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A lenda do homem dourado

Published by Paroberto, 2020-04-29 19:26:23

Description: A lenda do homem dourado

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A lenda do Homem dourado 



Jairo Ferreira Machado A lenda do Homem dourado Florianópolis 2020



O povo: a incerteza de sempre... O ambiente: a selva no seu natural... O sujeito: um matuto qualquer... A mulher: uma “mulher da vida!”... O cachorro: um vira-lata fiel... O tema: os percalços da vida... A certeza: a providência divina...



A lenda 



 Um dia como outro qualquer, o sol ainda no espalho da cerração se desprendendo da relva para o espaço, quando ele partiu atabalhoado ainda levando no corpo a fragrância de Maria Rita; a decisão tomada um dia antes mudaria seus planos, sua vida, tomou consciência disso de véspera, quando triste e indignado deixou os afazeres,

12  A lenda do homem dourado despediu-se dos companheiros de trabalho, foi para casa e em silêncio serviu-se da arma escondida no desvão do telhado, de caso pensando, pisando leve foi diretamente ao seu quarto, o coração já sabendo o que seus olhos presenciavam – Maria Rita com outro homem, na sua cama de casal; dois meses se passaram desde que adquirira o enxoval com o dinheiro da venda de um misero rancho, onde ao entardecer gorjeava triste o sabiá sobre o galho da laranjeira, aquele que parecia ser um canto, um hino, somente para ele. Tudo começara no dia que conheceu Maria Rita no prostíbulo da periferia da cidade e sem que assim desejasse, se apaixonou; fora lá a convite de um amigo, sem muita

Jairo Ferreira Machado  13 pretensão e cismado de que a emoção pudesse interferir no desempenho sexual, pois não é que num instante o falo foi a prumo, com louvor, Maria Rita delirou, ele mais ainda, voltou dias depois com as alianças, a “moça”, os olhos cheios de brilho (qual mulher não sonhou com isso um dia?) aceitou, embora não se achando merecedora; casaram uma semana depois na capela da cidade, tendo o cão como única testemunha – o coitado, os olhos compridos lá da porta da igreja – o reverendo não o permitira entrar, como também não aceitou a presença das testemunhas, “colegas” de Maria Rita – todas, contumazes pecadoras, dissera o padre. Oh! Maria Rita!, que sina a sua..., puxou o gatilho, um único tiro no peito do descarado e partiu em desenfreada correria, morro acima escalando a encosta em sentido da mata selvagem, levando no peito o desgosto da vida com o povo lá embaixo aos brados – Olha lá...! Matou um homem!... Está fugindo, o cão indo à dianteira, como se lhe adivinhasse as intenções, o coitado fora testemunha do seu céu (lá na igreja), e do seu inferno (no homicídio), corria tudo que podia, o coração palpitante, angustiado, na mente, a imagem do sujeito estrebuchando lá na cama, o lençol, novinho, banhado de sangue, Maria Rita, nua, implorando por misericórdia, a face de horror, o travesseiro protegendo aquela inquestionável nudez de puta arrependida, perdoou-a, naquele momento. Num dos ombros, a espingarda, no outro, o alforje carregado de apetrechos, a botina, recém adquirida

14  A lenda do homem dourado rangendo o couro noviço, mas antes de afundar-se mato adentro lançou o último olhar para cidade onde nascera, ao pé da serra, daquele momento em diante, somente brenhas e cafundós onde ninguém que tivera a coragem de se aventurar voltara para contar a própria história; agora, ele e seu amigo cão, numa sofreguidão só, tempo depois já não ouviu alaridos nem vozerio de alguma perseguição policial, decerto, desistiram, pensava, percebendo ser perda de tempo persegui-lo, não era lugar de humano se aventurar, o povo, naquelas alturas, o amaldiçoando e já o considerando comida de onça, ademais, o falecido era um vagabundo, difamador, vangloriava-se de “garanhão” da cidade; não carecia de melhor sorte – fora despachado para os infernos. Deixava a vida simplória de rancheiro para uma aventura sem precedentes, vivia prostrado na modesta e enganadora existência, esperando um dia encontrar a felicidade, enganou-se por algum tempo, ou foi enganado, se muito sentiu de perto a fragrância de Maria Rita, gozou e a fez gozar à revelia, isso já não importava mais, agora, uma vez sem os riscos da perseguição, diminuiu o afobo, mas não o receio daquele tom crepuscular prematuro, definitivamente sentiu-se abraçado pelas entranhas da selva, num ambiente hostil, assim, exausto, recostou-se num tronco caído, arrancou as botas dos pés e, indiferente aos riscos ao redor e da selvageria que sua nova moradia representava à sua vida, ali mesmo adormeceu, o cão ao lado, com a língua de fora, em sôfrega respiração –

Jairo Ferreira Machado  15 Cuide de mim, trigueiro, pensou dizer, mas o cão já tinha adormecido também e sonhou com Maria Rita: o buquê de noiva, o único adereço que o pároco permitira. – Nada de véu e grinalda! Coisa simples! Deus não aprova essa união; mas, vá lá – dissera o reverendo. Antes vendera o rancho e se empregou para melhor conforto de Maria Rita, o único meio de formalizar matrimônio com a “moça”, sabendo, que para o rancho ela não iria – soube disso desde aqueles gemidos eróticos daquela noite fatídica, Maria Rita fogosa – não era inocente de acreditar em amor – Maria Rita, “puta de linha”, requintada, calejada de cama, até mesmo estranhou que ela aceitasse o convite de casamento, mas ora bolas!, também, não se desdenhava, embora fosse turrão,

16  A lenda do homem dourado desacostumado dos tratos com mulher, mesmo que fosse aquela, diferente das outras; fêmea mesmo, só a sua mula de cabresto, a qual vendera por uma bagatela, no dia em que negociara o rancho onde vivera seus dias de infância (antes do falecimento dos pais) e agora já adulto, ganhava o pão de cada dia, na capina, no eito, no muque, na ordenha de algumas vaquinhas, pensava, maldito o dia que fora à zona! Oh! Maria Rita...; quanto sonho e algumas noites de orgia, para nada, a vida agora virada ao avesso, à sua frente as entranhas de um cipoal intransponível, um enovelo de intestinos, os percalços de cada momento o levando ao desânimo, mas não outra saída senão continuar a fuga levando apenas alguns pertences no alforje, tendo à dianteira o amigo cão; Maria Rita na lembrança; a negritude da noite e a imensidão de uma selva indomada, o medo e as trevas ditando as ordens, venha, você agora é todo nosso... Acordou e era verdade, o cão rosnando baixo, num pressentimento de algo inusitado (ainda bem que o prendera numa focinheira improvisada de embira e cipó), pois caso ele quisesse latir não podia, modo não denunciá- lo, sabe-se lá se isso os denunciariam, era mais prudente, levantou, calçou as botas, acariciou a cabeça do cão modo esse aquietasse, pegou da espingarda, e pôs-se de tocaia, o dedo no gatilho, a arma apontada no vão das folhas que se moviam como ventasse somente ali, e no que o bicho apontou a cara, puxou o gatilho e o animal tremulou lá o último suspiro da morte e o cão desatinado, tentando se

Jairo Ferreira Machado  17 desvencilhar dos amarres, sem sucesso; era, para o azar da caça e sorte sua, a coitada de uma paca, entristeceu-se, ao mesmo tempo aliviado, sabendo que por uns dias estariam razoavelmente alimentados, contudo, preocupado se o eco do tiro os denunciaram, cuidou de se afastar do local o mais rápido possível, não demorou muito, veio o amanhecer ou o que parecia ser, de muito longe uma cerração nublada, ou aquilo não era amanhecer, dias após notou, depois de muitas noites a fio os dia pareciam noites, ziguezagueando a esmo, modo não deixar vestígios ou algo que parecesse trilha, resquícios, caso a polícia ouvira o estampido da arma e estavam vindo no encalço; qual nada, ninguém era tão doido assim, muitos dias após, aquela cerração nublada parecia mais alvissareiro, quem sabe o sol, cauteloso, parou em meio a uns rochedos, fez um braseiro, deu os restos de uma caça ao cão, comeu, embrulhou a sobra em folhas de arbustos, botou no alforje e continuou a fuga. Oh! Maria Rita!, logo o clarão se desfez na escuridão da floresta, foi- se, como tinham ido seus dias com Maria Rita, os espinhos rasgando suas vestes, sua carne, tanto quanto Maria Rita rasgara seu coração, o cão vez e outra farejava o alforje e tentava se livrar do laço, aquiete-se amigo, dizia, não era bobo de soltar o único companheiro e aquele se meter atrás de algum bicho qualquer naquele fim de mundo, de onde, quem sabe, nunca mais voltaria.

18  A lenda do homem dourado O cão, sua guarda, sua alma Em certos momentos sentia na carne o frio úmido da floresta, lembrando a intensidade de um dia ensolarado e o calor acolhedor dos primeiros raios solares da manhã, quando abria as janelas para o sol entrar e aquecer o recinto do casebre e mais tarde, sua rude face de trabalhador rural, lembrava, não sabendo sequer para onde ia, acreditando mais na malícia e no instinto do cão, algumas vezes, definindo seu norte na impressão de uma réstia de luz, onde pudesse ajuizar lugar mais promissor, cansado de rasgar no peito a mata, o cipoal, as malícias, daí o facão em punho, no resguardo de um bicho impetuoso, uma onça, uma serpente que num repente pudesse atacá-los, já não lhe preocupando a perseguição policial – ninguém se meteria naqueles cafundós em busca de um sujeito que tudo que fizera foi resgatar a moralidade dentro do seu próprio lar – assim, mais fugia da vergonha que passara, ele dando duro no trabalho e aquele sujeito, aproveitador, na sua cama, no macio do colchão novinho, gozando dos licores insaciáveis de Maria Rita!; soubera do fato um dia antes – pelo mesmo companheiro que o levara à perdição da zona, que indignado com a falta de respeito do outro, a cidade inteira já devia estar sabendo, quando ouviu do amigo Josuel – Capiau, Maria Rita está lhe traindo!.. e indignado arriou o queixo no peito, como se recebesse uma ordem superior, abanou a cabeça, as lágrimas lhe

Jairo Ferreira Machado  19 escorrendo dos olhos, planejou, decidiu, escolhendo a exata hora, o dia e o cenário – a sua moradia, a sua cama, o colchão cheirando a novo, quanto atrevimento, disse a si mesmo, não era homem de levar chifre e se acomodar, como boi amuado da canga, na manhã seguinte, antes de se levantar e ir para o trabalho, “comeu” Maria Rita, como fazia todos os dias, “comeu” uma, duas, três vezes, até a exaustão de si mesmo, como se despedisse daquela vastidão de cio; investira o último tostão, naquela vulva bivalve insaciável, carregada de perdição; agora, ia ali, ele e o cão, em meio aquele mundo inóspito, sem saída, rompendo no peito o cipoal, e só vez em quando tinha a sensação do perfume de Maria Rita ainda no seu corpo, do suor daquela mera meretriz ainda entranhado em seu corpo, ou se eram vagas lembranças de sua memória conturbada pelo calor e pelas adversidades da selva. Oh! Maria Rita!, parecia que seu coração queria gritar!... O matagal intransponível, os insetos atacavam sua face, pescoço e braços, com a voracidade de um leão, formigas de todas as espécies subiam por suas pernas, senão, eram cupins, galhos chicoteavam de passagem sua cara, o peito, eram maldades de todas as ordens e gravidades, ainda, moribundos, ele mais que o cão, sob as incertezas de que ainda estariam vivos no instante seguinte, a ameaça do perigo a todo momento, não era lugar para nenhum ser humano sobreviver; maldito aquele abraço fervoroso, a animação libidinosa e o fulgor vaginal de Maria Rita, malditos aqueles hirtos seios, onde sugara a melhor

20  A lenda do homem dourado seiva, maldito aquele colchão novinho e os prazeres com Maria Rita... Numa daquelas manhãs, já bastante maltrapilho, as botas em frangalhos, a barba e cabelos crescidos, mais bicho que homem, o fiel companheiro já manco de uma pata com aqueles olhos lacrimejados, como se chorasse em silêncio, olhou atento e deparou-se com um alvorecer incomum, ou era sonho, reteve-se pasmo, da quase noite dos dias anteriores e agora a impressão longínqua de um fulgor à sua frente; inacreditável, animou-se, a luz do sol não o tinha abandonado, o cão rosnara várias vezes à noite, parecendo sonhar, mas rendido ao cansaço, nem latiu – deixou de lado – também exausto, ele acordou com a sensação de escutar mais gorjeios de pássaros do que nos dias anteriores e ao longe o murmúrio abafado de uma cachoeira trazendo com ela um tímido sopro de nevoeiro frio, a luz rasgando em retalhos a escuridão da mata, cujas árvores altas, acreditava, iam aos poucos rareando, cedendo espaço aos arbustos menores, dando vez a relva, a vegetação rasteira, como se a mata, por fim, permitisse a luz do dia se manifestar, ou era tudo um sonho, seus olhos já muitos embaciados, não acreditando no que via, sabe- se lá o que seria então, o cão, por perto, num choramingo angustiado, desconfiado, também estranhando a claridade, o inusitado, tentando se desvencilhar a todo custo da focinheira (recurso que o dono usava modo mantê-lo calado e não atrapalhar as armadilhas) que o dono fazia e ter o de comer, assim, certo ou errado, iam sobrevivendo...

Jairo Ferreira Machado  21 Irmanados (todos aqueles dias e noites) o cão trigueiro já bastante ferido desde a noite que foi atacado por um grupo de javalis, salvara-o uma bala certeira no pescoço do macho que vinha à dianteira da alcateia, quando os demais, desnorteados, por falta do guia, tinham tomado outros rumos mato a dentro, mas antes, um deles fizera um lanho no dorso do coitado do cão. A luz do alvorecer se fazendo alvissareira, feita Maria Rita lá no altar da igreja, o sorriso hilariante, os dentes muito alvos, os lábios carregados no batom, assim, sedutora, emplumada de fitas no cabelo, naquele inesquecível momento, o cão trigueiro, lá da porta da igreja, testemunha de tudo, o Capiau ali, já amuado,

22  A lenda do homem dourado voltou à realidade, mesmo que muito caminhasse, parecia nunca sair do lugar, vendo o clarão da luz irradiando de todos os cantos da mata, ao tempo que aumentavam os murmúrios, gorjeios, zumbidos, aguçando os seus sentidos, não fazia ideia do que fosse aquela imensidão de luzes fosforescentes, como chuva fina prata caindo dos céus, fosse aquilo uma espaçonave reluzente descesse ali, logo, toda cautela era pouca, o cão preso ao laço de cipó, o que o obrigava não se distrair, mantendo o dedo do gatilho, num pisar macio, pé ante pé, como um felino espreitando a presa antes do bote fatal, os olhos vidrados nos detalhes à frente, a respiração ofegante, o coração batendo-lhe aflito no peito, vendo a vida em abundância, como numa celebração, mesmo que muito aprendesse sobreviver na selva, naqueles últimos dias, não conseguia decifrar o que seus sentidos espreitavam uma vastidão indecifrável, como algo de outros mundos, aquele espectro de luzes se espargindo em todas as direções, a luminescência aumentando à medida que se aproximava do lugar, ou era tudo aquilo uma miragem?, não, não, seus olhos não podiam estar errados, a biosfera exultante, promissora, por isso mesmo, arriscada! Oh! Maria Rita! Doara-se de corpo e alma aos prazeres dela, o coração, a paz de espírito, o rancho, o único emprego, a inocência cabocla, mas nunca, nunca o orgulho, não se emprestaria ao vexame de ter a cama profanada e deixar por isso mesmo, assim, dera um único tiro no peito do infeliz, o que podia fazer, além de fugir, lembrava a cama macia, os lençóis

Jairo Ferreira Machado  23 cheirando a alfazema e os seios lúbricos e perfumados de Maria Rita, como dois pujantes cálices, onde sobejou seu primeiro ósculo, assim, inconformado com tudo, dera cabo ao sujeitinho que ficou por lá, estrebuchando a morte sobre o leito profanado, tentava esquecer o passado, tendo a frente uma fulgente poça de claridade, que parecia empurrar a escuridão para fora da mata, para fora de si, ainda longe do ponto onde a luminosidade se fazia maior; confuso, andava em círculos, espreitando cuidadosamente os realces das luzes, de certa forma, encantado com a visão, momento depois, seus olhos colidiam nas águas de uma lagoa, cuja, ao redor, pronunciava-se grande folguedo de fauna e flora, como o verdadeiro jardim do Éden, dos contos bíblicos; teve medo, afinal, eram animais de todas as espécies e tamanhos, como nunca antes vistos, o que pareceu ser, no seu vago pensamento, o verdadeiro esconderijo do sol, o lugar onde o sol recolhia o primor da luz do dia, e de onde arremessava seus raios cintilantes, como uma chuva de flechas iluminadas, dando vida ao dia, o que seria, os olhos do crepúsculo matutino, o cão ali, inquieto, o pelo do dorso arrepiado, podia farejar melhor e melhor aguçar seu instinto caçador, sem a focinheira, mas não, não podia se arriscar, continuou circulando, circulando, até abrigar-se detrás de uma rocha, num ponto estratégico, dali podia dar vastidão aos seus sentidos, tempo suficiente para melhor conhecer o ambiente, sem se expor aos riscos, o clarão refletindo um brilho intenso como resplandecesse do fundo do lago em todas as direções; não era um fenômeno comum, a

24  A lenda do homem dourado biodiversidade, como uma constelação de estrelas atraindo para si animais, vegetação de todas as espécies e tamanhos, agora, árvores de médio e pequeno porte, flores, gravatás, pedras, pedregulhos, plantas rasteiras, relvas, logo deu-se conta de que poderia permanecer ali por longo tempo, sem o amofino da fome (com toda a riqueza de caça em volta) e sem a inconveniência da sede. Era o Jardim do Éden, paradisíaco, feito o céu na terra, a luz dos seus olhos refletindo a enormidade da biodiversidade, única, majestosa, tomando para si parte da floresta. Oh! Maria Rita; quem dera ela ali, sentia saudades, lembrando a madrugada em que fizera amor com ela, ou ela fizera sexo, e ele amor, pensava, deixando-a exausta sobre a cama, antes de ir para o trabalho, passara- se muitos dias desde então, mas parecia trazer em si a fragrância daquele corpo sensual e cheio de vida; quanta vulgaridade!, Maria Rita nascera mesmo para ser mulher da vida, maldito aquele dia, lá na zona, agora, não podia mais retroceder no tempo, a luz dos seus olhos refletindo a magnitude do santuário à sua frente, o coração lhe batendo falho no peito, tristonho, Maria Rita, não estava ali; desconsolado, arguia-se, do que adiantava tudo aquilo, se estava sozinho, e já não se julgava merecedor de toda aquela beleza a sua volta; pensava nos pecados cometidos, matara um semelhante, e alguns bichos do mato, para se alimentar e dar de comer ao cão, logo, não era justo ter encontrado aquele lugar, antes, tivesse morrido no meio da selva – como comida de onça – sentia

Jairo Ferreira Machado  25 as mãos ensanguentadas, a alma pecadora, a consciência pesada, sem falar na dor física, os pés em chagas, o corpo extenuado, a magreza preponderante, e ainda, no íntimo, a perda da espiritualidade, já não acreditava que pudesse resgatar todas as perdas, enquanto o ácido do suco gástrico corroia forte suas entranhas; As botas bem destroçadas, pouco adiantara os remendos com embiras e cipós retiradas das matas, com as quais cosia as partes soltas das botas, aproveitando-se dos descansos eventuais e do couro do javali que matara dias antes, em defesa do próprio cão; momento em que a mente o levava ao passado e Maria Rita se tornava um tormento, mulher dos infernos, agora, já diante de algo extraordinariamente incomum, e já duvidava que fosse merecedor de uma nova oportunidade, mas era, lembrou-se do árduo trabalho no campo desde a infância e já adulto, homem de fé, logo, não era tão somente um pecador, até falava com Deus ao deitar, saíra daquele rancho uma única e derradeira vez, exatamente no dia em que conhecera Maria Rita, que impressionada, riu de suas mãos grosseiras, cheias de calo, mas na cama..., agora pecador dos piores, contudo, tinha grande respeito pelas coisas da natureza, no íntimo, enquanto procurava encontrar uma saída dentro da mata, conversava com Deus e o Soberano lhe presenteava com alguma luz, uma fruta, algo de comer, um riacho, Oh! Maria Rita!...

26  A lenda do homem dourado O perfume dela, muitas vezes sobrepujava a fedentina do seu corpo, de forma que, não podia esquecê- la; o ranço dos trapos de roupa, as dores do cansaço, a indignação na alma (em poucas horas perdera tudo que conseguira na vida, do quase nada que possuía,) até a mula, onde eventualmente fluía o seu descarrego, antes de perder Maria Rita, a paz de espírito, quando mais tentava se aprumar na vida; agora, imaginava sua história de logro em logro pelas ruas da cidade, pelas esquinas, pelos bares, era o assunto principal das donas de casa, no café da tarde, as bocas malditas!. – Viu o que o matuto fez?... outras mariquitas tentando contornar – Coitado... parecia tão bom! – A sem-vergonha é que o traiu. – Também o que aquele Capiau esperava? De qualquer maneira, fez um grande favor aos chifrudos da cidade, retrucava outra; não é que tinham razão as balzaquianas desocupadas!; por certo, os homens da cidade, naquela hora, pensavam que já estivesse morto, se muito, dedicavam-lhe uma oração, outros rogavam praga – Bem feito!... o desgraçado foi tirar Maria Rita do nosso deleite clandestino!; não é que os homens tinham razão, tirar Maria Rita da zona, fora uma grande ofensa aos amantes enrustidos, aos pais de família, e aos solteirões necessitados, pensava, ouvindo ao longe o murmúrio manso de uma ou mais cachoeiras, o Jardim de Éden à sua frente; sentiu fome, o cão trigueiro mancando, o coitado lhe salvara a vida das garras de uma onça, ocasião em que também quase perdera a própria, valera-lhe a astúcia do cão, antecipando a intenção da

Jairo Ferreira Machado  27 bruaca, a onça, já no voo do bote, atirando-se de cima de um galho de árvore, o cão percebera e avançara com bravura, mas com uma patada fora jogado longe, assim mesmo o bravo não se dera por vencido, levantou-se num pulo, mas a felina já o tinha nas garras, depressa ele atirou e a felina evadiu-se em disparada mata afora, deixando pelos arbusto marcas de sangue; fora por um triz, agora, o coitado teria tempo de cuidar dos rasgos do corpo do fiel companheiro, curou-o com sumo de ervas maceradas; doía no cão tanto quanto lhe doía no íntimo, o acontecido; Oh! Maria Rita! Somente o tempo, quem sabe, um dia, fizesse esquecê-la, a delicadeza daquelas mãos carinhosas, aque- les lábios carnudos com gosto de batom, a experiência voluptuosa, a libido à flor da pele, o desejo nunca satisfeito, lembrou-se de quando fora lá no meretrício, pela primeira vez, e pagara pela transa – fizera jus ao desempenho – confabulou satisfeito ao amigo, e que ele voltasse lá, tivesse dinheiro ou não, ela falara, mas não deu ouvidos, pediu-a em casamento, agora amargava a insensatez; iludida com o seu bom desempenho na cama e um pouco desiludida consigo mesma e mais a ilusão de se tornar madame, aceitou; quanta insensatez... A luz do dia parecia cobrir o lago de um manto dourado, coisa que seus sentidos jamais tinham percebido, como se o lago transluzisse o efeito da luz solar; próximo dali, a abundância de animais de todas as espécies e gêneros, e já imaginava a fome saciada, bastava que ficasse

28  A lenda do homem dourado atento aos olhos do cão, mas desse um só tiro ou o cão latisse, decerto, os bichos desapareciam dali: a situação exigia astúcia e lucidez de raciocínio, predicados que em certos momentos, faltava ao cão, mesmo que o trigueiro demonstrasse ótimo instinto, cuidadoso, deslocava-se do esconderijo, devagar, armando por ali algumas armadilhas aos arredores das trilhas onde os bichos transitavam na busca de alimento ou mais comumente, indo saciarem a sede no lago, não muito tempo depois, tirou o isqueiro do alforje, acendeu o fogo e já tinha a carne no braseiro; o cão ali se abastando das entranhas e dos restos da caça, enquanto ele assava o seu pedaço melhor; daquele dia em diante, não mais lhe convinha a pressa, a menos que algo de terrível ocorresse, daquele momento em diante; tudo transcorria dentro da maior incógnita, o que acontecia daqui a pouco, acolheu-se, portanto, em meio a um emaranhado de rochas o deixando mais a vontade, sem nunca esquecer o calor de Maria Rita – calor igual nunca antes experimentado!; contentar-se-ia, então, com as circunstâncias do momento, e se Deus e o cão os tirasse dali, outro dia, ainda se considerando merecedor de uma segunda chance na vida; aproveitaria, então, para cuidar das feridas (suas e as do cão), já que, não podia curar as feridas do peito; isso, somente o tempo poderia remendar, como remendara ele próprio suas botas, suas roupas, razão porque ainda se encontrava vestido; Deus estava ao seu lado – dizia a si mesmo –, pois do contrário, estaria morto!

Jairo Ferreira Machado  29 A cada pernoite, dava um pique no cabo do facão, com o objetivo de saber o tempo desde aquele momento fatídico do tiro, contabilizando as andanças a ermo, perdido na mata, muitas das vezes, sem dormir, preocupado com os urros da onça cada dia mais próximo, decerto tratava-se daquela bruaca que brigara com seu cão e esse ainda assustado com os olhos vidrados e o faro atento procurando identificar de onde vinham os berros, e também por precaução, cachorro mordido de cobra, tem medo de linguiça, para tanto trazia sempre a arma por perto – a fera, se não marcava presença numa noite, na noite seguinte, ameaçava – por muita sorte e braveza do cão estava vivo, embora o cenário ao redor suscitasse a esperança de dias melhores, se perguntando, quando veria novamente o azul celestial, o sol saindo de detrás das matas, a silhueta do horizonte, o que de fato reacendia suas esperanças de que ainda teria um fôlego de vida, que ainda veria o céu, embora estivesse subindo, subindo, desde quando fugira, e já se sentia nas nuvens, erguesse as mãos e as tocaria – as alturas de onde estava, fazendo-o crer que sim. A opulência convidava-o a desbravar o lugar, na expectativa e possibilidades de encontrar meios de sobreviver ali mais dias, e quando chegasse à noite, veria o brilho das estrelas e o alumiar da lua lá longe – que eram os olhos de Maria Rita – pensava, de dentro do esconderijo já pronto – um abrigo feito de paus, galhos folhas – dali,

30  A lenda do homem dourado podia enxergar o movimento por perto da bicharada e estudar os lugares onde poria suas armadilhas, tudo bem pensado, carecia, contudo, para alcançar o topo da laje escalar alguns arbustos crescidos rente à rocha, como uma estratégia da natureza, antevendo a precisão de algum ser humano ou bicho, se manter acautelado ali, já o cão, companheiro inseparável, permanecia no solo, amarrado ao tronco de uma árvore – a importância daqueles ouvidos aguçados e seu instinto matreiro em alerta – qualquer felino, para alcançá-lo, precisaria passar pelo cão, sai de dia levando o cão consigo, voltava assim que sentia fome para assar alma caça tirada das armadilhas, contando com a sorte e ajuda de Deus, cada dia se aproximando mais do murmúrio de uma cachoeira parecendo se despencar de algum penhasco – o rumor das águas como uma canção de ninar nos seus ouvidos; comia, dava os restos ao cão e sentava-se no topo da laje, pensativo: seu mundo tinha ficado restrito, ou não, tudo era uma questão de tempo e só Deus sabia, mas Esse, no momento, estava brigado com ele... Pelos arredores do lago descobria aos poucos as riqueza da fauna, da flora, os lugares, suas andanças permitiam que conhecesse o local um pouco a cada dia; por uma fresta entre a copa das árvores, pode ver pela primeira vez um continho azul do céu e seus olhos verteram lágrimas pensando nas matizes de um horizonte possível, quem sabe mais acima no topo da montanha veria

Jairo Ferreira Machado  31 o nascer do sol, o raiar da luz do dia, o amarelejo áureo que aquecia o frio das manhãs, o astro-rei escancarando luz no seu rosto, pensava, assim agradecia aos deuses, de não só estar vivo, engrandecido de estar ali, não importava se nunca mais encontrasse o caminho de casa, a espiritualidade movendo suas energia de dentro, podendo manter o braseiro vivo e saciar-se, tanto a si como ao cão, bastava buscar o que de comer nas armadilhas; a munição do alforje ficara para as necessidades prementes, o silêncio como requisito para sobreviver da caça que o lago atraía, de franquia. De alguma forma a beleza, a abundância de vida local nunca o deixaria sozinho, não sabia, no entanto, do dia de amanhã, um descuido e em vez de comer, seria comido – os urros da onça, cada noite mais próximos! – mais tarde,

32  A lenda do homem dourado dias depois, já recuperado do desgaste físico, animou-se, o cão, igualmente, refizera-se do cansaço e das feridas, estava formoso, o trigueiro, ele próprio, fisicamente, sentia-se melhor, quanto à alma, própria, ah... Isto ainda lhe doía... Oh! Maria Rita!, lembrava aquele corpo de mulher, a maciez da pele, a fragrância daqueles cabelos caídos aos ombros, onde se aquecia todas as noites até aquela manhã, em que se derramara o sangue de seu amante, já sabendo que iria embora, tão logo desse fim ao infeliz do seu amante, fazendo justiça com as próprias mãos, mas isto era assunto pra outro momento, talvez Deus o perdoasse algum dia, talvez não!, mas com fama de corno manso é que não morreria; o tempo agora ia desapressado, olhava ao redor, o planalto no abrigo de uma sinuosa cordilheira, podia ouvir melhor o ruído dos riachos que desciam das montanhas, muitos deles correndo para o lago que se agigantava imenso e solitário no bacio do platô, seus olhos marejados de luz, tentando entender a razão de toda aquela dimensão, notou que em determinados momentos do dia se abatia ali um silêncio profundo, como se todos os bichos que vinham se esbaldar no remanso, naquela hora, se recolhessem para algum lugar cativo daquela selva – mas nunca sabia onde; precisava desvendar. Desafiado, curioso, a cada dia foi se aproximando do lago, com receio de não merecê-lo, mergulhava lá de longe o seu olhar nas águas mansas do lago, se mais, mergulhava a própria alma, na precisão de se refrescar,

Jairo Ferreira Machado  33 mas a luminosidade, diziam que não, ali morava uma constelação estelar, estava diante de um paraíso, e não tinha certeza se podia se aproximar, deveras, por certo, nem merecesse aquele espaço, contudo, se fora para ali guiado, por uma força suprema qualquer, já tinha esquecido, em parte, o pecado cometido, estava diante de outro desafio, não lhe era de direito retroceder, o cenário, por tudo que havia dentro e aos arredores do lado o atraía, como se toda aquela dimensão o pertencesse, e se era primorosa a beleza que via de cima da laje, todos aqueles dias, e ninguém mais por perto para aproveitar (só a bicharada), é porque tudo aquilo o pertencia, e já imaginava a essência que o lago guardara para si, foi chegando, chegando, o mais incrível era que o chão onde pisava, nas trilhas, brilhava tanto quanto as águas, consigo o cão, silenciado na focinheira, para o caso de alguma necessidade repentina – soltaria as amarras do trigueiro e teria mais um aliado, em sua defesa; sabia lá o que encontraria pela frente?, vez em quando se assustava com predadores dos mais perigosos transitando pela área, e esses, igualmente, corriam dele, mais ainda as espécies menores, indo saciar a sede. Certo felino já havia lhe roubado a caça das armadilhas que tivera o trabalho de preparar; contudo, não era de bom alvitre ir atrás, reclamar a perda, ao contrário, prudente, preparava outra; vez em quando chovia, mas agora, o dia se fazia ensolarado, claro, como dia de domingo, acordou com os olhos nos céus, e como era azul aquela abóboda

34  A lenda do homem dourado celestial, disposto, deixou o esconderijo, havia ainda muita coisa a ser descoberta e a medida que avançava em direção do luzeiro, uma sensação estranha ia tomando-o para si, e a coragem que antes sobrava, agora se afinava, o cão, trigueiro, também desconfiado, os pelos do lombo eriçados, como se pressentisse algum assombro por vir, ele, a arma em punho, via-se, naquele momento, a meio caminho – do esconderijo sobre a laje à orla do lago – e foi se aproximando devagar, meio que escondido por detrás dos arbustos, pé ante pé, o coração num atropelo só, a respiração ofegante, o peito aflito, a vontade de desvendar aquele mistério, uma vez que já se tornara parte dele – a intensidade de luz e de vida existentes ali enchendo de ânimo sua áurea humana, Oh Maria Rita! Quanto arroubo, por nada, a casa bem a seu jeito – era desprovida de luxo, mas havia lá o essencial –, ele com emprego garantido, os dias de lubricidade, o prazer de sentarem juntos à mesa – na comunhão da refeição – não, Maria Rita não sabia cozinhar, lembrava, mas tinha outras virtudes, a de amar, de doar o próprio corpo, tirando proveito disso, todo mundo sabia, até o pároco desdenhara Maria Rita, referindo-se a ela como “pecadora”, no dia do casamento, mas na cidade havia outras que se benziam com a mão esquerda quando a encontrava pelas ruas, contudo, faziam o mesmo às escondidas dos maridos, até frequentava à missa dos domingos, sentada distante dos demais; mas não era

Jairo Ferreira Machado  35 que o pároco tinha mesmo razão, Maria Rita era uma desavergonhada, cadela no cio, atirara naquele infeliz por causa dela; um só tiro, no peito do excomungado, ou se não fora por causa dela, fora por si mesmo – o orgulho ferido!, não passaria por palerma, chifrudo, imagine, ele dando duro lá no trabalho e Maria Rita no seu colchão novinho, “dando” duro também; puta descambada da breca!, Deus não abençoara mesmo aquele matrimônio, como alertara o próprio padre, um mês depois a “moça” já estava de caso com o outro. Sabia lá por onde andaria, ela, agora, por certo, numa cama qualquer, em zona qualquer, ele ali na esperança de se manter vivo, no próximo minuto, naquele lugar paradisíaco, seus olhos encantados no esplendor da luz ao redor. (Deus está comigo!), dizia a si mesmo; a aglomeração de bichos e plantas, o panorama promissor, o esplendor abrindo-se aos seus olhos, feito o arrebol das manhãs, carecia apenas da coragem de prosseguir até as proximidades do lago que brilhava intenso, formando um imenso circo em todas as direções e já não sabia se a luz que reluzia forte nos seus olhos vinha da luminescência do sol que o lago refletia ou se havia algo de incomum no fundo das águas que fizesse reluzir aquele facho de luz sobe o lago, de qualquer maneira Deus se esmerara na imaginação, dando luz e vida plena àquele lugar, bem possível fosse aquele o refúgio de Deus, nos seus momentos de descanso, e já não se achava merecedor de estar ali, como pecador dos piores que se tornara, pondera...

36  A lenda do homem dourado Pé ante pé foi se aproximando, como se pisasse em ovos, o cão igualmente pisando macio, a impressão de um murmúrio de cachoeira cada vez mais forte ecoando das árvores aos seus tímpanos, como prenúncio de ingênua beleza, animais se desentocavam assustados, uns correndo outros voando selva adentro, contudo, nada que lhe metesse medo, quando muito, apreensão, a ansiedade se misturando aos anseios do descobrimento, longe, muito longe, vinha-lhe a lembrança do catecismo, a cartilha, a esboço do paraíso e toda aquela biodiversidade reinante e já se considerava outro ser desde o dia em que chegara ali e tomara posse, por uns tempos, do seu esconderijo sobre a laje; saradas as suas chagas e as do cão, não as suas de dentro, já imaginado, quem dera Maria Rita ali ao seu lado, naquele ambiente propício e único, o paraíso inteiro para os seus deleites, construiria para ela uma morada, sobre a laje, de maneira os dois verem juntos o nascer do sol, todos os dias, pelo resto de suas vidas, no instante seguinte, já não se sentia merecedor, também Maria Rita não merecia, pois pecadores dos maiores... Contudo, ainda que fosse pecador, pressentia Deus por perto, dava-se ao despropósito de achar que o Soberano já o tinha perdoado – pagara os pecados naqueles dias de andanças pela selva – momento em que, muitas vezes, precisara de Deus e Este o acolhia, nos braços, no colo, mais ainda, no instante do bote da onça... Oh! Maria Rita!; jamais voltaria àquela cidade, bem certo, o povo já o tivesse

Jairo Ferreira Machado  37 esquecido, a hipocrisia já arrumara outro para Cristo, os políticos já haviam enterrado o incidente – eles mesmos agora se viam enredados em falcatruas – o delegado já não o queria atrás das grades, a não ser que fosse preso também; o pároco, que fizera seu matrimônio muito a contragosto, e que não deixara o cão entrar na igreja, por certo já lhe dedicava alguns pais-nossos, nos seus momentos de reflexão, os fiéis já não rezavam pela alma de ninguém, estavam mais preocupados com as suas próprias, o juiz, chegado o dia da sentença, de certo diria – “O réu é culpado, mas pelo que vejo...”, diria, olhando alguém lá nos fundos do Tribunal, algum parente do réu, decerto, erguendo a carteira recheada de dinheiro; todos eles pecadores dos maiores, falsos devotos das “santinha de pau oco”, os homens iam à zona na calada da noite (para “comerem” Maria Rita) e no domingo estavam lá na missa, de joelhos, rezando, o pároco, que também não era santo, sabia, as madames, beatas fofoqueiras, sabiam, mas antes da missa, confessam recebendo o perdão – rezavam algumas ave-marias para disfarçar e começavam tudo novamente, falando pelos cotovelos; Deus também sabia de tudo, mas não era Dele a incumbência de mudar a conduta das pessoas, as ruindades eram frutos da própria consciência humana, mais certo, da falta dessa... E aquele cenário dos sonhos, à medida que se aproximava do remanso ele sentia a alma, o pouco dela que ainda lhe restava, enaltecida; uma alegoria de sentidos, ainda que tudo aquilo o encabulasse, a luz que iluminava

38  A lenda do homem dourado o lago pela manhã era tão intensa quanto à luz do meio- dia; assim como a luz do meio dia que ali brilhava, brilhava que em outro lago qualquer, acreditava, desconfiando dos seus próprios olhos, sabendo que eles haviam estado muito tempo na escuridão da floresta, a sua luz própria, naquele momento, mais anímica, como se lhe brilhasse a própria aura, seu corpo sendo atraído para aquele lugar, em consonância com o que seus ouvidos escutavam e seus olhos viam – ali, o verdadeiro paraíso em cores e sentidos; lembrou-se da ilustração do livro de catecismo, o colorido de um céu que só conhecera na estampa de uma cartilha – nunca em outro lugar qualquer! – logo, deduzia, o paraíso existia, descobrira o lugar dos sonhos de muitos místicos – o verdadeiro céu; Deus, por certo, vinha ali, quando cansado de suas andanças pela terra; não um Deus barbudo, um espécime humano encarnado, de cajado em mão, este, não chegaria ali, mas um Deus espírito, pai de todas as coisas, pai até daquela famigerada onça, enraivecido, pondo-o à prova em razão dos pecados que cometera. Voltou aos preceitos bíblicos, o paraíso, a natureza exuberante, o pé de maçã, Eva sendo tentada a comer a fruta proibida, ou fosse mesmo a teoria da evolução de Darwin, aquele imenso laboratório natural, a beleza do lugar exigia reflexão, exaltação de seus sentidos, com razões de sobra para sentir-se, verdadeiramente, nas nuvens – pois de fato, parecia poder tocá-las com as mãos, tão no alto da montanha podia ir! Oh! Maria Rita!

Jairo Ferreira Machado  39 Quanta ilusão, o tremor dos lábios, o brilho intenso daquele olhar nos seus, no momento do gozo, olhos, como duas pedras dois ônix, nunca experimentara emoção igual, Maria Rita à sua frente, despindo-se com a sensualidade de uma noiva, não de uma concubina, sem nenhum acanhamento, ele invadindo aquela nudez num desmedido desejo, depois, Maria Rita o acariciando, com a mais pura maestria de uma amante, então, fizeram sexo de verdade, pela vez primeira na vida, e fora tão esplêndido que tombara exausto sobre a cama, e dormiu, deu no que deu, encontrara a mulher dos sonhos, as alianças, e na mesma semana, casaram-se e em seguida, a traição, o estampido daquele tiro certeiro, ainda ecoando nos seus tímpanos; A fuga, a selva bravia, o inferno, a dor física, a fome, e agora, o paraíso, as lembranças do casamento, e em quinze dias sua vida mudara do céu, do paraíso, para o inferno, e agora, vivendo outra dimensão, como se sonhasse com Maria Rita em seus braços, o sonho misturado à realidade, à sua frente o remanso e seus muitos mistérios, o lago refletindo o luzeiro nos seus olhos, o sol banhando de dourado a relva, as folhas, as flores, as rochas por perto, tudo que promovia um sonho dourado na sua mente, ou era a natureza que se revestira de dourado num passe de mágica, para lhe agradar, não, não sabia, douradas também estavam as veredas onde caminhavam os animais que vinham ali, diariamente, saciarem a sede, muitos,

40  A lenda do homem dourado muitas das vezes durante o dia, outros, somente à noite, sentia-se como no recinto de um teatro inteiramente iluminado, somente para si, para o seu cão, como únicos expectadores de tudo aquilo, o acortinado do palco se fechando e se abrindo, tantas eram as aves de tamanhos e matizes os mais variados, chegando e saindo dos arredores do lago, em outros momentos, eram a vez dos felinos, dos pequenos aos maiores, neste instante, e uma vez que ia anoitecendo ele se recolhia ao rigor do silêncio, evitando que sua presença interferisse nos costumes dos bichos, de forma eles não desconfiasse que estivesse por perto – alguns vindos pelos ares, galgando galho a galho; outros, caminhando pelas trilhas, outros voando, o cão de olhos vidrados, já sabedor de suas limitações (desse um pequeno rosnado, seria advertido). Santuário aquele, como um celeiro de vida, na composição de tudo aquilo, as diversidades da vegetação rasteira, as árvores formando uma abóboda, um imenso guarda-chuva, acolhendo para si todo encantamento existido ali ao redor do lago (uma ilha aquática), o cão trigueiro ao lado, de faro atinado, tinha-o no laço, na focinheira, modo evitar qualquer esparramo da bicharada, já de caso pensado (seria mais um bicho entre todos); solto, o trigueiro seria um problema a mais, preferia-o como aliado, o ambiente requeria um estado de indiferença, num nem piscar de olhos, considerando todos os tipos de espécies que para ali se deslocavam na

Jairo Ferreira Machado  41 intenção de saciar, muitas das vezes sucumbindo diante à tocaia dos predadores; onde há vida, de certeza, haverá morte, o rigor da morte, vida e morte se encontrando nas encruzilhadas da vida, logo, todo cuidado era pouco, uma oração para Deus, outra para a própria mira – que a bala fosse certeira (Deus entenderia...). Na noite anterior, o sonho, o sermão do padre – “Onde já se viu matar um seu semelhante!... – zangara- lhe o pároco – Desculpe-me, Senhor... Não pude aguentar, o sujeito lá na minha cama, com Maria Rita, aos beijos e outras coisas que não lhe posso contar, atirei, mandei o infeliz pros confins dos infernos, me perdoe, padre; de qualquer maneira, Lhe fiz um favor, poupei-Lhe trabalho, pois era para lá mesmo que o infeliz iria, só botei pressa na morte, limpando de uma vez a cidade (sabia lá se Deus entenderia?), acordou dos pensamentos, a sua frente o céu, o paraíso, inteiramente ao seu dispor, aquilo sim, de fato, era real; não estava dormindo e tampouco o cão dormia, tempos depois ainda estava ali, contemplativo, pessoalmente, assumindo para si toda a beleza reinante, não podia mais retroceder, se muito, usufruir o que a natureza lhe oferecia no momento – e desvendar aquele mistério, assim seguiu em frente, devagar, pelos arredores do lago, a cascata, que antes era apenas um murmúrio ao longe, roncava alto, despejando água como se derramasse milhões de pepitas de ouro no lago, agora, o sol que abrira uma fresta entre as árvores, para si, refletia ali mais

42  A lenda do homem dourado intensamente o seu dourado, e se perguntava, não seria tudo ilusão dos seus olhos, a ânimo de sua alma envaidecida, impregnado seus olhos de louvores; os bichos por ali, atônitos, tanto quanto ele – era natural que os viventes se intrigassem com criaturas estanhas naquele habitat somente deles; os olhos passeando nos pormenores ao redor, do fundo do lago, como fossem pequenos vulcões, erguiam-se ilhas cobertas de vegetação, onde os pássaros, de preferência, arquitetavam seus ninhos, a natureza, mais uma vez, dando a graça de sua infinita sabedoria. Tinha todos os sentidos, atentos, o lago, como uma pia batismal – onde os bichos se esbaldavam diariamente – de fato o lugar não lhe pertencia, embora recém-chegado ali pela intercessão do Soberano e ainda se valeria Dele em outros momentos vindouros, caso precisasse ir embora daquele lugar sagrado, quem sabe? e teria tanta coisa para contar depois, não, não conhecia ninguém que merecesse compartilhar o que presenciava, mesmo porque ninguém acreditaria – Este lugar não existe. São coisas da sua imaginação, diriam, os incrédulos, decerto diriam e diriam inclusive que o tal capiau ficara louco e deveria ser trancafiado no hospício; não, morreria sem dizer, ademais, nem sabia onde estava, Oh! Maria Rita!, aquela pele de pêssego naturalmente bronzeada, a calcinha branca rendada, viu num relance, por baixo de um vestido amarelo acetinado, no dia do casamento, os seios nus pontuando sob o cetim – o pároco encantado – não, o

Jairo Ferreira Machado  43 pároco não reclamaria, permitiu, lembrava tentando sossegar seu coração batendo em ritmo descompassado, a mão de Maria Rita, firme, apertando a sua; o pároco, a cara deslavada, abençoando, Maria Rita fazendo de conta, que era para sempre, seria uma ó vez na vida, para agradar a sociedade, não importando o quanto durasse, o povo iria alardear, o capiau, tanta inocência, e o padre já sabia de tudo... Voltou à realidade e pleno de alma aproximou-se da borda do lago, inevitavelmente atordoado de mente, estaria no céu? – perguntava-se – apostaria que sim, um céu real daqueles que todo bom humano sonha, minutos depois já havia tirado os restos de trapos que ainda cobria a sua pele, primeiro o que restava das botas, mergulhou os pés sentindo aos poucos a temperatura da água e em seguida mergulhou no lago, antes, se benzeu – como quem se benze na água benta da igreja, na missa de domingo; a tangência dos raios solares colidindo com a superfície da água, um facho de luz dourada refletindo nos seus olhos, como se o astro nascesse no fundo do lago e não o lago espelhasse sua luminosidade vinda de cima, não tinha lucidez suficiente para entender, quem sabe fosse apenas a impressão de seus olhos, ou sua alma, enlevada de regozijo, não, nunca tinha visto fenômeno igual. Oh! Maria Rita!, tomara ela aqui e banhar nessas águas aqueles seios lúbricos adocicados...

44  A lenda do homem dourado Momento em que conversara com Deus (em pensa- mento!), o soberano o colocando à prova, o cão como testemunha de tudo aquilo – os olhos vidrados na imensidão da luz tanto que ouvia-lhe o pulsar o coração, o choramingar mudo preso na garganta – na ânsia e vontade de se livrar do laço e se jogar no laço, ou, antes, depressa, fugir para bem longe dali, não, não seria bobo de soltá-lo, pois fatalmente o cão sentir-se-ia encorajado, o momento exigia precaução, enquanto isso usufruiria daquele espetáculo até que resgatasse as forças das pernas, pois se sentia perdidamente emocionado, e os sentidos dizendo que ficasse mais um pouco, dali contemplaria melhor todo o entorno, a vegetação, o voo dos pássaros, dezenas deles indo e vindo ao lago, destemidos, a não ser dos predadores habituais, e foi descobrindo aos poucos a imensa quantidade de trilhas que permitia os bichos chegarem e saírem do lago onde vinham beber e se banhar e já não se achava merecedor de estar ali, antes submergiu por inteiro, até a cabeça, e devagar foi voltando ao lugar onde se sentia mais seguro e já encorajado de voltar noutro momento; Deus mais uma vez o colocava à prova. Oh! Maria Rita!, lembrava, triste, toda aquela beleza física, a libido insaciável e o arroubo de uma poldra no cio. Retornando ao esconderijo, no horário de costume, notou o brilho áureo dos pelos do braço, do peito, como se enxergasse ali outra pessoa, meu Deus!, exclamou, tentando entender o que acontecera e já lembrou que

Jairo Ferreira Machado  45 entrara no lago, consequência do sol não seria, o mesmo já teria se escondido atrás dos montes, mesmo porque somente alguns fachos de luzes conseguiam alcançar o lago, logo, estava diante de algum fenômeno novo, quem sabe o amanhecer explicaria, olhou para o cão, nada nos pelos além da acintosa cor trigueira, cansado, recostou sobre a folharada que lhe dava abrigo à noite e dormiu, acordou menos dourado que dormiu... pela manhã notou que os animais de pequeno porte não precisavam se aventurar ali para beberem no lago; a selva compunha-se de veias por onde corriam centenas de riozinhos iguais, ao bel-prazer dos menos favorecidos; até mesmo ele, ser humano, desabituado à rispidez da selva, sobrevivera das benesses de um como aquele, não sabia por quanto tempo? Mesmo que a sobrevivência fosse à custa de algum chumbo e das armadilhas que aprendera com as andanças pela mata à busca de algum madeiro especial, um cabo de enxada, de machado, quando se aventurava pelas margens da mata, quando ainda capiau, ia se defendendo, agora, curioso, pensava em desbravar aquela selva, ninguém ia ali para removê-lo da ideia, a selva tinha particularidades que desconhecia e sobrava-lhe tempo para conhecer, embora os riscos fossem grandes; estava ali pelas circunstâncias de um crime que cometera, agora, fugitivo, bastava- lhe a destreza no gatilho, a força suprema, e o faro do cão; pensava, quem sabe Maira Rita já tivesse mudado de cidade, de zona, tivesse se casado novamente, mas o que isso importava?, em qualquer lugar, Maria Rita teria

46  A lenda do homem dourado clientela cativa – era eximia amante, nada mais; encontrara vários pretendentes, mas fora decidir por ele, Capiau, que aparecera lá na zona, num daqueles fins de semana, lembrava o local, um casebre camuflado na periferia da cidade, quase todos os homens sabiam o endereço, burro, entusiasmado com as histórias do amigo, foi lá; voltou no dia seguinte, com o par de alianças, quanta ingenuidade! Maria Rita, dissera sim, sabe-se lá por qual razão, assim, vendeu o rancho, arrumou trabalho numa indústria na cidade e montou casa para ela; Maria Rita não titubeou, já passava dos trinta, viu ali uma chance de se tornar madame (qual “mulher da vida” não pensou nisso um dia?), concordaram, casaram, mais tarde ela mesma descobrira que não era mulher de um homem só, arranjara outro, mas não por muito tempo, indignado, despachou o abelhudo para os confins dos infernos, correu em direção à mata virgem lembrando aquele dia lá na igreja, Maria Rita num deslumbramento só, cheia de adereços, uma princesa no altar, restava-lhe agora, saber onde estava, entardecia e uma infinidade de animais silvestres de todos os tamanhos, envergaduras, matizes, vinham saciar a sede ou se refrescar no lago, portanto, não se sentia mais a sós, a sua volta, o verdadeiro Jardim do Éden flertando com os seus olhos, anoitecia e se encantava com o cintilar das estrelas (algumas poucas) que transpunham o emaranhado de folhas dos cimos dos arvoredos e chegar ao seu esconderijo, a primeira que surgia, a estrela d’alva,

Jairo Ferreira Machado  47 a mais singular de todas – tal o olhar de Maria Rita –, e vez em quando aquela sumia de sua visão, certamente quando se escondia atrás de certas nuvens passageiras e já se lembrava do rancho, de onde contemplava a lua cheia, mas nunca a lua brilhara tanto como naquela noite, claro, não podia vê-la, mas percebia o prateado tomando parte da escuridão da noite ou seriam os humores dos seus olhos chorando a saudade de Maria Rita, quem sabe, sua alma desamparada desejando que ela estivesse ali. Chegada a noite amarrava o cão ao pé de um arbusto, embaixo, nas imediações do acesso que o levava ao esconderijo lá em cima no topo de uma laje, de forma o trigueiro desse sinais, choramingando (a focinheira não o permitia latir), assim se resguardaria dos avanços dos felinos, serpentes ou outro bicho qualquer que mais cedo ou mais tarde fatalmente o descobririam no seu lugar

48  A lenda do homem dourado de descanso, então, cedo acordava e recolhia o trigueiro com o auxilio de um puçá feito de cipó, de forma os dois permanecerem juntos durante o dia (um a alma do outro), antes de saírem para o reconhecimento de outras áreas ao redor e descobrir de onde vinha o ronco que ouvia por ali como de cachoeira, para isso se infiltrando cada vez mais mato a dentro tendo de arrombar cipoal no peito, no facão e evitar espinhos bravos, criando passagens, levando ainda a tiracolo alguma matula e a espingarda para qualquer precisão( sabendo no entanto, que não podia atirar, pois algum caçador por ali podia ouvir... No corpo o asco do suor a muito entranhado em suas vestes, as roupas aos frangalhos, barbas e cabelos compridos, as botas remendadas, a alma desértica, o cão ali, ao lado, companheiro inseparável; Oh! Maria Rita!, os sonhos dela se tornar madame se fora num único estampido (mortal, infalível) e em vez de madame Maria Rita, permaneceria mais puta que antes – na maledicência das bocas alheias!, e já imaginava toda aquela gentalha hipócrita desejando-lhe o mais cruel dos fins, gerados pelo natural ciúme que sentiam da “moça”, sabidamente, segunda mulher de seus maridos, despeito maior quando Maria Rita saia pela cidade para eventuais compras e que se esmerava na sensualidade, saia curtíssima, sapatos altos, rebolando calçada afora, tal libélula no jardim de flores, entra numa loja aqui, entra noutra acolá (muito mais para se vender, que para comprar!) e as madames, despeitadas, olhando de viés – Lá vem a vagabunda!, olha só o gingado

Jairo Ferreira Machado  49 dela, sacolejando a bunda, os homens olhando de soslaio, não conheço, nunca vi, eram os mesmos que exigiram o pescoço daquele capiau, que a polícia o cassasse lá pelos cafundós e o trouxesse para o xilindró, outros dizendo, não carece não, a esta hora já virou comida de onça, e mais outros criticando – Veja quanta petulância! – Capiau burro!... – Tirar Maria Rita lá da zona!... por terem ficado órfãos! Era bem isso que pensavam a cambada de covardes, egoístas, sabia perfeitamente que naquele período de núpcias com Maria Rita, tinham ficado sem a sua puta cativa, boa de cama, o juiz, o prefeito, o delegado, todos uns salafrários, com aquele olhar sério, de disfarce, modo impor medo e respeito às pessoas da cidade, mas estavam sempre lá no baixo meretrício, tirando uma casquinha de Maria Rita, sim, desejavam sua morte, mas não, não, enquanto o cão trigueiro permanecesse ali ao seu lado, inda mais com a incógnita dos sonhos de seu corpo dourado se vendo como uma rica joia de vitrine – os fieis o adorando, ele, no altar-mor da consagração, o povo aos seus pés, alguns de joelhos, rogando por clemência, nem sempre eram sonhos bons, acordou estranho, com a sensação de guampas na cabeça, claro, não podia ver o adorno acima, mas o sentia incomodando, acordou assustado, no momento que o sol gracejava em sua pele o calor da tarde, o rosto como num imenso braseiro. Diabos! – confabulou consigo mesmo, era o verdadeiro bezerro de ouro, com

50  A lenda do homem dourado chifres e tudo, demorou a dar-se conta de que a sensação de peso vinha da cabeça repousada sobre a rocha dura, o sol já indo embora, o cão de pé, inquieto, com pressa de aventurar-se pelo entorno, como de habito faziam, ele e o cão, levantou-se e seguiu adiante, vasculhou algumas armadilhas, recolheu a caça e retornou à orla do lago. Aos poucos se familiarizava à região e a biodi- versidade, no íntimo tomando ciência do que havia ao redor que tão profundamente mexia com sua alma, seu íntimo, o enigma reinante, os olhos divagando pelo planalto, mais abaixo via o lago e seu incomum manancial de águas de matizes sapés contornada pela vegetação verde rasteira e os arvoredos, rochas, sua alma se mer- gulhando ali, mais um pouco de audácia e conheceria os pormenores daquele paraíso, escrevendo na memória cada detalhe, num repente, seus olhos depararam com o entretom das trilhas onde transitavam os bichos nas suas idas e vindas ao lago, que pareciam revestido de um intenso amarelo-ouro, assim, contemplativo permaneceu ali sentido todo o poder do livre-arbítrio, dependia de si mergulhar naquele santuário ou não, querendo ser parte daquele esplendor, a luz do dia refletindo nos seus olhos um pouco do entardecer que chegava, logo retirou os trajes e aventurou-se, num mergulho de corpo e alma na pia batismal, esquecendo todo e qualquer perigo que lago representava, aventurou-se no banho que seu corpo há muito almejava, tinha para si agora o lago inteiro, o


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