RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 99 Importante consignar que esta lei é até mesmo anterior à Convenção da ONU (que data de 2006), que foi regulamentada na Itália apenas com o advento da Lei 18/2009. Todavia, embora anterior, a Lei 6/2004 está em perfeita consonância com os princí- pios fundantes do tratado internacional e com o modelo social de deficiência. Embora tenha incorporado ao direito deste país o instituto da tomada de decisão apoiada e modificado, ainda que pontualmente, o regime da capacidade civil em outros aspectos, é necessário assi- nalar que a figura da interdição judicial não foi revogada (ao menos, passou a ser facultativa e não mais obrigatória, como outrora), permanecendo em vigor como medida aguda de intervenção na autonomia da pessoa com transtorno mental ou intelectual e que, por ser pautada na nomeação de alguém que representará o inca- paz, mantém-se apegada ao modelo de substituição na tomada de decisões. Por meio da administração de apoio, preserva-se a capaci- dade civil da pessoa que, por problemas transitórios, apresenta uma maior vulnerabilidade, ao tempo em que, forte no reconhecimento da dignidade, preserva sua autonomia sem comprometer a segurança nas decisões que envolvem os interesses existenciais e patrimoniais (TESÓN, 2012, p. 34-35). No Brasil, a mudança na sistemática da capacidade legal ocor- reu apenas mais tarde em comparação com a Itália, mas, ao que nos parece, com maior profundidade. A Lei nº 13.146/2015 (denominada de Lei Brasileira de Inclusão) foi editada para regulamentar a Convenção da ONU no Brasil e, por esse motivo, reproduz fielmente a sistemática contida no tratado internacional. Além de seu caráter regulamentador, tem como mérito consolidar em um único diploma normativo boa parte da legislação sobre deficiência no país.
100 | Glauber Salomão Leite De forma expressa, a referida lei, a exemplo do que prevê a Convenção, estabelece a presunção geral de capacidade civil plena em relação a todas as pessoas com deficiência, conforme previsto no artigo 6º, caput, e no artigo 84. Além disso, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da tomada de decisão apoiada, com clara inspiração na Lei 6/2004, do direito italiano. Curiosamente, eliminou o instituto da interdição judicial, embora tenha mantido, ainda que em caráter excepcional, a figura da curatela, que é medida limitadora da capacidade civil baseada na substituição da vontade. A tomada de decisão apoiada figura como medida prioritá- ria caso haja a necessidade de intervir na capacidade de pessoa com alguma limitação funcional, passando a curatela a ser medida excep- cional, devendo ser utilizada apenas em último caso. Nesse ponto, os ordenamentos brasileiro e italiano estão em consonância, vez que a opção por processo baseado na substitui- ção da vontade só deve ser considerada quando a tomada de decisão apoiada não for viável. Todavia, no Brasil a tomada de decisão apoiada tem caráter mais abrangente, valendo para todos os casos em que houver disfun- ções mentais ou intelectuais, de caráter permanente ou temporário, ao passo que, na Itália, esse processo está restrito às pessoas com problemas temporários. Por fim, é importante salientar que a manutenção de instituto baseado no processo de substituição de tomada de decisão, como se deu na legislação do Brasil e da Itália, a despeito dos consideráveis avanços mencionados anteriormente (mediante a implementação do instituto da tomada de decisão apoiada), não fere a tábua axiológica da Convenção da ONU, por duas razões: a) pelo fato da presun- ção de capacidade legal, estabelecida no tratado internacional, ter
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 101 caráter relativo e, portanto, admitir ser excepcionado; b) essa medida de substituição da vontade é excepcional, devendo ser adotada tão somente quando as demais não forem adequadas para a promoção dos interesses da pessoa com deficiência. Com a sedimentação do instituto da decisão apoiada, Brasil e Itália dão concretude à sistemática da Convenção da ONU e colo- cam em primeiro plano a promoção dos interesses da pessoa com deficiência, sua inclusão social e emancipação. REFERÊNCIAS ÁGUILA, Luis Miguel del. La autonomía de las personas con discapacidad como principio rector. SALMÓN, Elizabeth; BREGAGLIO, Renata (editoras). Nueve conceptos claves para entender la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Lima-Peru: Pontificia Universidad Católica del Perú, 2015. DINIZ, Débora; SQUINCA, Flávia; MEDEIROS, Marcelo. Deficiência, cuidado e justiça distributiva. Série Anis: Brasília, maio, 2007. FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. A proteção jurídica da pessoa com deficiência como uma questão de direitos humanos. In FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão (coords). Direito à diversi- dade. São Paulo: Atlas, 2015. LAZARTE, Renata Bregaglio. Alcances del mandato de no discriminación en la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. SALMÓN, Elizabeth; BREGAGLIO, Renata (editoras). Nueve conceptos claves para entender la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Lima-Peru: Pontificia Universidad Católica del Perú, 2015.
102 | Glauber Salomão Leite OLIVER, Mike. Una sociología de la discapacidad o una sociología discapaci- tada? In: BARTON, L. (coord.). Discapacidad y sociedad. Madri: Ediciones Morata, 1998. PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad: orígenes, carac- terización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Madri: Ediciones Cinca, 2008. PALACIOS, Agustina; BARIFFI, Francisco. La discapacidad como una cuestíon de derechos humanos – Una aproximación a la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Madrid- Espanha: Ediciones Cinca, 2007. TESÓN, Inmaculada Vivas. Más allá de la capacidade de entender y querer – Un análisis de la figura italiana de la administración de apoyo y una propuesta de reforma del sistema tuitivo español. Olivenza-Espanha: FUTUEX, 2012.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 103 SISTEMA PENAL BIFURCADO: AS JUSTIFICATIVAS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO Gustavo Barbosa de Mesquita Batista INTRODUÇÃO No último século, a dogmática jurídico-penal empreendeu um grande esforço no sentido da estruturação e organização de suas categorias fundamentais: conduta, tipicidade, antijuridicidade, culpa- bilidade e teoria da pena. Construímos um modelo dogmático penal com bases operacionais bastante claras, possuindo elementos bem definidos e aptos ao funcionamento limitativo do poder de punir exigido num Estado de Direito. Contudo, aparentemente, tudo isto não foi o suficiente para fins de transcendermos modelos político- -criminais autoritários e práticas punitivas irracionais, bem como excessivamente seletivas ou desiguais. Pensando a estrutura penal liberal como um rompimento histó- rico com os modelos punitivos do antigo regime, especialmente, em virtude do critério da igualdade de tratamento com relação as suas proposições, o que observamos é que a diferenciação punitiva e o enquadramento preferencial de alguns autores em modelos de
104 | Gustavo Barbosa de Mesquita Batista reação social de cunho autoritário persistem. Pretendemos, com o presente estudo, apresentar os elementos normativos e político- -criminais que continuam justificando formas de imputação de responsabilidade penal e imposição de sanções penais diferencia- dos, em especial, o modelo do Direito Penal do Inimigo. SISTEMA DUPLO DE REAÇÃO PENAL E CULPABILIDADE POR CONDUÇÃO DE VIDA: AS JUSTIFICATIVAS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO O finalismo nos traz uma percepção bastante clara do dolo por sua composição intelectual (representação mental antecipada da conduta) e volitiva (querer realizar o que foi representado). Em toda a sua extensão o dolo é um elemento finalista da ação (WELZEL, 1956: p.73). Certamente, em princípio, a ação final não pode ser clas- sificada como um mero desejo, mas merece ser reproduzida por movimentos reais que exteriorizem a intenção do autor. Todavia, o dolo no finalismo perdeu sua natureza híbrida, psíquica e normativa, assumindo uma característica preponderantemente psicológica. A análise de eticidade da conduta é reposicionada para a estrutura da culpabilidade, enquanto possibilidade de conhecimento da ilicitude (BITENCOURT, 2012: p. 449-450). É exatamente a discussão operacional da categoria analítica do crime denominada “culpabili- dade” que enseja vários questionamentos nesta construção penal do inimigo. Algumas teorias acerca da estrutura da culpabilidade e da exigibilidade de conduta vêm representando riscos para as perspec- tivas garantidoras e limitativas da dogmática penal. O elemento de acessibilidade normativa na culpabilidade (ROXIN, 1999: p. 308-311) proporcionou diversas leituras acerca da condução de vida das pessoas, bem como acerca de justificativas preventivas de repressão penal.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 105 A partir de Welzel, dentro do sistema finalista, a culpabilidade ganhou contornos essencialmente normativos. (1956: p. 150-152). Este conceito representou um importante avanço na concepção de reprovabilidade penal individual, oportunizando, teoricamente, mais um elemento dogmático limitativo e de resistência às iniciativas autoritárias de política criminal. A culpabilidade tornou-se, especial- mente sobre o aspecto de exigibilidade da conduta de acordo com o direito, um elemento de avaliação social e humana do delito, esta- belecendo certo equilíbrio com relação às suas outras dimensões de sua estrutura normativa: capacidade de entendimento e possibilidade de cognição no caso concreto (elementos da acessibilidade norma- tiva). Todavia, em virtude da manutenção de um modelo dualista de resposta penal, onde as reações fundam-se na culpabilidade para os delinquentes ocasionais e na periculosidade, para os incapazes e delinquentes habituais, os pressupostos da culpabilidade tornaram-se insuficientes para limitar estratégias político-criminais autoritárias (MUÑOZ CONDE, 2005a: p. 26-27). Welzel mantém a estrutura dual proposta por Liszt, no Programa de Marburgo, descrevendo de forma justificada tanto a agravação da pena no tocante aos crimino- sos contumazes (reincidentes), bem como incluindo a possibilidade de medida de segurança para aqueles habituais (1956: p. 252-255 e 262). Neste sentido, nada mudou a partir do finalismo com relação à proposta original de um sistema dual de imputação. No modelo dual originalmente sugerido por Liszt, caberia, inclusive, pena com caráter indeterminado para os delinquentes incorrigíveis (1995: p. 85). Portanto, os limites à política criminal, ofertados pela dogmá- tica penal não alcançariam, por exemplo, delinquentes habituais e contumazes. Liszt também deixou claro, em seu Programa, a necessidade de se estabelecer o controle preventivo de determina- das categorias sociais, sujeitas à cadeia de casos de enfermidade social que podemos designar sinteticamente com a denominação geral de proletariado
106 | Gustavo Barbosa de Mesquita Batista (Liszt, 1995: p. 84). Dentro destas categorias ele insere os mendi- gos, vagabundos, alcoólicos, prostitutas e todas as categorias possíveis de degenerados espirituais e corporais (Liszt, 1995: p. 84). Este espec- tro de grupos sociais e indivíduos formam o conjunto daquilo que se convencionou denominar, dentro do modelo liberal-conserva- dor por “classes perigosas” (PERROT, 2006). Neste espectro de indivíduos, a motivação da vontade estaria fragilizada (debilitada), tornando-os propensos às práticas criminais. Sobre a dimensão moral anterior da culpabilidade e os problemas da livre formação da vontade Welzel sugere a análise de três dimensões: antropológica, caracteriológica e categoremática (1956: p. 153). Discorda, pontualmente de Liszt, no aspecto antropológico, quando afirma que não podemos estabelecer uma relação evolutiva e contínua para a passagem de um modelo instintivo de ação a um modelo de ação baseado na inteligência humana. Contrariamente, o que existe é uma degeneração dos comportamentos instintivos e inatos substituídos por formas racionais de ação que promovem uma ampla liberdade de utilização dos modelos instintivos, somada a perspectiva da intencionalidade ou “motivação missionária” que dota as ações de significado (WELZEL, 1956: p. 154-155). Todavia, posteriormente, na dimensão categoremática, tecendo uma crítica à teoria causal da ação (centrada no resultado), sugere que a análise finalista permite estabelecer o vínculo de sentido, missão e intencio- nalidade, para a conduta, o que devolve a importância dos modelos de associação social e vínculos estabelecidos anteriormente ao compor- tamento desviante (WELZEL, 1956: p. 159). Por um lado, este conceito de culpabilidade desenvolvido no finalismo é bastante evoluído e limita o alcance de fundamentos auto- ritários para a reprovação penal. Todavia, ao vincular o conceito à ideia de culpabilidade moral (WELZEL, 1956: p. 187) mantém aberta a possibilidade de uma análise por condução de vida e as justificativas
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 107 operacionais para um modelo duplo de reação social ao delito, diferenciando apenas o conceito de culpabilidade daquele de pericu- losidade como fundamentos para a imposição das medidas sugeridas pelo Direito Penal. Desta forma, a associação social que antecede ao fato acaba sendo objeto de análise no momento da reprovação ou inibição dos sujeitos desviantes. No fim, ainda que tentássemos fundar a pena sobre o parâmetro da retribuição, encontraríamos dentro dos aspectos normativos estipulados nos códigos penais, em especial, a agravação de pena dos criminosos reincidentes, difi- culdades para justificar a ideia de justiça proporcional, limitando a reprovação a análise da formação da vontade para a realização do fato. Assim sendo: (...) desde el punto de vista que sostiene la pena como retri- bución, la agravación de la sanción del delincuente habitual sólo puede justificar-se acentuando a adquisición culpable de la habitualidade en toda uma vita ante acta, que origina un debi- litamento en la fuerza del voluntad (LISZT, 1995: p. 77) No funcionalismo de Roxin, a culpabilidade é observada como fundamento da pena e como medida dela (1999: p. 807-812). A imputabilidade e a acessibilidade normativa do autor de um crime permitem sua responsabilidade pela conduta praticada, embora a medida ou imposição da pena se vincule às necessidades preventi- vas e não, propriamente, aquele primeiro viés cognitivo e pessoal da culpabilidade (ROXIN, 1999: p. 814-815). Separando a culpa- bilidade para a fundamentação da pena daquela que serve para a medição da pena, o que pretende Roxin é reduzir o rigorismo penal, abrindo espaço para que, mesmo sendo observadas as condições de responsabilidade por meio da acessibilidade normativa cognitiva (fundamento para a pena), não necessariamente a pena possa ser
108 | Gustavo Barbosa de Mesquita Batista aplicada em alguns casos, tendo em vista que a culpabilidade é uma condição necessária, porém não suficiente para determinar a necessidade de aplicação de uma pena (ROXIN, 1999: p. 815). A posição de Roxin também rechaça a ideia de culpabilidade por condução de vida, uma vez que vê nela uma afronta ao Estado de Direito. Afinal, a culpabilidade deve ser analisada sempre em relação ao fato típico executado pelo autor, jamais por sua decisão de vida passada que o tornou naquilo que ele é hoje (ROXIN, 1999: p. 817). Para Jakobs a culpabilidade se torna um instrumento de adequação da pena, buscando a confirmação e estabilização da norma (BITENCOURT, 2012: p. 460). Na perspectiva de Jakobs, certamente, nem todos os que, conhecendo as normas estabelecidas pelo Estado, resolvam descumpri-las, irão fracassar em seu intento (JAKOBS, 2003: p. 30-31). Há diversos pontos débeis no sistema normativo, mas ele precisa ser confirmado, sobre qualquer planeja- mento individual que o infrinja, em virtude da sua correspondência a um projeto coletivo de configuração social, ou seja, é mais seguro agir de acordo com o que foi estabelecido nesta configuração cole- tiva de que sobre um plano individual de ação (JAKOBS, 2003: p. 32). A pena possui, nestes casos, uma função de confirmar e preser- var uma determinada configuração social, manifestando a adesão definitiva a um projeto ético, justificando a punição de abusos prati- cados, no passado, pelos nazistas ou pelas autoridades comunistas do antigo regime socialista da Alemanha Oriental, embora, difi- cilmente, exista motivação para que estas situações de violações se repitam no atual contexto social (JAKOBS, 2003: p. 32). Desta forma, extraímos que a pena pode ser reclamada não apenas em virtude da necessidade de confirmação de vigência da norma, mas servindo também para a manifestação cabal dos valo- res socialmente compartilhados. A culpabilidade é vista como um elemento de correção do defeito volitivo apresentado pelo autor
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 109 do crime que o impede de motivar sua conduta de acordo com a norma (JAKOBS, 2003: p. 33). O problema é que assim observada, num ordenamento que nada pudesse valer (ordenamento ilegítimo), a culpabilidade persistiria em virtude de uma análise meramente formal, porque a imputação analisaria tudo tão somente como um defeito volitivo do autor. O mero reconhecimento da condição de pessoa do autor de um fato típico cria uma noção apenas formal para a culpabilidade, mas, além disto, faz-se necessário que lhes sejam dadas as condições no sentido de motivar sua conduta de acordo com a norma. Contrapondo-se a esta perspectiva formal de culpa- bilidade, o autor funcionalista descreveu um conceito de culpabilidade material na seguinte perspectiva: Bem é certo que esse tratamento de pessoa não é suficiente para materializar a culpabilidade, já que a personalidade, por sua vez, é só uma das formas em que a vida jurídica se desenvolve, e o mero fato de utilizar essa forma não garante que se trate de um conteúdo geral, não determinado pelo parti- cular. Falando em termos exemplificativos: se todos os bens vitais estão concentrados nas mãos de poucas pessoas, pode ser que o ordenamento jurídico garantisse aso demais o direito de propriedade sobre sua própria pessoa e o direito de adquirir a propriedade de bens, mas, como todos os meios de subsistência de fato se encontram em mãos alheias, aqueles que não têm nada mais que seu próprio corpo dificilmente poderão aceitar este ordenamento como ordem geral (...) Resumindo: culpa- bilidade material pressupõe normas legítimas (JAKOBS, 2003: p. 43) A exigibilidade de ordens ilegítimas ou que nada valem, cria um sistema meramente formal e injusto de culpabilidade. A
110 | Gustavo Barbosa de Mesquita Batista legitimidade é alcançada quando é dada a pessoa do delinquente a oportunidade de motivação de acordo com a norma, de exercício da cidadania e de contradição à acusação formulada. Num modelo meramente formal, pode-se punir inclusive “escravos”, mas a culpabilidade no sentido material exige a dimensão do exercício da cidadania, a compreensão do sujeito de direito (e obrigações) e da relação entre pessoas iguais (JAKOBS, 2003: p. 34-35). Cremos que a noção de culpabilidade material apresentada por Jakobs é funcional e adequada aos modelos político-criminais vinculados à ideia de Estado democrático de direito. A proble- mática da teoria funcional desenvolvida por Jakobs encontra-se na manutenção do sistema de dupla imputação (culpabilidade e periculosidade) e na admissibilidade de ampliação do alcance do denominado direito penal do inimigo centrado no critério de pericu- losidade. A teoria sistêmica de Jakobs propõe o próprio direito e a configuração normativa e social por ele projetado como bem jurí- dico (JAKOBS, 2003: p. 138), estabelecendo graus de análise para a motivação da conduta de acordo com a norma e diferenciando o tratamento político e jurídico ofertado no âmbito do direito penal do cidadão e naquele do inimigo (JAKOBS, 2003: p. 142). De certa forma, no momento de análise dos estímulos motivacionais da fide- lidade normativa do autor de uma conduta típica, encontrou-se outra maneira de explicação da tradicional versão da culpabilidade por condução de vida, justificando-se modelos punitivos mais seve- ros e com características fortemente preventivas para determinados indivíduos (JAKOBS, 2007: p. 9-10).
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 111 AS CONSEQUÊNCIAS DO DUPLO MODELO DE IMPUTAÇÃO: OS FUNDAMENTOS DA PENA Na visão sistêmica de Jakobs, não basta que o direito vincule as pessoas entre si por força de suas normas, mas que, de fato, a confi- guração social projetada por ele se realize (2007: p. 9). Por outro lado, numa situação em que o direito apresenta uma configuração social de forma legítima e determinados autores insistem em despre- zar ou desrespeitar suas instituições, degenerando a própria condição de pessoa com a qual se vinculam, originalmente, ao ordenamento jurídico, o conceito formal de pessoa torna-se um mero postulado, porque por opção ele se posiciona como um indivíduo perigoso e inimigo do ordenamento (JAKOBS, 2007: p. 9 -10). Diante destas circunstâncias, já que existe uma determina- ção persistente por parte deste indivíduo inimigo de se comportar de acordo com o ordenamento jurídico, não é político-criminal- mente recomendável o tratamento destes autores de crime dentro do modelo do direito penal do cidadão, fundado na culpabilidade. Afinal, nestes casos, a pena não é uma contradição, mas uma segu- rança, que busca proteger o ordenamento jurídico, na perspectiva adotada por Jakobs, enquanto bem jurídico (2007: p. 21-24). A ideia de segurança como fórmula de reação social aos indivíduos consi- derados inimigos (criminosos habituais; membros de organizações criminosas e terroristas, reincidentes rebeldes etc...), substitui a noção de pena, própria do direito penal do cidadão. Nestas situa- ções, o autor funcionalista propõe o seguinte: O direito penal do cidadão é o direito de todos, o direito penal do inimigo é daqueles que o constituem como inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar a guerra. Esta coação pode ficar limitada, em um duplo sentido. Em primeiro lugar,
112 | Gustavo Barbosa de Mesquita Batista o Estado, não necessariamente, excluirá o inimigo de todos os direitos. Neste sentido, o sujeito submetido à custódia de segu- rança fica incólume em seu papel de proprietário de coisas. E, em segundo lugar, o Estado não tem por que fazer tudo o que lhe é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para não fechar a porta a um posterior acordo de paz (JAKOBS, 2007: p. 30). O direito penal do inimigo aponta para uma flexibilização das garantias comuns, em especial, no momento processual (JAKOBS, 2007: p. 39), assegurando uma paridade de forças entre os agentes de confirmação do direito (policiais e promotores) e os indivíduos que constroem uma pauta de conduta fora da configuração social projetada por um ordenamento jurídico legítimo: daí a concepção de terceira velocidade do direito penal (SÁNCHEZ, 2003). A ótica da defesa social entra novamente em pauta levando em considera- ção ataques terroristas e/ou controles territoriais ou institucionais promovidos por organizações criminosas que contrariam, fron- talmente, a configuração social projetada pela ordem jurídica. O objetivo político-criminal desta postura defensiva é a estipulação de medidas de segurança para os indivíduos perigosos, considerando que não se trata, propriamente, de imposição de pena como contra- dição ao ato, mas de medida assecuratória e preventiva que busca, sobretudo, a incapacitação do autor (SÁNCHEZ, 2011: 75-72). Os autores de crime, nestes casos, utilizando sua inteligência e auto- nomia, se colocam, de forma consciente e permanente, contrários às pautas normativas estipuladas por um ordenamento jurídico e constroem uma pauta própria de ação. Logo, a pena não funciona dentro dos seus pressupostos clássicos, como contradição ao fato, porque se torna necessário, sobretudo, defender a configuração social
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 113 projetada pelo direito contra a destruição pelas práticas desenvolvi- das por indivíduos perigosos. Assim: (...) a personalidade, como construção exclusivamente norma- tiva, é irreal. Só será real quando as expectativas que se dirigem a uma pessoa também se realizam no essencial. Certamente, uma pessoa também pode ser construída contrafaticamente como pessoa; porém, precisamente, não de modo permanente ou sequer preponderante. Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas (JAKOBS, 2007: p. 42). É indiscutível que determinadas configurações de prática criminal representam uma grave injustiça contra as vítimas e esta- belecem uma desigualdade por si. Todavia, não achamos justificável a interpretação favorável à despersonalização dos criminosos dentro de sua consideração como inimigos. Ainda que, Jakobs sugira uma limitação do seu alcance, reconhecendo o risco da decomposi- ção de cidadãos a inimigos (2007: p. 42-44), esta concepção abre a oportunidade para a legitimação de práticas autoritárias e poten- cialmente violadoras dos direitos humanos. No próximo tópico, buscaremos apresentar as principais críticas ao modelo de direito penal do inimigo. CRÍTICAS À CONCEPÇÃO DE DIREITO PENAL DO INIMIGO Sánchez coloca que a concepção Direito Penal do Inimigo, transforma os sujeitos a quem se dirigem as normas deste modelo em opositores políticos, quando, na realidade, eles são criminosos.
114 | Gustavo Barbosa de Mesquita Batista Trata-se de uma proposta político-criminal que se fundamenta num modelo de “direito de guerra”, posicionando os adversários numa situação de igualdade com relação ao Estado, quando, na reali- dade, a condição de criminoso impõe uma relação de subordinação ao ordenamento jurídico estatal e não uma posição simétrica e de igual consideração da pauta de conduta estabelecida pelo violador (SÁNCHEZ, 2011: p. 77). A proposição estabelecida por Jakobs é contraditória, em especial, quando assume a possibilidade de articulação e funcio- namento de um modelo de Direito Penal do Inimigo, mas ao mesmo tempo se pronuncia favorável à possibilidade de responsa- bilização dos criminosos de lesa-humanidade no âmbito do Direito Internacional Penal por intermédio deste modelo (JAKOBS, 2007: p. 45-48). Neste sentido: Jakobs incorre numa contradição ao não se opor, por um lado, à punição dos agentes de crimes de lesa-humanidade e, por outro, ao apoiar o duplo direito, porque esta última posição, na realidade, é sustentada pelos defensores da impunidade, que remetem a velhos argumentos do sempre coerente Schmitt. Este condenava qualquer tentativa no sentido de uma inci- piente cidadania universal, porque no seu conceito particular do político isso significaria uma renúncia à indicação do inimigo e, por fim, uma renúncia à soberania – à política - , indica- dora da debilidade do povo (ZAFFARONI, 2007: p. 180) Contém, ainda, o risco de que o Estado de Direito ceda ao Estado de Polícia, em virtude desta análise dicotômica do Direito Penal. É importante percebermos que a construção de um modelo penal liberal, fortemente influenciado pela ideia de Estado de Direito, retrata uma construção histórica recente e somente possível por
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 115 uma articulação que não fez desaparecer por completo os elemen- tos do Estado de Polícia, apenas limitou-os, conforme o fenômeno que alguns autores denominaram por “encapsulamento do Estado de Polícia” dentro do Estado de Direito (ZAFFARONI, 2007: p. 169-175). Depois, como tática de contenção, na prática é impos- sível limitar a definição de inimigo por parte dos agentes estatais, o que criaria uma fissura propícia ao completo rompimento das barreiras limitativas ao direito penal impostas pelo Estado de Direito (ZAFFARONI, 2007: p. 161-165). A substituição, mesmo que parcial, do direito penal da culpa- bilidade, por sistemas fundados na periculosidade, são um elemento de desconstrução política e jurídica das garantias historicamente conquistadas (MUÑOZ CONDE, 2005b: p. 52-54). O que pretende Jakobs com o seu funcionalismo é desarticular o papel da “culpabilidade como elemento limitador da punição” a fim de assegurar o fim preventivo do direito penal (MUÑOZ CONDE, 2005b: p. 50). CONSIDERAÇÕES FINAIS O pensamento de Jakobs é marcado por contradições. Nele, encontramos a elaboração de um conceito de culpabilidade adequado a um modelo liberal e democrático de Estado de Direito. Também é possível extrair um conceito de legitimidade da ordem jurídica que impõe uma reflexão acerca dos juízos sobre as ações motivadas de acordo com a norma e a iniquidade da punição estipulada numa ordem ilegítima. Há elementos de proteção das vítimas e confirma- ção dos valores depositados nos Direitos Humanos extremamente importantes e muito bem definidos por parte do autor. Todavia, o problema é que ao manter viva a concepção de um “direito penal do inimigo”, ele estabelece um modelo instrumental que rompe com
116 | Gustavo Barbosa de Mesquita Batista todas as suas iniciativas em favor da legitimidade do ordenamento jurídico e dos direitos humanos. As justificativas de operacionaliza- ção dicotômica do Direito Penal promovem uma série de abusos e acentuam a sua seletividade, bem como a conservação de modelos de diferenciação punitiva dentro de um sistema liberal de direito penal. Por outro lado, compreendemos que mesmo discordando desta posição, na prática, ela é observada em virtude da conserva- ção do poder e dos interesses do Estado de Polícia “encapsulado” pelo Estado de Direito. Analisando sobre este aspecto, o pensa- mento de Jakobs nos oferece um importante modelo descritivo de um fenômeno de controle social que não temos como negar a sua existência: o direito penal do inimigo. A mera discordância não o faz deixar de existir, mesmo se de forma oculta e sobre bases menos sistematizadas, uma vez que o modelo que nos é apresentado por Jakobs é retratado apenas como um tipo ideal a partir do qual pode- mos extrair diversas formas normativas e variantes sistêmicas. REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. JAKOBS, Günther. Fundamentos do Direito Penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. LIZT, Franz von. La idea del fin en el Derecho Penal: programa de la Universidad de Marburgo, 1882. Trad. Carlos Pérez del Valle. Granada: Editorial Comares, 1995.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 117 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu tempo: estudos sobre o Direito Penal no nacional-socia- lismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005a. MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e Controle Social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005b. PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 4ª ed. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Paz e Terra, 2006. ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general Tomo I. Trad. Diego- Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Editorial Civitas, 1997 (1999). SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A Expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Aproximação ao Direito Penal Contemporâneo. Trad. Roberto Barbosa Alves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. WELZEL, Hans. Derecho Penal: parte general. Trad. Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque DEPALMA Editor, 1956. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
CULTURA E OUTRAS ARTES Hipólito de Sousa Lucena Maria Cezilene Araújo de Morais Neste trabalho apresentamos uma discussão conceitual que nos permita levar ao entendimento sobre Cultura, analisado numa perspectiva metodológica descritiva, capaz de produzir uma compreensão de tal tema como decorrência de uma Sociedade contemporânea, que busca definir os espaços de reterritorializações da cultura, sendo eles entendidos, por exemplo, pela emergência dos espaços culturais macro-regionais, relacionando-os a amplia- ção dos fluxos migratórios e de circulação, hibridização de estilos de vida e de formas culturais. Tal compreensão faz-se necessária, para que nos possibilite chegar a uma visão sobre o mercado global de bens e de serviços simbólico-culturais. Nesta perspectiva conceitual, observamos que os processos migratórios aliados a uma nova ordem de conflitos regio- nais, não só está posta no centro dos debates nacionais por todas as partes do mundo, mas é também objeto de ríspidas negociações, como tão bem ilustram os embates nos organismos internacionais. Desta feita, há de se ponderar que mesmo em situações de exceção, a luta pelo reconhecimento da diversidade cultural ainda passeia por campos minados onde o direito à cultura parece ser um dos trilhos que conduzirá a locomotiva da história.
120 | Hipólito de Sousa Lucena; Maria Cezilene Araújo de Morais EM BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO O termo cultura se projetou nos últimos anos, saindo do plano conceitual e realçando-se na pauta dos processos sociais, dos deba- tes particulares e nas preocupações do poder público. Encontrar uma definição que contemple a conceituação e abrangência sobre a significação do termo cultura, nos parece uma tarefa árdua e complexa, em função da riqueza de interpretações e de deslum- bramento sobre o tema. Na atualidade, um número cada vez maior de áreas de conhe- cimento tem dedicado atenção para estudar e conceituar o termo cultura, já que o mesmo expressa uma variedade muito grande de fenômenos humanos, referindo-se a um amplo e diversificado conjunto de interesses. Classicamente, ciências como a sociologia e a antropologia, eram as áreas de conhecimento que se dedicavam à problemática e ao estudo da cultura. Hoje, diversas outras áreas têm avançado nestes estudos, por exemplo, a ciência política, a comunicação social, a história, a geografia, a crítica literária até, chegarmos nos dias atuais a áreas como a economia, o direito e a gestão. Começamos a nossa investigação com Raymond Williams, que em seu livro Palavras-chave (2007), considera a palavra culture como uma das duas ou três mais complicadas da língua inglesa, devido ao seu complexo percurso etimológico. O escritor inglês Terry Eagleton em “A ideia de cultura” (2005) também apresenta entendimento semelhante de complexidade na definição concei- tual para a palavra cultura, o autor, refere-se da mesma forma que Williams, estabelecendo a mesma condição de complexidade da palavra no idioma inglês, o que, por similaridade, pode ser esten- dido a outros idiomas, inclusive ao nosso português.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 121 Para compreendermos a dimensão do quantitativo dos concei- tos aplicados à palavra cultura, o professor da UFRB - Universidade Federal Rural da Bahia, Paulo Miguez, cita que em 1952, dois antro- pólogos, Alfred Kroeber e Clyde Kluckhorn, chegaram a inventariar cinquenta definições de cultura e, que vinte anos depois o francês Abraham Moles, teórico da informação, vai engrossar esta lista, acrescentando mais cem novas definições ao levantamento pioneiro realizado pelos dois antropólogos. De acordo com Miguez (2007), esta grande variedade de áreas de estudos concentrados sobre cultura, faz com que tenhamos uma abundância de significados atribuídos à palavra cultura, e, por conseguinte, também, a reconhecida escassez de consensos quanto ao que ela significa. Miguez (2007) lembra ainda o professor Muniz Sodré para quem, quando o assunto é cultura, “a multiplicidade das definições acompanha a diversidade dos interesses institucionais ou disciplinares” (SODRÉ, 1988, p.43). O antropólogo Clifford Geertz (1989), clama no artigo “Por uma teoria interpretativa da cultura” uma redução do conceito de cultura para uma dimensão mais justa. O autor lembra que em todas as disciplinas existem alguns conceitos que parece ter uma força explicativa tão grande que acabam por serem usados para expli- car absolutamente tudo. O conceito se torna tão amplo que leva o mesmo a um sentido esvaziado, e como consequência, acaba inclu- sive fazendo com que ele perca parte de sua real utilidade. Segundo o autor, isto aconteceu e acontece com o conceito de cultura. É mister perceber que a palavra cultura está presente em todos os momentos do nosso dia-a-dia e com vários significados.
122 | Hipólito de Sousa Lucena; Maria Cezilene Araújo de Morais ETIMOLOGIA DA PALAVRA CULTURA Etimologicamente a palavra cultura deriva do verbo latino colo que é igual a cultivar a terra, que juntando a cultum forma a pala- vra cultura que no início era relativo ao cultivo da terra – a técnica, como nos aponta Alfredo Bosi em “Dialética da colonização” (1992), sua transformação começa a partir da sabedoria acumulada no trato do ambiente natural e a experiência secular de pastores e agriculto- res acabou conferindo ao termo cultura, o sentido de conhecimento intelectual, aplicado à ação transformadora do mundo. Por outro lado, podemos dizer que é a convicção do saber acumulado pela existên- cia do trabalho que produz uma libertação de condicionamentos. Para o marxista britânico Raymond Williams (2007), em sua obra “Palavras-chave”, cultura combinava vários sentidos: cultivar, habitar, cultuar, cuidar, tratar bem, prosperar. Do sentido de habitar derivou o termo colonus, dando, portanto, origens comuns às ideias de colonização, culto e cultura. Ainda segundo Williams (2007), é só a partir do Renascimento que irá se consolidar a analogia entre o cultivo natural e um desenvolvimento humano. Entretanto, a partir do século XVIII, o termo Cultura irá se desenvolver no interior do Iluminismo francês articulando-se, ora positiva ora negativamente, com o termo Civilização. Este, deri- vando-se do latim cives e civitas, e, referia-se ao civil como homem educado, polido e também somo sinônimo de ordem social. Para Rosseau, Civilização seria o início e o término da barbárie e, Cultura seria como a bondade natural, interioridade espiritual, sentimento e imaginação, vida comunitária espontânea. Então, enquanto Civilização designava convenção e instituições sócio- -políticas, Cultura se referia à religião natural, às artes nascidas dos afetos, à família e à personalidade ou subjetividade como expressões imediatas e naturais do espírito humano não-pervertido.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 123 Segundo Laraia (2001), Cultura e Civilização exprimem o mesmo processo de aperfeiçoamento moral e racional. Para Voltaire e Kant, cultura seria “o desenvolvimento das Luzes na sociedade e na história”. Também é possível compreender que “Cultura torna-se medida de uma Civilização, meio para avaliar seu grau de desen- volvimento e progresso”. (Chauí, 1986). A primeira definição de cultura que foi formulada do ponto de vista antropológico pertence a Edward Tylor, no primeiro pará- grafo de seu livro Primitive Culture (1871). Para Tylor, Kultur (do termo germânico Kultus) significa todos os aspectos espirituais de uma comunidade. Ele descreve também a expressão Civilization do francês, que para ele significa as realizações materiais de um povo. O autor também descreve o termo Culture, do inglês, que em seu amplo sentido etnográfico, refere-se ao complexo que inclui conhe- cimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábito adquirido pelo homem como membro de uma sociedade. Tylor procurou, além disto, demonstrar que cultura pode ser objeto de um estudo sistemático, pois se trata de um fenômeno natural que possui causas e regularidades, permitindo um estudo objetivo e uma análise, capazes de proporcionar a formulação de leis sobre o processo cultural e a evolução. Para Eagleton (2005), o conceito de cultura deriva, inicial- mente do de natureza, segundo o autor passou-se muito tempo para que “cultura” viesse a significar uma entidade. Este autor nos leva a perceber a gradação de significados da palavra cultura. Ele propõe uma descodificação do termo que acompanha o êxodo rural para as cidades. A ideia sobre o significado da palavra cultura foi inicial- mente ligada com o campo, porém num processo evolutivo, em uma atividade, passa a fazer parte de uma ligação com o espírito; faz parte de uma população que não se relaciona diretamente com as atividades da terra, mas antes, daqueles que têm tempo para se
124 | Hipólito de Sousa Lucena; Maria Cezilene Araújo de Morais instruir; como se refere o autor na mesma obra, a “agricultura não permite tempo livre para a cultura”. Na esteira deste pensamento Williams (2007), descreve que “o processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e esté- tico foi aplicado e, na prática, transferido para as obras e práticas que o representam e sustentam”. Em outras palavras, firma-se ali o sentido de “cultura” como um bem que alguns possuem e outros não. Esse sentido permanece conosco, quando dizemos que alguém é “culto” ou “tem cultura”. É uma acepção excludente da pala- vra, que com frequência ganha contornos, inclusive, aristocráticos. Segundo o ensaísta Idelber Avelar (2011), é nesse sentido que estudiosos como Thomas More, Francis Bacon ou Thomas Hobbes, nos séculos XVI ou XVII, falam de “cultura da mente” ou “cultura do entendimento”. É uma metáfora derivada da analogia com o sentido material, agrícola do termo. A naturalização dessa metá- fora fez com que se cristalizasse o sentido de cultivo humano, e nos séculos XVIII e XIX o termo “cultura” começa a aparecer como autossuficiente, dissociado do objeto desse cultivo. Até o século XVIII, tratava-se sempre da cultura de alguma coisa, fossem plan- tações, animais ou mentes. Podemos verificar a partir dos estudos destes teóricos, que a questão da origem do conceito de cultura vai transitar pela passa- gem do estado de natureza para o estado de cultura e, que essa origem advém na observação do comportamento social e bioló- gico do homem. TEORIAS DA CULTURA A cultura é o que nos distingue da natureza, embora faça- mos parte dela. O geógrafo Milton Santos (2008) define a natureza como o conjunto de todas as coisas existentes, ou como a realidade
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 125 em sua totalidade que se encontra em estado de movimento perma- nente. A cultura constitui, dessa maneira, a natureza específica do ser humano, que está sempre causando surpresas. A passagem da condição de natureza para a de cultura na história da humanidade, ocorreu quando o homem deixou de ser habilis para ser sapiens e precisou construir maneiras de adaptar-se ao meio ambiente. De acordo com Laraia (2001), alguns dos princípios do processo extra-somático adquirido pelo homem, o diferenciou de todos os outros animais, dando-lhe um lugar privilegiado em nosso planeta, e que fora denominado de cultura. O autor caracteriza como mais significativos neste processo no estado de evolução do homem os seguintes princípios: Cérebro modificado; Visão tridi- mensional; Utilização das mãos (habilidade manual); Bipedismo (posição ereta); Desenvolvimento da inteligência humana; Cérebro mais volumoso e complexo. O antropólogo Alfred Kroeber, que formulou a teoria do Ponto Crítico, propõe uma ampliação do conceito de cultura, no artigo “o superorgânico”, rompe os laços entre o cultural e o bioló- gico, postulando a supremacia da cultura em detrimento da biologia. O homem é diferente dos demais animais por dois motivos: 1º) A possibilidade da comunicação oral. 2º) A capacidade de fabrica- ção de instrumentos capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico. Este autor demonstra que graças à cultura a humanidade distanciou-se do mundo animal. Mais do que isto, o homem passou a ser considerado um ser que está acima de suas limitações orgâni- cas, ele conclui que o homem é o único ser possuidor de cultura. Em consonância com o que fora exposto acima, concorda- mos com Laraia (2001) quando afirma que o homem ao adquirir cultura perdeu a propriedade animal, geneticamente determinada, de repetir os atos de seus antepassados, sem a necessidade de copiá- -los ou de se submeter a um processo de aprendizado. O homem é o
126 | Hipólito de Sousa Lucena; Maria Cezilene Araújo de Morais resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecede- ram. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Discutiremos isto mais à frente. Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, o que funda a sociedade é a Regra, entendida pelo caráter coercitivo das leis e das instituições, ele afirma que a cultura surgiu quando o homem convencionou a primeira regra, o que para ele seria a “Regra das regras”, e a primeira norma de conduta, que é a proibição do casa- mento e do sexo entre parentes próximos, o tabu do incesto. Segundo Lèvi-Strauss (1993), somos ao mesmo tempo seres da natureza e da cultura, mas o tabu do incesto é o passo pelo qual adentramos na cultura, é o processo em que a natureza ultrapassa a si mesmo. O americano Leslie White afirma que a passagem do estado animal para o humano ocorreu quando o cérebro do ser humano foi capaz de gerar símbolos. Para ele toda cultura depende de símbolos, pois estes se configuram como unidade básica do comportamento humano. O autor também faz uma distinção entre a natureza do homem e a dos animais, pois estas se diferenciam, ele afirma ainda que, estudar o homem vai além das suas condições físicas, precisa-se compreender também as condições históricas, porque a nossa histó- ria é a história que construímos livremente a partir de símbolos que chamamos de valores culturais. Vamos encontrar no pensamento de Geertz (1989: p.15), em consonância com Max Weber, “que o homem é um animal amar- rado a teias de significados que ele mesmo teceu”. O autor concebe a cultura como uma “teia de significados” que o homem tece ao seu redor e que o amarra. Busca-se apreender a sua densidade simbólica.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 127 o homem é um animal que consegue fabricar ferramentas, falar e criar símbolos. Só o homem ri; só ele sabe que um dia morrerá; só ele tem aversão a copular com a mãe ou a irmã; só ele conse- gue imaginar outros mundos onde habitar. Considera-se que o homem possui, não só inteligência, como também consciência; não só necessidades, como também valores; não só passado, como também história. Só ele – concluindo – possui cultura (GEERTZ, 1989: p.15). Para a Antropologia a distinção entre as maneiras de viver das coletividades, determina, por exemplo, que existem várias manifes- tações culturais distintas, que de imediato nos leva a entender que não existe uma cultura e sim muitas! Que se diferenciam de lugar para lugar, de época para época de povo para povo, constituindo uma das maiores preocupações de nossa sociedade que é entender a complexidade das relações entre os diversos grupos humanos na face da terra. As diferenças entre as culturas são relativas e, são reflexo das desigualdades existentes entre as sociedades humanas, fruto das relações de poder que hierarquizam, econômica e politicamente, os povos e nações. A diversidade cultural per si é um espelho que reflete as idiossincrasias culturais dos grupos sociais e das regiões pertencentes a cada sociedade. Como consequência, estas divisões existentes numa sociedade se refletem no plano cultural, confi- gurando no que se convencionou chamar de diversidade cultural. O desenvolvimento do conhecimento humano está intrinse- camente ligado à sua característica de viver em grupo, o que faz do homem um ser eminentemente social, ou seja, o homem é fruto dos resultados das trocas baseadas nas interações sociais por ele vivencia- das e compartilhadas. Por conseguinte, as informações agem como vírus, elas aparecem, se especializam e desaparecem, modificando-se
128 | Hipólito de Sousa Lucena; Maria Cezilene Araújo de Morais a partir de um processo contínuo de interações baseadas nas trocas, que fundamentalmente formam a base cultural de um povo. É preciso pensar tudo no mundo como informações que se transportam continuamente de um organismo a outro, modifican- do-o, ao mesmo tempo em que se modificam, por conta do caráter adaptativo das trocas que efetuam. Da troca surge o novo. As cultu- ras se desenvolvem assim. A questão que deve ser observada está nos modelos mais comuns, que estabelecem a troca de um modo desigual, por imposi- ção. A cultura europeia, por exemplo, foi transposta para o continente americano pela força de uma ocupação que destruiu culturas e matou milhões de indígenas. Estados nacionais definiram objetivos que nem sempre foram ao encontro dos seus povos. Estas são situa- ções que ilustram esta problemática. A diversidade cultural de uma sociedade leva a uma situação em que realidades culturais minori- tárias ou que surgem devido ao isolamento geográfico são tratadas como culturas “estranhas”. Temos assistido ao longo dos anos, o privilégio arbitrário da cultura euro-ocidental (branca, masculina, cristã, capitalista, cientificista, predatória, racionalista), de visão etnocêntrica e que promove intolerâncias e violências, e que vem silenciando outras culturas e tratando-as como inferiores. Este modelo, embora que hegemônico, vem sendo questionado pelo relativismo cultural de Franz Boas e a sua antropologia cultural desde as primeiras déca- das do século 20 até os dias de hoje. Boas (2005) entende que cada cultura segue os próprios caminhos em função dos diferentes eventos que enfrenta. O autor entende o termo cultura como um substantivo passível de ser usado no plural, uma vez que as culturas humanas são múltiplas, diferen- tes, irredutíveis entre si e, acima de tudo não são hierarquizáveis,
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 129 para ele não há sentido em se falar de mais ou menos cultura, ou de culturas superiores ou inferiores a outras. Para o antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos, cada sociedade passa a ser considerada nela e para ela mesma, adquirindo o estatuto de uma totalidade autônoma. Esses princípios foram esta- belecidos como axiomáticos e aceitos pela comunidade científica internacional. Para o antropólogo Renato Ortiz (1994) a identidade de um grupo se afirma na diferença: o contraste entre o eu e o outro. Somos todos comunidade humana, quase sete bilhões. Porém, existem inúmeras peculiaridades que demarcam as identidades dos povos. A GUISA DE UMA CONCLUSÃO De fato e, como já apontado neste trabalho, encontrar uma definição para o termo cultura se mostra uma tarefa ainda mais complexa à medida que aprofundamos as leituras e confrontamos as teorias que explicam o fenômeno. Por razões de limitações, inclu- sive de espaço, nos acostamos ao recorte apresentado por Miguez (2007), quando descreve alguns pontos consensuais para os quais convergem os muitos olhares institucionais e disciplinares, a partir do que foi sistematizado por estudiosos como (ARANTES, 2004; LARAIA,1994; CUCHE, 2002; VIANNA, 2005), vejamos que: A cultura não se subordina a determinismos de ordem biológica, isto é, não resulta de capacidades e atributos herdados geneticamente; O entendimento de que a cultura não é condicionada por determinismos geográficos, uma vez que a cultura age seletivamente e não casualmente sobre o meio ambiente;
130 | Hipólito de Sousa Lucena; Maria Cezilene Araújo de Morais A compreensão, em consequência, de que a cultura é uma construção histórica – isto é, que decorre da história das relações (no mais das vezes desiguais) entre os grupos sociais; A percepção de que a cultura tem uma natureza dinâmica, mutável e plural; O entendimento de que a pluralidade e a diversidade de cultu- ras não se compadecem de lógicas hierarquizantes – segundo as quais existiriam culturas superiores e culturas inferiores; A percepção de que a cultura, enquanto conjunto dinâmico, mutável e plural, é aprendida e difundida socialmente – ou seja, culturas são carregadas de códigos e convenções socialmente trans- mitidos; e, enfim, A compreensão de que a cultura diz respeito a “mentefatos” e artefatos produzidos pelos homens. Estes pontos consensuais nos ajuda a direcionar para o que Cascão (2007), fazendo um recorte conceitual sobre cultura, afirma que a palavra cultura passeia entre um conjunto de significados que vai do ideal pedagógico ao transcendente religioso. Nesse sentido, reafirma o autor que Cultura supõe uma consciência grupal operosa, que desentranha da vida presente os planos de futuro. Neste sentido é possível afirmar que tudo que é humano é cultura (SESI/DN, 2007), e de fato, esta nos parece ser a definição total do termo, que por essência, como já visto, é objeto de estudo comum a várias ciências, e é nesta perspectiva que a usamos neste texto. Tais princípios, tornam-se um oásis efêmero diante do histó- rico e das dificuldades de se operacionalizar, em um país como o Brasil, por exemplo, uma política com víeis democrático e seus congêneres ideológico-conceituais onde a diversidade, em parti- cular, seja a alma do negócio da cultura. Lembrando que somente o entrechoque de ideias pode consig- nar uma pauta realmente receptiva às mudanças desejadas no plano
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 131 cultural, pois o caráter classista de nossa sociedade costuma atra- vancar as boas intenções, mesmo quando já são garantias de direito. Parece ser esta a longa trilha de um longo caminho, já percor- rido por países mais “dinamicamente” desenvolvidos que o Brasil: fazer da garantia de direitos uma cultura. Neste caso, o termo cultura tem o sentido de hábito. Uma vez que o repuxo das ações transculturais que bronzeiam, ou melhor, lubrificam as trocas cultu- rais mundo afora, exigem que a noção de nação, seja ela qual for, passeie nos vãos, corredores e salas da contemporaneidade onde o direito à cultura não mais se discute, pois faz parte de uma política do próprio estado! REFERÊNCIAS ALBAGLI, Sarita. Território e territorialidade. In: LAGES, Vinícius, BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização.São Paulo. Cia das Letras, 1992. 404 p. EAGLETON, T. A idéia de cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005 (Cap.1: pp. 9-50). LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. LÈVI-STRAUSS, Claude. “Natureza e Cultura” (pg.41 a 49), in : As Estruturas Elementares do Parentesco, Petropólis, Vozes, 1993. MIGUEZ, Paulo. Economia criativa: uma discussão preliminar. In: NUSSBAUMER.
132 | Hipólito de Sousa Lucena; Maria Cezilene Araújo de Morais Gisele Marchiori (Org.). Teorias e políticas da cultura: visões multidisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2007a. Coleção CULT, 1. p. 96-97. MINISTÉRIO DA CULTURA. Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares. Brasília, MINC, 2005. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Políticas culturais do Governo Lula / Gil: desafios e enfrentamentos. Salvador, 2007 (inédito). SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: Da crítica da Geografia a uma Geografia crítica – 6° Ed. São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 2008. Serviço Social da Indústria. Departamento Nacional. Glossário de Cultura / Rodolfo Cascão... [et. al.], Eustáquia Salvadora de Sousa e Cláudia Martins Ramalho (coords.) – / SESI. DN. Brasília: SESI/DN, 2007. WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1992. WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave – Um vocabulário de Cultura e Sociedade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. SACHS, Ignacy. Desenvolvimento e cultura. Desenvolvimento da cultura. Cultura do desenvolvimento. Organizações & Sociedade, v.12, n.33, p. 151-165, abr./jun. 2005. SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida; por um conceito de cultura no Brasil. 2.ed. Riode Janeiro: Francisco Alves, 1988. 214p. YÚDICE, George. A conveniência da cultura– usos da cultura na era global.
A SOCIEDADE MODERNA COMO SOCIEDADE DE RISCO Jonas Lemos La semantica della ragione se è rappresentata come semantica della società moderna. Ma di fronte alla modernità della società moderna, di fronte alla de-identificazione di questa società con la società che l´hanno preceduta, quella semantica ha saputo solo dichia- rare la modernità come un suo progetto fallito. Essa poteva fornire solo idee normative, e non potendo disve- lare il paradosso della sua razionalità, non potendo rinunziare alla rappresentazione del futuro come dover essere, si protegge dal presente dichiarando la società moderna come società del risco, come società a rischio. Raffaele De Giorgi Il Diritto nella Società del Rischio, in Temi di Filosofia del Diritto, Pensa Multidia, Lecce, 2006, pp. 69-81.
134 | Jonas Lemos INTRÓITO Para Luhmann e De Giorgi, sociedade compreende um tipo particular de sistema social autopoiético, cujo fechamento opera- tivo, é formado por uma rede recursiva e circular de operações e, por isso mesmo, entram no conceito de comunicação. Como consequência, inicial, dessa assertiva, passamos a compreender que fora da sociedade, não existem comunicação. Ou mais precisamente: somente a sociedade pode comunicar-se. Ao depois, partindo-se dessa premissa, assimilamos que ação da comunicativa, não deve raciocinada, refletida, com os pensamen- tos e os estados de consciência humana. E a razão é simples: entre homens e sociedade, ou seja, entre pensamento e comunicação, surge o que o pensamento Lhumanniano denomina de acopla- mento estrutural. Na Sociedade e na Teoria da Sociedade, sujeito e objeto aparece claramente como o único corpo de um sistema social que evolui e muda, através da própria diferenciação interna. Assim sendo, quando falamos de Sociedade Funcionalmente Diferenciada esta- mos falando, na verdade, em Sociedade Moderna. Importante, ressaltar, que a Sociedade Moderna é, nitida- mente, caracterizada pela forma da diferenciação, pela coexistência de múltiplos sistemas parciais. Nesse particular, cada sistema parcial possui uma função específica. Com uma função específica, cada sistema especializado surge, com autonomia, frente aos outros sistemas e, isso, termina por unir o sistema global da sociedade. A dinâmica é a seguinte: a diferenciação funcional, age atra- vés da identificação de um problema específico da sociedade. Esse problema interessará a um sistema parcial. Para resolver, esse sistema parcial, assumi uma função social específica. Conclusão: a autopoiese
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 135 de cada sistema, condiciona e é condicionada pela autopoiese dos outros sistemas, resultando que, na sociedade funcionalmente dife- rencia não há hierarquias. Nesse quadro hierárquico de prioridades funcionais cada um realiza a sua função ao qual reconhece prioridade a respeito das outras. Por outro lado, na efetiva realização autopoiética de cada sistema, pode acontecer incompatibilidade funcional entre siste- mas que requerem tratamento e resolução. Mas os sistemas de função, tendo como sistemas autopoiéti- cos, são caracterizados pela organização recursiva do fechamento operativo, auto-reprodutivo. Essa organização da auto-referencia- lidade, característica de cada sistema se põe sobre um código que orienta as suas operações. É o denominado código binário. No direito ele se orienta mediante lícito/ilícito. Logo, podemos afirmar que o código é um critério binário para decidir o sentido particu- lar de uma operação, uma forma de dois valores, que um lado é o lado negativo do outro. Convém esclarecer que este código determina o sentido das operações típicas de cada sistema e permite a este a escolha entre todos os comportamentos possíveis, reduzindo os seus limites e reduzindo, por isso mesmo, complexibilidade. Além disso, cada subsistema tem uma especifica função e a função liga o subsistema ao sistema global sociedade. Ou seja, atra- vés daquela função, específica, aquele sistema tentará resolver e ocupar-se daquele âmbito da sociedade. Diante desse cenário, para Luhmann, não se pode definir o Moderno da sociedade moderna, sem antes, proceder com uma distinção entre estrutura social e semântica. Mas, na sociedade moderna, para compreender que é risco, deve-se necessariamente, que nessa sociedade, a incerteza do futuro, assume formas muito diferentes.
136 | Jonas Lemos CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE SOCIEDADE MODERNA A sociedade moderna, destaca Luhmann e De Giorgi, define a se mesma através de uma diferenciação com o passado. É dizer, ela não realiza nada que um qualquer sistema autopoiético não já faça. Logo, nesse particular, cada sistema, de fato, pode cons- truir a própria identidade somente retornando constantemente ao próprio passado e marcando a diferença entre auto referência e heteroreferência. Para Luhmann e De Giorgi, a construção do sistema ocorre não só com a identificação, mas também com a diferenciação. Diante disso, as teorias sociólogas, tentando dar uma explica- ção racional a modernidade da sociedade moderna, tem construído argumentos vazios e incapazes de descrever a sociedade moderna e a sua complexibilidade, na base da razão humana e dos valores universais. É que, como enfatiza Luhmann e De Giorgi, na sociedade moderna a diferenciação sinaliza a diferença entre o Moderno de hoje e o Moderno de ontem. Interesante notar que o estilo de vida da sociedade moderna, é sempre menos local e mais global e os efeitos dessa mudança inves- tem, seja na semântica que na estrutura da sociedade. Mas, nunca foi possível compreender as estrutura limitadas e limitantes da sociedade moderna. É que o instrumento que se tinha como útil para a compreensão e definição da sociedade, há três séculos, é a razão iluminista. Mas, a razão da sociedade impõe ordem e segurança. Para Luhmann e De Giorgi, os princípios da moder- nidade iniciam as bases na idéia da ordem: ordem da razão e ordem do mundo.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 137 Mas a evolução social e as formas da modernidade, prosse- guem até a chegar, como afirma De Giorgi, a uma semântica da auto regulação denominada de liberdade. Essa liberdade, individual, para Bauman, é a chave para enfrentar o assédio do medo. Libertando-se do paradoxo da racionalidade, o sentido de futuro na sociedade moderna, que se produz através comunicação, não contém caráteres imutáveis do ser, mas reenvia a continuas, infinitas, improváveis possibilidades. O sentido futuro da nova modernidade, por essa razão, é sempre aberto à contingência. Fenômeno de grande importância, a globalização, é responsável pela expansão e a velocidade alcançada pelos meios de comunicação rendem até agora possíveis a experiência da simultaneidade, de um mesmo fato, ocorrer em todas as regiões da Terra. Situação incon- trolável e caracterizado por infinitas e irreduzíveis indeterminações, como ensina De Giorgi. Mas há consequências. É que essa irredutibilidade do hori- zonte moderno, cria inquietude, também, incerteza e é por isso que se recorre a razão e busca-se construir hierarquias capazes de assegu- rar velhas formas de segurança. Com esse propósito, há promessas do reestabelecimento de paz, segurança, justiça, liberdade, através dos instrumentos racionais do controle. Mas as conquistas evolutivas que distinguem a modernidade da sociedade moderna, para Luhmann, através do desenvolvi- mento dos meios de comunicação e a diferenciação funcional, alcançaram dimensões tais que põe a modernidade em um plano de irreversibilidade. Contudo, como se vê, em Luhmann, a modernidade é ainda presente e alcançou um nível tal de irreversibilidade que agora só depende de si mesma. Como consequência desse processo de irreversibilidade nasce, uma necessidade semântica de recupera- ção. Explico: o que antes parecia como a história do mundo, agora
138 | Jonas Lemos parece como evolução da sociedade e, nessa forma da evolução, o mundo é o horizonte das possibilidades sempre abertas e atualiza- das. Conforme De Giorgi, para Luhmann, a sociedade do mundo, é o produzir-se, o acontecer, o verificar-se do mundo nas comunica- ções. Por isso, verifica-se constante evolução e continuo incremento das possibilidades de experiências. Diante disso, podemos assimilar que: 1) A respeito do presente, a contemporaneidade dos eventos rende o mundo inobservável, justifica a constituição das ordens altamente redutivas e motiva sua continua revisão; 2) A respeito do futuro, a contingência manifesta-se nas formas da abertura na qual tudo é possível e, então, na forma de um Horizonte do não saber. Para essa nova forma de futuro não valem mais as certezas do saber passado, cada evento que se produzirá, de fato, gerará novidade referido a primeira e novas possibilidades, incalculáveis, referidas posteriormente. Assim sendo, podemos dizer que a forma incerta do futuro com a qual, ao presente, o mundo, reflete-se na comunicação, rende necessário o desenvolvimento de estratégias de controle de contin- gência, técnicas da sua calculabilidade. No passado, por outro lado, quando a sociedade era fábrica de ordem e controle, essas estratégias eram ofertadas pelas estruturas normativas: o direito, a proprie- dade, a economia. Logo, a modernidade da sociedade moderna, gera improba- bilidade que desestabiliza qualquer ideia de ordem. E mais, na sociedade moderna, o vínculo do tempo se produz na forma do risco, como leciona Luhmann.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 139 A SOCIEDADE MODERNA COMO SOCIEDADE DE RISCO Convém, inicialmente, esclarecer, que o risco era um tema de pesquisas para poucas disciplinas especializadas: a economia; e a tecnologia. No pós-guerra, uma maior atenção ao tema do risco se desen- volve, seguido pelas preocupações com possíveis consequências de uma guerra nuclear e, posteriormente, nos temas relacionados com ecologia. Na ocasião, o risco representava, na realidade, uma ameaça. O risco era considerado como um obstáculo para se alcançar a segu- rança. Na ocasião, o risco é colocado, no dizer de De Giorgi, como um dado, dotado de uma sua objetividade e, como tal, possível de conhecimento. Na verdade, somente na metade dos anos oitenta, também, as ciências sociais começam a se interessar ao tema do risco. Notadamente, Mary Douglas e Urich Beck. Exatamente, nesse período, nesse período, determina-se a defi- nitiva perda de fidelidade nas certezas do passado e se abre o abismo da incerteza que, inicialmente assume o comando de uma impre- visibilidade ligada ao desenvolvimento econômico e tecnológico. Foi justamente a generalização dessa incerteza e, claro, das probabilidades negativas que podem surgir de decisões tomadas pelo homem, que foi possível falar de sociedade moderna, como sociedade de risco. Na sociedade moderna, tecnologias de segurança, políticas de segurança, segurança urbana, seguros e muitos outras situações, são apresentadas formas de tratamento do risco. Na verdade, se tratam de pseudos tratamentos. É que nas situações referidas, não é possí- vel a isenção garantir a isenção total dos riscos.
140 | Jonas Lemos Hoje, como dito acima, o termo risco tende ser utilizado quase exclusivamente para indicar ameaças, aventuras, perigos ou danos e, também, se utiliza para indicar resultados negativos, mas não desatrosos. Nos meios de comunicação, o termo risco foi definitivamente transformado, em uma palavra chave que foi substituindo outras, como perigo, ameaça e emergência, tipicas formas da evolução social precedentes à aquela moderna. Assim, o conceito de risco tem aumentado a sua relevân- cia, pois a dependência do futuro social é extritamente ligada aos processos decisionais e domina as ideias e os projetos sobre o futuro. RISCO E INCERTEZA: POR UMA SOCIEDADE DO RISCO O risco é ligado a uma decisão. Evidentemente, nem tudo que acontece no futuro é resultado de decisões. Alias, para Luhmann, somente podemos falar de risco quando a probabilidade de um dano é consequência direta de uma decisão. Logo, para assimilar o que é risco, é necessário se considerar que a incerteza do futuro, na sociedade moderna, assume formas muito diferentes. O risco, por esse motivo, comporta decisões, cujas possiveis consequências podem abrir a estrada da vantagem ou da desvanta- gem, dependendo da escolha realizada. É fundamental compreender que o conceito de segurança nada explica a respeito do risco e, também, como ele se desenvolve, razão pela qual, a alternativa aparentemente segura, de fato, implica uma dupla segurança, a saber:
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 141 1. Que ela não cause dano algum; 2. Que ela não deixe fugir as oportunidades que poderiam ser feitas,escolhendo a variante arriscada. Para De Giorgi, quando falamos da distinção, a outra parte do risco, denominamos de perigo. Com essa distinção, é gerada uma incerteza com os danos futuros, que assumem as seguintes possibilidades: 1. Risco da Decisão: O dano é visto como consequência da decisão; 2. Perigo: O dano pode ser atribuido aos fatores externos, ao ambiente. Com a distinção acima referida, conclui-se que na Teoria dos Sistemas, risco/segurança, é substituída por risco/perigo, que indica o que segue: 1. O perigo indica a possibilidade de um evento prejudicial que uma outra decisão não poderia evitar. Por essa razão, perigo exclui a possibilidade de escolha; 2. O risco, indica a possibilidade de um evento prejudicial que uma outra decisao poderia evitar. Por essa razão, risco é ligado a possi- bilidade de se fazer uma escolha. Mas risco, de acordo com De Giorgi, tem haver com não saber do futuro e possui vínculo com tempo. Por outro lado, na reconstruçao Luhmanniana do risco, isso possui relação com o non sabere. Isso, tambem, é outro sentido rela- cionado do saber e, quanto mais cresce o saber, tanto mais cresce o não saber. Ou ainda, quando mais se tem o conhecimento, tanto mais diminui o não saber das consequências daquele conhecimento.
142 | Jonas Lemos Por outras palavras, sabendo pode-se evitar um risco; contudo, não sabendo as consequências do nosso saber, podemos está caminhando ao encontro de outros riscos. Assim, o risco coloca-se ambiguamente entre saber e não-saber. Se não se sabe que pode acontecer um dano futuro em consequên- cia de uma decisão, não estamos diante de um risco. É dizer, o saber dessa diferença constitue uma parte da duplicidade do risco, enquanto a outra parte é constituida pelo não saber do futuro, que não se tornará presente em consequência da escolha. Entretanto, convém esclarecer que todo o saber do risco refere-se ao passado. Ou mais precisamente: ao risco do saber, na modernidade da sociedade moderna substitui-se o risco de não saber. O risco duplica a escolha e racionaliza a incerteza. De certa forma, podemos dizer que isso incomoda os pressupostos da racio- nalidade e obriga à uma nova e continua auto transformação dos sistemas sociais. A modo de conclusão: se com o risco indica-se o possível dano ligado a uma escolha e, com perigo, um eventual dano é desvincu- lado de qualquer escolha, então compreende-se que na sociedade moderna, na qual a sociedade é coagida a escolher, aqui, estamos diante de um cenário de aumento de risco e diminuição do perigo. Essa é a razão pela qual, para Luhmann e De Giorgi, a socie- dade moderna é a sociedade de risco. REFERÊNCIAS BATESON, G., Verso Un ecologia della Mente, Adelphi, Milano, 1976. BAUMAN, Z., Modus vivendi. Inferno e utopia del mondo liquido, Bari 2007.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 143 BECK, U., La societá del rischio. Verso una seconda modernità, Carocci, Roma, 2000. CECCATO, S., Cibernética per tutti, Feltrinelli, Milano, 1968. DE GIORGI, R., Il Rischio nella Società Contemporanea, in Temi di Filosofia del Diritto, Pensa Multidia, Lecce, 2006. DOUGLAS, M., Come percepiamo il pericolo. Antropologia del Rischio, Feltrinelli, Milano, 1991. _____. Rischio e Colpa, Il Mulino, Bologna, 1996. LUHMANN, N., Sociedad y sistema: la ambicion de la teoria. Pidos, Barcelona,1990. _____. Sociologia del Rischio ( Soziologie des Risikos. Tradução Espanhola de Silvia Pappe, Brunhilde Erker y Luis Felipe Segura, sob a coordenação de Javier Torres Nafarrate, Universidade Iberoamericana, México, 3a edição, 2006. _____. La realtà dei mass media, Franco Angeli, Milano, 2000. _____. Il Rischio dell´assicurazione contro i pericoli (Das Risiko Versicherung gegen Gefahren. Tradução Italiana de Alberto Cevolini, Armando Editore, 2013 LUHMANN, N. DE GIORGI, R., Teoria della Società, Franco Angeli, Milano, 2003. LUPTON, D., Il rischio. Percezioni, simboli, culture, Ed. Il Mulino, Bologna, 2003. NEISSER, U., Conoscenza e realità: un esame crítico del cogniti- vismo, Ed. Il Mulino, Bologna, 1981.
144 | Jonas Lemos PERROW, C., Normal Accidents: Living With High Risk Technologies, Princeton University Press, Princeton, 2008. PIAGET. J., Biologia e Conoscenza: saggio sui rapporti fra le regola- zioni organiche e i processi cognitivi, Einaudi, Torino, 1983. VON FOERSTER, H., Disordene/Ordine: scoperta o invenzione?, in Sistemi che osservano, Astrolabio, Roma, 1987.
O OBSERVADOR E A TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS – ENTRE SOCIOLOGIA E DIREITO Luciano Nascimento Silva (...) Para evitar o paradoxo, indago se a memória não tem um outro significado. Afirma-se, por exemplo, que uma igreja é lugar da memória. Ela não é muito mais um lugar do esquecimento? E um monumento? É um lugar de recorda- ção ou de esquecimento? As respostas dependem do observador. Mas, quem é o observador? Como observa este observador? Quando se emprega a distinção recordar/esquecer, como saber se os “lugares da memória” são lugares de recordação ou de esquecimento? (...). Raffaele De Giorgi Direito, Tempo e Memória. Tradução por Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo: Quatier Latin, 2006, p. 49
146 | Luciano Nascimento Silva CONSIDERAÇÕES INICIAIS A proposta de formulações como perspectivas de invenção acerca da teoria dos sistemas sociais na à luz de um funcionalismo estrutural e a provável conexão teórico-científica entre sociologia e direito. A construção (formas) do saber e conhecimento em dois campos de moldura da incerteza, realizada por observações que se materializam pela tecnologia da comunicação como mecanismo tradutor de reações biológicas e da cognição humanas, enfoca as cons- truções teóricas nominadas de O Observador e Teoria dos Sistemas na representação de matrizes dos pensamentos de Raffaele De Giorgi e Niklas Luhmann, acompanhados pelos contributos cognitivos- -linguísticos de Heinz von Foerster. A ideia do Observador é uma construção cognitiva que envolve um olhar sobre o Saber e o Não-saber, isto é, acerca da formula- ção de uma da teoria do conhecimento. O que se pode chamar de virada epistemológica da matriz do pensamento, o abandono do pensamento analítico característico da primeira modernidade com sua matriz dual de Sujeito e Objeto como elementos que impul- sionam a produção do Saber. A proposta cognitiva elege Sistema e Ambiente como engrenagens de construção do Saber. O olhar do Observador sobre o Sistema Social (Sociedade) e os diversos Subsistemas (política, economia, religião, direito, arte, ciência). O conhecimento passa a ser construído pelo olhar do Observador, que identifica nas relações comunicativas – a produção do agir comu- nicativo que substitui a ideia de fato como estrutura, este é apenas um produto da comunicação, esta é a estrutura para a construção do Sistema Social ou Sociedade – a origem do que mais a frente será nominado Saber ou Conhecimento. O posicionamento do Observador traduz um sentido científico construído no espaço da sociologia,
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 147 neurociência, cibernética e comunicação por teóricos como, por ex., Heinz von Föerster, Niklas Luhmann e Raffaele De Giorgi. O Pensamento constrói Saber ou Conhecimento, necessita elaborar uma engenharia comunicativa que represente: lógica, sistematicidade e persuasão. Estas terminologias alcançam sua materialização comunicativa por uma única expressão: verdade. A teoria do conhecimento é uma construção da Verdade. Aquele que constrói verdades detém saber e conhecimento. E quem é ele? O Observador. A verdade como construção. Os processos comunicativos de construção cognitiva, a partir da modernidade, com o uso de uma expressão intitulada Ratio (razão) buscam intensificar o dualismo sem sentido (verdadeiro ou falso), que vai edificar Saber e Não-saber, a teoria do conhecimento. As realidades estão dentro do Saber, elas são a Verdade, conhecimento é verdade, saber é verdade. O OBSERVADOR E AS CIÊNCIAS SOCIAIS Na observação, produto da construção de um Observador, há sempre um ponto cego, assim enfatiza a metodologia estrutural. Todo Observador tem seu ponto cego. Portanto, faz-se necessário reconhe- cer as limitações na construção do que é Saber ou Conhecimento. Mais ainda, o pensamento da virada epistemológica afirma que “só conse- guimos enxergar aquilo que podemos explicar” (VON FOERSTER, 1994: 269). Para pensadores como von Föerster, o cérebro não tem estrutura para perceber luzes, cores, sons, calores nem imagens. Por um lado, a mente humana só capta ondas eletromagnéticas, quer dizer, intensidades. Por outro, é o sistema nervoso que calcula essas percepções. Já quanto ao fenômeno da comunicação, pode-se dizer que “palavras, símbolos ou mensagens não fazem parte da comu- nicação, significam apenas suas “tecnologias”. A informação não é
148 | Luciano Nascimento Silva uma realidade, mas sim uma probabilidade, um processo relacio- nal, uma atividade” (VON FOERSTER, 1985: 85). O elemento Tempo sempre foi crucial nas construções do Observador, o processo de criação ou invenção do Saber ou teoria do conhecimento exigi o Tempo como plataforma para afirmação e reconhecimento do que é Científico. O esgotamento da matriz moderna de uma construção protagonizada pela Ratio passou a implicar no processo e metodologias das Ciências Sociais. E surge a perspectiva de o Tempo não mais existe, só a velocidade. As impli- cações são nos campos da causalidade e dos princípios. A velocidade destrói, liquidifica, fulmina a ideia de Tempo. Mas a velocidade cons- trói civilidade? A velocidade constrói paradigma? As ciências sociais podem explicar, garantir ou responder às indagações? Nas ciências sociais, ainda é possível ofertar explicações por meio de conceitos? A ideia de Tempo, tão magistralmente dissecada nos campos da filosofia (HEIDEGGER, 1972) e literatura (BORGES,1989), parece evaporar. As ciências sociais não mais conseguem explicar as bases dos pensamentos sobre: tempo e velocidade. Se as ciências sociais não mais explicam, indaga-se: que são as ciências sociais? A cognitivi- dade do Observador provocaria: deustche Was sind die Sozialwissenchaften? Interrogaria o pensador italiano: cosa sono le scienze sociali? O modelo (até então, inominado) de Sistema Social que não pode desconsiderar sua incomensurabilidade com a sociedade moderna, exige igualdade sem vê a produção da desigualdade; exige diversidade sem considerar a unidade. O Sistema Social convoca as ciências sociais para explicar os Subsistemas Sociais da política, economia, religião, cultura etc. As ciências sociais, portanto, assumem a função de construir explica- ções temáticas referentes à Sociedade. A questão central, a saber, é a seguinte: as ciências sociais não apresentam estruturas teóricas para cumprir a referida função, não possuem os alicerces teóricos. As
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