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a lenda18

Published by Paulo Roberto da Silva, 2018-09-17 23:04:36

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A lenda doHomem douradog



Jairo Ferreira Machado A lenda doHomem dourado Florianópolis 2018



O povo: a incerteza de sempre...O ambiente: a selva no seu natural...O sujeito: um matuto qualquer...A mulher: uma “mulher da vida!”...O cachorro: um vira-lata fiel...O tema: os percalços da vida...A certeza: a providência divina...



gA lenda



g Nem sequer uma justificativa; ele apenas se foi, como se não deixasse nada para trás... Um dia como outro qualquer, as entranhas aindadigerindo o café da manhã quando remoia o desapontamento.A decisão tomada um dia antes mudaria sua vida parasempre; sabia disso, quando triste e indignado pôs de ladoas ferramentas, despediu-se dos companheiros de trabalho esaiu. Nem sequer uma justificativa; ele apenas se foi, como senão deixasse nada para trás... Entrou pelos fundos do quintal,pegou da arma escondida atrás do armário e silenciosamenteadentrou a casa, indo diretamente ao seu quarto de dormir.O coração já adivinhara o que seus olhos presenciavam –Maria Rita com outro homem, na sua cama! Dois meses sepassaram desde que ele adquirira a cama e o enxoval para ela,com o dinheiro da venda do rancho. Tudo começara no diaque conheceu Maria Rita na zona de meretrício da cidade e seapaixonou; fora lá induzido por um comparsa seu, sem muitoquerer – tinha receio de se emocionar e o pinto não levantar.Pois foi a prumo! E com louvor... Maria Rita delirou. Ele maisainda! Voltou no dia seguinte com as alianças. A “moça”, olhoscheios de brilho (qual a mulher que não sonhou com isso umdia?) aceitou, embora não se achasse merecedora. Casaram umdia depois na capela da cidade, tendo o cachorro como única

10  A lenda do homem douradotestemunha; o cão, olhos compridos lá da porta da igreja. Opároco não o deixara entrar, como também não permitira apresença das outras “meninas”, as amigas de Maria Rita. Oh!Maria Rita! Que sina a sua! Puxou o gatilho. Um único tiro nopeito do sem-vergonha e partiu num desenfreado galope. Dobairro onde morava, na periferia da cidade, escalou a encostado morro em direção à selva indomada. No peito, o desgostoda vida... Enquanto escalava a montanha ouvia lá embaixo o fuzuêque deixara para trás. – Olha lá! Lá vai ele. – Matou um homem!– Está fugindo... O cão na dianteira, como se lhe adivinhasseas intenções. O coitado fora testemunha do seu céu e do seuinferno. Oh! Maria Rita! O coração batendo forte, do cansaçoe da angústia. Na mente, a imagem do sujeito estrebuchandolá na cama, o lençol (novinho!) banhado em sangue. MariaRita, seminua, gritando por misericórdia; a face de horror, otravesseiro protegendo a nudez. Na boca (por certo), o gostoda morte! Ele, na pressa de fugir para muito longe dali. A armanum dos ombros; no outro, o alforje carregado de apetrechos;a botina, no ranger original. Antes de sumir mato adentroolhou pela última vez a cidade, lá em embaixo, no pé da serra.Dali para frente, a hostilidade da selva onde ainda ninguémtivera a coragem de se meter. Ele e o cão indo. Oh! Maria Rita!A polícia, já sentindo ser perda de tempo tentar alcançá-lo...Ademais, o finado era um vagabundo, difamador; vangloriava-se de “garanhão” da cidade. Não carecia de melhor sorte... Uma vez escapado da polícia, tratou de diminuir a toada.A noite vinha chegando quando ele recostou-se num troncocaído, arrancou as botas e ali mesmo adormeceu. O cachorroao lado, língua de fora, respiração sôfrega. No sonho. Oh! MariaRita! O buquê de noiva, o único adereço que o pároco permitira.– “Nada de véu e grinalda! Coisa simples! Deus pode não estarde acordo! Mas, vá lá” – disse-lhe o pároco. Vendera o rancho

Jairo Ferreira Machado  11e arrumara um emprego para melhor conforto de Maria Rita;a única forma de constituir matrimônio com a “moça”. Para orancho é que ela não iria (soube logo que a conheceu!). Nãoera inocente de acreditar em conto de fadas! Maria Rita, putade linha, requintada, calejada de cama. Até estranhara que elaaceitasse o convite para viverem juntos. Ora bolas! Também,não se desdenhava; não era de se jogar fora, embora, fosseturrão demais... Contudo, não estava acostumado aos tratoscom mulher, mesmo que fosse uma puta. Fêmea mesmo, só suamula de cabresto! Vendera a coitada por uma bagatela, no diaem que negociara também o rancho onde morava desde que ospais haviam falecido; ficara ali, sozinho, solteirão, naquele péde serra. Maldito aquele dia que fora àquela zona! Oh! MariaRita... Quanto sonho, para nada! A vida virada pelo avesso; ele,a mata, alguns pertences e o cão; nada de Maria Rita! Senão, aescuridão pela frente, a imensidão da selva, o futuro incerto. Os espinhos rasgando suas vestes, sua carne, tanto quanto Maria Rita rasgara seu coração. Acordou com o rosnar do cão, o animal espantadocom algum barulho vindo... O dia já clareando, os pássarosse desaninhando nas copas das árvores. Calçou as botas,acariciou a cabeça do cão para que ele se aquietasse e, dedo nogatilho, paralisado, a arma apontada – o tiro certeiro. O bichotremulava à morte a alguns metros de si, o cão arisco. Caça àscostas, andou em ziguezague por algumas horas, sem deixarvestígio. Sabia lá se os meganhas tinham ouvido o estampidoda arma e estavam vindo-lhe no encalço ou não? Horas depois,parou em meio a um conjunto de rochas, destrinçou a caça,as partes menos nobres ao cão, fez o braseiro, comeu, colocou

12  A lenda do homem douradoa sobra no alforje e continuou a fuga. Oh! Maria Rita! Osespinhos rasgando suas vestes, sua carne, tanto quanto MariaRita rasgara seu coração. O cão, se antes lhe parecia fiel, daliem diante mais ainda – o faro na carne do alforje. O laço decipó, no pescoço – não era bobo de o único companheiro semeter atrás de um bicho qualquer naquele fim de mundo e nãomais voltar. Não sabia de que lado o sol nascia nem onde sepunha; nem uma réstia de luz onde pudesse avaliar o rumoque tomava; ia rasgando o matagal no peito. A mata fechada,o facão em punho, no resguardo de um bicho mais impetuoso.Nenhuma preocupação mais com a polícia – ninguém semeteria naqueles cafundós em busca de um sujeito que nadade mal fizera à cidade; senão, um bem! Já não estava fugindodeles, mas da vergonha que passara – ele lá no trabalho, dandoduro, e o sujeito na sua cama, “comendo” Maria Rita! Soubera disso um dia antes – pelo comparsa dostempos de solteiro, o mesmo que o apresentara a Maria Rita.O amigo ficara indignado com aquele destino – homem bom,trabalhador, levando chifre! A cidade toda sabendo... Por certo,o coitado até se culpava de tê-lo apresentado a Maria Rita,naquele dia, lá na zona. Também, não podia imaginar que umaúnica transa, com a primeira puta, fosse acabar em casamento!O comparsa nem tivera a coragem de ir à igreja – com certeza,não compartilhava dos riscos daquela repentina paixão!Contudo, não podia suportar sozinho aquela infâmia. Então,penalizado, enchera a cara de cachaça e fora confidenciar-lhe– Companheiro, Maria Rita está lhe traindo! Ele agradecera aboa intenção do tal e preparara o plano. Sabia a hora, o diae o cenário – a sua casa, a sua cama, o seu enxoval novinho.Sujeito atrevido! Demorou a acreditar. Mas, não era homemde tomar chifre e se calar! Naquela manhã, antes de se levantare ir para o trabalho, tratou de “comer” Maria Rita, como faziatodos os dias. “Comeu” uma, duas, três vezes; como se estivesse

Jairo Ferreira Machado  13despedindo-se do mundo, despedindo-se daquela puta, parasempre. Era justo! Ali, no meio da floresta, enquanto rompiao cipoal no peito vez em quando sentia o perfume dela. Sabialá se lhe vinha das vestes ou se eram vagas lembranças de suamente conturbada. Oh! Maria Rita! Naquela hora, nem ela,nem a mula e aquele matagal intransponível, os mosquitos, ocansaço, a incerteza do amanhã – a iminência da morte a todoinstante. Não era lugar para ele! Maldita Maria Rita! Malditoaquele abraço, aquela animação libidinosa, aquele fulgorvaginal. Malditos aqueles hirtos seios... Numa daquelas manhãs, a roupa já rota, as botas furadas,a barba crespa, o fiel companheiro manco e abatido, deparoucom um amanhecer diferente – a impressão longínqua dever a luz do dia. O cão rosnara várias vezes à noite (ouvira!),mas rendido ao sono, à friagem e ao torpor do cansaço, nemse manifestara (deixou pra lá!). Amanhecia. No ar, umaaura diferente daquela escuridão que seus olhos estavamacostumados a ver naqueles últimos dias. Por perto, o gorjeioassanhado de pássaros, o murmúrio longínquo de umacachoeira, a tímida luz do dia insinuando-se na penumbra damata. Na copa da árvore o olhar acintoso de uma coruja – umaestranha somando-se à sua solidão; a coruja não o incomodava.O cachorro, choramingando, angustiado, demonstrando certaestranheza; bem tencionava latir, mas a focinheira de embira oimpedia – recurso do dono, para que não atrapalhasse a tocaia.Certo ou errado, sobrevivera àqueles dias (os dois!). O cão maisferido que ele; fora atacado por um javali; salvara-o uma balacerteira na cabeça do tirano animal. Comeu-lhe o fel, só deraiva! Mas da peleja dos dois, ficara machucada a pata do cão, oseu companheiro de agonia. Oh! Maria Rita! A luz do alvorecervindo cada vez mais alvissareira... Nem tanto animada, a luzdos seus olhos.

14  A lenda do homem dourado Ali a sua frente uma poça de claridade em meio à escuridão da mata virgem... Andou mais um bom trecho. Um olhar no clarão da luze outro nos arredores, sempre atento! Afinal, não tinha idéiado que se tratava aquela imensidão de luz à sua frente. Detoda maneira, sentia-se mais acompanhado; ali, a sensaçãoda luminosidade misturando-se às dúvidas. Toda cautelaera pouca. O cão preso no laço de cipó, o dedo no gatilho, opisar macio, pé ante pé, como um felino espreitando a presa.Os olhos arregalados nos detalhes da distância, a respiraçãoofegante, o coração disparado, os rumores ao redor – a vidaem celebração. Aprendera alguma coisa naqueles dias deconvivência selvagem, mas nem imaginava o que seria aquiloque seus olhos espreitavam. De certo, não era um dos seusdeslumbres inconscientes quando muitas vezes se machucavae na intensidade da dor o socorriam os imaginários duendesda selva. Àquela hora, uma atmosfera mais excitante, maispromissora; por isso mesmo, arriscada! Oh! Maria Rita! Doara-se por inteiro a ela: o rancho, a liberdade, a paz de espírito... Masnão, o orgulho! Não era homem de se emprestar ao vexame deter a sua cama conspurcada e calar. Um único tiro no peitodo sem-vergonha o afastara definitivamente daquela cidade,daquela cama macia, daqueles lençóis cheirando a limpeza,daqueles seios lúbricos. Deixara por lá o sujeito desvanecido,estrebuchando... Ali a sua frente, uma poça de claridade, em meio àescuridão da mata virgem. Andava em círculos, espreitandocuidadosamente os mínimos detalhes. Até onde seus olhospodiam alcançar via um riacho, um remanso de folguedoscomo um lago assombrado em meio à floresta entorpecida.Teve medo! A fauna na abundância da flora. Bem no centro

Jairo Ferreira Machado  15de tudo aquilo, o sol espraiando os seus raios de luz. Se não lheenganara a percepção da alma, era ali o esconderijo do sol; porcerto, aonde o sol vinha descansar da lida do dia (pensava!). Senão era ali o pouso do sol, era de onde o sol arremessava os seusraios para o esplendor das manhãs. Os olhos atentos ao clarão...O cão, angustiado. A imaginação à solta. Pôs-se detrás de umarocha; dali podia dar vastidão aos seus sentidos, percorrendo oolhar na extensão do halo de luz que resplandecia como se saíssedo centro do lago, acentuando a luminosidade envolvente:a biodiversidade entoava a composição. Animais, das maisvariadas espécies e tamanhos – então, podia permanecer alipor muito tempo, sem o desconforto das entranhas vazias.Recordasse as passagens bíblicas, estava diante do ancoradouroda Arca de Noé, no pós-dilúvio. Aquele lugar paradisíaco, feitoo céu na terra. A luz dos seus olhos refletindo a enormidadedaquela imponente atmosfera. Oh! Maria Rita! Passara muitasmanhãs, desde aquela madrugada que fizera amor com ela(ou ela fizera sexo, e ele amor), deixando-a exausta sobre acama antes de ir para o trabalho, no dia do crime. (Pena quenão conseguira satisfizê-la de tudo!). Que pecado a “moça”carregava naquela vulva insaciável? Nascera mesmo para “dar”!Maldito aquele dia que fora lá na zona. Maldito o comparsa queo levara, (de bom grado)! Não havia como retroceder no tempo.A luz dos seus olhos refletindo a magnitude do santuário... Aquele lugar não era seu. Não de direito! Pensasse nopecado que cometera, nem merecia tê-lo encontrado; maisjusto seria ter morrido cravado de espinhos, como morreraCristo na cruz; embora Cristo nem merecesse tal pena! Quantoa ele, sentia as mãos ensangüentadas (do gatilho que puxara),a alma ferida, a dor de consciência; sem falar dos pés emchagas, o corpo extenuado, resultado das longas andanças. Asbotas destroçadas, pouco adiantando os remendos, as embirascom as quais as reparava durante a peregrinação; é certo que

16  A lenda do homem douradotinha consigo um pedaço do couro de uma caça, mas e o solpara secá-lo e poder torná-lo remendo para seus pés? Ah!Finalmente, via a luz do sol. Quem sabe encontrasse tambémali sua alma perdida? Duvidava que fosse merecedor. Masera! Lembrou-se do árduo trabalho no campo. Não era tão-somente um pecador! Saíra daquele rancho uma única vezpara ir à zona, no dia em que conhecera Maria Rita. Bem queela notara suas mãos grosseiras. Deus sabia de tudo. O ranchono pé de serra, o respeito às coisas Dele. Conversava com Deustodos os dias. O soberano lhe trazia o calor do sol das manhãs eao entardecer lhe mandava a chuva. Oh! Maria Rita! Não podiasentir o perfume dela, menos ainda esquecê-lo – a lembrançacomo um martírio. O ranço do suor, a raiva tomando a suaalma. Perdera tudo, do quase nada que tinha; até a mula, ondeeventualmente fluía o seu descarrego. Perdera a terra, MariaRita, a paz de espírito, quando mais tentava se arranjar na vida.Imaginava sua história de logro em logro pelas ruas da cidade,pelos bares e moradas. (As bocas malditas!). – Aquele matuto,apaixonado. – Chifrudo! – Coitado... Parecia tão bom! – Aputa foi traí-lo! – Também, o que ele esperava? – Ainda bemque fez um grande favor aos maridos chifrudos. – Que Deuso tenha, nos confins daquele mundo. É isso, o povo precisacomentar, saciar a sede de avacalhar a vida alheia. Desabafaras angústias... Daquele planalto ele enxergava as montanhas no horizonte, onde nascia o sol que lhe vinha aquece-lo do frio das manhãs O ruído da cachoeira em meio a grunhidos e cantos. Afome lhe tragando as entranhas. O cão trigueiro mal podendocaminhar; o coitado lhe salvara a vida das garras de uma onça,

Jairo Ferreira Machado  17ocasião em que também quase perdera a sua própria. Valera aesperteza do animal, antecipando a intenção da tal; essa, já novôo do bote – a onça atirando-se de cima de uma árvore! Ocão percebera e avançara com bravura contra a bruaca. Numapatada ela o atirara à distância; assim mesmo, o bravo não sedera por vencido. Logo se levantou, mas a bruaca já o tinha nasgarras. O tiro arrancara um naco da cacunda da danada, quesaiu em disparada – foi a salvação! Coitado do cão fiel! Estavaali, o lombo rasgado das unhas da fera, no tremor da infecção.Somente o tratamento de ervas e o tempo podiam curá-lo. Doía no cão quanto doía no seu íntimo. Oh! Maria Rita!Também, só o tempo para esquecê-la – a delicadeza daquelasmãos carinhosas, a experiência de cama, a libido à flor da pele,o desejo nunca satisfeito... Lembrou-se de quando fora lá nomeretrício, pela primeira vez e pagara pela transa – a puta fizerajus ao desempenho. Tinha fama! Poderia ter voltado lá quantasvezes seu dinheiro desse e não se machucaria tanto. Mas... forasonhar demais, pedindo-a em casamento. Estava, naquela hora,amargando a insensatez. Maria Rita, iludida com o seu bomdesempenho na cama e a ilusão de se tornar madame, tambémse entusiasma, disse sim. Quanta insensatez!... (Tarde demais!). Ali, a sua frente, a esperança de algo inusitado – aabundância da caça, a certeza da fome saciada. Mas, desse umsó tiro e o cão um só latido e expulsariam dali toda aquelafartura? A situação exigia mais que uma porção de sorte: umagrande lucidez de raciocínio, predicado que o cão não tinha,óbvio! Razão por que o mantinha calado na focinheira. Logofoi confeccionando armadilhas pelas imediações, explorandoas passagens utilizadas pelos bichos que para ali se deslocavamna ânsia de saciarem a sede. No decorrer do dia, já tinha acarne no braseiro. O isqueiro ainda dava fogo, sem contar maisdois de reserva no alforje (fora de caso pensado!). O cão seabastando das entranhas, enquanto assava o seu. A pressa não

18  A lenda do homem douradolhe convinha, não naquele momento, naquelas vinte e quatrohoras de pura calmaria. Arranjou-se por ali mesmo, em meioa uma cordilheira de rochas; o lugar ideal, ao menos o maissossegado desde que deixara o calor da cama, o calor de MariaRita – calor igual àquele, nunca antes experimentado! Quese contentasse então com aquelas circunstâncias. Se Deus ohavia levado até ali é porque de alguma forma o consideravamerecedor. Enquanto isso melhorariam as machucaduras defora (as suas e a do cão). Quanto às de dentro, não sabia. Tinhaconsigo a certeza: Deus estava ao seu lado; do contrário, jápodia dar-se por morto! Bem marcados os piques do cabo dofacão, passara já dezoito pernoites andando a esmo no interiorda selva. Nem sequer podia dormir sossegado (nem ele nem ocão), receoso da onça – os urros por perto dali, o cão de olhosvidrados, farejando o sentido da fera! De qualquer maneira,nunca desgrudava o dedo do gatilho. A bruaca, se não marcavapresença numa noite, na seguinte ameaçava. A muito custochegara vivo ali; a esperança de dias melhores, o azul celestemergulhado no infinito das montanhas; erguesse as mãos etocaria as nuvens, tão no céu se via, depois de longo períodosem a claridade do dia. Ali, o sossego, a paz quase celestial;sentia-se mais seguro, a possibilidade da barriga saciada, oesplendor da luz do sol, o brilho das estrelas e da lua... E ali, fez morada. Logo, logo já tinha o esconderijopronto; o refúgio preparado com madeira e folhas sobreuma laje de pedra de onde podia enxergar a imensidão doverde à distância, tendo como cobertura o azul, o céu. Paraalcançar o esconderijo necessitava escalar os galhos de umarvoredo crescido rente à rocha; o cão, companheiro desacrifício, ali, no solar do arvoredo, amarrado ao tronco daárvore – a importância daqueles olhos atentos, daquele farosempre alerta. Do alto da morada podia ver e compreenderos hábitos dos animais silvestres que vinham beber e aplacar

Jairo Ferreira Machado  19a intensidade do calor da selva naquele lago formado por umruidoso riacho, sugerindo uma corredeira d’água se atirando deum penhasco. Uma canção de ninar. Ao deleite de seus olhos,a fauna abundante, a expectativa de saciar a fome. Daqueleplanalto ele enxergava as montanhas onduladas no horizonte,onde nascia o sol que vinha aquecê-lo do frio das manhãs, o solescancarando a luz no seu rosto. Pena que não podia vê-lo sepôr – o pico da montanha à sua costa o consumia antes do fimde tarde. O braseiro sempre ali, num tição aceso sobre a laje.Sobrava-lhe munição no alforje, mas não tinha como usá-la;só nas necessidades mais prementes! Contava com o silêncioe a discrição (sua e a do cão), para sobreviver ali o tempo queprecisasse; por certo, enquanto seu coração agüentasse, emboranunca se sentisse sozinho. Mas, sabia lá o dia de amanhã? Umdescuido e em vez de comer, seria comido – os urros cada vezmais perto! Aos poucos foi recuperando-se do cansaço físico;o cão, igualmente, repousando... Quanto a sua alma?... Oh!Maria Rita! Aquele fogo, aquele braseiro, onde se acenderapor mais de mês até aquela manhã em que derramara o seuúltimo fluido, já sabendo que se largaria de lá tão logo dessecabo do desgraçado. Lamentava pelo quarto mandamento daLei de Moisés; fizera justiça com as próprias mãos; talvez Deusperdoasse algum dia. Talvez não!... (Mas corno manso é quenão seria!). Tombava-se ali um planalto esverdeado camuflado entre orefugo de uma sinuosa cordilheira onde os riachos desenhavamum grande remanso; seus olhos mergulhados, marejados deluz, procurando entender toda aquela composição divina. Emdeterminados momentos do dia se abatia ali um tenebrososilêncio, como se todos os animais se recolhessem para algumlugar qualquer daquela selva – nunca sabia para onde. Umsingular mistério! Não podia esconder a fascinação que sentiaao usufruir daquele encanto, e assim, a cada momento mais

20  A lenda do homem douradoenxerido, ia aproximando-se. A sua frente a imensidão deuma áurea lembrando uma constelação de estrelas, ele pisandoali, naquele paraíso sem ter a certeza se podia. Não era o seulugar! Mas, se fora para ali guiado (por uma força suprema)não podia retroceder. O cenário o atraía. Pensasse bem, o lugartambém já lhe pertencia, depois de vivenciá-lo lá de cima dalaje todos aqueles dias; via de longe apenas a superficialidadedo ambiente, mas não a sua essência. A qualquer custo e riscoprecisava pisar aquele chão, senti-lo de perto, conquistá-lo...Levava consigo o cão (silenciado na focinheira), caso precisasseajuda. No ato, soltaria as amarras do fiel e teria mais um aliado– sabia lá dos riscos que haveria pela frente? Os predadoresmais audazes transitavam naquela área aproveitando-se daatração que o lugar exercia sobre as outras espécies que paraali se deslocavam no afã de saciarem a sede – era melhor quese cuidasse! Alguns dos maiores já haviam lhe roubado a caçadas armadilhas que tivera o trabalho de preparar naquelesdias; mas, não era doido de ir atrás, reclamar... Mais seguropreparar outra! À medida que avançava na direção do luzeiro,uma sensação estranha ia tomando-lhe o entusiasmo e acoragem. O cão, os pêlos eriçados, antevendo ou pressentindoum assombro ou algo parecido. O dedo firme, no gatilho! Jáse via a meio do caminho (da distância do esconderijo à orlado lago), aproximando-se às escondidas entre os arbustos, péante pé, o coração descompassado, a respiração ofegante; nãohavia como protelar! No peito a ansiedade de desvendar aquelemistério, uma vez que já se tornara parte dele – a intensidadede luz e de vida existentes ali enchia-o de ânimo! Oh! Maria Rita! Quanto arrebatamento! A casaarrumada, o trabalho (não era nobre, mas honrado!), os diasde lubricidade, o prazer de sentar à mesa e comerem juntoso arroz com feijão, degustar a vida a dois – na comunhão davida! Bem certo, na comunhão dos dois! Não a comunhão com

Jairo Ferreira Machado  21aquele reverendo que os casara; o pároco desdenhara de MariaRita, referindo-se a ela como “pecadora”. Não é que o diabodo pároco tinha mesmo razão? Uma sem-vergonha! Era issoo que Maria Rita era: uma cadela, no cio! Matara o sujeitinhopor causa dela; um só tiro, no peito do excomungado! Ou nãoera por causa dela e sim, por si mesmo – o orgulho ferido?Não queria passar por otário! Imagine, ele dando duro lá notrabalho e Maria Rita no seu colchão novinho, “dando” para otal, a libido nunca satisfeita. Aquela puta descambada da breca!Vai ver que Deus nem abençoara mesmo aquele matrimônio,como desconfiara o próprio padre. Um mês depois a “moça” jáestava de caso com outro. Puta! A mula, nem tanto. Ao menosa mula só “dava” para ele, assim mesmo a contragosto; nãosabia daquele dia em diante, depois que a vendera? Mas tinha odireito de “dar”. Maria Rita, não! Era casada... Só podia ter sidopraga da mula! Que puta manta levara, então! Oh! Maria Rita.S sabia lá onde ela estava? Por certo, numa cama qualquer;numa zona qualquer. Ele ali, na incerteza do próximo minuto;diante de si, aquele lugar paradisíaco, os seus olhos encantadosno esplendor da luz. (Deus está comigo!). A certeza disso, abiodiversidade, a paisagem, o esplendor da natureza abrindo-se diante de seus olhos, como o arrebol das manhãs. Precisavaapenas da coragem de ir até o local onde a luz resplandeciaexpansiva, como um gigante caleidoscópio difundindo-se emtodos os sentidos. Difícil saber se a intensidade da luz confluíapara o centro do lago ou se dentro das águas saía para acentuara luminosidade ao redor. De certo, Deus se esmerara no pincel,quando, na sua infinita sabedoria, dera luz àquele cenário;quem sabe não seria ali o Seu refúgio, o Seu lugar de meditação?Podia ser!... (Deus merecia tamanha grandeza!). Quanto a ele,um pecador, que direito tinha de estar ali? Que direito tinha deusufruir tudo aquilo?

22  A lenda do homem dourado O paraíso, com todos os seus mistérios, refletindo nos seus olhos uma incomum luminosidade. Ele e o cão se aproximando. Aos seus ouvidos o murmúriodos riachos que alimentavam a grandeza do remanso; o ecoque retornava das copas das árvores confundia seus sentidos.Um ou outro pássaro voava assombrado, bichos menores sedesentocavam assustados, mas nada que o afligisse; quandomuito, uma ligeira apreensão e receio do desconhecido. Omedo se misturando ao deleite daquela reinante santidade.Lembrasse o paraíso dos contos bíblicos, tinha diante de si ummodelo perfeito. O que fizera por merecê-lo? Era certo quesua alma engrandecera desde que ali chegara, passados quinzedias; as chagas do cão, já curadas; as suas, nem tanto! Abertas,as chagas do seu íntimo! Quem dera Maria Rita ali! (Aquelemundão de espaço e encanto só para seus deleites!). Haveriade construir uma morada imponente sobre aquela rocha, demaneira que pudessem (os dois) enxergar juntos os nasceresdo sol, todos os dias, se Deus assim permitisse! (Não se sentiamerecedor!). Afinal, desobedecera a um dos Seus preceitosmais sagrados – “Não matar!”. Matara. Traíra os mandamentosde Moisés, o enviado de Deus. Contudo, pressentia Deus tãopróximo de si que achava que o Senhor já estava esquecidodaquele incidente. Ou, quem sabe, já tivesse mesmo pago ospecados durante aqueles dias de andanças, perdido na selva,numa penúria dos infernos, quando precisara Dele todoinstante e Ele o atendia; mais ainda, no momento do bote daonça! Não era agnóstico, menos ainda ateu; Deus estava bemali, presente, bem perto de si. Todo aquele fascínio, aquelaenormidade existencial. Oh! Maria Rita! Estivesse ela com ele,nunca mais voltariam àquela cidade. (Nada ficara para trás!).Bem possível que a cidade também já o tivesse esquecido;

Jairo Ferreira Machado  23aquela extenuante hipocrisia já arrumara outro para Cristo.Os políticos já não se preocupavam em resgatar a vergonhada cidade; eles mesmos se viam enredados em falcatruas;o delegado já não o queria atrás das grades, a não ser quecolocasse também seus comparsas; o pároco (que fizera seumatrimônio, muito a contragosto!) e que não deixara seu cãoentrar na igreja, por certo já lhe dedicava alguns Pai-nossos.Os fiéis já não rezavam pela alma de ninguém, estavam maispreocupados com as suas próprias! O juiz, chegado o dia dasentença, de certo diria – “O réu é culpado, mas pelo que vejo...”Lá nos fundos do Tribunal alguém erguendo uma carteira bemrecheada! Todos grandes pecadores, falsos devotos. Os homensiam à zona na calada da noite (para “comerem” Maria Rita) eno domingo estavam todos lá na missa. O pároco, que tambémnão era santo, sabia... As madames, umas beatas fofoqueirasque viviam de falar da vida alheia; antes da missa, confessampara receber a penitência – viviam de rezar! O pároco sabia...Deus também via tudo; calado, mas descontente! Não era Delea responsabilidade de mudar o comportamento das pessoas. Na menina de seus olhos, a paisagem dos sonhos. Àmedida que se aproximava do remanso sentia a alma (o poucodela que ainda lhe restava) enaltecida. Uma alegoria! A luzque fulgurava ali nove horas da manhã tinha intensidade igualà luz do meio-dia; por outro lado, a luminosidade do meio-dia acentuava seu brilho sem que soubesse por quê; nada quese assemelhasse ao habitual, embora pouco conhecesse domundo de Deus; conhecia menos ainda o interior da selva.A luz própria, naquele momento, mais anímica, como se lhebrilhasse a própria aura, seu corpo sendo atraído para aquelelugar, em consonância com o que seus ouvidos escutavam eseus olhos podiam ver: o próprio paraíso! Lembrou-se docatecismo; a ilustração, as cores de um céu que só conhecera naestampa de uma cartilha; nunca em outro lugar qualquer! Daí,

24  A lenda do homem douradonunca acreditar que existisse... Estava enganado! Ali, o sonhode muito devoto – o verdadeiro céu; Deus, por certo, tinha Suamorada ali. Não um Deus barbudo, um espécime humano decajado na mão; mas o seu espírito animado, presente em todasas coisas, irmanado na existência de sua criação. Até aquelaonça, era Deus, enraivecido, pondo-o à prova em razão dospecados cometidos. O lema do catecismo, o pecado original,a natureza exuberante, o paraíso, o pé de maçã, e Eva sendotentada a colher a fruta proibida; lógico, se Deus colocara afruta lá, e Eva tinha fome, era justo que comesse! Pensava nosensinamentos bíblicos enquanto a beleza do lugar enaltecia suaalma pecadora; havia razões de sobra para sentir-se nas nuvens– de fato, quase podia tocá-las com as mãos! Oh! Maria Rita!Quanta ilusão! O tremor daqueles grandes lábios, o brilhointenso daquele olhar atraindo os seus, atraindo a sua inocênciasolteirona; nunca imaginara uma mulher assim na vida! MariaRita, a sua frente, despindo-se com a naturalidade de uma puta,sem nenhum acanhamento. Ele invadindo aquela nudez numadesmedida timidez. Depois, Maria Rita acariciando seu hirtofalo, os olhos dela cheios de brilho... Ele, pela vez primeira,fizera sexo de verdade; e fizera, e fizera que caiu exausto sobrea cama. Deu no que deu: a ilusão de que encontrara a mulherdos sonhos. Casara com ela e em seguida, a desilusão! O tirono peito do excomungado. A fuga; o inferno; o esgotamentofísico; a fome, as lembranças; naquele instante, o céu, o paraísodeslumbrando-se a sua frente. O paraíso, com seus mistérios, refletindo nos seus olhosuma incomum luminosidade; o sol banhando de dourado arelva, as folhas, as flores, as rochas, as veredas dos animais poronde vinham beber por volta das cinco horas da tarde (outros,só à noite!). O palco, inteiramente iluminado! Num certomomento do dia abundavam ali aves de tamanhos e matizesos mais variados; animais silvestres de todas as espécies, aos

Jairo Ferreira Machado  25bandos, numa algazarra alarmante; uns vindo pelos ares,galgando de galho em galho; outros, rastejando, em gruposou sozinhos. O santuário ao dispor. A fauna esbaldando-se amargem do lago. O cão sentia o cheiro deles, porém, o laçoe a focinheira lhe tolhiam a ação. Se solto, o bravo seria umproblema a mais! O lugar, paradisíaco. Muitos dos animaisque para ali se deslocavam na intenção de um banho habitualtinham vida curta – sucumbiam, na tocaia dos predadores!Vida e morte andavam lado a lado; uma cruzando com a outranas encruzilhadas da selva, a pouca experiência lhe fazendocrer. Ele mesmo correndo riscos àquela hora; uma oração paraDeus, outra, para o gatilho – que a mira nunca falhasse. (Deus,por certo, entenderia!). Aliás, ao que pressentia, ele e Deus,se dando bem! Até sonhara com o soberano numa daquelasnoites... O Senhor lhe dando uma bofetada – “Onde já se viu!Matar um semelhante1” – Desculpe-me, Senhor! Não pudesegurar! Aquele sujeito deitado, lá na minha cama, com MariaRita, eu vendo. O sem-vergonha “dando duro” em Maria Rita!Atirei! Mandei o malvado para os infernos. Além do mais,Senhor Deus, Lhe fiz um favor: poupei o Seu trabalho. Decerto, o Senhor não iria aceitar mesmo o intrometido lá no céu!(Sabia lá se Deus entendera?) Acordou dos pensamentos. Ali, àsua frente, o céu, o paraíso... Aquilo sim era real. Não podia mais retroceder. Atentamente foi circulando olago. A cascata derramava no remanso bolhas d’água onde o solrefletia mais dourado. Ou seria tudo aquilo a ilusão dos seusolhos? Ou a força de sua alma envaidecida? Os bichos por ali,assustados... Era natural que estranhassem criatura estranhaàquele lugar. Das profundezas do lago emergiam pequenasilhotas sustentando arbustos onde os pássaros arquitetavamseus ninhos longe do alcance dos predadores. A vegetaçãoesparsa, adornando o piso da paisagem – O próprio Jardim doÉden. Tinha os olhos e os ouvidos atentos ao redor do remanso

26  A lenda do homem douradodas águas. A depressão do planalto, como uma pia batismal.O logradouro, um paraíso divinamente particular – Bemque Deus merecia! E quanto a ele? Chegara ali por caminhosestranhos a sua vontade; com certeza, mais pela vontade eintercessão do mestre. Logo (calculou!), o mestre estava ao seulado; melhor que fosse assim. Precisaria Dele, naquela hora equando quisesse sair dali algum dia. A não contar com a ajudade Deus, só lhe restava a esperteza do cão. Nem tinha idéiado caminho de volta! Oh! Maria Rita! Aquela tez naturalmentebronzeada, a calcinha branca rendada, por baixo de um vestidoacetinado, no dia do casamento... O coração arrebentando nopeito, descompassado; as mãos de Maria Rita, firmes, apertandoas suas. O pároco, com cara de desconfiado, dizendo: Amém!... Se não lhe enganava a percepção, o sol mergulhava no lago com uma determinada luminosidadee saía de lá mais dourado ainda... Pé ante pé chegou à orla do lago. Retirou logo os traposque restavam e as botas e mergulhou os pés na água dourada doremanso. Depois, as mãos... E se benzeu, como quem se benzena água benta da igreja, na missa de domingo. A tangência dosraios solares na superfície da água refletindo a luz douradanos seus olhos, como se o astro nascesse do fundo do lago enão o lago apenas espelhando a luminosidade que vinha decima. Se não lhe enganava a percepção, o sol mergulhava nolago com determinada luminosidade e saía de lá mais douradoainda! Ou era tudo aquilo apenas impressão de seus olhos? Oua sua alma, enlevada? Nunca na vida presenciara fenômenoparecido. Oh! Maria Rita! Por causa dela jurava que estavavendo coisas... Alucinações... Ilusões... Até já conversara com

Jairo Ferreira Machado  27Deus (em sonhos!). O lugar, o paraíso, como se estivessesonhando naquela hora; mas, não era um sonho! O cão,como testemunha de tudo aquilo; os olhos, vidrados naquelaimensidão de luz. Podia até ouvir-lhe o pulsar do coração, aangústia, o choramingar, a ânsia de se soltar do laço e avançarcontra o imponderável ou correr para muito longe dali... Talvezo cão entendesse aqueles mistérios. Mas não era bobo desoltá-lo; juntos, era melhor! E já que estavam ali, usufruiriamdaquele espetáculo enquanto a coragem permitisse. A carnetremendo no medo, as pernas querendo correr, os sentidosdizendo para ficar; assim, sentou-se num tronco de árvore, apercepção ensimesmada... O remanso cerceado pela vegetação,descampada em determinados pontos onde os animais maispisoteavam quando vinham beber. Ou quando dali retornavampara a densidade da floresta, uma vez saciada a sede – a argúcialhe fazendo crer! Mas, como Deus resguardara tudo aquilolonge da ambição humana? Não sabia. Já se sentia lisonjeadodiante da essência daquela beleza. Tiraria o chapéu para Deus.Oh! Maria Rita! Toda aquela formosura era ela, a sua libido, oseu fascínio, o seu êxtase, a sublimação... Os olhos deleitados na paisagem momentos antes devoltar ao esconderijo de praxe – lá no topo da laje. Os riozinhosonde matava sua sede nada mais eram que um ínfimo afluentedaquele riacho maior que desembocava bem ali, no remanso;Deus não errara em nenhum detalhe. Nem todos os animaisprecisavam visitar aquele recanto para ter água; pelo interiorda selva havia centenas de riozinhos iguais àquele ao bel-prazer dos bichos menos audazes. Não lhes faltaria o decomer e de beber! Ele mesmo (humano, por natureza), nãoacostumado à rispidez da selva, ia sobrevivendo, se bem que àscustas de algum chumbo e das armadilhas que aprendera comohomem rústico da roça quando ainda lá no rancho pé de serra.Acostumado à artimanha da sobrevivência, ia se defendendo.

28  A lenda do homem douradoCerta vez pensara em se meter naquela mata adentro, porcuriosidade, a desvendar os mistérios da natureza, mas nuncaimaginara chegar ali, naquelas circunstâncias – como fugitivo.Oh! Maria Rita! Não fosse o cão, a destreza no gatilho e Deus,por certo já estaria morto. E Maria Rita, onde estaria? Talveztivesse mudado de zona. Podia!... Em qualquer lugar que fossetinha freguesia certa – era mestra na arte da orgia. Tanto assimque arranjara vários pretendentes, mas decidira por um talcapiau que aparecera lá na zona, num daqueles fins de semana...A zona, um casebre camuflado na periferia da cidade, mastodos sabiam! Sujeito maluco, aquele. Voltou no dia seguintecom um par de alianças! Pedida em casamento, por váriasvezes, só aquele capiau fizera por convencê-la – na cama ena ingenuidade! O pobre coitado tinha um rancho; venderiao rancho, arrumaria emprego e montaria uma casa para ela;aceitara! Via ali a chance de se tornar madame! (Qual puta nãopensou nisso um dia?) Animou-se! Mais tarde descobrira quenão era mulher para um homem só; assim, arranjara outro.Não por muito tempo – o capiau descobrira e o abelhudo foradespachado para os confins dos infernos. Oh! Maria Rita!Aquela imensidão verde e ele ali só, longe de tudo, sem sabero destino de Maria Rita. Quanta saudade! O sol ia tombandoseus raios atrás da serra enquanto um contingente de espéciesanimais aproximava-se do lago; naquele momento, não estavamais só. À sua volta, o verdadeiro paraíso! Logo veio a escuridão. Do esconderijo podia ver ocintilar das estrelas; a primeira delas, a estrela Dalva, solitária,naquela imensidade espacial. Ele ali nos confins da selva talqual a estrela nos confins do céu. Momentos depois, a lua sedescortinava no horizonte; brilhava por detrás da montanhatal qual os olhos de Maria Rita lhe enchendo de brilho o olhar,naquela primeira vez! Lembrou-se do rancho, de onde tambémpodia ver o alumiar da lua, mas nunca ela brilhava com tantaintensidade como naquele momento. Ou aquilo eram os

Jairo Ferreira Machado  29humores dos seus olhos? Ou sua alma desamparada desejandoMaria Rita? Lá longe aquele esfuziante encanto. Uma exaltação!Na sua companhia, o cão. Era praxe içar o companheiro paracima da laje, puxando-o pelo laço do cipó, de forma a sentir-seacompanhado – um, a alma do outro! No brilho da lua, os olhosde Maria Rita – a intensidade da luz dela! O satélite soberano láno infinito lhe trazendo lembranças. Aqueles dias de aliança, asmadrugadas frias, Maria Rita nos seus braços, o calor daquelesseios no seu peito. Qualquer hora que acordasse, durante anoite, ela estava receptiva. Acolhia com prazer sua disposiçãovaronil e depois voltavam a dormir... Ela ao seu lado, o perfumedo sexo entranhando suas narinas, a fragrância íntima lhetomando a alma de capiau. Naquele momento, tudo diferente:o asco do suor, as roupas aos frangalhos, cabelo e barbacompridos, a alma desértica. Enquanto isso, a suavidade da luacobrindo com o seu manto prateado a magnitude da selva e dosmontes. A sua frente, o remanso refletindo o esplendor do luar.O cão, por perto, ressonando a lassidão. Oh! Maria Rita! Ossonhos da “moça” de se tornar madame se foram num únicoestampido de uma arma assassina. E em vez de madame, comcerteza, mais puta ainda (na maledicência das bocas alheias!).Imaginou aquela gentalha hipócrita crucificando-a, desejando-lhe os confins do inferno; mais as mulheres que os homens,naturalmente! As mulheres, de certeza, em razão do naturalciúme daquela sem-vergonha que “dava” para seus maridos;despeito maior quando Maria Rita vinha à cidade, para ascompras de rotina. A “moça” esmerava-se na sensualidade:saia curtíssima, sapato alto, tão esfuziante quanto uma libélulaprimaveril. As madames olhando de soslaio, indignadas – “Lávem a vagabunda! Olha o rebolado dela”. “Lá vai a vagabunda!”Os homens olhando de viés; todos comprometidos com aquelavagabundice! Os mesmos que exigiram o seu pescoço quandofuzilara aquele sujeitinho que lhe botara chifre; claro, todosquerendo a forra. – Quanta petulância desse matuto. – Vê se

30  A lenda do homem douradopode, tirar Maria Rita lá da zona. – Capiau burro! Isso é o queele é! No curto período de convivência matrimonial com MariaRita, todos tinham ficado órfãos (sabia disso!). Até o prefeitoque tivera um caso com Maria Rita o queria atrás das grades. Odesgraçado vivia de rodear sua casa. (Devia estar imaginando:“de que fria me escapei?”). Por pouco não fora ele o defunto! Odelegado era outro salafrário! Aquele olhar sério (de disfarce!),para impor medo; mas não o temia! Ele que se metesse comMaria Rita e lhe cortaria os bagos e jogaria ao cão. Oh! MariaRita... Na solidão da noite, de onde observava o esplendor dalua, ali mesmo deitou-se e dormiu. O luar, a aragem da noite,o sonho. Seu corpo dourado, inteiramente banhado em ouro,como uma jóia de vitrine; um bezerro de ouro, dos contosbíblicos, que os fiéis adoravam na esperança do perdão divino– ele, no altar-mor da grandeza! Toda gentalha aos seus pés, dejoelhos, pedindo clemência, orando fervorosamente por umagraça. A sensação de guampas na cabeça; claro que não via oadorno, mas podia senti-lo. Acordou assustado; o sol gracejandosua pele, sua cabeça pesada. (Diabos!). Sentia-se o verdadeirobezerro de ouro, de chifre e tudo! Demorou a dar-se conta deque a sensação de peso era efeito da rocha onde repousara acabeça, antes de pegar no sono, na véspera. Alegrou-se. Aospoucos foi recobrando os sentidos. O dia já velho. O cão de pé,grunhindo inquieto ao redor do remanso. O tempo de sobra,então levantou-se sem pressa. Como de hábito, vasculhoualgumas armadilhas, recolheu caça, assou, comeu, deu umpouco ao companheiro e retornou à orla do lago, onde estiveraantes. Dava para sentir as mesmas emoções de quando foraali, naquela primeira vez – um sublime enaltecer! Apreciava aextensão do lugar; os olhos passeando por cada metro quadradoda chapada: o chão, o lago, o riacho, os arvoredos, as rochas,os mínimos detalhes. Bastava-lhe tão-somente o espírito

Jairo Ferreira Machado  31aventureiro, a paciência, e não ir afoito ao desconhecido. (Sabialá o que havia por ali?). O terreno onde os animais pisoteavamao se intrometerem no lago mais intensamente dourado. Muitoestranho! Permaneceu ali contemplativo, olhando o reflexo daágua na luz do dia. Exausto, retirou os trajes e aventurou ummergulho no lago – a pia batismal, numa grandeza infinita! Obanho, a bênção espiritual que seu corpo mais desejava desdeaquele período na floresta sem o calor do sol. Naquele instante,o lago inteiro ao seu dispor... Oh! Maria Rita! Lembrou-se daprimeira vez que estivera com ela sob a efervescência de umaducha quente; tivera vergonha de compartilhar, mas o apeloda “moça” fora tão convincente que não resistira à tentação;nunca mais esquecera aquela vez, aquele gozo esfuziante,aqueles dias de lubricidade! Fizera amor (ou sexo!) com elamuitas vezes sob o calor da água corrente, esfregando-se nafragrância daquele corpo perfumado! Quem dera ali aqueleperfume... Quem dera ali, Maria Rita... O pensamento longe...O cão, também se banhando... O sol do fim da manhã dourando a superfície dolago, os raios refletindo nas copas das árvores um particularamarelecido. Olhos cautelosos, prostrou-se ali ao sabor dosraios, aproveitando a nobreza do lugar. A calmaria antecediao entardecer antes de a bicharada vir da densidão da florestapara aquelas bandas; uns, na busca do banho; outros, nosaciar da sede. Captava de um ponto qualquer acima do lagoo ruído de uma cachoeira enquanto ele e o cão reinavamsoberanos na orla do lago, como se fossem donos do lugar. Oh!Maria Rita! O batom ruge dela contracenando com o sanguefluindo do peito do sem-vergonha. O tom pálido dos lençóisassemelhando-se a lividez da sua face frente ao horror; MariaRita nua, inteiramente nua (lembrava-se!) no exato momentoem que puxara o gatilho; os olhos da “moça” arregalados, asobrancelha aprumada, aqueles lábios carnudos onde saciava

32  A lenda do homem douradosua fome, num segundo, estupefatos! O esplendor de luz quelhe vinha de dentro, fenecido. Assim mesmo sobrava-lhesensualidade. Esquecido o momento de loucura, trocaria todoaquele paraíso por alguns momentos com ela; aquele tesãoincontido. Do fundo do coração, um imenso vazio lhe invadiao peito e a alma. O pouco de alma que lhe restava. Os raios solares refletindo nos seus olhos o reluzir do ouro; ele próprio: o bezerro de ouro! Refrescado do calor, o cão retirou-se da água e ressonouali sobre a grama batida, enxugando-se ao sol. Observava ocão relembrando o quanto era grato àquele companheiro desofrimentos. Num instante um áureo reluzente refletiu nosseus olhos – o cão, o bezerro de ouro (dos seus sonhos!). Podiaser aquilo uma miragem? Não! Estava lúcido, naquela hora!Se não era aquilo um delírio dos seus olhos, quem sabe fossesua alma sublimada? De qualquer forma, era estranho! Sópodia estar sonhando! Acariciou o cão na intenção de tocaraquele matiz trigueiro; o pelo do animal num intenso reflexofulgente. Assustou-se. Olhou a própria palma da mão, tambémdourada! Os raios solares refletindo nos seus olhos o reluzirdo ouro; ele, o próprio bezerro de ouro! (Um momento deinsanidade?). O delírio visual, a mente conturbada, os olhosperplexos... O trigueiro, nunca tão trigueiro. A palma desua mão, nunca tão dourada. Lembrou-se de Maria Rita; elanaquele vestido de seda, o tom amarelado, o tecido revelando-lhe as acentuadas curvas do corpo, na primeira vez que foralá na zona; na cintura, o cinto amarelo também, combinando.Aquele busto exuberante irrompendo pelo decote do vestidoonde seus olhos entorpecidos mergulharam apaixonados e

Jairo Ferreira Machado  33nunca mais quiseram sair de lá! Estavam ainda lá, presos àqueledourado lúbrico. Ah!... Então, era isso o que via? (Pensou!).Não era a palma de suas mãos douradas, nem o pelo do cão quebrilhavam, era a pele de Maria Rita. Só podia estar sonhando!Um lindo sonho dourado que sua demência exausta acreditavaser real. Maldito aquele dia! Maldita aguardente que lhe deracoragem de ir àquela zona, naquele dia, pela primeira vezna vida. Maldito companheiro que o levara! Oh! Maria Rita!Malditas aquelas coxas bem torneadas, sedosas, onde suamão calejada se intrometia no afã de arrancar-lhe a calcinharendada! Maldito vestido amarelo... Até então, não sabia se tudoaquilo era real ou fantasia de sua mente perturbada. A tardevinha chegando e ainda estava lá consumido em pensamentos,o olhar ensimesmado no dourado do cão e de si mesmo. Voltouao esconderijo de praxe levando consigo uma dúvida cruel.Será que estava enlouquecendo?... Naquela noite observou que a luz prateada da lua semisturava ao dourado de sua barba comprida (até onde podiaenxergá-la) e mais uma vez teve certeza de algo incomum, masreal; não estava de fato dormindo e nem sonhando! A ansiedadelhe batia no peito. O cão, que nada atinava do episódio, dormia,reluzindo seu dourado no clarão da lua. Oh! Maria Rita! Oalforje vazio, a solidão, a mente ensandecida, o cabo do facãosem espaço para piques (onde assinalava fielmente a passagemdos dias). A sua frente, um silêncio quase atroz; exceção a algunsuivos ou piados lá nos cafundós da selva; o cão ali, calado nafocinheira. Nem sequer o brilho das estrelas – o luar reprimindoo cintilar da constelação, naquela noite. As estrelas lá no infinitodo céu pareciam muito próximas de si. Conhecia todas, obrilho especial de cada uma delas. Certa noite quisera contá-las– tão complicado quanto conquistar o coração de Maria Rita.Coração? Maria Rita tinha mesmo um coração? Duvidava quetivesse. No lugar, uma pedra, uma rocha, como aquela que lhe

34  A lenda do homem douradodava abrigo, a solidez e a frieza da rocha. Contudo, frieza, sóno coração! No mais, Maria Rita pegava fogo! A libido de umacadela no cio; sabe-se lá de onde vinha toda aquela sensualidade,todo aquele ardor! Ali, o fogo, o braseiro, onde se esquentava dafriagem da noite, enquanto o pêlo do cão refletia o esplendor dalua nos seus olhos. Lá distante, o brilho do astro cobrindo comum manto dourado a extensa vegetação. Na sua pele, o brilhomais intenso. O que significava aquela luminosidade extrema?A insanidade de seus olhos? Sua alma enaltecida? Assim, poucodormiu naquela noite. No dia seguinte, mal esperou a aurora da manhã – oespírito de aventureiro ensimesmado. Perdia-se em meio àexcentricidade do lugar, aquele fenômeno estranho, como algoque nunca imaginara existir. Rodeou as margens do lago atéa altura do riacho, onde acentuava o ruído de uma cachoeira,a declividade da correnteza despejando as águas no remanso.Logo um pouco acima do remanso o riacho dourado vagandono seu olhar. Uma réstia de sol escapulida por entre a folhagemacentuando o áureo reluzente do córrego onde seus olhos searregalavam – ali, o filão de ouro! Não era aquilo alucinaçãoe menos ainda sua mente fantasiosa. Era algo real. Oh! MariaRita! As pepitas brilhando tanto quanto aqueles lábios debatom; Maria Rita chispando o desejo no seu olhar. Ali, asensação que tivera naquela primeira vez que fora à zona,Maria Rita vestida num amarelo-ouro; o decote em vê, o bustoatraindo os seus olhos, tanto quanto aquelas pepitas! As pernasligeiramente bambas. A emoção tomando seu peito, suasentranhas. Não se agüentando, sentou-se ali sentindo a mesmaemoção de quando vira pela primeira vez o olhar de MariaRita. O cachorro trigueiro (naquele momento, áureo), ao lado,sem nada compreender do fenômeno. A luminosidade áureacegando-o. Os olhos reluzentes, o peito ofegante. Ficou assim,pasmo, a mente devaneando na luz que refletia de dentro doriacho, como a luz de um caleidoscópio; a alma sublimada. Oh!

Jairo Ferreira Machado  35Maria Rita! Todo aquele tesouro como que resplandecente desua pele macia e lúbrica era muito mais que os olhos, o bustode Maria Rita; era toda ela, a sua nudez dourada, a tez róseade seus hirtos mamilos. Uma lúbrica alucinação! Animou-se.Mergulhou a mão no meio daquele fluido dourado e retiroude lá uma das pedras; a mão mal abarcando a dimensão doouro, como da vez que afagara por inteiro a mão de Maria Rita,quando o pároco dissera: Amém! Pura alucinação! Devaneios!...O cão, mais uma vez, a única testemunha – os olhos compridosno brilho do metal como naquele dia lá no altar da igreja. Asluzes cintilantes nos olhos de Maria Rita! (Sabia lá se brilhara,de verdade, no coração dela.). Seu coração ali, enlouquecido,num galope só, tanto quanto na hora da cerimônia. A pepita deouro na mão, a emoção lhe tomando os sentidos. Permaneceusentado; mais por lhe faltar a firmeza nas pernas, incrédulo noque via! Encontrara uma mina de ouro; um lago de ouro! E nãoera aquilo mais um dos seus sonhos... A luz do metal abundando nos seus olhos. Inebriado,encheu o alforje, de não poder carregar. Mas, logo percebeuque não precisava de tanto. Aliás, não precisava de nenhum!Como sair daquele lugar se nem mesmo tinha aonde ir? Nemde longe recordava o caminho de volta. Além do mais, de quevaleriam todas aquelas pepitas, sem Maria Rita? O pensamentoconturbado... Se não podia sair dali, construiria então sobrea laje (a laje do seu aconchego) um imponente elevado,uma construção só de pepitas de ouro, de onde observariao nascer do sol, o brilho da lua, o cintilar das estrelas, o vôodos pássaros, os bichos indo e voltando... todos os dias; até ofim de sua penitência! Entristeceu-se. Como quê, acordou dospensamentos. De nada adiantaria um castelo de ouro, umarealeza daquela, uma vez que nenhuma riqueza lhe amenizariaos sofrimentos da alma; nada daquilo lhe devolveria o calor deMaria Rita. Desanimado, despejou fora a maioria das pepitas;ficou com algumas, entre elas a maior: como um alento para

36  A lenda do homem douradoos seus olhos. Eram os olhos de Maria Rita! Tudo em si reluziaa ouro, menos sua alma – o pouco de alma que lhe restava...Voou para longe dali. Onde estaria Maria Rita? A hipocrisia,em nome da “moral” e dos “bons costumes” do lugar, de certo,já deveria tê-la expulsado daquela zona, para fora da cidade.(A volúpia de “mulher da vida” causara alguns sofrimentos:uma morte e uma desaparição!). Imagine! O povo pensando:quanta petulância da “moça”. Um sujeito morrera de bala nopeito; outro se perdera nos cafundós da selva; sabe-se lá ondeele estaria, naquela hora? Quanta hipocrisia! Oh! Maria Rita!(O tempo é o melhor remédio para amenizar os sofrimentos!).Talvez não passasse de imaginação tudo aquilo. Maria Ritaestava lá, sim. Imagine, quão órfãos ficariam os homensdaquela cidade, se a “moça” fosse mandada embora? O prefeito,o delegado, o comerciante, o iniciante... Qual mulher teriatanta disposição, sem se amofinar diante das orgias; nem todassatisfatórias? Também o pároco deveria estar rezando, pedindoclemência. Se Jesus perdoara Maria Madalena, por que ele, umservo de Deus, não perdoaria Maria Rita? A “moça” não tiveraculpa – era coisa da profissão! O capiau é que não batia bem dacabeça... Mas, não é que o desgraçado do pároco tinha mesmorazão? Maria Rita não era mulher para casamento. Algumacoisa, aquele pároco sabia! Logo acordou assustado, o cão ganindo, a onça subindo a encosta de pedra, pata ante pata. Naquela noite, ainda sob o efeito da emoção, entre umdespertar e outro, dormiu profundamente... No sonho, as luzesda cidade acesas, ele no cimo da montanha, olhando o luzeirolá em baixo. O cão, já sem a focinheira, ganindo, louco por

Jairo Ferreira Machado  37descambar serra abaixo; mas, não era bobo de soltá-lo do laçode cipó. A torre da igreja, onde esposara Maria Rita, sobressaíano topo da cidade. (Deus não apoiaria aquela imponência;mas, as pessoas precisavam dela.) No fim de uma rua qualquer,de um bairro afastado, sob o lusco-fusco de uma luz de poste, asimplicidade da zona; com certeza, lá estava Maria Rita, “dando”,sabe-se lá para quem. O alforje carregado de pepitas de ouro;no peito, a incerteza – não sabia se obedecia ao cão e descia delá se arriscando a ser preso ou se optava por morrer nos confinsdaquela selva. Sonhava. Naquele instante, acordou assustado, ocão ganindo, a onça subindo a ladeira de pedra, pata ante pata– o bote armado! O tempo apenas de puxar o gatilho, o bichoassustar e despencar lá de cima, num único pulo; o tiro, nemsequer passara por perto, mas o salvara. O coração disparado,num galope só; o cão choramingando, num desespero só! Tinhaainda os olhos arregalados, o coração sôfrego, no momento emque o crepúsculo matutino descortinava o horizonte. Naqueleinstante tomou consciência de que não podia mais permanecerali, sob o risco iminente da morte. Já fora descoberto pelabruaca... Assim, decidiu partir. Ou iria embora, ou virariasustento de onça (ele e o cão!). O futuro, incerto. O caminho devolta, desconhecido. Talvez o cão soubesse. Talvez... Pensou nosonho, a visão da torre da cidade, o cão querendo descer serraabaixo, momentos antes de a bruaca atacar! Precisava acreditarna memória e no instinto do cão. Só o tempo de preparar umcesto de taquara para arrastar dali algumas pepitas de ouro edeixaria aquele esconderijo, aquele paraíso, que, na verdade,nunca fora seu. A comida, de certo, arranjaria pelos caminhos,se a onça não os comesse antes. Quanto ao crime? Já se passarao tempo do flagrante; contava com a pouca memória do povo.(O povo age sob o impulso da emoção.) Isto se conseguissevoltar à mesma cidade, ao mesmo lugar de origem. Hipóteseremota. Precisava, no entanto, correr dali o quanto antes! Para

38  A lenda do homem douradoo caso do crime, tinha o alforje abarrotado de pepitas. Fossepara a cadeia, não ficaria preso mais que algumas horas. A lei,o reluzir do ouro, o álibi perfeito, o perdão (dos homens!) Acidade inteira, aos seus pés... Decidido, recolheu um pouco daquela preciosidade; atéo cão, sem muito entender, colaborava levando algumas pepitasatreladas ao lombo. O pêlo do animal ainda reluzia a ouro doúltimo banho no lago. Na despedida, também mergulhara lá oseu orgulho, pedindo as bênçãos daquele paraíso para a novajornada. Sabe-se lá para onde estava indo. Os cabelos e barbasinteiramente dourados. Pronto, não anoiteceu por ali; não erabobo de ficar à espera de nova investida. O cão na dianteira,preso no laço do cipó, no farejo do caminho, como quemsabia aonde ia. Deus seja louvado! Já que o soberano o guiaraaté aquelas bandas, de certeza o tiraria de lá (acreditou!). Seainda não pagara todos os pecados, não se negaria a pagá-losnoutra instância; não ali, onde encontrara o paraíso natural,mas nunca a própria alma; onde encontrara riqueza, masnão o amor de Maria Rita. (A seu favor, o declive da serra, oriacho que ia em direção às planícies!) Talvez, o cão soubesseo caminho. Talvez... Contra si: os molambos dos trajes, ofrio, a pele sarnenta, os pés chagásicos, o peso (do pecado edas pepitas), a incerteza do amanhã, as adversidades da selvacerrada... Um pouco arrastava o cesto, um pouco o alforje, umpouco descansava. A única pressa, o perigo na retaguarda: abruaca da onça! O cão, no farejo do caminho; ele, o dedo firmeno gatilho, a imensidão da selva, a munição pouca, o cansaçode tudo aquilo... Várias noites pernoitaram (ele e o cão) na forquilha deárvores, atados a troncos de forma a não despencarem lá decima, se dormissem; o que não era conveniente – os felinosnunca dormiam! O incômodo maior, içar o companheiropara junto do esconderijo; o animal nunca concordava com as

Jairo Ferreira Machado  39precauções. Mas, precisava – a onça nos seus calcanhares. (ODeus furioso punindo-o pelos pecados!). Muitas vezes acordavade dedo enrijecido, tanto que firmava o gatilho. Tão logo o diaclareava, partiam novamente; eventualmente se alimentavamde alguma caça, fruta, folha, rizoma – coisas comestíveis.Mais comumente passavam a água mesmo. Os pés doíam; assapatilhas artesanalmente construídas de cascas de madeirae embira duravam pouco, estraçalhadas pelos pedregulhos,pelos espinhos, tocos e raízes. Caminhava devagar, tateando ochão antes de pisar, atento aos imprevistos da selva. Confiavano faro do cão, mas acreditava também na própria intuição nahora de escolher o caminho mais certo; errasse, e nunca maissairiam daquela selva. Não contavam com a habitual referênciado sol e das estrelas; há muito não os via, encarcerado naquelecalabouço natural – a copa das árvores cobrindo-os. Seguiamais o instinto do cão e sinais que na ida casualmente deixarapara trás, embora nunca imaginasse que um dia voltasse por ali– fora, sem pensar na hipótese da volta. Um corte na madeira,um galho quebrado no abrir do caminho, uma pedra ondedescansara, o sentido dos riachos, tudo dava a idéia remota deque seguiam o rumo certo; nunca a certeza de aonde chegaria?Oh! Maria Rita! O peso do fardo não doía tanto quanto amágoa que carregava no peito. As chagas dos pés, os arranhões,o sofrimento físico, o desgaste emocional, nada se comparavaao sofrimento espiritual. Mas era da própria devoção quetirava o vigor que ainda lhe animava a alma, a necessidadede sobreviver, de superar as dores, as dificuldades, a fome e ocansaço. Consigo, a única certeza: a deixar para trás as pepitas,era melhor que sucumbisse por ali mesmo! (Não confiava najustiça dos homens!). Quanto mais os homens da Lei exigindosua caveira! Imagine, tirar Maria Rita lá da zona, casar comela, e ainda matar um deles? Quanta petulância! Petulânciauma ova! Pior fora o sujeitinho entrar na sua casa e deitar com

40  A lenda do homem douradoMaria Rita no seu colchão novinho! Por isso, não importavaem arrastar o peso daquele fardo! O ouro era a sua liberdade;quiçá o amor de Maria Rita. Amor!... Não. Era querer demais...Era sonho de adolescente! Conformar-se-ia com a beleza física,a sensualidade, a libido, o calor de Maria Rita. Deitado ali, como num estado de sublimação, no limiar do cansaço, entregou-se à selva de corpo e alma... Depois de dias e noites de sofrimento, sem poder dormirdireito e só eventualmente comer, já perdera a esperança deencontrar a luz do sol, de se livrar daquela umidade, a selvaescura e fria, a iminência da morte, animais ameaçadores,espinhos, plantas nocivas, perigos os mais diversos, osferimentos inflamados, o cão descorçoado... Tudo o que maisdesejava era dormir e não acordar mais; ou, acordando, queaquele sofrimento não passasse de um simples pesadelo –estaria no calor de Maria Rita, de onde nunca deveria ter saído.Melhor mesmo seria não tê-la conhecido! Maldito aquele diaem que voltara lá na zona com as alianças, e a “moça”, sorridente,aceitara. Oh! Maria Rita! (Lá no fundo da alma, odiando-a).Não fosse aquela maldita ninfomania, os desejos ardentes,ainda estariam juntos, na simplicidade daquela cidadezinha deinterior; talvez até já tivessem filhos, os pequenos chamando-ode pai, Maria Rita freqüentando a igreja, desfilando pela cidade(com ares de madame!) e nada daquilo estivesse acontecendo;mas, acontecia! O sofrimento era real. O esgotamento físico,a desesperança tomando seus pensamentos; assim, tombousobre um tapete de folhas secas (já nem mais se preocupandoem não virar comida de onça!), o olhar no infinito das copasdas árvores, procurando a luz do sol; nem sequer o direito de

Jairo Ferreira Machado  41ver o céu antes de partir, antes de se entregar a Deus – se éque Deus o queria, depois de se tornar um assassino... Talvezo soberano o quisesse mais vivo que morto, para impor-lhe asprovações que ainda tinha de passar. Não se julgava quite comDeus, nem com a lei dos homens. (A lei dos homens, poderiacomprá-la: ali, o cesto abarrotado de pepitas!). Quanto à leide Deus... O que importava? Já se sentia mesmo no inferno!Maria Rita ali se deslumbrando linda e formosa à sua frente.Uma perdição de mulher, uma tentação! Casara-se com elae a sina fizera com que quebrasse o quarto mandamento daLei de Moisés, mandando aquele sem-vergonha para o fogodo inferno. Já tinha conversado com Deus sobre isso (numdos seus sonhos), mas não ficara bem certo das intenções doMestre. Ainda tinha a esperança do perdão. Deitado ali, comonum estado de sublimação, no limiar da fadiga, entregou-se àselva de corpo e alma... Mais uma vez, sonhou! Diante de seus olhos umaborboleta lilás, num vôo místico; a borboleta reconduzindo-oa um lugar distante dali. Uma chuva de estrelas cintilando o seucaminho. Flutuava. As asas levitando os seus restos mortais,como se um anjo o levasse para o infinito. Era Maria Rita; osbraços dela entrelaçando o seu corpo, o seu pescoço, igualcomo ele a carregara no colo quando chegara em casa, no diado casamento – ninguém por ali para lhes atirar grãos de arrozou lhes desejar felicidade. (Aquela união não fora abençoada;não entendia por quê!) Só ele, capiau, burro, acreditara!Acordou, sem saber o quanto havia dormido, a sensação deque desacordara e que por instantes fora levado para longe dali.O cão ao lado, lascivo, como morto; mas não estava – ressonavaa crueldade da fome. Algo de extraordinário reativara suasenergias, enquanto dormia – teve certeza disso. Sabe-se lá seforam as bênçãos de Deus ou a libido de Maria Rita... Umavez refeitas as energias, pôde levantar-se; o cão também se

42  A lenda do homem douradoergueu, cambaleando. A dimensão inteira da selva pela frente;só não sabia quando ou se algum dia chegaria a algum lugar.Continuou... Um pouco arrastava o cesto de pepitas, outropouco o alforje, outras vezes se arrastava, indo nos calcanharesdo cão; o coitado, também brigando com sua manquez... Corria um fio d’água em frente aos seus olhos quandoparou para descansar, algumas horas depois. A água lhe sorria.Sentou-se ali e matou a sede, o cão já saciado. (Na lembrança,os moinhos que fazia quando menino; a força da bica d’águamovendo a moenda, fazendo-a girar; ele lá perto, olhando!).A realidade era outra! Já homem, encontrara a mulher dossonhos (a primeira de sua vida), casara, fora traído por ela,matara o traidor, fugira, encontrara um lugar paradisíacono meio daquela selva e estava ali, de volta, em frente àquelefio d’água, sem o seu moinho, sem Maria Rita. No cesto, aspepitas de ouro e o cão manco (o seu bezerro de ouro!). Casoo cão viesse a falecer e ele não, haveria de imortalizá-lo numaestátua áurea bem em frente à porta da igreja, a igreja dopároco que o casara com Maria Rita – o cão, o único assistente,testemunhando lá da porta! Aquele mesmo cão que lhe salvaraa vida até aquele momento, em várias situações, e que o estavalevando de volta para casa, se é que um dia chegaria à cidade eesta se dignasse a acolhê-lo. (De certa forma, tudo não passavade um sonho!). A exaustão lhe embotando o raciocínio; nãofazia idéia de onde se encontrava. A selva, o infinito estrelado,a vegetação diversificada, feito as estrelas, os olhos perdidosna infinidade da constelação; ali, a escuridão e a umidade. Àmedida que ia recobrando os sentidos, a memória ia lhe dandoum alento – aquele fio d’água não era um riozinho qualquer!Havia algo de peculiar naquele lugar. Encabulou-se! Não eraaquilo conseqüência do sonho. Incrível! Era o lugar ondebebera pela primeira vez, no dia em que se metera aquela selvaadentro, depois de horas de fuga; a certeza disso: o frondoso

Jairo Ferreira Machado  43carvalho a sua frente, em cuja casca havia entalhado uma cruzinvocando perdão a Deus pelo pecado que acabara de cometer –o assassinato! Situando-se melhor, mentalizou a extensão dali àcidade e concluiu: estava próximo, bem próximo de casa. Podiachegar lá. E chorou! Abraçou o cão e chorou o quanto pôde...O cão, o seu guia, o seu salvador, o seu Deus, compadecido dedele, trouxera-o de volta dos confins daquele mundo, emboranão se sentisse merecedor. Tinha-se ainda como um pecador.Ainda assim, Deus estava ao seu lado, sempre estivera – sabiadisso! Nada teria a temer depois da emoção daquele momento;não estava sozinho. Mais um dia ou dois, arrastando-se daquelamaneira, os pés talhados de feridas, já em vias de colapsoorgânico, desnutrido, o fardo pesado e o cão mal podendocaminhar... Sim, mais um dia ou dois e chegariam ao pontoonde (no sonho) seus olhos visualizaram lá embaixo o luzeiroda cidade; a torre iluminada; o cão querendo acabar de chegar...O sonho estava por realizar-se, de fato. Bastaria que chegasseali à noite; de dia, veria primeiro a torre da igreja, onde casaracom Maria Rita; chorava como uma criança. Era um dosmomentos mais sublimes de sua vida. (Tomara que aquilo nãofosse mais um dos seus sonhos!). Outro momento especial foraquando esposara Maria Rita lá na igreja e depois o espectroreluzente das pepitas de ouro nos seus olhos, lá no santuário deonde havia saído sem nenhuma esperança de chegar ali. Já no limite da resistência, a vasilha d’água na mão, tombou feito um tronco de árvore lá no chão... No entardecer do dia seguinte, já via a torre da igreja.No final de uma rua qualquer, de um bairro afastado, azona, na penúria de um casebre de pecados. Lá dentro, com

44  A lenda do homem douradocerteza, Maria Rita “dando”. No alforje, a pepita de ouro, amaior delas; a primeira que recolhera do riacho. As outras ea espingarda já escondera por ali num ponto estratégico, deforma que ninguém as encontrasse; cuidou que o cão não visse,mantendo-o longe, amarrado a um tronco – o animal já deraprovas da excelente memória e do magnífico faro. Era melhorque não conhecesse o esconderijo! Talvez voltasse ali algum diapara resgatá-las se seus planos dessem certo – era um dos seustrunfos. Lá embaixo, a torre da igreja. Já fora dos perigos daselva, retirou a focinheira do cão, desatou o laço, deixando-olivre, mas sequer o companheiro lhe saía de perto – carne e almasua! Tão capengante quanto seu cão, apoiava-se num cajadoquando adentrou a cidade naquele mesmo dia, já no findardo crepúsculo, momento em que o povo mais se aglomeravanas ruas. As barbas e cabelos compridos, os pés sangrando, ostrapos mal lhe cobrindo as partes íntimas, os olhos encovados...Até o mais cruel do ser humano se apiedaria! Encurvado sobreo cajado, o cérebro mal coordenando as pernas, o raciocínioembotado, ele caminhava em direção ao centro da cidade. Opovo, alarmado... Crianças corriam de medo, enfurnando-senas casas; outras observavam de longe, as madames vinham àsjanelas, algumas para fechá-las, outras para alardear, como umbando de pássaros agourentos – Um andarilho! É o Cristo! Ele,o olhar fixo no fim da rua, mal podendo enxergar a silhuetada igreja (aonde pretendia chegar). Atento ao assombro dopovo o cão também caminhava trocando as pernas e rosnandoquando alguém se aproximava. O alforje arrastando rua afora.Não tinha forças para carregá-lo. À sua frente apenas vultos;as vistas anuviadas, como se estivesse ainda lá na selva, naescuridão da noite, trombando em árvores, pedras, caindo emdespenhadeiros. Alguém se apiedou e aproximou-se com umavasilha d’água (oferecida de longe), a pessoa mais pretendendomatar a própria curiosidade do que dar ajuda; aceitou, mais

Jairo Ferreira Machado  45pelo desejo de se comunicar do que de beber... No limiar daresistência, a vasilha d’água na mão, tombou feito um troncode árvore lá no chão... Acordou no hospital horas depois, no estremecer da febre.As roupas já trocadas, as feridas dos pés e das mãos cuidadas, osoro correndo na veia e um bando de curiosos na sua cabeceira.A cidade inteira, nas imediações do hospital. Quanta hipocrisia!A polícia, no cordão de isolamento; os jornalistas tentandoagendar a primeira entrevista; o delegado preparando umadas selas da prisão; o prefeito tirando vantagens políticas docaso; o pároco avaliando a conveniência de uma missa campal– O homem era um enviado de Deus! A cidade num reboliçodos infernos. As donas-de-casa, eufóricas, deixando o feijãoqueimar, o assunto das novelas da TV posto de lado, as escolasdiscutindo o episódio nas salas de aula – tema de redação,ponto de vista, o escambau! O único fotógrafo da cidade, jánas ruas, vendendo pilhas de fotografias – aquele estado demiserabilidade atraía as pessoas, cada um arquitetando osdetalhes a seu bel-prazer – Olha quanta semelhança, gente! Opróprio Cristo crucificado! – Cristo uma ova! – dizia outro. É ocoisa-ruim! Põe os chifres e verá! Alguém já enfeitava a cabeçado coitado (em alusão aos chifres que levara!). A cidade jamaisesquecera o episódio – o garanhão lá estrebuchado na cama,o retrato do tal estampado na primeira página do jornal. Ahistória da fuga. A “moral” de Maria Rita à prova, as madamesno levante de expulsá-la daquela zona; os homens, nem detudo concordando... O recinto cheirava a remédio. Olhava desconfiado, aindasem saber direito onde estava. Na mesinha de cabeceira, o alforjevazio; a pepita, já guardada! Alguém se adiantou a confortá-lo. O gerente do banco, por precaução e com a aquiescênciada polícia, havia recolhido a pepita ao cofre-forte da agência,a gentalha toda querendo ver o vil metal, os olhos do povo

46  A lenda do homem douradochispando de ambição; a polícia mantendo-os à distância. Quissaber do cão. Foi informado de que o fiel havia sido levadopelo veterinário; tinha sido submetido a uma cirurgia paraextrair os espinhos encravados numa das patas e passava bem.Tranqüilizou-se. Ele, no conforto dos lençóis limpos, fora dosriscos daquela selva. Nem tanto (pensou), olhando toda aquelagentalha num rumor dos infernos. Já ouvira conversa de que odelegado fazia planos de trancafiá-lo assim que saísse dali. Aseu favor, os advogados. Uma penca deles – os cartões sobre amesinha de cabeceira, acompanhado do bilhete – Cidadão, osenhor matou em defesa da honra. Seu amigo, à disposição...Uns corvos! Oh! Maria Rita! Os olhos arregalados, aquelemontão de gente à sua frente; infelizmente, não ali o semblantede Maria Rita! A vontade de perguntar dela, mas tinha receioda resposta que poderia vir... Voltou a dormir; ou mais que isso, desmaiou – era maisprudente! Acordara somente para certificar-se de que aindaestava vivo. Num instante dormia; no outro, sonhava. À suafrente, não apenas uma onça; dezenas delas: onça-pintada,onça-preta, jaguatirica, hienas, os bichos encurralando-o, elesem munição, o cão na sua defesa, lutando bravamente; a únicasaída, o reflexo da luz áurea nos olhos daqueles ambiciosos,cegando-os! Sonhava, acordava; e, sem forças para sequer abriros olhos, voltava a dormir. Uma falação danada ao redor; osfelinos por ali, esperando a chance do bote. Oh! Maria Rita!Quem dera a “moça” o tirando das garras daquela gente. Ascarícias dela, aqueles lábios de mel, aquele fulgor de orgia (eleali, no tremor da febre), a cama estremecendo quase inteira.O lago dourado, o calor do sol, a umidade de suas vestesreluzindo o ouro, o brilho prateado da lua nos seus olhos; todoaquele paraíso, nada mais que o fogo da infeção queimando-opor dentro! Olhava lá de cima da laje o arrebol do dia,recordando quando lá chegara, o medo, as angústias, a euforia

Jairo Ferreira Machado  47de quando encontrara as pepitas, a noite em que por pouco nãofora comido pela onça e, logo depois, a necessidade de partiro quanto antes... Fazia já vinte e quatro horas que estava ali,no aconchego do hospital, na maciez daquela cama, quandoacordou, recomposto da infecção e com fome; logo pediu oque comer. Mais engoliu que comeu o seu primeiro prato decomida dois meses e alguns dias depois que se metera selvaadentro. Os olhos, a boca, o estômago degustavam o sabor darefeição, tanto quanto a sua alma sublimava. Oh! Maria Rita!Quis sair da cama. Sentiu que podia! Levantou-se, amparadopor meia dúzia de mãos e braços e foi até a janela, ver o sol,ver enfim, o dia... Estava vivo (e não era um dos seus sonhos!).Lá na rua centenas de mãos abanando... O povo aos seus pés.(Quisesse, seria prefeito da cidade e Maria Rita, a primeiradama; o padre casando-os novamente: a igreja cheia; o cão,sestroso, ao pé do altar!). Quanta hipocrisia!... O povo age sobo efeito da emoção; nada, nada racional... O prefeito quis ser o primeiro a cumprimentá-lo (opolítico não era bobo de perder aquela oportunidade, o povotodo por ali). Tinha lógica! De homicida a refugiado retornarados cafundós da selva como herói! O político astuto, ali, a suafrente; de certo, mal intencionado, fazendo planos. Podia captar-lhe o raciocínio: aqui um ótimo candidato para a dobradinhada próxima eleição: esse matuto como prefeito; e eu, vice! Aeleição estava no papo... Já se via com o poder na mão. Alémdo mais, o capiau voltara rico. Sabe-se lá onde encontrara todaaquela fortuna. Mas, logo, logo descobriria. Era uma questãode tempo. Sorria altaneiro o dito sem-vergonha; o mesmoque tivera um caso com Maria Rita lhe vinha naquela hora delero-lero, dando-lhe boas vindas e tal... – Não se preocupe; sedepender de mim, não haverá cadeia. Se o delegado insistir, serátransferido de imediato. Conte comigo. As despesas do hospitalficam por conta da prefeitura. Além do que, a morte do finado

48  A lenda do homem douradofoi merecida; sujeitinho sem-vergonha, desrespeitando o lardos outros. Falava sem parar, o cara de pau! (Ali, uma onça,das piores!). Descuidasse e nem seu cão trigueiro o salvaria dasgarras daquele gatuno – conhecido ladrão do povo! Certa vez,quando ainda possuía o rancho, o político fora pedir voto enunca mais voltara lá. Ouvira na cara – “Não voto em ladrão!”Agora, estava ali, a cara mais lavada, cheio das “boas intenções”.Tivesse ali o seu trigueiro, o cão rosnaria de imediato, diante doperigo em potencial, como costumava fazer o fiel companheirolá nos confins daquela selva ao perceber uma ameaça. O cãopodia de longe farejar o mal! Aquele sujeito ali, na sua frente,não valia uma unha sequer do seu Príncipe das Trevas. (Aquelaonça pintada, das piores!...). Os dias passando... Visitas, as mais inusitadas... Diaseguinte veio o primeiro advogado. Cheio de conversa, deterno e gravata, prometendo mundos e fundos (jararacadas piores!). Descuidasse e logo tomaria uma picada! Quefalta estava fazendo o seu cão trigueiro! – Assine aqui estaprocuração, me confiando sua defesa; e não se preocupe commais nada... Esqueça a cadeia. Aproveitando o ensejo, tambémposso orientá-lo quanto aos bens. O gerente do banco nãoé flor que se cheire (Precisava dizer?...). A pepita, a mina, sefor o caso, a gente registra... Também posso adiantar algumdinheiro. Você sabe, haverá as despesas do hospital. O diretorjá está contabilizando os custos. Cuidado, o doutor tem famade careiro (Precisava dizer também?). Falou, falou, aquelesujeito mal-intencionado, e depois se foi, sem nada assinado.(Não era bobo de meter o jamegão no papel dele!) Mais tardeveio o barbeiro. O indivíduo todo paramentado, tesoura afiada,navalha nova, um corte de pano branquinho, passado e dobradocom esmero (o guarda-pó); viera preparado para o corte docabelo e da barba. O mais incrível... havia sido mandado pelavizinha (uma balzaquiana que recusara Maria Rita, “aquela


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