi encontrada narede dos seus conceitos. Observamos muitas formas de cooperação e de ajudamútua entre os animais, desde o gaio, que avisa o mundo dasaves, da passagem de alguém, da gaivota, que permanece fielao parceiro durante toda a vida, até aos trabalhos abnegadosdas formigas dedicando-se ao bem estar das outras mas, noentanto, no mundo dos animais também existem formas de 32

comportamento menos altruístas. Por exemplo, o interessepróprio explica por que motivo o leão mata os jovens da suaespécie, pois para ele não se trata da preservação da espécie,mas sim da transmissão dos próprios genes que como com-portamento biológico é chamado “gene altruísta”. Recorrendoao conhecimento da ciência, é possível calcular o parentescogenético e a melhor estratégia de reprodução de animais quevivem em grupos sociais. O comportamento social ou altruístaé apenas um truque dos genes, o ser vivo não passa de umamultidão de moléculas para transmissão da informação ge-nética. Segundo Dawkins nós somos máquinas de sobrevivência,robôs programados cegamente para a manutenção das moléculasegoístas, que se chamam genes. Por conseguinte, nenhum serhumano age verdadeiramente bem, porque o interesse dasobrevivência dos genes está para além do bem e do mal. Comefeito isto não é sempre assim, pois muitas pessoas estãodispostas a fazer tudo pelos filhos, muito pelos parentes, eabsolutamente nada pelas outras pessoas. Por outro lado, abase da amizade é a pura procura da vantagem. A sobre-vivência egoísta deve considerar-se como um sub-produto semvalor moral próprio, tudo por causa das vantagens próprias.Cada um tenta parecer mais moral do que é na realidade, cadaum ilude e engana o outro, e por vezes pode ser vantajosofingir alguma coisa perante si próprio; afinal, ninguém mentemelhor do que aquele que mente a si próprio. A sociobiologiadescreve, como exemplo, a relação entre homem e mulhercomo uma “guerra eterna dos sexos” porque a mulher temsempre a certeza no que diz respeito aos seus filhos e umhomem nunca sabe, com certeza, se uma criança lhe éimputada. A mulher sabe sempre que a sua criança possui osseus genes. Os genes não querem saber de sentido, nem de so-frimento, nem de felicidade – eles não querem saber abso-lutamente de nada, não se pode encontrar aqui qualquersentido nem qualquer justiça. 33

O universo que observamos tem precisamente as carac-terísticas com que se conta quando por trás dele não existenenhum plano, nenhuma intenção, nenhum bem ou mal, alémda cega e impiedosa indiferença. No caso de Dawkins considerar a sua teoria verídica, eletornou-se vítima de si mesmo, porque ninguém engana melhordo que aquele que é capaz de se enganar a si mesmo. Deus e a alma humana constituem a matéria da qual areligião cristã é feita. Ao longo dos séculos, esta matéria as-sumiu muitas formas e foi tratada em várias formas filosóficas,culturais e sociais, como mais à frente veremos. O cristão pode dizer que ele e Deus não existem comouma coisa (esta é toda a reflexão sobre Deus e o ser humano).O ateísmo só tem por atacar onde e quando a razão se revelaestúpida, fazendo de Deus uma supercoisa acima do mundo.Quando se faz de Deus uma espécie de relojoeiro que vigia o seuuniversal, para intervir em caso de necessidade, pode chegar-sefacilmente à convicção de que o relógio também pode funcionar semrelojoeiro, pelo que o passo seguinte é a abolição de uma religião quese preocupa com aquilo que é inútil. Deus pode considerar-se como um maestro duma grandeorquestra. Sem o maestro, só se pode esperar o caos no palco.Porém, ao contrário do palco, o maestro no ser humano éinvisível para o observador. Estando as coisas naturais subordinadas às leis dacasualidade, e se eu também estou, então, já não posso decidirse logo à noite vou passear ou vou ao teatro, pondo assim emcausa a questão do livre arbítrio e da responsabilidade moral.Assim, o assassino podia justificar-se como uma herança ge-nética ou um processo programado no seu cérebro, tal como otrovão se segue ao raio. Nesse caso, a culpa seria da orga-nização do mundo ou da natureza que deixa os seres humanosse tornarem assassinos sem poderem fazer nada contra, tor-nando-os uns autómatos, pelo que ninguém pode queixar-seque se fez injustiça, porque num mundo que é dirigido apenas 34

pelas leis da natureza, o conceito de justiça não tem qualquersentido. Kant ensina que o ser humano, enquanto ser natural,está subordinado às leis da natureza, e como ser moral, é livree responsável pelo que não exclui uma imputabilidade limi-tada. Para o filósofo existencialista Sartre, o ser humano estácondenado à liberdade podendo ter a liberdade de dizer “sim”ou “não” à vida através do suicídio. Vemos aqui que o serhumano se pode assemelhar a Deus, não sendo apenas umelo duma cadeia causal, mas através de uma linguagemreligiosa exprimir-se através do discurso sobre a semelhançado ser humano com Deus Criador. Contrariamente à ideia deDawkins sobre o “egoísmo”, o ser humano também estápronto a ajudar altruisticamente os outros. Para Dawkins, amadre Teresa é alguém que calculou a sua recompensa celeste.No entanto, o que é um ser humano que não é religioso e quenão espera nenhuma vida eterna, irromper numa casa emchamas, a fim de salvar uma criança desconhecida? O amor de Deus actua no agir de muitos seres hu-manos, mas nem todos os seres humanos altruístas são re-ligiosos. Há muitíssimos seres humanos que renunciam àreligião e que podem ser um exemplo brilhante para todos osoutros. As pessoas religiosas não têm aqui qualquer privilégio,pois, no seu agir, nem sempre têm em conta o factor Deus deuma maneira correcta. O antagonismo entre “ciência e religião” foi a própriaciência que o eliminou, ao alterar a sua autoconcepção e a suaexigência de validade. Contudo a religião também mudou, poishoje já não se fazem quaisquer afirmações sobre matérias queestejam fora do seu domínio, e este não abrange o mundo dascoisas, mas atinge a profundidade do essencial e a vastidão doenglobante. Deus não é o tapa buracos para as manchas brancas nomapa do saber, nem para os problemas não resolvidos daciência que, um dia, talvez possam ser resolvidos. Deus é, 35

antes do mais, o mistério do ser insondável, mistério cujasolução é, por princípio, impossível. Segundo Einstein, a ciência só pode ser feita por pessoasque estão completamente possuídas pelo desejo de verdade e com-preensão. No entanto, esta base sentimental tem origem na esferareligiosa. Isto inclui também a confiança na possibilidade de que asregularidades que valem no mundo do existente sejam razoáveis, istoé, compreensíveis à razão. Não posso imaginar um investigador semesta fé profunda. É possível exprimir o estado das coisas através deuma imagem: a ciência sem religião é paralítica, a religião semciência é cega. A verdade absoluta é inacessível ao ser humano. Apesardisso, o conhecimento científico é um aspecto do absoluto. No século XIX, nos estudos empíricos da filosofia danatureza “não existe nada miraculoso, tudo o que aconteceaconteceu e acontecerá, acontece… de uma maneira que estáapenas condicionada pela acção conjunta regular das matériasexistentes desde sempre e das forças naturais que lhe estãoassociadas… e tudo isto aconteceu como expressão da maisrigorosa necessidade…… Aquilo que a física descreve é anatureza, tal como ela é em si mesma; a natureza… funcionaobjectivamente, tal como funciona uma máquina a cujo fun-cionamento nós, os sujeitos, na maior parte das vezes, sópodemos assistir”. O mundo como uma grande máquina.Quem descodificar o seu projecto, tira-lhe tudo o que elapossui de miraculoso e pode utilizá-la para os seus fins. Estaideia é absolutamente errada. As cartas voltaram a baralhar-seno conflito entre o ateísmo e a religião. Assim, a filosofia, ateologia e a ciência possuem perspectivas diferentes da re-alidade, mas, no fim, vão complementar-se numa imagemtotal. A física moderna aproxima-se mais da imagem, pois seeu me sentar numa cadeira, deduzo que ela é constituída no 36

essencial por espaços vazios donde um conjunto de impulsoseléctricos esbarram contra mim, portanto a cadeira não possuiuma superfície claramente delimitada. A cor da cadeira éapenas uma construção do meu cérebro; a cadeira gira à voltado Sol a uma velocidade de 30 quilómetros por segundo. Bastauma fracção de segundo de atraso para que a cadeira fique amilhas de distância. A física moderna fala do “dualismo onda/partícula” damatéria. Os princípios físicos da teoria quântica provocaram aderrocada de um dos fundamentos da física clássica: de-monstrou que a nossa capacidade de saber tudo com exactidãosobre o nosso mundo é limitada por motivos elementares. Adescoberta de Heisenberg está hoje associada ao seu nomecomo a “relação da incerteza”. Este princípio diz, por exemplo,que é impossível medir simultaneamente com exactidão omovimento e a posição. O universo começa a parecer-se mais com uma grandeideia do que com uma grande máquina, fugindo à nossacompreensão. Na física clássica, as propriedades e o comportamentodas partes determinam o comportamento da totalidade. Na fí-sica quântica passa-se, por conseguinte, precisamente o con-trário: é a totalidade que determina o comportamento das par-tes. Penso a partir da totalidade e não das partes. Se todosos grandes sistemas filosóficos fracassarem, como devemoscompreender a nossa vida e a nossa realidade? O que resta, setudo é efémero e nada é seguro? A resposta mais consequenteé esta: Tudo é hipótese. As nossas concepções do mundo sãohipóteses do nosso espírito, tal como as da natureza sãohipóteses da nossa investigação. O mundo na sua totalidadetransforma-se em ponto de interrogação. Quando se reflectesobre a verdade, não resta senão tactear no nevoeiro; não épossível garantir a verdade de qualquer afirmação, nem sequer 37

desta afirmação. Mas se eu me entendo a mim próprio e ao mundo apenascomo uma hipótese de trabalho, onde fica a realidade? O conceito dehipótese só tem sentido se existe uma realidade que comprova ahipótese como correcta ou falsa. Se nada no mundo possui umarealidade fiável, pelo menos, a totalidade, da qual a minha vida e omeu mundo fazem parte, tem de ser real. A realidade só pode serdeduzida da totalidade. Portanto, a realidade é o pressupostofundamental de uma visão do mundo. Expresso na linguagem da religião: a vida e o mundo sótêm um ser razoável a partir de Deus. Na religião, o mundo também é transformado numafórmula. Para as pessoas religiosas, a realidade é igualmenteuma frase sem sentido que, no fundo, ninguém entende. Areligião coloca imagens, símbolos e mitos, obtendo, assim, uminstrumentário para compreender os nexos de um mundo queexcede a razão e para o aplicar com sucesso na prática da vida. Porém, existe um ponto onde todos estamos ligados damesma forma à origem primordial: NA CERTEZA DA MOR-TE. O humano é o único ser no nosso planeta que sabe dasua morte. A morte é o facto mais real da vida e é só a partirdele que todos os outros factos recebem o seu significado e oseu carácter específico. A mensagem das capelas das mortuáriasda Baixa Baviera dizem “Éramos aquilo que tu és; tu serásaquilo que nós somos.” Quem poderia reconhecer o seu eu e a sua identidadenas partículas de matéria que resistem ao processo dedecomposição? O ser humano não se reconhece nessas par-tículas. O cadáver já não é um ser humano, ele é uma coisamorta. A concepção Platónica da imortalidade da alma baseia--se na distinção entre corpo e alma. A alma e as coisasmateriais do mundo sensorial são de natureza diferente.Portanto, a alma não pode ter o mesmo destino do corpo 38

mortal. Dito na linguagem de Kant o eu penso é a condição dapossibilidade do pensamento em geral. Kant não tira desteconhecimento a conclusão de que a alma tem de ser imortal,mas apenas, que pode ser imortal. A fé e a esperança ou até osaber que a morte não é a última palavra também tem surgidoem alguns períodos da história da igreja, mas ela não é umaideia genuinamente cristã. A religião cristã pensa a morte deuma maneira mais radical e fundamental que Platão e os seusdiscípulos. E a mensagem sobre a existência após a mortetambém é formulada de uma maneira mais radical e fun-damental. O seu ponto de partida não é a qualidade da alma –seja o que for que isto signifique – mas a qualidade de Deus.A resposta à questão do que significa ser uma parte mortal nãose encontra na qualidade da parte mas na qualidade datotalidade. 39

O CRESCIMENTO E O ENTENDIMENTO (DIÁLOGO) António – Olá José, como é bom conversar contigo! Poronde tens andado? José – Olha que tu és muito distraído, então não vêsque ando contigo? Muitas das tuas reflexões residem na minhapresença permanente, junto a ti, é só estar atento e ver quantode mim está em ti. A – Tens razão, e mais, muito do que está escrito fostetu que escreveste. Por eu ser o lado mais visível de nós ambos,isso não quer dizer que estejas ausente, mas pelo contrário, atua presença influencia a minha maneira de pensar, de agir, deactuar. J – Já assim era quando entrámos na universidade, nadecisão que tivemos que tomar quanto ao curso a seguir. Tuestavas decidido a seguir engenharia, pela grande capacidadeque tinhas em matemática e nas disciplinas como a física e aquímica, e eu mais inclinado para as disciplinas como oportuguês, mas hoje entendo que foi tomada a decisãoacertada, a tua parte mais desenvolvida era a das ciênciaspositivas enquanto que, na parte intuitiva do teu cérebro, a suapresença, era mais de circunstância e não tanto de substância. A – Lembras-te como nos levantávamos cedo paraestarmos nas aulas em Lisboa às 8 horas? Quantas vezesadormecíamos no comboio, até ressonávamos, para gáudio daspessoas que viajavam ao nosso lado. Muitas vezes acabávamosa nossa toillete no comboio, outras vezes quando havia tempoe dinheiro para comprar o jornal, lá íamos entretidos a fazerpalavras cruzadas que tanto gostávamos, e ainda hoje gosto.Que saudades desses tempos, que apesar de difíceis, eram tãogratificantes. Como, para comprar um maço de cigarros, lá seia a verba para o almoço, e sem perder o apetite e a boadisposição, lá íamos nós às sandes e ao bolo de arroz, queeram mais enfarta brutos, mas que no caso era só para matar o 40

bichinho que nos roía o estômago. Sempre compreendemosque o nosso Pai nos dava o que podia, portanto assim teriaque ser, e assim aprendemos a sermos felizes com aquilo quetínhamos, aprendemos que na vida não há só facilidades, egerindo as precaridades, podemos ser felizes, e nos tornarmosgente sensível e compreensível. J – Foi conversando contigo, nas inúmeras viagens entreCascais e o Cais do Sodré e vice-versa, que fomos alimentandoos nossos cérebros, tentando aproximarmo-nos daquilo queparecia ser a verdade, mas que era tão questionável e cheio deincongruências e interrogações, que tu me pedias para ver maislonge, e que eu me esforçava para te dar as respostas que detodo em todo não te satisfaziam; tempos difíceis, pois acom-panhávamos o nosso crescimento, tanto físico como intelectual,com a consolidação do nosso “eu”, com a necessidade detentar compreender tudo o que nos foram ensinando até então,e se bem que ainda hoje me reste um pouco de tudo isso,contigo, não direi mais materialista, mas sim muito positivista,a negação a muitas coisas era tão evidente, tornando-se difícilcontestá-las. A – Pois é, meu amigo, meu irmão, meu igual, ninguémdeve ter certezas, mas convicções, e sendo assim, por que nãopôr em causa aquilo que não acreditamos, e pôr em discussão,nem que seja com os nossos botões, as nossas interrogações, asnossas dúvidas, e porque não dizê-lo, as nossas própriaslimitações. Nunca me interessei muito com os credos dasigrejas, baseados em religiões, que tanto podem ser mono-teístas como politeístas ou pagãs ou o que quer que seja,religiões que se guerrearam entre si, ao fim e ao cabo emnome, muitas vezes, do mesmo Deus, pelo que se podeperguntar se efectivamente era o mesmo Deus, entendido demaneira diferente, se seria outro Deus, pelo homem inventadosó para defender aquilo que era do seu interesse, mas que ahipocrisia deixava encapuçado. J – Mas olha, meu querido amigo, deixa-me recordar-te 41

as nossas reuniões de estudo, ora no café no Largo doCalvário, em Alcântara, ora no café perto do IST, quando erapreciso, estudávamos de verdade, e se não, lá íamos a umabilharada ou uma discussão sobre religião, ou sobre futebol,mas raramente sobre política, porque a nossa formação nestamatéria era quase nenhuma, e depois, também havia o receiode estar por perto algum pide, mas que me recorde nuncafomos incomodados. A – O 1.º ano no Técnico foi muito complicado; osistema de ensino era completamente diferente do Colégioonde andámos; o ter que ir diariamente para Lisboa, oconviver com outros colegas, o constituir o nosso grupo deamizade e trabalho, pois era assim que funcionava a convi-vência na Universidade, tudo isso aliado à nossa imaturidadepara fazer face a novas situações, o querermos ser homensmuito rapidamente, o envolvimento com uma vizinha nossa,mulher casada, mais velha, já com uma filha, e as cartasanónimas que escreviam aos nossos pais, dando conta do queestava sucedendo, tudo isso teve como consequências o terchumbado o 1.º ano e ter então resolvido ir cumprir o serviçomilitar, pelo que requeri a sua entrada, já que como estudanteuniversitário estaria dispensado de o cumprir até ao final docurso. J – Foi o melhor que fizeste, pois já tu tinhas cumpridoo serviço militar, quando rebentou a guerra de Angola e assimsó cumpriste um ano e meio de tropa, e evitaste ser recrutadopara a guerra. A – É verdade, há males que vêm por bem, vamos lánós prever o dia de amanhã. Entretanto, enquanto cumpria oserviço militar, a recruta feita em Queluz, e como Aspirante aOficial miliciano em Torres Novas, acabei por fazer a cadeirado Técnico a que tinha chumbado. Acabei a tropa emFevereiro, e tive a oportunidade, já que não estava matriculadonesse ano, de ir para o Colégio onde o meu Pai era professor,dar aulas de matemática, foi um sucesso a maneira como me 42

consegui impor, o respeito que me tinham, e o agradável queera ouvir chamarem-me Setôr, eu que pouco mais de 21 anostinha. J – Mas mesmo assim não te livraste de seres chamadopara ires fazer a guerra de Angola. A – Isso sucedeu, uns anos depois, já eu tinha concluídoo curso de engenharia, estava casado, já era pai, e trabalhavana Refinaria do Porto. Como eu tinha feito a tropa naArtilharia, pois quando a fiz era estudante, aconselharam-me air ao IST pedir uma Pública-forma da carta de curso, emcomo já tinha concluído o curso; assim o fiz e entreguei-a noMinistério do Exército, tendo, então, sido reclassificado naarma de Engenharia como Tenente miliciano, e safando-meassim da guerra no Ultramar. A vida tem destas coisas, hámales que vêm por bem. J – Eu lembro-me que te aconselhaste comigo, quandoacabou o ano lectivo, se deverias continuar a dar aulas, já quea experiência foi grandemente gratificante, ou se deveriasvoltar ao Técnico, e acabar o teu curso de engenharia.Andámos uns dias meditando um com o outro, e por fimdecidimos que deverias continuar os teus estudos, lembras-te? A – Se me lembro, José, mas o que eu queria mesmoera estudar para vir a ser engenheiro. O ser professor, jábastava o que ia em minha casa, com o nosso Pai, que aliásera um excelente professor de português e francês, que passavaa vida a dar aulas, mas com cinco filhos a seu cargo, chegavaao fim do mês sem um tostão. Ainda me lembro do meuprimeiro vencimento, acabado o curso e feito os estágiosobrigatórios, foi em Agosto de 1966, e nesse mesmo mês terido ao colégio levantar o último ordenado do meu Pai, elemorreria poucos dias depois, e o meu ordenado ser superiorem mais de 50% ao ordenado do meu Pai. É triste mas éverdade, o dinheiro não dá felicidade mas se a pessoa quiser,ajuda muito. J – Conforme acordámos, tu disseste ao nosso Pai que 43

querias continuar a estudar, até acabar o curso, que iríamosdar explicações aos alunos do liceu, o que fizemos, e que o Paidaria o que pudesse, mas se eu chumbasse algum ano,desistiria de estudar, e ia procurar emprego. A – Assim foi, felizmente não mais chumbei, fartei-mede dar explicações, e com o pouco dinheiro que trouxe datropa e com algum que economizei a dar aulas, com algunssacrifícios, com uma vida um pouco desregrada, pois na alturados exames, tendo necessidade de me preparar, passava noitessem dormir, a estudar, e ainda me lembro, já não sei qual eraa prova, estive três dias e três noites seguidas no marranço, e oexame que deveria ser de manhã foi adiado para a tarde, e euentão desisti, tal era o cansaço, e fui mais tarde à segundachamada. J – Foram tempo que recordo com saudade, que nanossa pequena tertúlia de café, discutíamos sobre o mistério davida, a existência de Deus, o enigma da morte, que púnhamosem causa muitos conceitos e preconceitos da sociedade ondeestávamos inseridos, da hipocrisia das pessoas, parecendoaquilo que não eram, abusando ou usando dos mais fracos oumais temerosos, o querermos endireitar o mundo e sabermos oquão pequeninos éramos, a frustração que sentíamos perante asinjustiças que se praticavam em nome, quantas vezes, devalores que se perfilavam para se conseguir o fim que maisinteressava àqueles que sem quaisquer escrúpulos, olhando osseus umbigos, se consideravam os senhores do mundo. A – Tu, José, ainda hoje convives com muitos princípiosque defendias quando éramos jovens e, é por essa razão, quequantas vezes eu te procuro para ouvir o teu conselho sobrematérias que sendo controversas, devemos meditar sobre elas.Sabes o quanto me angustia não ter tido o privilégio de sertocado pela fé. Mais felizes são aqueles que podem procurar noseu Deus, a razão, muitas vezes, dos seus infortúnios, a des-culpa para os seus pecados, a justificação para aquilo quefazem e não deviam fazer. O dar graças a Deus, por isto ou 44

aquilo, o dizerem que foram criados à sua imagem e seme-lhança, como se Deus tivesse alguma imagem e com os sereshumanos alguma semelhança, o livre arbítrio que reclamampara si, mas ao mesmo tempo se justificarem com Deus sobretudo o que lhes sucede. Enfim, tanto teríamos para dizer sobreesta matéria, mas fica para outro dia, pois já se vai fazendotarde. Até logo, José. A – Até logo, António, já vou ter contigo, só vou ficaraqui um pouco mais, meditando a existência de Deus oprocurar saber da sua existência, se Deus tem existência ou éapenas um Ser, o que quer dizer, sendo em “Ser” em oposiçãoao “nada”. Se foi Ele que criou o mundo e todo este mistérioque nós conhecemos através dos nossos sentidos. O planetaque habitamos, que pertence ao sistema e que faz parte danossa galáxia, é tão pequeno comparado com a infinidade doUniverso, do qual só conhecemos uma pequena parte. 45

A ESTRUTURA DINÂMICA DA REALIDADE O DINAMICISMO DE ZUBIRI Como se iniciou e como se configurou a realidade douniverso? Já bem dentro do século XX não existia ainda uma aomesmo tempo canónica e fiável. Só no tocante a uma partemínima do cosmos – a biosfera terrestre – surgiu na segundametade do século XIX uma doutrina cada vez mais am-plamente admitida pelos homens da ciência e, desde Spencer,também pelos filósofos: o evolucionismo de Charles Darwin.Porém, só com a “Origem das espécies” e o genial conceitoque a integra, o da “selecção natural”, começará a entender-secientificamente a génese das formas vivas da matéria. Nestequadro, e a partir da formulação da teoria dos “quanta(Planck) e da teoria da relatividade (Einstein), a cosmologia doséculo XIX foi rapidamente substituída por outra. A primeira foi a descoberta da realidade do electrão e,um pouco mais tarde o conceito de “partícula elementar”. Istolevou a pensar que os átomos da química então vigente seriamcorpúsculos compostos por um centro electropositivo e umaatmosfera electronegativa, formada por electrões em movi-mento circular (Rutherford). Descobertas posteriores (o protão,o neutrão, etc.) obrigaram a criar o conceito de “partículaelementar”, que abrange todas as partículas subatómicassupostamente irredutíveis e outras menores e, mais tarde,quando se conheceu a realidade complexa de algumas delas, secomeçou a distinguir entre “partículas verdadeiramente ele-mentares”, por agora não divisíveis em outras e “partículasconvencionalmente chamadas elementares”, mesmo sabendoque possuem estrutura complexa (entre elas o protão e o neu-trão). Por outro lado temos a descoberta da radioactividade; ateoria da relatividade confirmou a possibilidade da conversãoda energia térmica e electromagnética em partículas ele- 46

mentares mais ou menos estáveis. A relação de todos estesfactos com a descoberta do astrónomo Hubble que as galáxiasse afastam velozmente umas das outras e que por conseguinteo universo visível está em expansão desde a sua origem. ·O universo que vemos é o resultado provisório da magna explosão – o big bang – que aí há uns 14000 milhões de anos sofreu um pequeno núcleo de carácter enigmático, do qual só podemos dizer que a sua realidade era anterior ao tempo e ao espaço e não era nem matéria nem energia, no sentido que estas palavras têm para nós, pelo que poderemos concluir que a matéria cósmica se formou a partir de “algo” anterior a ela, ao espaço, ao tempo e a todas as formas de energia estudadas pela física. ·O que é então matéria? E uma vez que as partículas elementares são os entes constitutivos do modo de ser real do que chamamos matéria, o que é uma partícula elementar, em que é que consiste a sua indubitável realidade? Só poderemos dizer isto: é algo que, por um lado, procede de um antecedente não material e que por outro “é” podendo ser duas coisas que, aparentemente se excluem uma à outra – massa material, energia electromagnética – já que actual- mente não parece possível, cientificamente, encontrar uma solução satisfatória. ·Meditando sobre o conceito e a realidade da partícula elementar, a mente do cientista sente, com desconforto intelectual, a falta de conceitos científicos e filosóficos capazes de darem razão suficiente do novo modo de o real se apresentar. Assim acontece no século XX uma inovação radical e exigência inte- lectual com a teoria dos quanta e da relatividade, levando o pensador Zubiri a afirmar que o cosmos “não está em dinamismo” mas sim que “é dina- mismo”. 47

·Voltando à questão base do big bang e atravésde uma série de etapas, rapidamente o universo che-gou a ser para a ciência o que é na actualidade: umimenso e ilimitado conjunto de galáxias, entre elas anossa, a Via Láctea, e dentro dela o sistema solar como pequeno planeta no qual nós os seres humanoshabitamos. ·No que se refere à evolução do nosso planeta,sabemos, que há 4000 milhões de anos apareceu àsuperfície da Terra o modo de ser a que chamamosVIDA, de que foram expressão inicial uns conjuntosde moléculas mais simples do que as actuais células. Apartir de então, uma evolução biológica e cósmica deulugar ao povoamento do nosso planeta com seres vi-vos, uns vegetais e outros animais que com a selecçãonatural de Darwin vai dando aparecimento a novasespécies, processo em cuja estrutura cooperam trêsmomentos causais intimamente ligados entre si: oacaso, a necessidade e a teleonomia. Pois bem, acaso,acontecimento imprevisível é o que a nossa inteli-gência ao facto de tais e tais moléculas se teremreunido há 4000 milhões de anos ou ao facto de quese produzam tais mudanças de “habitat” no decursoulterior da biosfera. Uma vez produzido e desenvol-vido esse acaso, é a necessidade que impera. Consi-derando que o movimento do universo não está regidopor uma causa final como pretendeu a teleologiaantiga, apareceu a teleonomia a atribuir-lhe um sen-tido mais ou menos razoável. ·A cosmologia zubiriana: ·Visto que para Zubiri, o cosmos é em simesmo dinamismo estruturado e evolutivo, vamosapresentar, sem as desenvolver, as cinco formas eníveis evolutivos do dinamismo cósmico: ·1. O dinamismo da variação. 48


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