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coloquioNEA30anos-OK2016x

Published by Paulo Roberto da Silva, 2018-09-04 20:25:48

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Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  101é que a concorrência entre os vários arrematadores levava a um decréscimodo custo das viagens. Foi o que aconteceu nos primeiros dois contratos. Noprimeiro contratado, feito em 1747 com Feliciano Velho Oldenberg, o frete porcabeça foi de quarenta mil reis, enquanto no segundo contrato, arrematadopor Francisco Sousa Fagundes, estes baixaram 30.000 e 26.000 réis. O primeiro carregamento feito por Oldenberg terá chegado a SantaCatarina com cerca de 85 casais, muitos deles em mau estado físico, para alémde mortes durante a viagem, o que levou o brigadeiro Silva Pais a denunciaressa situação à corte. Essa foi uma das causas por o contrato ter passado para Francisco deSousa Fagundes, que se comprometia a transportar 4.000 colonos até julho de1751. Num segundo arrendamento, o mesmo contratador responsabilizava-se pelo transporte de mais mil pessoas dos Açores para Santa Catarina a umpreço de 26 800 réis por cabeça. À margem do transporte oficial, que, devido à falta de embarcações,levava ao atraso das partidas, a coroa também fomentou deslocações deaçorianos para o Brasil por iniciativa própria, concedendo alguns incentivoseconómicos (por exemplo em 1747 a coroa dá ajudas de custo de cerca de24$000 réis, cujo pagamento se fazia em duas partes, uma à partida de 16$000réis e os restantes 8$000 réis à chegada ao Rio de Janeiro).23 Para além de ajudasde custos, a outorga de benefícios comerciais nas rotas brasileiras contra aobrigatoriedade da condução de um número fixo de famílias era uma outraforma, talvez a mais aliciante. É dentro desse contexto que, ainda em 1748,João José Chamberlin e Mateus João Bettencourt propõem um preço maisbarato para as viagens em troca de autorização de escala em torna-viagem, emportos do Rio de Janeiro. Vários alvarás tinham restringido o livre comércio que se fazia entre asilhas e os portos do Brasil, principalmente a partir de 1736, data do alvará querestringia não só a saída de produtos dos Açores para o Brasil (só se podiamexportar mercadorias produzidas nos Açores) como dos barcos que zarpavamdos portos açorianos (dois para Angra e um para Ponta Delgada, de tonelagemnão superior a 500 caixas). Apesar de na década de 1940 se ter aumentadoligeiramente o número de barcos permitidos, a verdade é que era sempre umgrande privilégio obter-se licença para mandar mais um. Foi nesse contextoque, em 1744, contratador geral do tabaco, Feliciano Velho Oldemberg, obteveuma mercê que lhe dava direito a mandar em cada ano de seu contrato umnavio ao Brasil que não excedesse a 250 toneladas com obrigação de levar à23 Avelino Meneses, Antigamente era assim! Ensaios de História dos Açores, Ponta Delgada, Publiçor Editores, 2011, p. 469.

102  Colóquio NEA 30 anos de Históriasua custa, a cada 100 toneladas, 2 casais de pessoas naturais das ilhas e comcondição de não poder alterar os preços das fazendas que levassem os outrosparticulares e voltarem em conjunto com a frota em direitura para o reino. A emigração de casais açorianos para o Brasil meridional, e mesmopara Santa Catarina, apesar de ter diminuído após o final década de 1750,não acabou, e os casais continuaram a ir para essas regiões, mesmo depoisde reforçadas alguns aspetos restritivos, nomeadamente com a lei dos passa-portes. Mas, se a maior parte saía para não mais voltar, outros voltavam à ilha,mas não esqueciam a importância estratégica de Santa Catarina e de toda essaconjuntura de emigração, revertendo-a em seu favor. Foi o caso do comerciantede grosso trato, da praça de Ponta Delgada em S. Miguel, Nicolau Maria Raposo. Nicolau Maria Raposo de Amaral24 nasceu em Ponta Delgada, nafreguesia da Matriz, a 11 de janeiro de 1737. Era filho de Nicolau MariaCaneva, natural da freguesia de Sta. Maria Madalena de Génova e de SebastianaMargarida de Melo, natural da freguesia da Matriz de Ponta Delgada. Sabemospouco da sua juventude, mas, em 1753, o seu nome é referido num rol demancebos, anexo a uma carta de Francisco Pereira Barros, dirigida à câmara dePonta Delgada, sobre um possível recrutamento de jovens para o presídio de S.Catarina, no Brasil, onde se dizia haver em S. Miguel filhos segundos, dos que“andando como estudante na realidade não são [...] sem outra ocupação maisque a de extravagantes”,25 pelo que poderiam partir para aquela parte da colóniaportuguesa. Na verdade uma outra forma de deslocamento de mancebos parao Brasil foi a necessidade de recrutas naquela colónia e, segundo FranciscoPereira Barros: “Desta ilha [S. Miguel], sendo das maiores e mais povoadasdos Açores forão muito poucos cazaes e está cheia de gente inutil”,26 alvitrandoa saída de alguns filhos segundos e de marginais. A acompanhar esta cartaseguia um rol com alguns nomes destes inúteis, onde figurava o de NicolauMaria Caneva, filho. Se está confirmada a ida de Nicolau Maria Raposo para o Brasil, o mesmonão acontece com a data de saída de S. Miguel. Na verdade, não terá sido nesta24 Será este o nome, Nicolau Maria Raposo, que iremos utilizar durante o nosso estudo quando nos referirmos a este negociante, porque é este o nome que usa, assim como o tratam as pessoas da época (só raras vezes é mencionado o nome completo, mesmo em documentos oficiais). Desta maneira tentamos, também, não confundi-lo com o seu filho mais velho, do mesmo nome. Quando nos referirmos a este último, utilizaremos o nome completo, aliás aquele que o próprio assinava ou seja: Nicolau Maria Raposo de Amaral.25 Walter Piazza, A epopéia Açórico-Madeirense (1747-1756), tese de doutoramento policopiada, p. 171-175.26 Water Piazza, op. cit., p. 173.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  103data, pois temos confirmada a sua permanência em Ponta Delgada em 1755,através de um processo-crime, referente a essa data, no qual se culpava NicolauMaria Raposo de ter ferido um criadodo Capitão Manuel da Câmara e Sánaquela cidade micaelense.27 Presumimos que foi para fugir a esse julgamentoque terá ido para o Brasil. Confirmada está a sua estadia no Rio o de Janeiroem 1759, com um livro de carregações da corveta Boa Ventura Nossa Senhorada Lapa. Nele constatamos que o capitão e senhorio era o próprio NicolauMaria e que o trajeto entre o Rio de Janeiro e a Colónia do Sacramento era asua principal atividade, pelo menos até 1763.28 Segundo os livros de carga, ele trazia, da Colónia do Sacramento, couros,prata, aguardente e levava, para além de comestíveis, panos e escravos. Couros,prata e escravos, três produtos que pressupunham grandes lucros, não só nastransações oficiais mas principalmente nas clandestinas. Eram os produtos porexcelência de contrabando no Rio da Prata.29 Apesar de não termos contasrelativas aos couros, sabemos por um caderno avulso de carregações, que nosbarcos de Nicolau Maria Raposo se transportavam vários couros consignadosa diversos mercadores do Rio de Janeiro e que não eram precisos muitosescravos (2 a 6) para que as viagens entre o Rio de Janeiro e a Colónia doSacramento dessem um lucro considerável.30 Mas não foram apenas transações comerciais que Nicolau Mariarealizou nessa rota. Como já vimos, a luta entre Espanhóis e Portugueses pelaprata do potosi e pelos couros da região platina levou a várias tensões entre asduas nações. Em fevereiro de1761, tinha sido nomeado governador da praça daColónia do Sacramento o brigadeiro Vicente da Silva Fonseca, que, logo nosprimeiros tempos da sua administração, se viu confrontado com um cercofeito pelos espanhóis àquela praça.31 Foi nessa conjuntura que Nicolau MariaRaposo, enfrentando os possíveis ataques espanhóis, se dirigiu à Colónia doSacramento, primeiro com mantimentos e depois com soldados, para acudir27 Para um maior aprofundamento sobre este negociante micaelense e sua cas comercial ver: Margarida Vaz do Rego Machado, Uma fortuna do Antigo Regime. A casa comercial de Nicolau Maria Raposo de Amaral, Cascais, Edições Patrimonia, 2006.28 Margarida Vaz do Rego Machado, Op. cit, p. 35-36.29 Ver Guilhermino Cesar, O contrabando no Sul do Brasil, Universidade de Caxias do Sul, Porto Alegre e Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes,co-edição, 1978, p. 19.30 Margarida Vaz do Rego Machado, Ob.cit, p.36 e 37.31 A. H. U. Colónia do Sacramento, “Carta de Vicente da Silva Fonseca”, Caixa n. 5, doc. n. 27, 4 de Novembro de 1761.

104  Colóquio NEA 30 anos de Históriaaos portugueses sitiados na praça.32 Mais tarde, em 1780, quando pedia o forode fidalgo, relembrava ao Rei estes préstimos que fizera à pátria. Nas suas cartascomerciais, referiu, várias vezes, a importância estratégica de Santa Catarinanão só nessas suas missões, mas também no percurso mercantil, que o tornouum dos grandes senão mesmo o maior comerciante micaelense da segundametade do século XVIII. Quando La Perouse descreve a Ilha de Santa Catarina e a sua chegadaem 1785 refere que: Nossa senhora do desterro, capital da capitania de Santa catarina, onde o Governador tem a sua residência, contm no máximo 3000 almas e aproximadamente 400 casas. As habitações tanto na ilha comono continente estão todas à beira-mar O seu aspeto é bem agradável [...] O solo é bastante fértil [...]. A pesca da baleia é muito abundante: mas é propriedade da coroa, arrendada a uma companhia de Lisboa: esta companhia tem nesta costa, 3 grandes estabelecimentos nos cos quais se pescam cada ano cerca de 400 baleias, cujo produto tanto em azeite co o em espermacete é enviado para Lisboa por via Rio de Janeiro. Essa descrição leva-nos a uma realidade aqui ainda não referida: ada importância da pesca da baleia no Atlântico Sul, em especial em SantaCatarina, como nos transporta, novamente, o comerciante micaelense NicolauMaria Raposo. A rota que fazia com seu barco, Rio de Janeiro/Nova Colónia doSacramento, permitiu-lhe não só conhecer o comércio na colónia brasileira,mas o próprio litoral da região, com suas baías ou braços de mar, enseadas deáguas mansas e de fácil acesso, abrigadas do vento sul, onde se instalaram asarmações baleeiras.33 Nos séculos XVII e XVIII, em especial neste último, a pesca dabaleia no sul do Brasil, mais precisamente entre o Rio de Janeiro e SantaCatarina, desenvolvera-se imenso, com várias armações ou feitorias de pescadisseminadas por todo o litoral. Em 1741, Tomé Gomes Moreira ergueu aArmação Nossa Senhora da Piedade, a primeira em Santa Catarina. Na sua32 A. H. U., Colónia do Sacramento, Caixa n. 5, doc. n. 27.33 Ver Myriam Ellis, A baleia no Brasil colonial, Edições Melhoramento, Editora da Universidade de S. Paulo, 1969. Sobre o movimento de baleeiras, inglesas provenientes da América do Norte, nas costas meridionais brasileiras, ver também Dauriel Alden,”Yankee Sperm Whalers in Braziliam Waters, and the Decline of the Portuguese Whale Fishery (1773-1801)”, in An Expanding World, The Atlantica Staple Trade: The Economics of Trade, Variorum, 1996, v. 9, p. 537-558.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  105qualidade de capitão de bordo, Nicolau Maria Raposo teria forçosamentede conhecer essa realidade, até mesmo devido à importância dos produtosderivados dessa exploração. A pesca à baleia era uma atividade económica importante, pois os seusderivados, ou seja, o óleo, ou azeite de baleia, como na altura era tratado, eramatéria-prima fundamental para a iluminação, lubrificação de engrenagens,assim como para o fabrico de velas, sabões, enxofre e breu para calafetagem,confeção de tecidos de lã grosseiros e preparação de couros. Ao azeite debaleia juntava-se óleo de espermacete, assim como as barbatanas da baleia,que eram transformadas e manufaturadas num enorme número de artefactoscomo guarnições de guarda-chuvas, tabaqueiras, cachimbos, estojos, bengalas,chicotes, brochas, lâminas de todos os comprimentos e espessuras, destinadasàs armações de chapéus, golas, mangas e usadas nos célebres espartilhos, tãoutilizados na moda feminina europeia de então, até aos instrumentos de físicae química.34 De todos esses produtos, merece especial destaque o azeite, que erautilizado na iluminação, em especial na iluminação pública, pois o seu mauodor fazia com que os mais afortunados utilizassem em suas casas azeitede oliveira, muitíssimo mais caro do que o de baleia, mas de odor muitomais suave. Era pois o azeite de baleia matéria prima de maior importânciano quotidiano de um povo, que o menos que desejava era ficar às escuras,sujeito aos perigos que tal situação proporcionava. Daí que os governos, e emparticular os governos locais, estivessem atentos, verificando a falta ou excessodo produto e até taxando-o de modo a não permitir que o preço se elevasse,garantindo, assim, o seu consumo aos munícipes. Manter a população serena,sem alevantamentos, era a prioridade das gentes da governança.35 Por tudo isso,a caça à baleia era atividade desejada e cobiçada por vários países europeus,nomeadamente a Inglaterra, que, na segunda metade de setecentos, navegavae pescava nos mares dos Açores. Ao contrário do que se poderia esperar, a pesca à baleia, por esta altura,não era praticada pelos açorianos. Portugal, na segunda metade de setecentos,vivia muito do seu império ocidental, ou seja, das ligações económicas com oBrasil, explorando as suas matérias-primas e exportando-as para a metrópole,quer para consumo próprio, quer para serem reexportadas para o estrangeiro,34 Myriam Ellis, A baleia no Brasil colonial, São Paulo, Edições Melhoramentos/Editora da Universidade de São Paulo, 1969, p. 135-136.35 Sobre o comércio do azeite de baleia entre o Brasil e os Açores ver Margarida Vaz do Rego Machado, 2o capítulo da obra, Uma fortuna do Antigo Regime. A casa comercial de Nicolau Maria Raposo, Cascais, Edições Patrimónia, 2006, p. 41-99.

106  Colóquio NEA 30 anos de Históriacomo bem definia o pacto colonial. Além disso, como era natural numa épocamercantilista e de centralização régia, essas matérias-primas eram outorgadasem regime de monopólio a contratadores que as arrematassem. Não convinha,então, que os açorianos explorassem esse produto tão importante. Dentro dessa conjuntura, não admira que o estabelecimento das armaçõesbaleeiras tenham sido feitas por particulares, limitando-se a Coroa a outorgaraos particulares o monopólio36 da pesca e do comércio dos produtos obtidos doscetáceos, por tempo determinado (normalmente entre três a oito anos). Na época em que Nicolau Maria Raposo viajava por estes mares, atendência, tão cara aos monopólios, era a unificação das várias armaçõesbaleeiras brasileiras num só contratador. Um pouco antes, em 1754, FranciscoPeres de Sousa (homem de negócios morador na Junqueira, em Lisboa)arrematara por tempo de 6 anos a pesca do Rio de Janeiro, por 28000 cruzadoscada ano, a de Santa Catarina por 10.000 cruzados e ainda por idêntica somaa da área paulista, associado a João Couto Pereira (um dos mais sólidoscomerciantes do Rio de Janeiro na época). Este último construiu um enormetanque no Rio, com capacidade para 4000 pipas, tendo-se verificado um novoimpulso nessa actividade. Após a morte de João Couto Pereira, em 1761, houveum período de baixa, mas quatro anos depois inaugurou-se novo períodoáureo com a criação da “Companhia da Pescaria da Baleia”, tendo-se unidoas várias armações e reestruturado o monopólio. Arrematou-o então InácioPedro Quintela, durante 12 anos e pela quantia de 80.000 cruzados anuais. Esse grande negociante, um dos de maior prestígio no tempo de Pombal,associou-se nesse contrato a outros grandes comerciantes da Colónia Brasileira,a saber: Francisco Peres de Sousa, que tinha sido o anterior arrematadordesse contrato, tornando-se mais tarde (1774-1781), com o mesmo Quintela,contratador do estanco do sal do Estado do Brasil; Baltazar dos Reis, JoséÁlvares Bandeira, Domingos Dias da Silva (os dois últimos, associados a LuísAntónio Tinoco da Silva, representante de Inácio Quintela, foram tambémarrematadores do contrato da dízima do tabaco); João Fernandes de Oliveira,que, em 1761, foi contratador dos diamantes, António dos Santos Pinto(participante na instituição da Companhia do Comércio do Grão-Pará eMaranhão em 1754 e do contrato dos diamantes em 1759) e, por fim, FranciscoJosé da Fonseca que, para além de sócio, foi caixa – administrador do contratoda pesca da baleia no Brasil até 1777.37 Nicolau Maria Raposo, ciente de todas estas reestruturações nomonopólio da pesca das baleias, do seu consequente desenvolvimento e da36 Myriam Ellis, op. cit., p. 149.37 Myriam Ellis, op. cit., p. 150.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  107importância que tinha o azeite para o quotidiano das populações, tentouuma aproximação com o contratador Inácio Pedro Quintela, propondocomercializar aquele produto na área do arquipélago dos Açores. Assim, em1767,38 durante a sua permanência em Lisboa, conseguiu um contrato comaquele, pelo qual ficava com o exclusivo da importação do azeite de baleiado Brasil para os Açores e respectiva comercialização. Esta iniciar-se-ia a 1ode janeiro de 1768, ano em que Nicolau Maria se fixou definitivamente emS. Miguel, e teria a duração de nove anos. Como homem de negócios doAntigo Regime, associou-se com outros sócios, tendo no Rio de Janeiro o seuprincipal sócio correspondente: Geraldo Gomes de Campos, antigo mercadornas rotas entre Rio de Janeiro, Colónia do sacramento e Santa Catarina.39Seguiram-se as primeiras diligências para se organizar o negócio. Assim,Nicolau Maria Raposo contactou vários negociantes, que nas outras ilhasiriam ser seus correspondentes e que lhe assegurariam a distribuição do azeitepor todo o Arquipélago, elegendo dois administradores, um para a Terceirae outro para a Horta, de modo que suas ordens fossem cumpridas e toda acontabilidade do contrato do azeite de baleia fosse feita, segundo o método daspartidas dobradas, que, desde então, passara a ser obrigatório para qualquercasa comercial.40 O azeite chegava ao Faial vindo diretamente do Brasil oupor via Terceira, ou ainda mandado de S. Miguel para o porto da Horta. Osbarcos usados eram os dos sócios do contrato (o negócio da armação tambémfazia parte das atividades de Nicolau Maria Raposo, assim como da maioriados grandes comerciantes açorianos). O contrato foi renovado por mais duasvezes, mas o último não chegou ao fim. Como bom negociante que era, Nicolau38 A. J. M. R. A./Uac, Ajuste e venda do exclusivo da exportação do azeite de baleia para as Ilhas dos Açores, por Ignácio Pedro Quintella a Nicolau Maria Raposo, Lisboa, 21 de Março de 1767, documento avulso em pasta de arquivo. Para um maior conhecimento sobre este contrato ver: Margarida Vaz do Rego Machado, Uma fortuna do Antigo regime: A casa comercial de Nicolau Maria Raposo, Cascais, Patrimónia, 2006, p. 41-100.39 Em 1761, Geraldo Gomes de Campos fazia parte de um grupo de comerciantes da praça da Colónia do Sacramento, que pedem ao Rei o atraso da frota que seguia para o reino, visto que os seus carregamentos estavam com dificuldade de se aprontarem a horas. A. H. U., Rio de Janeiro, Lista mandada pelo Capitão da Praça da Colónia do Sacramento de alguns de seus comerciantes, caixa n. 68, doc. n. 35, 12 de Janeiro de 1761. p. 47.40 Foi com D. José I, que os primeiros tratados sobre o assunto apareceram em Portugal, assim como o método foi introduzido na contabilidade pública, apesar de as partidas dobradas já serem conhecidas há muito pois, em Antuérpia no século XVI, elas eram já praticadas e Portugal na altura tinha ligações económicas fortes com aquele País. Foi em 1761 que os negociantes portugueses foram obrigados a ter nas sua escrituração os livros de razão e os diários, peças fundamentais para o exercício daquele método, in A A Marques de Almeida, “Herança e inovação no capitalismo em Portugal(séculos XIV-XVIII): A escrituração por partidas dobradas”, in Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, v. 39, 1984, p.19-40.

108  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaMaria raposo privilegiava a informação e percebeu que, entre os anos de 1793e 1996, a captura de cetáceos nas costas brasileiras declinara, agravada coma concorrência estrangeira.41 Face a essa conjuntura de crise, o negocuantemicaelense adiantou-se e terminou o contrato com Quintela, uns bons anosantes do alvará de 24 de abril de 1801, que acabava com o contrato de JoaquimPedro Quintela.42 Essa linha decrescente de importação de azeite de baleia parece mudarde rumo apenas a partir de 1813, apesar de não se equiparar com as décadas de70 e 80 do século XVIII. É nessa altura que voltamos a sentir uma reanimaçãonesse ramo de negócio, com a compra, por parte de Nicolau Maria Raposo doAmaral (filho do primeiro), de um novo navio. Para que essa reactivação da importação de azeite de baleia nãodesanimasse, face à pouca captura de cetáceos nas costas do Rio de Janeiro,Nicolau Maria Raposo do Amaral iria mandar o seu brigue “Mãe de Deus”para as armações da Ilha de Santa Catarina, iniciando-se assim uma nova rotana casa comercial desse comerciante micaelense.43 Para além dessa medida,aquele negociante iria encetar uma luta em defesa dos direitos comerciaisdos súbditos portugueses, combatendo a introdução de azeite estrangeiro,nomeadamente o inglês porque, segundo ele, a ingerência britânica arruinavao nosso comércio colonial.44 Mas não foi só com o azeite de baleia que Nicolau Maria Raposorestabeleceu os seus contatos com o Sul do Brasil. Ainda em agosto de 1776, o nosso comerciante começou a sentirdificuldade em ter carga que completasse a galera na sua ida para o Riode Janeiro, iniciando uma série de contactos para superar tal problema.Aproveitando-se das suas ligações com o Secretário de Estado Martinho deMelo e Castro, assim como com o ajudante de ordens do capitão-general dosAçores, Manuel Correia Branco, solicitou que sua galera levasse para o Brasilmeridional alguns recrutas que se estavam transportando dos Açores.45 As respostas foram positivas e Nicolau Maria Raposo conseguiu que lhereservassem 150 recrutas (100 por ordem de Martinho de Melo e Castro e mais41 Myriam Ellis, op. cit., p. 172.42 Jistváne Jancsó, outros, Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831), S. Paulo, Departamento de História-FFLCH USP, 1995, reimp., p. 189.43 A. J. M. R. A., Cartas de N. M. R. A. a P. J. C., Cop. C, AMA, v. 2, 26 de Abril, 23 de Setembro de 1814; a M. C. P. C., Cop. C, AMA, v. 2, 14 de Setembro de 1814.44 A. J. M. R. A., Carta de N. M. R.A. a P. J. C., Cop. C, AMA, v. 2, 4 de Abril de 1815 e, Carta ao Exo Senhor Capitão-General, Cop. C, AMA, v. 2, 24 de Abril de 1815.45 A. J. M. R. A., Cartas de N. M. R. a M. M. C e a Manuel Correia Branco, Cop. C, v. 1, 8 de Agosto, 5 Dezembro de 1776. p. 115.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  10950 por ordem do capitãogeneral dos Açores). Recrutas estes que a sua galeraem Janeiro de 1777 (novamente atrasada) irá buscar a Angra do Heroísmo. Na carta de ordens de Nicolau Maria Raposo, dada ao capitão donavio Francisco Antunes Sousa, aquele recomendava-lhe o cuidado a ter comos recrutas que não sejam ofendidas e que sejão bem tratadas, assim comoordenava que fizesse tudo o que o capitão-general mandasse, na sua passagempela ilha Terceira. Mas não foram só os recrutas que Nicolau Maria conseguiu conduzirpara o Brasil meridional. Nessa mesma década de setenta, o monopóliodo transporte de casais ou de outros emigrantes foi dado ao comerciantemicaelense. Após uma pausa entre os anos 1790 e 1812, os barcos voltaram alevar imigrantes. O governo português voltara a incentivar a ida de casais para o Brasil e,como quarenta anos atrás tinha feito Nicolau Maria Raposo, agora o seu filhode mesmo nome, recorrendo aos seus conhecimentos junto do poder central,nomeadamente Pedro José Caupers (agora camareiro de Rei no Rio de janeiro)e o capitão-general dos Açores, Aires Pinto de Sousa, conseguiu ter o exclusivode levar os casais dos Açores para o Brasil. Segundo o ajuste feito com o Capitão-General, os fretes dos casaisseriam pagos pelo Intendente-Geral da Polícia do Rio de Janeiro, assim comoos fretes da carga, pagando as pessoas com mais de 12 anos 56$000 réis e,daquela idade para baixo, 52$000 réis.46 Pela conta de cobrança desses fretes, embarcaram 246 pessoas, nascendomais um a bordo. Em contrapartida, morreram duas crianças de peito e duaspessoas, uma adulta e outra com menos de 12 anos. Apesar de essa viagem ter tido um sólido lucro, 10 044$065 réis, teve assuas dificuldades e arrelias. Na verdade, esse exclusivo e privilégio irá causargrande mal-estar entre algumas autoridades do arquipélago, nomeadamenteao próprio capitão-general, que tinha outros “afilhados” a beneficiar, pondotodos os obstáculos possíveis para dificultar o embarque, nomeadamente demilicianos, assim como reduzindo para 100 o número de casais que podiamsair da ilha para o Brasil, como aconteceu efetivamente em 1813.47 Nicolau Maria Raposo de Amaral tentou usar da sua influência juntodo próprio Pedro José Caupers, do Intendente-Geral da Polícia, do Conde deGalveias, mas acabou por se desinteressar e, em 1814, dizia a Pedro Caupers queo bergantim regressaria ao Rio de Janeiro, não pelo minimo lucro dos casaaes,46 A. J. M. R. A., Carta de N. M. R. A. a J. G. B., Cop. C, AMA, v. 3, 8 de Setembro de 1812. p. 141.47 Margarida Vaz do Rego Machado, op. cit., p. 140-144.

110  Colóquio NEA 30 anos de Históriamas sim o cultivar em direitura desta ilha a sua muito apreciável amizade.48 Essa foi uma história de vida de um açoriano que aproveitou a suapassagem por Santa Catarina e pelo Brasil meridional para se impor nas rotasintercontinentais entre os Açores e o Brasil. Muitos foram os que ficaram nesta zona Brasileira e, se numa primeirafase, algumas fontes parecem revelar que a mudança de vida para melhor nãofoi totalmente conseguida, a verdade é que, 200 anos depois, a marca açoriana,a “vossa cultura de base açoriana”, está bem patente nesta maravilhosa terrado Brasil meridional.48 A. J. M. R. A., Cartas de N. M. R. A. a P. J. C., Cop. C, AMA, v. 3, 24, 25, 26 de Setembro de 1813 e 20 de Abril de 1814; Carta de N. M. R. A. ao Intendente Geral da Polícia, Cop. C, AMA, v. 3, 25 de Setembro de 1813; Carta de N. M. R. A. ao Conde de Galveias, Cop. C, AMA, v. 3, 25 de Setembro de 1813. p. 141.

“Açorianidade, ação, memória e reflexão” Acyr Osmar de Oliveira Passaram-se 15 anos do Festival de Inverno (1972 a 1987), evento decultura que reunia as mais diversas manifestações. A Funarte era a grandeparceira do evento, junto com a Prefeitura de Itajaí. Com a mudança de gestãoocorrida neste órgão, os apoios se extinguiram e assim também o evento,que, nos mêses de julho, durante 15 dias, acontecia em Itajaí e na região, comatividades na área de teatro, música, artesanato, exposições, cultura, lazer eentretenimento, voltadas para o turismo. Com o encerramento do Festival de Inverno, nasce a Marejada – FestaPortuguesa e do Pescado –, no mês de outubro. Semelhante ao evento citado,esta festa teve seu início com a Comissão Municipal de Turismo, tendo comoseu presidente e organizadores respectivamente Luiz Felipe Sada Graf, RenatoSilva e Acyr Osmar de Oliveira, e, na época, o Prefeito de Itajaí, ArnaldoSchmidt Junior. As suas primeiras quatro edições da festa foram voltadas para Portugalcontinental. Sentíamos que faltava algo para que nos personalizássemos comofesta do litoral catarinense, como era a proposta. Em nosso entorno, no mesmoperíodo de outubro, aconteciam 19 festas étnicas, destacando-se, como ageradora de todas, a Octoberfest, festa alemã que se realiza em Blumenau eque traz turista para todo o estado. Quando, então, o Professor Vilson Farias reúne em Florianópolis, atravésdo Núcleo de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina,representantes de instituições e órgãos de cultura, prefeituras do litoral, paraapresentar as questões da cultura de base açoriana do litoral catarinense ea necessidade de um mapeamento das manifestações existentes em cadamunicípio e a formação de um corredor turístico, com destaque para a recém-criada Escola de Oleiros Joaquim José de Medeiros, em 30 de novembro 1991,

112  Colóquio NEA 30 anos de Históriapela Professora Mariângela Leite, Diretora de Cultura da Prefeitura de São José.Nesse encontro, contatamos com a Professora Ana Coutinho, coordenadorado único grupo de danças folclóricas açorianas, na época, e seus cursos sobreo assunto danças, cantares e trajes, e, com ela, o engenho de farinha do SeuZico, de Biguaçu. A partir desse encontro, tudo mudou na questão cultural de nosso fazere da Marejada. Rendeiras, oleiros, fazedores de balaios e de tecelagem, gruposfolclóricos catarinenses, boi de mamão, pau de fitas, cantoria de Reis. Na época,foi construído um Pavilhão Cultural somente para abrigar as manifestaçõesdessa cultura. O resultado foram os elogios das pessoas que nos visitaram eparticiparam de nosso evento. A presença marcante portuguesa, através da gastronomia, dasapresentações de fado, dos grupos folclóricos portugueses/açorianos, vindosde São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, somados a questões catarinenses,enalteceram cada vez mais nossa festa. O Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC passou a exercer um fortepapel ao desenvolvimento das questões da cultura de base açoriana no litoralcatarinense. E a Marejada, festa portuguesa e do pescado, nesse período,passou a ser o grande palco para que déssemos o valor e o destaque merecido àsmanifestações da cultura no litoral catarinense. Com a dinâmica estabelecidapelo núcleo, mapeamento, cursos, registros de festas e eventos de nosso litoral,os espaços que tínhamos para as diversas apresentações ficaram pequenos.Daí surgiu a ideia de criarmos um evento, para que pudéssemos ter maiorvisibilidade da cultura de base açoriana, oportunizando os grupos existentes einteressados a mostrarem seus talentos artísticos. Como o município de Itajaíjá possuía uma estrutura de realização de eventos, resolveu-se que o Açor, emsua primeira edição, seria lá realizado. E, com o apoio da Prefeitura de Itajaíe dos municípios que participavam do NEA, criou-se esse tão importanteevento, que já chegou à sua 21a edição. O primeiro fôlder, em sua mensagem/convite, continha os seguintesdizeres: “O Núcleo de Estudos Açorianos/NEA tem como um de seus objetivosresgatar, preservar e difundir os valores das comunidades açorianas através deações que proporcionem a valorização desta cultura junto à sociedade. O litoral catarinense povoado por imigrantes vindos das da região dosAçores em meados do século XVII (1748-1756), hoje na oitava e nona geração.Este contingente populacional apresenta em muitas comunidades valoresculturais intactos. A realização do 1o AÇOR – 1o Festival de Cultura Açoriana de SantaCatarina conta com a parceria da Prefeitura Municipal de Itajaí e com o apoio

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  113das prefeituras de São José, Biguaçú, Sombrio, Criciúma, Imaruí, Santo Amaro daImperatriz, Palhoça, Camboriú, Garopaba, Florianópolis, Imbituba, Jaguaruna,Balneário Camboriú, Araranguá e Tubarão. Esta união representa esforços paravalorizar a cultura de base açoriana do litoral catarinense, lançando a semente deum futuro corredor Turístico-Cultural, único no Brasil, com valores preservadosdesde o século XVIII. Este evento é seu, precisa de sua presença, de seu orgulho cultural para setransformar na chama da retomada cultural litorânea. A dignidade do homem litorâneo e o seu saber fazer precisa ser visto parajamais ser esquecido. Participe.” Para que o movimento criasse o seu próprio caminho, decidiu-se porsua itinerância, e parece que acertamos na decisão. Assim, seguimos para o segundo Açor, que foi realizado em Imaruí.E lá fomos nós, da Marejada, com um caminhão cheio de artigos de decoraçãoe escada, que tínhamos usado na citada festa. Chegamos e já fomos fixando-osnos postes e locais da cidade, pois o caminhão tinha que voltar no mesmo diae nos trazer: Acyr, Geraldo e Borracha – o motorista. Uma semana antes doevento. E, o terceiro, na vizinha cidade de Imbituba, com o Romão, o apoiojá foi um pouco menor, pois os municípios já estavam se despertando parao evento, como também já estavam realizando outras festas em suas cidades,e aproveitavam a decoração destas. Assim, nossa participação, nessa área, foidiminuindo. Como cidade do primeiro Açor, procuramos estar presentes em todos,pelo menos até a 15a edição, quando foi votado que sua realização seria emItajaí. Tudo certo. Tínhamos organizado alojamentos, hotéis, gastronomia,pavilhão para as apresentações, sistema de transportes públicos interligadoscom a festa, e até fizemos a entrega dos troféus “Açorianidade” no Salão Nobreda Prefeitura. Até tínhamos patrocínio. Estávamos animados. Prefeituraparticipando, comércio lojista e comunidade. Tínhamos sido aprovados peloserviço de orientação do Nea/Ufsc – leia-se Conselho Deliberativo. Na semana do evento, porém, uma mudança climática na região,ocasionando muitas chuvas, veio inundar nossa cidade, impossibilitando-nos da execução do 15a Açor. E foi muita água, e, para comprovar, temosuma foto do Joe, andando pela principal rua da cidade, a Rua Hercílio Luz,próxima ao local do evento, com água pelos joelhos. Fato que em muitolamentamos. Mas, como todos os membros do conselho, aceitamos. E, hoje,nos encontramos nos preparativos para o vigésimo segundo Açor – emBombinhas.

114  Colóquio NEA 30 anos de História Quando assume a pasta cultural da cidade de Garopaba, o ProfessorJoão Pacheco, e convida a fazer parte de sua equipe a Professora Andréia,para desenvolver e dar visibilidade à cultura de base açoriana, minhas açõesexecutivas no Açor assumem um novo viés, pois, quando da realização doevento em sua cidade, fomos convidados para fazer os três dias de locução dopalco cultural. E, a partir daí, sempre que possível, e a convite do município-sede e do Nea, temos executado essa atividade, além de, durante o ano,participar como membro no Conselho Deliberativo, o que muito me honra. Fui representante da Prefeitura Municipal de Itajaí, Departamento deCultura, Centro de Cultura Artística de Santa Catarina, Fundação GenésioMiranda Lins, Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo, Museu Histórico deItajaí, Fundação Itajaiense de Turismo e, atualmente, represento a ComissãoCatarinense de Folclore, a convite do Professor Nereu do Valle Pereira, juntoao Nea. Vinte e dois anos de aprendizado, amizades, conhecimentos, viagens:locais, nacionais, uma internacional, com minha ida aos Açores, junto comGelci Coelho, o Peninha – uma enciclopédia. Por isso, em cada município dolitoral catarinense, quando visito, me sinto em casa. Considero que somos umagrande família, formada por índios, negros, portugueses, espanhóis, poloneses,japoneses, alemães, italianos e outros tantos, e ligados aos açorianos, formamosum grande mosaico cultural, que nos orgulha, que eleva nossa autoestima enos faz viver. Obrigado!

Relato de um antropólogo híbrido Eugenio Lacerda Agradecimentos e o porquê do título Gostaria de agradecer ao Joi Cletison pelo convite e falar da minhasatisfação, afeto e honra de estar aqui, neste encontro que comemora os 30 anosdo Núcleo de Estudos Açorianos, uma data sem igual, porque, como costumodizer: tudo mudou nesses 30 anos e, nesse processo, participamos comoconstrutores de uma comunidade imaginada, como restauradores de umamemória cultural e inventores de uma identidade coletivamente adormecida,amalgamada nos territórios costeiros do Sul do Brasil, desde muito conservadanos modos de vida de tradições essencialmente familiares, transmitidas pelaoralidade e registradas por pessoas empenhadas na luta pelo reconhecimentoe pelo redescobrimento de suas origens de além-mar. Minha fala aqui não terá o cunho de uma defesa de teses. Seguirei alinha de um relato em primeira pessoa, um relato de caráter testemunhal, poisdevo às pessoas com as quais convivi, nestes 30 anos, o melhor do que souagora, como antropólogo e escritor do outro, desde a sensibilidade auferida aoreceber a prece de uma benzedeira ou a força invocada nos cultos do Divino,até a participação fraterna junto àqueles e àquelas que circulam nos mundossem fronteira da diáspora açoriana global. Quando falo que este relato é o de um antropólogo híbrido, é porqueescrevo na posição identitária de alguém que tem dois corações mesclados:aquele das minhas origens cravadas nas Minas Gerais, fonte inesgotável daqual sempre bebo desde criança, e este de solo ilhéu, lugar onde fui criado,sempre com respeito pelo mar, fincando aqui meus pés híbridos e semoventes.Para um tipo “híbrido” não ter lugar, é estar em todos os lugares, vivendoa oportunidade permanente de renovação cultural e construção de novossentidos. Minha formação antropológica foi então quase que consequência

116  Colóquio NEA 30 anos de Histórianatural, enquanto opção por um conhecimento aventureiro, ciência e artededicadas a decifrar mundos e códigos culturais que não os próprios. A beleza dessa oportunidade está no fato de que, sendo o processocultural notadamente impuro, e o contato com o outro algo congênito àformação dos povos, somos, com isso, todos cidadãos permanentementealterados por diversos repertórios de identidades diversas, deslocados todoo tempo nos campos da diversidade. É nesse sentido que sempre defendi odiálogo com o outro no exato instante em que reconhecemos ou redescobrimosnossa identidade. Toda identidade tem uma origem e uma trajetória histórica,e é desta tensão que renovamos nossos compromissos com os referenciaissimbólicos que nos definem no espírito do presente. Os momentos mais valiosos nestes 30 anos do NEA Voltando meus olhos para a trajetória do movimento açorianistaem Santa Catarina, vou elencar os destaques que considero serem os maispreciosos, os momentos ou atividades nos quais mergulhei profundamente,sempre nessa linha testemunhal. O primeiro momento foi a organização, em 1990, de um livro sobre aFarra do Boi, intitulado: “Farra do boi: introdução ao debate”, após a ocorrênciade um confronto na cidade de Governador Celso Ramos entre a PolíciaMilitar e a população local. Foi nessa época que a polêmica que envolve atéhoje essa tauromaquia popular, realizada apenas na costa catarinense, ganhouares de batalha campal e guerra cultural profunda, vindo a ser proibida emacórdão do Supremo Tribunal Federal, em 1996, mas defendida até hoje pelosseus participantes como algo tradicionalmente “bom pra brincar e bom pracomer”. Desvelada como sinônimo de violência organizada contra o boi, essaprática cultural, vista assim, contradizia a índole pacífica das comunidadescosteiras. Reuni estudos e depoimentos importantes, e era a primeira vez queum trabalho desse tipo era feito, de modo a contribuir publicamente com odebate na época e suscitar iniciativas que não acarretassem em mais estigma,preconceito e repressão policial contra as comunidades. Com o passar dosanos e o acirramento da polêmica, percebi que era preciso um estudo maisaprofundado, embasado em pesquisa de arquivos e de campo, e um mergulhoetnográfico no universo territorial dos farristas. Afinal, quem eram os farristas? Vem então o segundo momento, quando, entre 1992 e 1994, fui morarpor um ano em Porto Belo, Bombinhas, visando o mestrado em AntropologiaSocial, com o tema da Farra do Boi. O resultado desse trabalho foi publicadoem 2003 no livro intitulado: “Bom pra brincar, bom pra comer: a polêmicada Farra do Boi no Brasil”. Mais do que o produto da pesquisa, o livro em si,meu destaque vai para a convivência amistosa com as famílias pesqueiras e aconfirmação do registro em arquivo histórico de que a chamada “brincadeira

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  117de boi bravo” já era alvo de multa na cidade de Tijucas, em 1873. Praticadapelos descendentes de açorianos, imersos no Brasil colonial, singular comoespécie de “tourada popular” a moda brasileira, minha pesquisa identificousimilaridades com as tauromaquias populares da Ilha Terceira, notadamentea chamada “Espera do Gado”, verdadeira correria de boi em pleno Alto dasCovas, Angra do Heroísmo, Arquipélago dos Açores. O terceiro momento foi o IV Congresso das Comunidades Açorianas,na Ilha do Faial, em 1995. Os resultados desse trabalho foram expostos nessecongresso. Estava lá eu em missão oficial para tratar da Casa dos Açores, MuseuEtnográfico criado pelo governo estadual em 1979. Ali percebi que, emborativéssemos muitos livros de literatura, o museu não representava, como até hojenão representa, um lugar de aglutinação e convivência de imigrantes açorianosespalhados pelo mundo, reunidos nestas Casas, tal como as há no Rio de Janeiro,Califórnia, Toronto e outros lugares. A experiência foi importante porquepercebi que estava entrando no mundo da diáspora açoriana, repleto de rupturase permanências, afetos e genealogias, filiações e laços longínquos. Em 1996, e este é o quarto momento, realizou-se em Florianópolis oI Encontro Sul Brasileiro das Comunidades Açorianas, comemorativo dos250 anos do povoamento açoriano na região. Esse encontro foi a minhaprimeira experiência no NEA, no sentido de coordenar o evento, visando (re)conhecimento da herança cultural dos casais ilhéus. Ali pude estreitar meuslaços com figuras como Vilson Farias, Joi Cletison, Nereu do Vale Pereira,Peninha, Francisco do Vale Pereira e João Leal. O encontro foi significativo nosdebates e estreitou laços de grupos açorianistas catarinenses e rio-grandenses,além da consolidação de nossas relações com o Governo e personalidadesaçorianas. Uma cena jamais esquecerei: na missa festiva de encerramento,tendo o próprio Bispo Dom Eusébio Scheib como pastor, ao final, com apresença de inúmeros cantadores de ternos de reis, lembro do Bispo ter dito:“podem fazer uma roda de cantoria no encerramento da missa, mas, por favor,não aqui no altar...” Esse encontro desencadeou inúmeras iniciativas por todos os lados,tendo o NEA como referência organizacional, firmando, em todo o litoralcatarinense, trabalhos de pesquisadores, intercâmbios de animadorescomunitários, mapeamentos culturais, cursos e eventos emblemáticos comoa Açor, festa móvel anual que passou a simbolizar um trabalho regionalizado,envolvendo todas as comunidades, desde Sombrio até São Francisco do Sul. Lembro aqui de três iniciativas do NEA dignas de registro, entre outras,na sequência desse encontro: o projeto de construção de um monumento aosaçorianos, tal como existe em Porto Alegre, e hoje fixado na cabeceira da ponte,no lado continental; a realização intermitente de cursos pelo litoral de Santa

118  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaCatarina com vistas ao mapeamento cultural das comunidades açorianas e aformação de agentes multiplicadores junto às redes de ensino; e a conquista dalei estadual que fixou, via Assembleia Legislativa, o dia 6 de janeiro como o diaestadual da cultura açoriana. Quinto momento: os representantes da Direção Regional dasComunidades do Governo Autônomo dos Açores presentes no encontrosensibilizaram-se pelo movimento açorianista no Sul do Brasil e o esforço pelaretomada de sua identidade e o significado de sua herança, num estado marcadohistoricamente pela multietnicidade. Foi então que mais brasileiros catarinaspuderam participar das jornadas anuais promovidas pela Direção Regional, umcurso itinerante de 11 dias, chamado: Açores: à descoberta das raízes. Tive aoportunidade de participar intensamente desse curso em 1997, conhecendo esseverdadeiro museu do tempo, como disse um dia o caríssimo Maduro Dias, e sentide perto o esteio no qual os descendentes diretos dos casais, depositavam suasbuscas do passado, suas refiliações históricas, seus congraçamentos genealógicose novas tessituras e arranjos de tradições artísticas e outras formas de expressão.Era a memória social solicitando à história licença para reconfigurar o perfilidentitário de um povo, ávido por reconhecer-se e ser reconhecido. Sexto momento: as festas do Açor, iniciativa oriunda da cabeça do Prof.Vilson Farias e gestada dentro do NEA, projeto que visava reunir em mostramóvel anual o que de melhor tínhamos, as vivências e expressões culturais, oartesanato, as danças, a gastronomia, as celebrações e ofertas das comunidadeslitorâneas de todas as idades. Lembro perfeitamente de um dia em que, comminha caixa de ferramentas, fui para o município de Penha, ajudar meusparceiros a levantar as tendas do Açor, num mutirão pioneiro e alvissareiro. Látomei concertadas e garrafadas, e percebi o quão rico é o patrimônio culturalimaterial das comunidades litorâneas, prenhas de sabedoria oral secular, comsuas rezas, simpatias e fitoterapias, tanto quanto carentes do devido registroe salvaguarda patrimonial. As festas do Açor passaram a ser gravadas, edocumentários reúnem hoje a memória audiovisual das comunidades. Sempreencerradas com missa festiva. Lembro que chorei de emoção, ao participardo louvor e do abraço da paz, algo que encanta simplesmente pela força da févivente no corpo e na alma. Sétimo momento: ao mesmo tempo em que a cada ano o Açor atraíamais gente, o NEA realizava os cursos de mapeamento cultural, e aqui souprivilegiado em ter participado diretamente e por vários anos de umaequipe cerebral, carismática e ativa, que reunia, nas viagens e nas reuniõespreparatórias, as pessoas do Nereu, Vilson, Joi, Peninha, Ana, Francisco. Entre os anos de 1995 e 2002, muito fecundo foi o contato com osprofessores e professoras das escolas municipais, além de lideranças culturais

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  119comunitárias e a juventude. Nesses cursos, palestras eram ministradas sobre ahistória e a cultura do Arquipélago dos Açores, o processo de povoamento noBrasil, e as manifestações atuais da herança dos casais em território catarinense.Além das palestras e vídeos, lembro que o Prof. Vilson Farias preparava sempreuma fala sobre os sobrenomes das famílias do lugar e a conexão genealógicacom os primeiros povoadores. Espantosa, na época, era a reação de muitos,ao ver que era real sua descendência, por trás da sua condição de brasileirosgenéricos ou praianos, ou caboclos da terra e do mar. O mapeamento culturalrepresentou um trabalho de base, um longo esforço que resultaria, anos depois,em um CD interativo, contendo mais de duas mil fichas preenchidas pelosparticipantes dos cursos e enviadas à Universidade Federal de Santa Catarina.Tive a oportunidade de analisar tais fichas e sistematizá-las, e considero ser umdos melhores trabalhos que já realizei. Oitavo momento: toda essa experiência afetiva e política ao mesmotempo me estimulou a continuar meus estudos de pós-graduação iniciados nomestrado sobre o tema da farra do boi e continuados no doutorado com o temaglobal da açorianidade, em contraponto ao processo local de reconstrução daidentidade cultural açoriano-brasileira em Santa Catarina. Essa pesquisa resultou em 2003 na tese de doutoramento emAntropologia Social intitulada: “O Atlântico Açoriano – uma antropologiados contextos globais e locais da Açorianidade”. Esse trabalho, que me rendeumuitos fios de cabelo branco, óculos de grau e um grande aprendizado nalíngua portuguesa, agraciou-me ainda com o Troféu Açorianidade – CategoriaPesquisador, o que muito me honra ao explicá-lo aos meus filhos. A pesquisa de campo, núcleo forte do ofício do antropólogo, levou-meaos arquivos de Angra do Heroísmo para levantar os dados dos brasileiros quelá estiveram, assim como a maior Festa do Divino fora do arquipélago, em FallRiver, estado de RhodeIsland, nos EUA; e também ao interior da Ilha de SantaCatarina, visando reconstituir o ciclo anual tradicional das festas e expressõeslocais. No espaço dedicado a este relato, gostaria de chamar atenção para asconclusões a que cheguei no Atlântico açoriano: o movimento açorianista e suasconexões representam uma caso exemplar de construção de uma comunidadeimaginada, e os meios simbólicos, políticos, afetivos e organizacionais de queos seus atores lançaram mão lograram reconstruir-se a si próprios. Como sabemos, a elaboração ou reelaboração da identidade culturalimplica a seleção de atributos tácitos, quer dizer, o estabelecimento deconsensos sobre a memória. O que devemos ou podemos lembrar é umaquestão crucial nos processos de reconstrução identitária. No entanto, devolembrar (com o perdão do trocadilho) que lembrar implica alguma dose de

120  Colóquio NEA 30 anos de Históriaesquecimento. Quais foram os mecanismos ou operadores simbólicos queinstauraram a forma imaginada de uma comunidade etnicamente diferenciadados descendentes de açorianos no Sul do Brasil? Em resumo, o caso açoriano em Santa Catarina é um fenômeno deetnização da identidade. Um investimento do imaginário na realidade e darealidade no imaginário; a conjunção de elementos agenciadores como areconexão com as raízes (os Açores); a marcação de um passado pioneiro,com ênfase numa epopeia fundadora (a saga dos imigrantes açorianos doséculo XVIII); a seleção de tradições, na forma de novas pautas de eventosevocativos e a difusão de um repertório cultural; a valorização da autoestimapelo orgulho de ter uma origem, uma identidade e tradições próprias; enfim,ter uma diferença de identidade e uma identidade na diferença, a que se possadar valor próprio em face dos outros.Conclusão Finalizo este relato com uma fala ambientada nos tempos atuais – temposde crise, tempos efêmeros, tempos líquidos e de tendências microscópicas,convergentes e divergentes, tempos de jogos vorazes, diria, e que ao menosuma certeza se me impõe: a de que a cultura é definitivamente o quarto pilardo desenvolvimento, ao lado do meio ambiente, da economia e da sociedade. Mirando a alma do “manezinho” e seus descendentes, avisados oudesavisados, diria que as relações entre a memória e a contemporaneidade;as tensões entre os territórios de identidade local e o diálogo intercultural ea tendência à criatividade e inovação no seio dos grupos empreendedores dasnovas gerações, constituem os caminhos possíveis daqueles que no passadoforam chamados de “praianos indolentes”, sem origem, e que hoje podem serlembrados, tal como eu faço agora livremente, como os “terceirenses” do Suldo Brasil, feitos de alegria, fidalguia, poesia e ilustração. O nosso ilhéu de hoje está cada vez acantonado na paisagem urbana e,no entanto, cada vez mais conectado ao mundo, na busca de reinventar-se a simesmo pela batuta imprevisível das novas gerações. Obrigado!

Sinais de resistência cultural Gelci José Coelho “Peninha” O visível – aquilo que se percebe e sente. O que se diz são aspectos dapercepção e vivência. Expressões na fala, hábitos, costumes, modos, crenças,revelam aquilo que chamo de “alma açoriana” Pontuando alguns aspectos, percebe-se que está em tudo impregnado,indelével e inegável. O falar corrido, na expressão de espanto ou dúvida aodizer: Ó, lho, lhó – tás tolo, tás? Ai éééé... Credo! Nossa Senhora! E por Elaclamam, recorrem nas necessidades. Antes de tudo, a religiosidade e a festa.Entre o sagrado e o profano, a reza e a dança. O pitoresco está entre causos diversos – Aqui apresento uma relaçãode alguns títulos de histórias merecedoras de ficarem na memória. Éuma enxurrada de temas como: a benzedeira de Araranguá; a imagem deSão Miguel Arcanjo, de Ponta das Canas; a rabeca do Seo Lili; o terço daBandeira do Divino na Encantada, em Garopaba; as massas de pagamentode promessas; a coberta dalma moderna; pássaros na gaiola: coleira, sabiá,canário, tia-chica e curió; o cultivo de plantas contra o mau-olhado; grutinhasde jardim; Banho Santo e a colheita das ervas na madrugada da Sexta-Feirada Paixão; a farinha de mandioca sempre à mesa; lavar os pés antes de sedeitar para ir dormir. A culinária é frugal, e a felicidade está em comer bem cardosa, bemfritinha, com pirão de farinha de mandioca escaldado. Depois, dá uma lomba,olha o panorama deslumbrante e contempla sem pressa, lendo a natureza nacor das nuvens, no movimento do mar e nos ventos refrescantes. É uma gentecontemplativa e hospitaleira, marcante na crença de que seja lá quem for,principalmente desconhecido que lhe chega à porta, recebe-o bem, oferecendosempre o que tem de melhor, pois acreditam que o visitante  pode ser JesusCristo disfarçado. Mistérios divinos – Procissão de Nosso Senhor Jesus dos Passosgarantindo a maior concentração de descendentes dos antigos povoadores

122  Colóquio NEA 30 anos de Históriaprocedentes do Arquipélago dos Açores e da Ilha da Madeira – Portugal,que vieram colonizar o litoral da Província de Santa Ana e a Ilha de SantaCatarina. Na cidade de Imaruí, vê-se imensa quantidade de pessoas a comparecerpara louvar o Senhor dos Passos, realizando rituais que perduram. Em Imaruí,lavam a imagem com vinho, que depois é distribuído entre os fiéis, os quais ousam como remédio. Aqui, na Ilha de Santa Catarina, lavam a imagem com água benta,também é distribuída entre os fiéis, que irão usá-la como remédio. Os fiéis revelam uma intimidade imensa com o Senhor dos Passos(parece reminiscência do Santo Cristo da Ilha de São Miguel nos Açores.).Aqui, junto ao altar, entre as frestas, pessoas costumam colocar bilhetinhospara o santo. Um dizia assim: “Tu já me ajudastes agora precisas ajudar oValdir, pois ele está precisando muito.” Seo Neri, lá da Enseada de Brito, sabendo que eu estava indo para aprocissão, pediu para mandar um abraço ao amigo Senhor dos Passos. Nas festividades em louvor ao Espírito Santo, onde os fiéis comparecemprincipalmente usando roupa nova, são bem evidentes os sinais da resistênciacultural. E é a festividade mais esperada e anunciada tempos antes com a visitada bandeira nas residências e as novenas com arremate das tradicionais massasde pagamento de promessas. No mínimo, a grande festa dura três dias entrerituais, a representação da corte imperial em desfile pelas ruas, a comilança,jogos e danças culminando com uma grande queima de fogos. É a maiorfestividade e marca profundamente a herança da religiosidade açoriana. A resistência a que me refiro está também nas obras dos artistas eartesãos com inspiração nos aspectos e temas da herança cultural. O saber fazer das rendas de bilros, o crivo, o trançado de balaios e cestas,o tear manual e a confecção de canoas. Só para lembrar, destaco o artesanatosignificativo e falar sobre as figureiras das olarias da Ponta de Baixo, em SãoJosé da Terra Firme. Os calungas de barro cozido, criados e confeccionados como trabalhoparalelo pelas mulheres e filhas dos oleiros.  Lembrando Nézia Melo da Silveira,que tinha uma produção significativa na confecção de presépios, conjunto doboi de mamão, a orquestra de sapos, enfim, uma foto do seu trabalho saiuna capa da Revista Quatro Rodas, e o Brasil inteiro tomou conhecimentoda originalidade do artesanato em barro cozido e pintado. Filas de viajanteschegavam de remotos lugares para conhecerem o trabalho de Nézia, que acabouficando assustada e se recolheu; mas o Museu do Presépio, em São Paulo,conserva em seu acervo um dos seus presépios. Depois, outra história singularé sobre Dona Zenir Josefa de Souza, filha de oleiros, aprende rapidamente

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  123a levantar louças no torno – trabalho considerado exclusivo dos homens –,teimava em ajudar o pai na olaria, especialmente no torno confeccionandopotes, alguidares, panelas, boiões, moringas e tudo o mais. Foi, por isso, malfalada e marginalizada, nunca conseguiu namorado. Então, para abrandar ofalatório, passou a fazer tudo em miniatura, mobiliário, louças e os famososfogãozinhos. As figureiras produziam uma profusão de bichos em miniatura como oboi, o cavalo, a cabra, entre outros que eram utilizados como brinquedos. Franklin Cascaes, quando criança, ganhava os tais bichinhos e oscopiava, reproduzindo outros muitos. Mais tarde, influenciado, realizouuma obra considerável registrando diversos aspectos que estavam em vias dedesaparecer, garantindo, assim, a memória. Cascaes pretendia que a obra fosseútil como apoio à educação. Os temas proporcionam, sem dúvida, imensaspossibilidades de conhecimento. Muitos artistas produziram e produzem excelentes registros nas artesplásticas, inspirando-se na alma latente, nos modos de ser dos descendentesdos povoadores açorianos aqui no litoral de Santa Catarina. Referir-se à qualidade e beleza do artesanato em cerâmica e aosprodutores mais recentes é uma tarefa muito difícil. São inúmeros artesãos,e fica difícil destacar alguns. Mas, me lembro de Martinha Medeiros, IdalinaMedeiros Petiski e Ademar Melo,  Pedro João da Rosa, os quais mantinhama tradição familiar. Outros, ainda mais recentes, como Índia Brasil, JoãoAurino Dias (o Dão), Geraldo Germano, Nilton Souza,  Fran  Matos, MylenaMachado Albuquerque, Lourival Medeiros (Val), Raquel Santana dos Passos,Fernando Brasil etc., compreendendo um rosário inteiro de artesãos e mestresceramistas. Oleiros como Moacir de Souza (Ci), Ilson Roberto dos Santos e,entre as mulheres, destaque para Tânia Inácio Fernandes. Destaque especialpara os artistas Paulo e OsmarinaVilalva. Qual o adjetivo  utilizar para tentardefinir tanto amor? Resultado da percepção, pesquisa e produção? Na literatura, teses científicas exploram cada vez mais os traços daherança cultural, e são temas acadêmicos: o terno de reis, o pão por Deus, oboi na vara entre muitos outros aspectos. Em todo o litoral catarinense, encontramos publicações de referênciaà herança cultural. Livros relacionados formam uma considerável bibliotecacom autores como: Almiro Caldeira, Virgílio Várzea, Aldírio Simões, SérgioLuiz Ferreira, Walter Fernando Piazza, Nereu do Vale Pereira, WilsonFrancisco de Farias, Gilberto Gerlach e Osni Machado, e Ilson WilmarRodrigues Filho, com o Dicionário de Regionalismo da Ilha de SantaCatarina e arredores. E gosto muito da publicação sobre a História de PauloLopes de Manoel Venâncio Machado. Livros recentes como “O Tempo da

124  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFarinhada”, de Celso Martins, “História de Engenhos”, de Adriana Schoroeder,“Engenhos da Cultura”, de Gabriela Pieroni, e, de modo artístico, “Canoas,Ventos e Mares”, de Laerte Tavares, não podem faltar nessa biblioteca. Alémdos romances: “A Canção das Bruxas”, de Roberto Garrido, “A Ilha da Magia:beijando a face de Deus”, de Claudia S. Tomazi, e de obras importantes aindanão publicadas, como o Dicionário Mané, que contém centenas de verbetesexplicativos sobre palavras e expressões mais utilizadas entre nossa gente,devem ser lembrados. Há, também, o romance “Nas areias do Campeche”, dePedro Eugênio da Silveira, e muitas outras obras que deveriam ser reunidasem uma Biblioteca de referência sobre os alicerces da herança cultural nolitoral catarinense. Falar sobre os atores que, mesmo interpretando de forma caricata, nosremetem com humor escancarado ao nosso jeito e modos de ser. O famosocasal Dona Bilica e seu Maneca, Vardi, o Manezinho da Ilha, o hilário Darci,Dona Maricotinha e o Pombeiro, entre muitos outros atores que trabalhamcom a nossa cultura popular como inspiração. Vale lembrar o hábito de colocar apelido em tudo e em todos. Precisa ser destacado o sucesso do “Bar Fala Mané” – programa de TV,e o cobiçado troféu “O Manezinho da Ilha”, de Aldírio Simões. O alcance poderoso da TV inspira uma grande quantidade detrabalhos em vídeo, em forma de documentário, garantindo, assim, oregistro e possibilitando a apreciação e conhecimento a uma infinidade detelespectadores, iluminando a memória, animado lembranças que nelas sereconhecem e se emocionam. Precisam ser referenciados também o teatro, a música, o cinema e até amoda, por onde circula como fonte de inspiração a herança cultural de baseaçoriana. A arquitetura sobrevivente, marcos, monumentos, museus queinformam e nos remetem imediatamente aos Açores, revelando de algumaforma sobre o Arquipélago, localização, ocupação humana e suas tradições. Ainda, há profusão dos nomes de lugares, lojas, chaveiros, restaurantes,edifícios, barbearias, condomínios, ruas, empresas, todos com títulos e nomesfantasia que nos remetem aos Açores. Todo o mérito sobre a afirmação da açorianidade no litoral catarinensese deve às atividades desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos Açorianos (NEA),no desafio de mapear, localizando e revitalizando em apresentações vivasas referências culturais. Graças ao imenso trabalho do NEA, envolvendoa participação dos municípios do litoral catarinense na conscientização evalorização da cultura açoriana, construiu-se um alicerce firme, através deeventos festivos e inclusão das referências nas escolas, abrindo-se, assim,

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  125caminho para o conhecimento da história, suas raízes, origens e preciosidades,como a literatura oral, revelando lendas que seduzem e enfeitiçam quem querque as ouçam. A literatura oral é a mais frágil de toda a resistência cultural. Ogrande mérito ainda é de Franklin Cascaes, que, preocupado com o possíveldesaparecimento do hábito de contar as lendas, ousou registrar por escrito eilustrar algumas das histórias que causaram tamanho espanto e culminou como nome fantasia da Ilha de Santa Catarina para “Ilha da Magia”, difundida,aceita por toda a gente daqui e de acolá, e, provavelmente, tem aí o poder dasbruxas imperando altaneiras no imaginário popular. Muitas histórias caíram no gosto popular, como “O baile das bruxas napraia de Itaguaçu” – que se trata de um fato folclórico de criação recente ondeas pessoas lá podem constatar o ocorrido. Mas tem uma história verdadeiraque aconteceu na Costa da Lagoa da Conceição, no entanto não posso contar,pois quem conta atrai a bruxa para si. É muito perigoso! É preciso rezar aoração contra o bruxedo. Mesmo se deparando com o fato diz: Não acredito!!!Melhor é acreditar que não acredita. Pronto! As novidades são sempre aceitas,mas adaptando-se ao seu modo, achando muita graça em tudo e donde. Assimé que tchau! transformou-se em ATICHALI.  



O consulado de Portugal e as suas relações com os Açores e a cultura açoriana (1998/2011) João Lupi1. Uma vez que o tema, o qual fui convidado a expor, é, de certa forma, inédito,vou começar por algumas indagações. Qual é o sentido, a razão de ser, dapromoção da cultura de base açoriana na região litorânea catarinense? E qualé o sentido de que essa promoção seja feita, no caso do Núcleo de EstudosAçorianos, a partir da universidade? Finalmente: onde é que se insere e articulao Consulado Honorário de Portugal? O primeiro sentido, mais evidente e geral, é o da valorização dacultura, criando nos seus atores um sentido de pertença a algo muito maisamplo que a sua comunidade local, porque há pessoas de muitos lugares ecategorias sociais que o consideram relevante, e o apreciam. A universidadeacentua a valorização da cultura popular, ao colocar nesse palco social atorese apreciadores que pertencem a ambientes culturais eruditos e sofisticados.Desse modo, ampliam-se a qualidade e a diversidade da valorização da cultura,mostrando que seus modos de realizar a humanidade – ou de tornar visíveisos potenciais de humanidade – são tão válidos e relevantes como os de outroscírculos e níveis culturais. Mas a percepção desse tipo de humanismo mantém-se regional, pois a visão de uma integração com a cultura originária açoriana écaptada apenas por alguns. O que a presença do Consulado de Portugal realiza e torna maisperceptível é o salto para uma visão de sociedade atlântica, e, de um modoapenas entrevisto, a inserção numa tradição europeia. Mesmo que a maioriados participantes nas atividades culturais não tenha uma percepção nítida

128  Colóquio NEA 30 anos de Históriadessa inserção atlântica e europeia, ela está presente, é citada, conhecida e,a seu tempo, em muitos indivíduos, brotará numa consciência mais clara –como já se pode constatar.2. Vejamos agora o que é o Cônsul Honorário e como ele foi de certo modo“preparado” para o mandato que se iniciou no final do milênio. CônsulHonorário é uma pessoa, indicada pelo Governo de um país, para representaresse país na região onde o Cônsul reside. É uma função voluntária, o que querdizer que o indicado não tem, geralmente, formação específica para exerceras funções consulares – não é de carreira, e, na maior parte dos casos, nãorecebe, do Governo o qual representa, recursos materiais nem financeiros paramanter o consulado. Nesse sentido, o Cônsul Honorário não é, formalmente,funcionário público, e ele se identifica pessoalmente com a função. Mas,no caso de um português que representa Portugal, e que tem, como nós, apeculiaridade de viver numa região colonizada por açorianos, se o queele aporta à sua vivência consular é em grande parte determinado pela suaanterior formação, que formação se espera que ele tenha para atuar nessascircunstâncias? De fato, o cônsul faz com que se entenda a relação entre Brasile Açores como integrante da relação entre Brasil e Portugal, e, como agentesocial, ele é um intermediário e promotor da cultura de base açoriana numaregião especificamente delimitada: a área litoral do estado de Santa Catarina.Ora, à parte aquelas informações comuns que toda criança portuguesa recebianas aulas de Geografia e História, e de algumas notícias e casos vindos decolegas e da família, meu conhecimento acerca dos Açores era escasso, até que,em 1974, durante a Revolução dos Cravos, minha mulher e eu fomos visitar oarquipélago. istória Só então tomamos conhecimento das ideias e opções separatistas dealguns açorianos com relação a Portugal, e aprendemos a reconhecer nãosó as belezas das ilhas, mas a importância do povo açoriano no contexto dasociedade e da cultura portuguesas.3. Assim, quando em 1985 minha mulher e eu fizemos, no Rio Vermelho– bairro localizado no norte da ilha –, uma pesquisa sobre cultura popular(estudos de comunidade), já conhecíamos um pouco dos Açores, e ficamostão impressionados com a realidade da cultura açoriana (cuja presença emSanta Catarina mal conhecíamos) que resolvemos colocar no livro o subtítulo:“memória dos Açores em Santa Catarina”. A partir daí comecei a interessar-me mais pela cultura açoriana, e como percebermos que, quando falavam de“Açores”, a maior parte das pessoas não sabia do que se tratava, resolvemos,minha mulher e eu, com ajuda de várias pessoas, organizar e montar, em abril

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  129de 1989, uma exposição, na entrada da Reitoria da UFSC, sobre o que é oarquipélago, com peças de artesanato, painéis com informações históricas eoutras, e diversos objetos, a maior parte trazidos dos Açores por nós mesmos. Fiz concurso para a UFSC e, em 1991, nos estabelecemos definitivamenteem Florianópolis; sendo professor de Filosofia Medieval, pude estudar umpouco de um tema que interessava à cultura açoriana: a origem medievaldas Festas do Divino Espírito Santo, e as doutrinas de Joaquim de Fiore queembasam o culto. Em 1995, durante um pós-doutorado, pude dedicar-me maisa esse assunto e comecei a publicar os resultados. Por essas e outras atividades,quando em 1998 assumi o consulado de Portugal, já não era um lisboeta(alfacinha) desinteressado dos Açores: pelo contrário, estava empenhado nãosó na relação da cultura açoriana com a portuguesa continental, e suas variantesultramarinas, mas também no estudo de alguns aspectos dessa cultura. Issoexplica porque fiz questão de que o representante de Portugal estivesse semprepresente no Conselho do NEA e na festa do AÇOR.4. Entre as relações do Consulado com as autoridades da Região Autônoma,destacam-se alguns convites, mostrando que o Governo dos Açores tinhainteresse em que o Cônsul de Portugal estivesse bem informado. Entre essesconvites e participações, salientam-se: Jornadas Açorianas, em Lisboa (10/11janeiro 2002), continuando em Ponta Delgada (5/8 janeiro 2004); o curso “ÀProcura das Raízes” (14/26 setembro 2002), quando visitamos algumas ilhas,escutamos palestras e recolhi informações sobre o culto a Santa Catarina deAlexandria nos Açores; e o convite para proferir palestras em Ponta Delgada ena Horta sobre a relação entre Santa Catarina e os Açores, onde falei acerca de“Olhares catarinenses sobre os Açores” (novembro 2008). Esses convites porparte do Governo da Região Autônoma são tanto mais de notar quanto nãohouve uma ação semelhante, em relação ao Consulado Honorário, por partedo Governo da República. Por outro lado, em Florianópolis, o Cônsul estavapresente na recepção às autoridades da Região Autônoma quando em visita aoestado. Uma intermediação “mais do que triangular” (Açores-Lisboa-Consu-lado-NEA) aconteceu em 2001: quando, em 15 e 16 de fevereiro, o açorianoJaime Gama, então Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, visitouFlorianópolis. Ele se admirou tanto com a forte presença da cultura açorianaem Santa Catarina que perguntou ao coordenador do NEA, Joi C. Alves,quais eram as necessidades do Núcleo, ao que o coordenador respondeu queo que mais faltava era uma sede com boas condições de trabalho. Passadoalgum tempo, o Ministério enviou um cheque com uma quantia em dólares

130  Colóquio NEA 30 anos de Históriapara a construção da sede (que foi edificada ao lado do Museu da UFSC,com uma placa alusiva à doação do Governo de Portugal). Havia, porém,um impedimento burocrático-administrativo: como é que uma instituiçãofederal brasileira pode contabilizar uma doação em dinheiro recebida de umGoverno estrangeiro? O impasse foi resolvido (mas ainda houve dificuldadesposteriores) pelo fato de o Governo português ter um representante oficialdentro da UFSC, já que eu era, ao mesmo tempo, Cônsul e professor, e foinessa condição que entreguei o cheque à Reitoria.5. Na relação com os promotores de cultura em Santa Catarina, salienta-se o apoio do Consulado a iniciativas e atividades culturais, por meio derecomendações junto às autoridades, ou intermediando contatos, comono caso do Gira Teatro, ou ainda recebendo e acompanhando artistas eintelectuais em Santa Catarina, entre os quais Onésimo Almeida (2002),Caetano Valadão Serpa (2004), Horácio Medeiros (2008). O cônsul estevepresente em eventos culturais de grande porte, como a festa anual do Açor,no litoral catarinense, e o Congresso das Festas do Divino (maio 1999), ondea sua participação contribui para o significado internacional da atividade.Houve também outros eventos importantes, mas de porte menor, para osquais o Cônsul de Portugal foi convidado, ou participou, como o Colóquiode Literatura Açoriana (30 de julho de 2002), o curso “Raízes dos Açores”(3 e 4 de novembro de 2003), o Encontro de Museus (23 de março de 2004)‒ no qual falou sobre o Consulado na sua interação com o meio culturalaçoriano ‒, e a Semana Açoriana (29 de novembro a 3 de dezembro de 2004)–, todos estes eventos realizados em Florianópolis. Deve-se ainda contar aparticipação do Cônsul como membro do Núcleo de Estudos Açorianos,do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e da Casa dos Açores(desde a sua fundação em dezembro 1999), e também o convite do Cônsulaos promotores de cultura açoriana para representar Portugal em mostras dedança e de artesanato – por exemplo nas Feiras da APAE. O relacionamentocom a Casa dos Açores tornou-se mais institucional com a instalação doConsulado na sede da Casa dos Açores (23 março 2004) e, mais recentemente(desde 2013), o convite à Casa dos Açores para organizar a celebração do Diade Portugal. Destaca-se ainda que, quando em Florianópolis se instalaramurnas para coletar votos em eleições para o Governo de Portugal, foramsempre as famílias açorianas (nascidas no arquipélago) que compuserama mesa e a contagem dos votos. Pelo reconhecimento a algumas dessasatividades, o Cônsul recebeu em 2000 o Troféu Açorianidade, instituído peloNúcleo de Estudos Açorianos.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  1316. A condição de Professor da Universidade Federal permitiu ao Cônsulatingir um público vasto e erudito. A UFSC é a principal entidade degrande porte a promover a cultura açoriana no Estado, sobretudo pelaação do NEA, que faz reuniões mensais, mantém uma biblioteca, organizaexposições e realiza anualmente a festa do AÇOR – atividades em que orepresentante de Portugal participou. Salienta-se ainda que o Cônsul atuoudurante seis anos na Direção do Centro de Filosofia e Ciências Humanas,principal núcleo de pesquisadores com publicações sobre culturaAçoriana e sua influência no Brasil, e nessa condição teve possibilidadede intermediar e colaborar em diversas atividades do Núcleo. Comoprofessor de Filosofia Medieval, foi frequente a oportunidade de comentara origem teológica e filosófica das Festas do Divino Espírito Santo, não sóem palestras mas na orientação de trabalhos de alunos e em entrevistaspara a televisão. Enquanto professor de Filosofia da Religião no curso deFilosofia, foi apresentado e discutido em aula o ensaio visual Ilhas Míticas,de Antonieta Costa, onde a autora retrata a origem e fundamentos arcaicosda religiosidade do povo do arquipélago.7. Em síntese, e concluindo: o Cônsul Honorário é uma figura socialpeculiar, ao mesmo tempo formal, como representante oficial e “enviado“político, mas também pessoal e singular, uma vez que o que ele aporta à açãoconsular é a sua personalidade, ou seja, suas vivências familiares e sociais, esua formação cultural. O Cônsul, no caso do Cônsul Honorário, identifica-se com o Consulado, e, como as suas realizações dependem muito dos seusrelacionamentos dentro da sociedade, através dos quais consegue apoio paraações que não desenvolveria sozinho, ele é não só as suas circunstâncias masas suas relações sociais. Portanto, o que o Cônsul Honorário de Portugal emFlorianópolis foi, durante 1998 a 2011, em relação aos Açores e à culturaaçoriana, foi, como em muitos outros aspectos, pessoal e irrepetível. Mas oque foi marcante, e pode constituir um legado, é a estreita relação da culturaaçoriana catarinense com a cultura portuguesa, e desse modo um olharespecial para a relação entre Santa Catarina e Portugal, numa dimensãointernacionalizada, e não só entre regiões.Palavras-chave: Cultura de base açoriana; Cônsul Honorário de Portugal emFlorianópolis; Universidade Federal de Santa Catarina.

132  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaBibliografiaLUPI, João; LUPI, Suzana. São João do Rio Vermelho. Memória dos Açores em SantaCatarina. Colaboração e desenhos de Maria Sandra Losekann. Porto Alegre, EST,1987.LUPI, João. Açores e açorianos na obra de Franklin Cascaes. Florianópolis, Anais doMuseu de Antropologia, v. 19, 1992, 168-174.LUPI, João. A aceitação do modo de ser açoriano na sociedade catarinense. Angra doHeroísmo, I Jornada Emigração/Comunidades, 2002, 187-189.LUPI, João. Três olhares catarinenses sobre os Açores. Ponta Delgada, 29 denovembro de 2008, conferência.LUPI, João. Cônsul Honorário. A experiência do estado de Santa Catarina.Florianópolis, Insular, 2014.

A construção da açorianidade em Santa Catarina, 1948-2015: IHGSC, Cascaes e o NEA Sérgio Luiz Ferreira Entre 1748 e 1753 cerca de 6.000 açorianos chegaram a Santa Catarina.De modo geral, essa população chegou ao século XIX tendo ainda na memóriaa freguesia e a ilha natal de seus avós. Nos registros de batismo, constam sempreessas informações. Ao longo do século XIX, essa população foi se afastandoda matriz demográfica açoriana e a memória também se enfraqueceu, a talponto que entrou no século XX sem lembrar da origem de seus antepassadosaçorianos. Era comum no século XX o povo do litoral catarinense se proclamar“sem origem”. Em Santa, Catarina nesse período, ter origem era ser descendentede italiano ou de alemão, geralmente.1 O litorâneo, descendente de açorianoera considerado indolente, chamado de amarelo. Em 1948, para comemorar os duzentos anos da colonização açoriana emSanta Catarina, o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina realizou oPrimeiro Congresso de História Catarinense. Na ocasião, Oswaldo RodriguesCabral escreveu que nossos arquivos estavam “semivirgens” e que era precisoreunir tudo que fosse de origem açoriana.2 A ascendência açoriana não estava1 Segundo Arlene Renk o “qualificativo de origem é a forma como se identificam e são identificados os descendentes de europeus, aqui tomados genericamente.”RENK, Arlene. A luta da erva: um ofício étnico no oeste catarinense. Chapecó: Grifos, p. 29. Faço, no entanto, a ressalva que os descendentes de português não são considerados de origem. Giralda Seyferth e Eunice Sueli Nodari também discutem as relações entre brasileiros e “colonos de origem”. SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990. NODARI, Eunice Sueli. A renegociação da etnicidade no Oeste de Santa Catarina (1917-1954). Porto Alegre, 1999. Tese (Doutorado) – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.2 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nobreza do arquipélago. Diário da Tarde, n. 4.600, 14 fev. 1948. p. 1. Apud FLORES, Maria Bernardete Ramos. A farra do boi: palavras, sentidos, ficções. 2. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1998. p. 120.

134  Colóquio NEA 30 anos de Históriamais na memória, estava na história, e foi possível “resgatá-la”3 através doslugares de memória, sobretudo nos arquivos eclesiásticos. Foi somente atravésdos arquivos que foi possível dizer àquela gente, que dizia não ter origem, queera descendente dos açorianos chegados no século XVIII. Cabral escreveu, em 1948, em os Açorianos, publicado nos Anais doPrimeiro Congresso de História Catarinense: E são os remanescentes destes os que ainda existem isolados em pequenas póvoas, à beira das praias, ligados à pobreza das terras, que eles esgotaram, pela indigência em que vivem, extinguindo-se numa lenta e dolorosa agonia. Tal gente tem-se buscado para expor como sendo os descendentes do açoriano fracassado (grifo meu), quando é ela apenas a descendência dos que não tiveram a coragem de abandonar a terra, ou não puderam fazê-lo.4 Cabral aqui já antecede o que seria o trabalho da SubcomissãoCatarinense de Folclore, que publica seu primeiro boletim em 1949:5 dizeràquela gente que ela era descendente de açorianos. Não sei qual podia ser aeficácia de dizer a esta gente que era descendente do “açoriano fracassado”. Cabral afirma que esses descendentes de açorianos estão “extinguindo-se numa lenta e dolorosa agonia”. Isto lembra a obra Homens e algas de outroparticipante do Congresso, Othon Gama D’Eça: Dormem (os pescadores) misturados aos rebotalhos das redes e aos detritos úmidos das vagas, ligados no mesmo destino e confundidos nas mesmas causas – homens e algas cuspidos todos numa praia, sob o sol dourado e vivo: as algas pelo mar e os homens pela miséria.6 Pela escrita desses dois autores, percebe-se que o homem do litoralcontinuava a ser considerado um indolente. O livro Homens e algas foilançado em 1957, pela Imprensa Oficial. A visão de Othon Gama D’Eça,3 Apesar de toda ojeriza dos historiadores à palavra resgate, ela tem sido amplamente utilizada pelos folcloristas e pelo poder público de modo inclusive a nortear muitas políticas públicas de incentivo às culturas locais.4 CABRAL. Os Açorianos. In: 1o Congresso de História Catarinense, Anais... Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. p. 584.5 Sobre a atividade da Sub-Comissão Catarinense de Folclore ver SAYÃO, Thiago Juliano. Nas veredas do folclore: leituras sobre política cultural e identidade em Santa Catarina (1948-1975). Florianópolis, 2004. Dissertação (Mestrado) – Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina.6 D’EÇA, Othon Gama. Homens e Algas. 3. ed. Florianópolis: FCC: Fundação Banco do Brasil: Ed. da UFSC, 1992. p. 42.

um dos classificados como pertencente à “plêiade de homens ilustres”, nãomodifica a sua opinião. O homem do litoral continuava a ser considerado frutodo destino, do fatalismo. É importante dizer que essa visão do interioranoatrasado era lugar comum no Brasil desse período, basta lembrar o sucesso dapersonagem Jeca Tatu do escritor Monteiro Lobato. Muitas campanhas foramfeitas para civilizar e “urbanizar” o matuto brasileiro. A tese de Cabral é a de que quem ficou ligado à terra fracassou e quemprocurou outros meios foi vitorioso. Segundo ele, “a terra fez-se funçãodesclassificadora e os que a ela ficaram ligados não conseguiram edificar opróprio adiantamento nas bases econômicas sustentadas pelo domínio rural”.Já aqueles que se desligaram da terra tiveram outro destino: “O elementovitorioso, o que conseguiu sobrepujar o meio, o que se tornou dominante, foijustamente o que se libertou da terra, o que se desligou da agricultura... e foicuidar de outra vida”.1 Que imagem se fazia desse “fracassado” de duzentos anos? Queconhecimento passa a ser produzido sobre essa gente e sua cultura? Homi K.Bhabha, em O local da cultura, cita Franz Fanon para dizer que não há umprincípio constante da cultura nacional onde se pode buscar “um passadonacional verdadeiro” e que se possa representar de forma estereotipada. Opresente da história desse povo destrói essa ideia, posto que essa substânciaestá constantemente se renovando, “é uma estrutura de repetição que não évisível na translucidez dos costumes do povo ou nas objetividades óbvias queparecem caracterizar o povo”. Acima de tudo, “a cultura detesta simplificação”,não há estereótipos, modelos originais a serem desenterrados.2 O Primeiro Congresso de História Catarinense de 1948 tem sido apontadoconstantemente como o mito fundador da açorianidade em Santa Catarina.Esse congresso foi objeto de estudo de Maria Bernardete Ramos Flores em AFarra do Boi: palavras, sentidos, ficções.3 Nessa obra, originalmente sua tesede doutoramento, a autora faz uma análise do evento que tem sido utilizadapor muitos estudiosos que tratam do assunto. A pesquisadora traz trechosda obra do único português presente no evento, Manuel de Paiva Boléo, quepublicou uma obra de 78 páginas sobre o congresso intitulada O Congressode Florianópolis, comemorativo do bicentenário da colonização açoriana.Segundo Boléo, o objetivo do congresso era “resgatar o importantíssimo papel1 Cabral. Op. cit. p. 584.2 Cf. FANON, F. The Wretched of the Earth. Harmonsdworth: Penguin, 1969. p. 174-190. Apud. BHABHA. Homi K. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 215.3 FLORES, Maria Bernardete Ramos. Farra do Boi: Palavras, sentidos, ficções. 2. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1998. p. 113-141.

136  Colóquio NEA 30 anos de Históriado açoriano na colonização de Santa Catarina”.4 Esse objetivo já tinha sidoexpressado por todos os participantes do congresso, mas ele vai mais aléme revela outro dado importante: O congresso “constitui uma necessidadeno Estado de Santa Catarina, onde a cultura luso-brasileira perigosamenteenfrentou a cultura alemã. A finalidade suprema, embora não expressa, era ade mostrar para os outros Estados da União, a brasilidade de Santa Catarina”.5 Enquanto a elite do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarinadiscutia a melhor forma de dizer àquela população catarinense que ela eradescendente de açoriano, já andava pela ilha um pesquisador autodidata a“recolher o que sobrou da cultura açoriana”. Trata-se de Franklin JoaquimCascaes (1908-1983). É o próprio Cascaes quem afirma: “E um dia me prometique, quando pudesse, ia recolher na Ilha o que sobrava de todas aquelastradições açorianas. E eu fiz isso mesmo”.6 Segundo ele, outros tambémfaziam esse trabalho, como Roberto Lacerda, ex-reitor da UFSC. “Já OswaldoRodrigues Cabral não era dado a isso. Ele não dava muita importância a essascoisas”.7 Franklin Cascaes, de fato, não pode ser caracterizado como um intelectualque desejasse teorizar sobre o folclore, mas o seu trabalho de “recolher assobras” contribuiu muito para que outros fizessem ou tentassem fazer isso.A obra de Cascaes tem sido exaustivamente estudada por investigadores dasmais diversas áreas do conhecimento. Monografias, dissertações e teses têmsido escritas tendo por base o universo de Cascaes. É por isso que podemos considerar Franklin Cascaes o principalconstrutor da identidade açoriana do litoral catarinense. Num tempo em que amemória da ascendência açoriana tinha se apagado, ele saiu pelas localidadesdo litoral a dizer àquela gente que a cultura que eles partilhavam era de origemaçoriana. Em 1946, Cascaes começou a pesquisar a cultura açoriana. Até suamorte, em 15 de março de 1983, ele andou pela Ilha de Santa Catarina epelo continente fronteiriço a recolher, anotar, gravar, desenhar e esculpir amitologia e a cultura imaterial e material da gente tão singular que habita o4 BOLÉO, Manuel de Paiva. O Congresso de Florianópolis, comemorativo do bicentenário da colonização açoriana. Coimbra: Coimbra Ed. Ltda., 1950. p. 19, Apud. FLORES, Maria Bernardete Ramos. Op. Cit. p. 114.5 Ibidem. p. 47. Apud. FLORES, Maria Bernardete Ramos. Op. cit. p. 115.6 CASCAES, Franklin Joaquim. Vida e arte e a colonização açoriana. Entrevistas concedidas e textos organizados por Raimundo Caruso. 2. ed. Revista. Florianópolis: Editora da UFSC, 1989. p. 22.7 Ibidem. p. 25.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  137litoral catarinense. E não fez só isso, não foi um mero pesquisador, ele voltavaà comunidade, montava exposições, fazia palestras, falava durante as Festasdo Divino ou da Santa Cruz. Sempre mostrava ao povo as origens de suasfestas e de suas tradições e alertava para o perigo que o progresso desenfreadorepresentava para a cultura e para natureza da ilha e do continente. Inicialmente ele se deslocava de canoa, a pé ou a cavalo. Em 1960adquiriu uma carrinha, um Wolkswagen, modelo Kombi, onde ele escreviapoemas dedicados à Ilha de Santa Catarina, sua grande paixão. Em muitasdessas andanças era acompanhado pela esposa e por alguns de seus alunos emférias escolares. Depois da morte de sua esposa, por volta de 1970, e de sua reforma,Cascaes passou a viver recluso no seu museu (pequena sala nos fundos desua casa onde reunia todas as suas obras). Lá guardava nada menos que 1.370esculturas, 944 desenhos, uma centena de acessórios artesanais, 22 cadernosgrandes, 124 cadernos pequenos, 466 folhas de papel avulsas com manuscritos,outros objetos e documentos pessoais. No final dos anos de 1970, Cascaesdoou toda sua obra para a Universidade Federal de Santa Catarina. O MuseuUniversitário é o responsável pela guarda e conservação desse rico patrimôniocultural. Foi Gelci José Coelho que, com muito jeito – dizem que Cascaes eraum homem tanto exótico, difícil de se conviver – o fez retornar às esculturase inclusive a montar um presépio em tamanho natural na Praça XV deNovembro, coração da cidade, todo feito com elementos naturais da Ilha deSanta Catarina. Esse presépio se tornou tradição da cidade e hoje é montadopor outro discípulo seu: Jone Cezar de Araújo. Em 1979, a prefeitura municipal de Florianópolis financiou a tãosonhada viagem de Cascaes à Ilha da Madeira e aos Açores. Lá ele pôdepesquisar, anotar, conviver com a gente simples e pôde perceber que, de facto,a cultura do litoral catarinense era descendente dessas ilhas dos Açores. Ainda em 1979, Cascaes viu publicado o primeiro volume de Ofantástico na Ilha de Santa Catarina, uma reunião de 12 contos, datilografadospor Gelci José Coelho – o Peninha – a partir dos manuscritos de Cascaes.O segundo volume só foi publicado em 1992, com mais doze histórias. Suasmemórias foram publicadas em 1988 sob o título de Franklin Cascaes – vida earte – e a colonização açoriana. Em 2008, a Fundação Cultural do municípiode Florianópolis, criada em 1987, e que leva o nome de Franklin Cascaes,publicou “Crônicas de Cascaes”, em dois volumes, publicadas originalmenteem jornais da capital entre 1957 e 1960, onde ele relata festas, benzeduras,crendices, pescarias, num verdadeiro trabalho de etnólogo.

138  Colóquio NEA 30 anos de História Se a Ilha de Santa Catarina hoje é chamada de Ilha da Magia e Ilha dasBruxas, é por causa desse bruxo chamado Franklin Joaquim Cascaes e deseu alter ego, Gelci José Coelho, o Peninha, que renunciou sua própria artepara que Cascaes pudesse continuar a viver e a recordar ao povo do litoralcatarinense a sua bela identidade, filha dos Açores, a tal ponto que hoje, emqualquer lugar do litoral catarinense, aquela gente, que soma mais de ummilhão de pessoas, mesmo depois de 260 anos, proclama com muito orgulho:“somos todos açoriano”. Ora, se essa população dizia não ter origem, o que isso significa emtermos de identidade? Cabral assim escreveu, em 1948, em os Açorianos,publicado nos Anais do Primeiro Congresso de História Catarinense: E são os remanescentes destes os que ainda existem isolados em pequenas póvoas, à beira das praias, ligados à pobreza das terras, que eles esgotaram, pela indigência em que vivem, extinguindo-se numa lenta e dolorosa agonia. Tal gente tem-se buscado para expor como sendo os descendentes do açoriano fracassado (grifo meu), quando é ela apenas a descendência dos que não tiveram a coragem de abandonar a terra, ou não puderam fazê-lo.8 Cabral aqui já antecede o que seria o trabalho da SubcomissãoCatarinense de Folclore, que publica seu primeiro boletim em 1949,9 dizeràquela gente que ela era descendente de açorianos. Não sei qual podia ser aeficácia de dizer a essa gente que era descendente do “açoriano fracassado”. Cabral afirma que esses descendentes de açorianos estão “extinguindo-se numa lenta e dolorosa agonia”. Isso lembra a obra Homens e algas de outroparticipante do Congresso, Othon Gama D’Eça: Dormem (os pescadores) misturados aos rebotalhos das redes e aos detritos úmidos das vagas, ligados no mesmo destino e confundidos nas mesmas causas – homens e algas cuspidos todos numa praia, sob o sol dourado e vivo: as algas pelo mar e os homens pela miséria.108 CABRAL. Os Açorianos. In: Anais do Primeiro Congresso de História Catarinense. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. p. 584.9 Sobre a atividade da Sub-Comissão Catarinense de Folclore ver SAYÃO, Thiago Juliano. Nas veredas do folclore: leituras sobre política cultural e identidade em Santa Catarina (1948-1975). Florianópolis, 2004. Dissertação (Mestrado). Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina.10 D’EÇA, Othon Gama. Homens e Algas. 3. ed. Florianópolis: FCC: Fundação Banco do Brasil: Ed. da UFSC, 1992. p. 42.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  139 Pela escrita desses dois autores, percebe-se que o homem do litoralcontinuava a ser considerado um indolente. O livro Homens e algas foi lançado,em 1957, pela Imprensa Oficial. A visão de Othon Gama D’Eça, um dosclassificados como pertencente à “plêiade de homens ilustres”, não modifica asua opinião. O homem do litoral continuava a ser considerado fruto do destino,do fatalismo. É importante dizer que essa visão do interiorano atrasado eralugar comum no Brasil desse período, basta lembrar o sucesso da personagemJeca Tatu do escritor Monteiro Lobato. Muitas campanhas foram feitas paracivilizar e “urbanizar” o matuto brasileiro. A tese de Cabral é que quem ficou ligado à terra fracassou e quemprocurou outros meios foi vitorioso. Segundo ele “a terra fez-se funçãodesclassificadora e os que a ela ficaram ligados não conseguiram edificar opróprio adiantamento nas bases econômicas sustentadas pelo domínio rural”.Já aqueles que se desligaram da terra tiveram outro destino: “O elementovitorioso, o que conseguiu sobrepujar o meio, o que se tornou dominante, foijustamente o que se libertou da terra, o que se desligou da agricultura... e foicuidar de outra vida”.11 Para Cabral, a agricultura não era a inclinação natural do açoriano.Quando ele se libertou da gleba, elevou-se a uma “existência de acordo comos seus pendores e com as suas atávicas inclinações”.12 Ele discorre sobre afalta de índole do português para a agricultura e cita o sociólogo portuguêsAntônio Sérgio, que escreveu o prefácio da obra de Gilberto Freyre, O mundoque o português criou.13 Antônio Sérgio diz que “foi a pesca a atividade rendosaque facilitou ao homem o pão que a terra negava”. E continua ele: como seesperar coisa diferente de um povo cuja “produção agrícola, pelo contrário,andou sempre abaixo das necessidades”?14 O autor está se referindo a Portugalcontinental, não leva em conta que o Arquipélago dos Açores, ao contrário,este chegou a ser considerado o celeiro agrícola do país. Cabral fica o tempo todo tentando provar que a agricultura não era a“vocação” do açoriano. Invoca a popular imagem do português como povomarujo. Quem sabe a ausência de açorianos naquele congresso comemorativodos duzentos anos da migração seja o emblema da falta de conhecimento doArquipélago dos Açores por parte daquela “plêiade de homens ilustres”. Oshabitantes dos Açores são caracterizados até hoje como “ilhéus de costas para11 Cabral. Op. cit. p. 584.12 Ibidem. p. 588.13 FREYRE, Gilberto. O mundo que o português criou. Lisboa: Edições Livros do Brasil, 1940.14 Apud. CABRAL. Op. cit. p. 581.

140  Colóquio NEA 30 anos de Históriao mar”, vivem praticamente da agricultura e da pecuária, debruçados sobresuas lagoas. Em tempos idos, de modo geral, só se aventuram ao mar para acaça da baleia nos canais entre as ilhas centrais, sobretudo a partir do final doséculo XVIII, portanto, após a migração para Santa Catarina. Os açorianosnão são os marujos que Cabral imaginava. Em Santa Catarina, sim, dividirãosuas atividades entre a roça e a pescaria. Segundo Luís da Silva Ribeiro, em sua Etnografia açoriana, a maioria dapopulação açoriana era constituída por agricultores. Somente após o séculoXIX, “diferenciam-se as profissões e, ao lado dos cultivadores, apareceramos pescadores e marítimos. O fato deu-se, em geral, nas povoações de maiorimportância, pois nas outras conservaram-se mais ou menos confundidas.”15Aqui veremos acontecer coisa semelhante, de modo geral se tem uma roça euma tarrafa. Trabalha-se na terra e no mar. Poucos se especializarão em apenasuma atividade. O autor diz ainda que a “a pesca não constitui divertimentopara a maioria da gente”, e que há muito açoriano que nunca colocou o pénuma embarcação. Segundo ele, o mar não exerceu ação decisiva na vidada população açoriana, “regulada pelos trabalhos agrícolas que constituema ocupação habitual da maioria da população e a mais abundante fonte deriqueza”.16 Ribeiro aponta, ainda, dois aspectos importantes para essa poucaatração que os açorianos têm pelo mar: o fato de ser pouco piscoso e quasesempre agitado. Cabral engana-se redondamente ao dizer que a agricultura não eraa vocação natural do açoriano. Para se ter uma ideia, segundo o professorDoutor Avelino de Freitas Meneses, entre os cerca de seis mil açorianosembarcados para Santa Catarina entre 1747 e 1753, a maioria quase absolutaera de agricultores. Em uma amostragem de 68 casais que zarparam de Angrado Heroísmo, em 1752, em direção à Ilha de Santa Catarina, havia entre oshomens, 55 lavradores, 4 pedreiros, 2 estudantes, 2 pescadores, 1 carpinteiro, 1barbeiro e 1 alfaiate. Entre as mulheres, 46 fiadeiras, 6 tecedeiras, 2 costureirase 1 lavadeira.17 Para Cabral foram vencedores os descendentes de açorianos quelargaram a terra e se dedicaram a outras atividades. Ele cita Carlos da CostaPereira para dizer:15 RIBEIRO, Luís da Silva. Obras I – Etnografia açoriana. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira/ Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1982. p. 218.16 Ibidem. p. 220.17 Cf. FLORES, Maria Bernardete Ramos. Povoadores da fronteira: os casais açorianos rumo ao Sul do Brasil. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000. p. 45.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  141 Grandes e numerosas famílias ilustres e destacadas têm as suas origens nos modestos troncos vindos do arquipélago. São os descendentes daquela gente que, ‘tecendo a trama dos nossos destinos, deu à pátria, à religião, às ciências, às letras, tantas figuras altas e nobres de soldados e marinheiros, de padres e irmãos leigos, de médicos e juristas, de políticos e estadistas, de poetas e historiadores’. O açoriano venceu pela sua descendência.18 Ou seja, para o autor foram vitoriosos aqueles que se tornaram a elitedo império e da república. Parece que, para Cabral, os que permanecerampobres são os culpados por não quererem largar a terra que não era a suavocação natural; portanto, os habitantes do litoral não foram redimidos peloPrimeiro Congresso de História Catarinense como muitos estudiosos têmapontado. Cabral fala claramente que os que permaneceram na beira daspraias fracassaram. Essa imagem de que o Primeiro Congresso de HistóriaCatarinense foi o marco fundacional do enaltecimento do elemento açorianona constituição da brasilidade de Santa Catarina foi levantada por MariaBernardete Ramos Flores, baseada principalmente em Manuel de Paiva Boléo,o único português presente naquele evento. Depois disso, muitos pesquisadorespassaram a repetir isto, mas basta ler Oswaldo Rodrigues Cabral para perceberque ele não “redime” todos os descendentes de açoriano. Cabral enaltece justamente o descendente de açoriano que foi habitara cidade, aquele que se urbanizou. Paradoxalmente, o “açoriano vencedor” éjustamente aquele que não conservou praticamente nada da dita cultura açoriana.Na cidade, no final do século XIX e início do século XX, fora proibido o boi navara, o boi de mamão, o jogo de calha, o entrudo, a folia do Divino, o terno dereis. Quer dizer, tudo isso fora proibido em todo o município, mas nos arraiais efreguesias a fiscalização era mais frouxa, os jornais não tinham tanta influência,de modo que tudo isso permaneceu entre os ditos “açorianos fracassados”. E seráentre estes que os “açorianos vitoriosos” irão buscar “resgatar a sua identidade”,sobretudo através do trabalho da Subcomissão Catarinense de Folclore e dosmovimentos de “resgate” da açorianidade das décadas de 1980 e 1990. Entreesses movimentos está o Núcleo de Estudos Açorianos (NEA) da UniversidadeFederal de Santa Catarina e vários agentes culturais, como o jornalista AldírioSimões, que tinha coluna diária em jornal da capital e programa semanal detelevisão. Sua atuação era toda voltada para o enaltecimento da figura dohabitante típico de Florianópolis, chamado de “manezinho da ilha”, que inclusivevirou troféu. Todos os anos, por ocasião do aniversário de Florianópolis, 23 de18 CABRAL. Op. cit. p. 588.

142  Colóquio NEA 30 anos de Históriamarço, ele distribuía o “Troféu Manezinho da Ilha” aos que contribuíam para avalorização da cultura da Ilha de Santa Catarina. O habitante da cidade vivera, sobretudo, após o advento da república,um processo de aburguesamento da cidade de Desterro/Florianópolis. Jádiscorri sobre isso em minha dissertação de mestrado O banho de mar naIlha de Santa Catarina. “Ser “urbano” era ser civilizado. Era comum, paradizer que a pessoa era bem educada, dizer que ela era urbana”. Ora, se sereducado era ser urbano, pode-se concluir que a imagem que os moradores dacidade faziam dos moradores das freguesias, os habitantes do interior da ilhaera uma imagem nada lisonjeira. O habitante do interior da ilha era chamadode “matuto, amarelo, preguiçoso e indolente”. Chegava-se a dizer, até, que a“farinha de mandioca, base alimentar do ilhéu, era a causadora de anemia, edo enfraquecimento do ilhéu interioriano”.19 Creio que a imagem que Cabral faz do açoriano fracassado não é tãodiferente daquela imagem do homem do litoral criada pelos higienistas doinício do Século XX na capital catarinense.20 O esforço feito por Oswaldo Rodrigues Cabral e a “plêiade de homensilustres”, quase todos descendentes dos “açorianos vitoriosos”, a partir doCongresso de 1948, e sobretudo com a Subcomissão Catarinense de Folclore,foi no sentido de dar uma identidade ao homem do litoral catarinense. Nestor Garcia Canclini, em Culturas híbridas, fala sobre a atividadedesses intelectuais que se dedicam a estudar o folclore. Segundo ele, foiintenção dos positivistas “unir o projeto científico a uma empresa de redençãosocial”. Ele cita Rafaelle Corso, para dizer que o trabalho folclórico foi “ummovimento de homens de elite que, através da propaganda assídua, esforçam-se para despertar o povo e iluminá-lo em sua ignorância”.21 Essa subcomissão estava subordinada à Comissão Nacional de Folclore,sediada no Rio de Janeiro e que tinha como presidente o folclorista RenatoAlmeida. Os primeiros integrantes da subcomissão catarinense foram:Oswaldo Rodrigues Cabral (secretário-geral), Almiro Caldeira, Altino CorsinoFlores, Álvaro Tolentino de Souza, Antônio Nunes Varela, Antônio Taulois deMesquita, Aroldo Caldeira, Carlos da Costa Pereira, Carlos Büchler Júnior,19 FERREIRA, Sérgio Luiz. O banho de mar na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Editora das Águas, 1998. p. 48.20 Sobre a invenção do homem do litoral pelo discurso higienista do início do Século XX ver ARAÚJO, Hermetes Reis de. A invenção do litoral: reformas urbanas e reajustamento social em Florianópolis na primeira república. 1989. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo.21 CANCLINI, Nestor Garcia. Op. cit. p. 209.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  143Custódio de Campos, Elpídio Barbosa, Henrique da Silva Fontes, HenriqueStodieck, Hermes Guedes da Fonseca, Ildefonso Juvenal, João dos SantosAreão, João Crisóstomo de Paiva, João A. Sena, Martinho de Haro, OswaldoFerreira de Melo Filho, Othon Gama D’Eça, Plínio Franzoni Júnior, VilmarDias e Walter Fernando Piazza.22 Como se vê, a subcomissão reunia a nata daintelectualidade catarinense que depois exerceria o magistério na FaculdadeCatarinense de Filosofia, criada em 1950. Hoje a maioria desses intelectuais dánome a inúmeras vias públicas da capital catarinense. Canclini, ao analisar o trabalho dos folcloristas brasileiros, aponta que,“no Brasil, o estudo do folclore se faz principalmente fora das universidades, emcentros tradicionais, como os Institutos Históricos Geográficos, que têm umavisão anacrônica da cultura e desconhecem as técnicas modernas do trabalhointelectual”.23 No caso catarinense, essa caracterização de Canclini não podeser feita assim de forma tão fácil. Havia, sim, muitos professores universitáriosentre os principais membros da Subccomissão Catarinense de Folclore, entreestes, Henrique da Silva Fontes, fundador da Universidade Federal de SantaCatarina; Oswaldo Rodrigues Cabral, professor da UFSC; Walter FernandoPiazza, fundador da pós-graduação em história da UFSC e Elpídio Barbosa,primeiro reitor da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC0. Entre os que fizeram este trabalho de “recolher o que sobrou da culturaaçoriana”, estão Franklin Joaquim Cascaes e Doralécio Soares. É o próprioCascaes quem afirma: “E um dia me prometi que, quando pudesse, ia recolherna Ilha o que sobrava de todas aquelas tradições açorianas. E eu fiz issomesmo”.24 Segundo ele, outros também faziam esse trabalho, como RobertoLacerda, ex-reitor da UFSC. “Já Oswaldo Rodrigues Cabral não era dado a isso.Ele não dava muita importância a essas coisas”.25 Canclini diz que as táticasmetodológicas e o fracasso teórico dos folcloristas acontecem porque elesbuscam sobrevivências. Os folcloristas buscam objetos e costumes popularescomo se eles fossem restos de uma estrutura social que está se apagando. Dessaforma, suas análises tornam-se descontextualizadas.2622 Cf. SAYÃO, Thiago Juliano. Fronteiras do folclore: poder e cultura em Santa Catarina na década de 1950. Esboços – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, n. 11. Florianópolis: Gráfica Universitária, 2004. p. 236.23 CANCLINI, op. cit., p. 212.24 CASCAES, Franklin Joaquim. Vida e arte e a colonização açoriana. Entrevistas concedidas e textos organizados por Raimundo Caruso. 2. ed. Revista. Florianópolis: Editora da UFSC, 1989. p. 22.25 Ibidem, p. 25.26 CANCLINI, op. cit. 210.

144  Colóquio NEA 30 anos de História Franklin Cascaes, de fato, não pode ser caracterizado como umintelectual que desejasse teorizar sobre o folclore, mas o seu trabalho de“recolher as sobras” contribuiu muito para que outros fizessem ou tentassemfazer isso. Essa preocupação em “resgatar” uma cultura que morreu ou está prestesa morrer é muito recorrente no discurso dos folcloristas. De modo geral, tenta-se isolar o popular, como se ele não interagisse com a nova cultura hegemônica.“Ao atribuir-lhe uma autonomia imaginada, suprimem a possibilidade deexplicar o popular pelas interações que tem com a nova cultura hegemônica, opovo é ‘resgatado’, mas não conhecido”.27 Essa tentativa acaba por valorizar mais os objetos do que os agentessociais. “Esta fascinação pelos produtos, o descaso pelos processos e agentesociais que os geram, pelos usos que os modificam, leva a valorizar nos objetosmais sua repetição que sua transformação”.28 Que imagem se fazia desse “fracassado” de duzentos anos? Queconhecimento passa a ser produzido sobre essa gente e sua cultura? HomiK. Bhabha, em O Local da Cultura, cita Franz Fanon para dizer que não háum princípio constante da cultura nacional onde se pode buscar “um passadonacional verdadeiro” e que se possa representar de forma estereotipada. Opresente da história desse povo destrói esta ideia, posto que essa substânciaestá constantemente se renovando, “é uma estrutura de repetição que não évisível na translucidez dos costumes do povo ou nas objetividades óbvias queparecem caracterizar o povo”. Acima de tudo, “a cultura detesta simplificação”,não há estereótipos, modelos originais a serem desenterrados.29 O Primeiro Congresso de História Catarinense de 1948 tem sidoapontado constantemente como o mito fundador da açorianidade em SantaCatarina. Esse congresso foi objeto de estudo de Maria Bernardete RamosFlores em A Farra do Boi: Palavras, Sentidos, ficções.30 Nessa obra, originalmentesua tese de doutoramento, a autora faz uma análise do evento que tem sidoutilizada por muitos estudiosos que tratam do assunto. A pesquisadora traztrechos da obra do único português presente ao evento, Manuel de Paiva Boléo,que publicou uma obra de 78 páginas sobre o congresso intitulada O Congressode Florianópolis, comemorativo do bicentenário da colonização açoriana.27 Ibidem, p. 210.28 Ibidem, p. 211.29 Cf. FANON, F. The Wretched of the Earth. Harmonsdworth: Penguin, 1969, p. 174-190 apud BHABHA. Homi K. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 215.30 FLORES, Maria Bernardete Ramos. Farra do Boi: Palavras, sentidos, ficções. 2. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1998. p. 113-141.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  145Segundo Boléo, o objetivo do congresso era “resgatar o importantíssimo papeldo açoriano na colonização de Santa Catarina”.31 Esse objetivo já tinha sidoexpressado por todos os participantes do congresso, mas ele vai mais aléme revela outro dado importante: o congresso “constitui uma necessidadeno Estado de Santa Catarina, onde a cultura luso-brasileira perigosamenteenfrentou a cultura alemã. A finalidade suprema, embora não expressa, era ade mostrar para os outros Estados da União, a brasilidade de Santa Catarina”.32 Como observa o crítico cultural Kobena Mercer, “a identidade somentese torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe fixo,coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”.33Para Manuel de Paiva Boléo, era o chamado “perigo alemão” que despertavapara a necessidade do enaltecimento do elemento açoriano. No entanto, épreciso lembrar que a identidade do homem do litoral somente se tornará umproblema para ele próprio décadas mais tarde, sobretudo no final da década de1980, com a polêmica criada acerca do que a mídia chamou de “farra do boi”.34A tradição passa a funcionar muito mais como “repertório de significados” doque como uma doutrina. Os indivíduos passam cada vez mais a recorrerem aesses “vínculos e estruturas nas quais se inscrevem para dar sentido ao mundo,sem serem rigorosamente atados a eles em cada detalhe de sua existência”.A isso Stuart Hall chama de hibridismo, que não significa a constituição deindivíduos híbridos, que seriam contrastes em relação aos “tradicionais”ou “modernos”, estes sim plenamente formados. “Trata-se de um processode tradução cultural, agonístico uma vez que nunca se completa, mas quepermanece em sua indecibilidade”.35 O hibridismo não é “simples apropriação ou adaptação; é um processoatravés do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas31 BOLÉO, Manuel de Paiva. O Congresso de Florianópolis, comemorativo do bicentenário da colonização açoriana. Coimbra: Coimbra Ed. Ltda.,1950. p. 19 apud FLORES, op. cit. p. 114.32 Ibidem. p. 47, apud. FLORES, Maria Bernardete Ramos, op. cit. p. 115.33 MERCER, K. Welcome to the jungle. In: RUTHERFORD, J. (Org.). Identity. Londres: Lawrence and Wishart, 1990, p. 43 apud HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- modernidade. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 9.34 Sobre a “farra do boi”, ver FLORES, Maria Bernardete Ramos. A farra do boi: palavras, ficções, sentidos, op. cit., LACERDA, Eugênio Pascele. O Atlântico Açoriano: uma antropologia dos contextos globais e locais da açorianidade. Florianóplis, 2003. Tese (Doutorado) ‒ Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. BASTOS, Rafael José de Menezes (Org.). Dionísio em Santa Catarina: ensaios sobre a Farra do Boi. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1993.35 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 2003. p. 74.

146  Colóquio NEA 30 anos de Históriade referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituaisou ‘inerentes’ de transformação”. A “tradução cultural” é, ao mesmo tempo,ambivalente e antagônica, pois negociar a diferença com o outro revelasempre uma “insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significadoe significação”.36 As pessoas, quando se encontram em condições diaspóricas,são obrigadas a adotar “posições de identificação deslocadas, múltiplas ehifenizadas”. No lugar para onde migraram são sempre lembrados que são deoutro lugar, mas, ao retornarem ao lugar de origem, serão também diferenciadosdaqueles que nunca saíram da terra, serão “irremediavelmente diasporizados”.“Todos negociam culturalmente em algum ponto do espectro da différence,onde as disjunções de tempo, geração, espacialização e disseminação serecusam a ser nitidamente alinhadas”.37 Vivemos tempos de valorização das ditas culturas locais, um verdadeiromovimento de afirmação da diversidade cultural. É importante, no entanto,tomar cuidado para que este movimento não se torne “novas formas defechamento étnico”; afinal de contas, etnicidade é um termo que “opera sobrasura”. Todos nós nos localizamos em vocabulários culturais, todos nos“originamos e falamos a partir de algum lugar”, todos carregamos “traços deuma etnia”, só pensamos “dentro de uma tradição”. No entanto, é importanteque essa “relação com o passado seja concebida como uma recepção crítica”.38Dizer que todos falamos e agimos a partir de nossa aldeia não significa dizerque o mundo se divide em “culturas particulares, uma para cada comunidade”,e que cada indivíduo necessita apenas de uma cultura, uma “cultura coerentepara moldar e dar significado à vida”.39 Da mesma forma que estabelecemosvínculos com as pessoas que nasceram em nossa aldeia, encontramos pessoasque compartilham o mundo conosco, que são distinto de nós, mas com osquais também criamos vínculos. A valorização apenas da diferença “só se tornaviável em sua sociedade rigidamente segregada. Sua lógica final é o apartheid”.40Toda identidade é aberta, portanto, sujeita ao universal, sendo dessa formainevitavelmente sujeita à hibridação, “mas hibridação não significa um declíniopela perda de identidade”. Essa hibridação pode levar ao “fortalecimento das36 BHABHA. Homi K. The Voice of the Dom. Times Literaty Suplement, n. 4.923, 1997. In: HALL, Stuart, op. cit., p. 74-75.37 HALL, Stuart, op. cit., p. 76.38 LACLAU, E. Emancipations. London: Verso, 1996 apud HALL, op. cit. p. 83.39 WALDRON, J. Minority Cultures and the Cosmopolitan Alternative. In: KYMLICKA, W. (Ed.). The Rights of Minority Cultures. Oxford: Oxford University Press, 1992 apud HALL, op. cit., p. 84.40 HALL, op. cit., p. 84.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  147identidades existentes pela abertura de novas possibilidades”. Segundo Laclau,só uma “identidade conservadora, fechada em si mesma, poderia experimentara hibridação como uma perda”.41 Segundo Homi K. Bhabha, “a questão da identificação nunca é aafirmação de uma identidade pré-dada, nunca uma profecia autocumprida”,ela é sempre a tentativa da “produção de uma imagem de identidade e atransformação do sujeito ao assumir aquela imagem”. A identificação é um“ser para um Outro”, ou seja, é o sujeito se representando na diferença, naalteridade em relação ao outro. “A identificação... é sempre o retorno de umaimagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar do Outro de ondeela vem”.42 Esse alerta de Homi Bhabha nos faz pensar que a identificação, que,segundo ele, está sempre sob rasura, é proveniente de fissura e é a tentativada realização de uma sutura. É bom lembrar que o autor prefere a palavraidentificação à expressão identidade. Parece mesmo que identificação é umacategoria mais adequada, posto que evoca movimento, fluidez de algo semprese fazendo, nunca fixo e imóvel. E o mais importante é que a necessidade maiorda identificação é um “ser para o Outro”, ou seja, enquanto esse outro nãoincomoda, não há necessidade de nos constituir como “nós”. Stuart Hall também defende a utilização da categoria identificação nolugar de identidade. Segundo ele, “em vez, de falar da identidade como umacoisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processoem andamento”. A identidade não surge da “plenitude da identidade que jáestá dentro de nós como indivíduos”, ela provém de “uma falta de inteirezaque é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através da quaisnós imaginamos ser vistos por outros”. Creio que a categoria identificação éextremamente adequada ao nosso objeto. A identificação é um processo emandamento, não é a busca de uma identidade plena que está dentro de cadaindivíduo, não se consegue buscar uma essência individual. A identificaçãoé, ao contrário, o preenchimento, a partir do exterior, de algo que falta a esseindivíduo; ou seja, não é um descobrir de algo que está velado, internalizado.43 A Subcomissão Catarinense de Folclore tentou estabelecer essaidentificação no habitante do litoral catarinense. No entanto, apesar do objetivodeclarado de dizer ao homem do litoral que ele era descendente de açoriano,acabou por não ver esse desejo acontecer. Durante décadas o “açorianismo”ficou restrito à elite intelectual. Será no final da década de 1980 e início da41 LACLAU, op. cit., apud. HALL, op. cit. p. 87.42 BHABHA, op. cit. p. 76.43 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004 . p. 39.

148  Colóquio NEA 30 anos de Históriadécada 1990 que o açorianismo se tornará um movimento de massa. Nesseperíodo se firmará uma política de identidade, desenvolvida, sobretudo, peloNEA, criado em 1984. Foi a partir de sua reestruturação, em 1992, que o NEAse tornou um órgão atuante com conselho deliberativo, no qual têm assentoos representantes da maioria das prefeituras municipais do litoral catarinense.Mais do que um núcleo de estudos universitário, o NEA tornou-se um agentede ação cultural que tem como projeto prioritário o mapeamento da culturade base açoriana do litoral catarinense. Através de convênios com todas asprefeituras do litoral catarinense, realiza atividades de capacitação de agentescomunitários, professores e alunos das redes municipais. O NEA articulou um“movimento regional açorianista” através da formação de agentes locais, daprodução de material didático sobre os Açores, como vídeos, cursos e oficinas.Realiza palestras sobre genealogia e tenta identificar a origem dos sobrenomesdos ascendentes nas ilhas do arquipélago. Organiza a criação de gruposfolclóricos, associações e espaços de exposição. Desde 1994, em parceria comas prefeituras municipais, organiza o AÇOR (Festa da Cultura Açoriana deSanta Catarina), que acontece cada ano em um município do litoral.44 Cada vez que o indivíduo realiza a “experiência da auto-imagem”,ela “vai além de representação como consciência analógica da semelhança”.Cada vez que esse indivíduo encontra a identidade fora do enquadramentoenquanto imagem, “ele escapa à vista, esvazia o eu como lugar da identidadee da autonomia e – o que é mais importante – deixa um rastro resistente, umamancha do sujeito, um signo de resistência”. Dessa forma, já não se trata “deum problema ontológico do ser, mas de uma estratégia discursiva do momentoda interrogação, um momento em que a demanda pela identificação torna-se,primariamente, uma reação a outras questões de significação e desejo, culturae política”.45 Dessa forma, não bastava o desejo dessa elite intelectual de dizera esta população que ela tinha uma identidade açoriana a descobrir, faltava oembate com o outro, a necessidade de se constituir enquanto grupo, enquantoetnia. Em 1948, o outro que incomoda é o alemão do interior, e o incomodadoé a elite do Primeiro Congresso de História Catarinense. O homem do litoralvivia “isolado em pequenas póvoas, à beira das praias”, de modo que não havia44 Sobre a atuação do NEA ver LACERDA, op. cit. p. 95-96. O Açor aconteceu em 1994 em Itajaí, em 1995 em Imaruí, em 1996 em Imbituba, em 1997 em Penha, em 1998 em Içara, em 1999 em Porto Belo, em 2000 em Garopaba, em 2001 em São José, em 2002 em Araraquari, em 2003 em Tijucas, em 2004 em São Francisco do Sul, em 2005 em Barra Velha e em 2006 em Laguna.45 BHABHA, op. cit., p. 83-84.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  149embate com o Outro, e, dessa forma, não havia necessidade de identificação.Já na década de 1980, o que incomoda é o alienígena que chega comprando osterrenos na beira das praias catarinenses e dizendo que determinadas práticasdessa população são bárbaras e que devem ser reprimidas pela polícia, demodo especial, a farra do boi. Agora, sim, o incomodado é o próprio homemdo litoral, que precisa de identificação frente ao outro que lhe desafia; ou, comodiz Homi Bhabha: “Para a identificação, a identidade nunca é um a priori,nem um produto acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático deacesso a uma imagem de totalidade”.46 Dessa forma, foi preciso buscar umaidentidade, que não estava mais na memória. O fato de numerosos grupos que hoje se consideram grupos étnicos nãoterem consciência de sua identidade comum há um século demonstra que “acontinuidade com o passado é sempre estabelecida por processos criativos”,como já demonstraram Hobsbawm e Ranger, em As invenções das Tradições.47Mas o fato de que uma identidade étnica seja sempre “criada ou inventadanão implica por isso que seja inautêntica ou que os atores que a reivindicampossam ser taxados de má-fé.”48 Um importante aspecto em que as teorias da etnicidade têm insistidoultimamente é o fato de que a “identidade étnica nunca se define de maneirapuramente endógena pela transmissão da essência e das qualidades étnicaspor meio do membership, mas que ela é ‘sempre e inevitavelmente umproduto de atos significativos de outros grupos.” A identidade étnica “seconstrói na relação entre a categorização pelos não-membros e a identificaçãocom um grupo étnico particular.” Ou seja, é esta relação dialética entre asdefinições intra e extragrupo que torna a etnicidade um processo dinâmicosempre sujeito à redefinição e à recomposição.49 E o mais importante é queas identidades étnicas só se constituem na alteridade, na fronteira, ou seja,quando confrontadas com outras identidades, e não no conteúdo culturalinterno do grupo.50 Segundo Kristeva, “as fronteiras da nação se deparam constantementecom uma temporalidade dupla”; por um lado, encontramos “o processo deidentidade constituído pela sedimentação histórica (o pedagógico)” e, poroutro lado, “a perda da identidade no processo de significação da identidade46 BHABHA, op. cit., p. 85.47 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 198448 POUTIGNAT, Philippe. Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1998. p. 165.49 Ibidem. p. 142.50 Ibidem. p. 152-153.

150  Colóquio NEA 30 anos de Históriacultural (o performativo)”.51 No litoral catarinense, assistiremos a estatemporalidade dupla: a elite dizendo, desde 1948, que essa população eradescendente dos açorianos, e essa população ignorando tal ascendência.Foi durante a crise dos anos de 1980, sintetizada na polêmica criada sobre aFarra do Boi e na explosão imobiliária do litoral, que assistimos à busca dessaidentidade, que se julgava perdida e que outros diziam inexistente. É nessemomento que essa “identidade açoriana” irá aflorar nos discursos e nas práticas.Como diz Bhabha, “as identidades nacionais não são coisas com as quais nósnascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”.52Diante do alienígena que o chama de bárbaro, o homem do litoral busca umaidentificação. “A identificação cultural é então mantida à beira do que Kristevachama de “perda de identidade” ou que Fanon descreve como uma profunda“indecibilidade cultural”.53 É preciso dizer que essa preocupação com a identificação desseaçoriano-descendente, para usar uma expressão de Eugênio Pascele Lacerda,acontece quase que concomitantemente com a construção da identidadedo açoriano no arquipélago dos Açores. Segundo José Manuel de OliveiraMendes, a construção da identidade açoriana vai acontecer após a revoluçãode 25 de abril de 1974. A partir do movimento político, conhecido no Brasilcomo Revolução dos Cravos, que derrubou o Estado Novo que existia desde1926, iniciou-se o processo de implantação da Região Autônoma dos Açores.Isso contribui para a tentativa de construção de uma identidade regional pordiferenciação do espaço nacional. Apesar de todos os esforços empreendidos pela política de identidadeexplícita, levada a cabo pelas autoridades regionais açorianas, a identificaçãocom o espaço regional ainda hoje é fraca. Os particularismos de ilhas oude freguesias ainda são mais fortes.54 Em pesquisa realizada por ele com265 habitantes de todas as ilhas do arquipélago, a identificação pessoal nosAçores mostrou-se assim: 41% identificaram-se com a freguesia ou Concelho(município); 26% com a ilha; 13,6% com a região; 9,1% com o país, 3,8% com omundo e 2,3% com a Europa. Ou seja, 67,9% dos entrevistados identificam-seprimeiramente com o espaço local.51 KRISTEVA, J. Women’s time. In: MOI, T. (Ed.). The Kristeva Reader. Oxford: Blackwell, 1986. p. 187-213 apud BHABHA, op. cit., p. 216.52 HALL, op. cit., p. 4853 BHABHA, op. cit., p. 217.54 Cf. MENDES, José Manuel de Oliveira. Do ressentimento ao reconhecimento: vozes, identidades e processos políticos nos Açores (1974-1996). Coimbra, 1999. Tese (Doutoramento) ‒ Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.


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