RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 149 ciências sociais descrevem a Sociedade mediante a utilização de uma metodologia de ocultação das suas insuficiências de estrutura teórica. Houve dois momentos nos quais as ciências sociais consegui- ram realizar a função a elas designada: primeiro, com a crítica ou denúncia da estrutura de classe da sociedade moderna (MARX, 1868); segundo, a construção cética, a metodologia de organização e a ideia de racionalidade (WEBER, 1956). A Sociedade esboça um elemento “novo” com o qual as ciências sociais terão que se relacio- nar cientificamente, qual seja, a Complexidade. Os teóricos sociais, os juristas, os cientistas políticos, os analistas, os historiadores, os profis- sionais da comunicação televisiva, digital ou impressa, não fazem a menor ideia de qual seja o sentido da terminologia complexidade. Os teóricos sociais não vêem, que não vêem (VON FOERSTER, 1994: 288). O cenário é agravado com a tradução da cegueira social, pode-se dizer que: (...). Não conseguem ver que os sistemas operam pelo método da seletividade, seja referente às estruturas, seja aos processos. O sistema opera à luz de uma série de possibilidades com o objetivo finalístico de criar uma ordem. Ao construir essa ordem o sistema próprio se torna complexo, pois se vê obri- gado a realizar uma seleção quanto à relação existente entre seus elementos (LUHMANN, 1984: 191). As ciências sociais, então, explicam os fenômenos. Quer dizer: produzem uma comunicação científica explicativa sobre o que acontece. A comunicação que comunica, não comunica. O que faz lembrar as lições do pensamento construtivista de “quando Einstein afirmou que as teorias científicas são livres criações da mente humana” (DE GIORGI, 2006: 195). A afirmação provo- cou um efeito: construtivo-destrutivo que veio robustecer as novas
150 | Luciano Nascimento Silva conquistas alcançadas no universo da física. Mas também, fulmi- nava séculos de pensamento europeu acerca do sentido da teoria do conhecimento. A referida afirmação pode traduzir o sentido da revelação/ocultação de um paradoxo, ela pode provocar a possibili- dade de não haver conhecimento, Saber, explicação ou demonstração acerca do mundo e dos seres vivos que o habitam. Mais ainda, a própria idéia de mundo já havia sido fulminada “quando escre- veu Nietzsche que <mundo> é uma invenção cristã. Um conceito de fim, ao qual endereçar cada nossa necessária ignorância” (DE GIORGI, 2005: 7). Em 1883, na Escola de Direito do Recife, surgiam os escri- tos intitulados “Variações Anti-sociológicas” (BARRETO, 2000: 11-73), no sentido de construir uma crítica na afirmação de que a sociologia não é uma ciência, mas sim não passa de uma frase, de um sonho tão bonito quanto inatingível. A sociologia seria “apenas o nome de uma aspiração tão elevada, quão pouco realizável” (BARRETO, 2000: 11). Sua tradução poderia se dá por um postu- lado do coração que procura traçar as linhas da sociedade num todo orgânico. Para a sociologia, a sociedade estaria subordinada, como os demais organismos, a certas e determinadas leis. Para Barreto (2000: 13), trata-se de uma construção que não merece atenção. Para ele, o estudo dos fenômenos sociais, numa consideração de totali- dade reduzida à unidade lógica de um sistema científico, resultaria numa estupenda Pantosofia. Para o mais importante Observador brasileiro do século XIX, a sociologia não se presta nem como ciência descritiva. As ciências sociais são construtíveis, pois que “não podem ser descritos todos os fenômenos de sua alçada” (BARRETO, 2000: 11). Então, indaga: “por que razão havia de ser como ciência de princípios, como ciên- cia de leis, que têm de ser induzidas da observação desses mesmos fatos?” (BARRETO, 2000: 12). A lição de Tobias Barreto faz
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 151 lembrar Heinz Von Föerster nas inesquecíveis expressões de que “nas ciências, a verdade é a construção de um grande mentiroso” (VON FOERSTER, 1994: 288-89). E, mais do que nunca, as pala- vras de De Giorgi (2006: 22), de que “o nosso mundo do saber é sempre menor do que o mundo do não-saber”. Os sociólogos não vêem, que não vêem. A sociedade moderna era a sociedade do otimismo, em função do estágio de civilidade que havia alcançado, entre glórias e tragédias, entre civilidade e barbá- rie. A sua única preocupação era com a fenomenologia do perigo, a ideia de perigo que sempre mereceu atenção, mas não comprometia o sistema. Surgiram as seguintes problemáticas: ecológica, tecnoló- gica, informação. Passou-se, portanto, à identificação da ocorrência da “mudança paradigmática do perigo para o risco” (DE GIORGI, 2005: 23). Perdeu-se o otimismo, agora se vive o medo do futuro. A sociedade imprime, numa velocidade nunca antes identificada, uma produção do risco incalculável. Não há mais uma planificação do controle, apenas uma descrição que não descreve as consequên- cias do agir humano. PRIMEIRAS EXPRESSÕES SOBRE A TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS Com a construção da teoria dos sistemas sociais – de influên- cia da obra de Talcott Parsons[53] –, que representa a iniciativa de elaboração de uma Teoria Geral da Sociedade, Luhmann objetiva atin- gir um aporte universal que possa conceber à teoria uma avançada conexão entre a ideia do micro e do macro no campo sociológico de maneira a alcançar uma definição conceitual singular e de expressão 53 PARSONS, Talcott Edgar Frederick. The Social System. (Routledge Sociology Classics). With a New Preface by Bryan S. Turner. Editor: Bryan S. Turner/ Routledge – Taylor & Francis Group. London: 1952/2005.
152 | Luciano Nascimento Silva da certeza e precisão. A premissa busca uma análise que traduza cada unidade de contato social como a representação de um sistema. Sua construção teórica coloca a teoria dos sistemas como aquela que aportará a Sociologia na qualidade de instrumento de base da formulação de uma Teoria Geral da Sociedade. Mais ainda, esta cons- trução rompe com as fronteiras de uma Teoria Geral da Sociedade para uma expansão nos campos da Sociologia do Direito, Sociologia da Economia e das Organizações. A construção luhmanniana faz uma incursão extremamente crítica nos clássicos da Sociologia, refor- mula profundamente as bases da Teoria dos Sistemas Complexos, principalmente aqueles não lineares, com a perspectiva de interação de diversas áreas científicas (física, termodinâmica, biologia mole- cular, cibernética, informação e comunicação). A iniciativa de Luhmann comporta duas fases fundamen- tais: a) fase primeira – construção da teoria dos sistemas: indicação temporal dos anos 60 à década de 80 do século passado, com o apontamento da elaboração de uma teoria do sistema funcional-es- trutural. Sua principal inovação aparece na substituição de sujeito/ objeto por sistema/ambiente; b) fase segunda – construção da teoria da autopoiesis: surge um esboço de uma construção teórica geral com a introdução de uma nova concepção de sistema social, a partir dos estudos, pesquisas e investigações desenvolvidas no campo da biolo- gia[54]. O pensamento de Luhmann foi elaborar uma teoria geral a A54 construção teórica de Luhmann encontra nos estudos da neurobiolo- gia um núcleo científico a ser explorado, principalmente nos campos da sociologia e do direito. A matriz é a da Autopoiesis desenvolvida na ciência biológica, a partir dos anos 70 do século XX, por Humberto Maturana e Francisco Varela (Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living Boston Studies in the Philosophy of Science. Paperback, 1991. Também na tradução italiana Autopoiesi e Cognizione – La realizzazione del vivente. Traduzione di Alessandra Stragapede. Prefazione di Giorgio De Michelis. Venezia : Marsilio Editori, 1985). Ambos os pesquisadores chilenos, radicados
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 153 partir das seguintes constatações fáticas: b1) a existência de um défi- cit na análise da teoria sociológica moderna/contemporãnea; b2) a hipercomplexidade da sociedade moderna/contemporânea; b3) a ausência de uma teoria social com instrumentos científicos capazes de observação e descrição dos fenômenos sicológicos, a constatação da ineficiência da teoria do saber/conhecimento. As conclusões, as quais chegou Luhmann, apresentam um ponto essencial, qual seja, a crítica contundente feita ao pensamento clássico (grego, romano-germânico e iluminista europeu central) e às construções teóricas acerca do conceito de ação. O pensamento de Luhmann é de que o conceito de ação não apresenta a importân- cia que o pensamento clássico lhe reconheceu (Aristóteles, Leibniz, Hobbes e Kant), mas sim o conceito de comunicação, pois a ação é apenas uma tradução do processo comunicativo iniciado e desenvolvido nas relações sociais. Mas Luhmann vai além, afirma que existe uma incapacidade das concepções sociológicas modernas em realizar a descrição e a ininterrupta mutação da sociedade moderna/contemporânea, tal afirmação encontra três bases legitimadoras: a) um inequívoco preconceito humanista; b) a existência de um preconceito das unidades ou fronteiras territoriais (estados nacionais); c) o histó- rico preconceito da objetividade do social. Para Luhmann estas na Harvard University, mas principalmente Humberto Maturana, objetivaram elucidar como ocorre o fechamento dos sistemas vivos, isto na perspectiva de redes circulares de produções moleculares. A constatação é a de que as moléculas se produzem com o processo de interação e este processo em rede traduz uma autoreprodução e especifica os limites da mesma. A afirmação é de que os seres vivos conseguem a manutenção de uma abertura para o fluxo de energia e matéria, isto na perspectiva dos sistemas moleculares. A conclusão, portanto, é de que os seres vivos são espécies de máquinas, com a característica singular de se distinguirem de outras máquinas unicamente pela capacidade de auto-reprodução.
154 | Luciano Nascimento Silva bases legitimadoras representam a moldura arcaica de formulações conceituais da tradição do pensamento clássico europeu central, que podem ser identificadas da antropologia à filosofia política[55]. Na formulação da Teoria dos Sistemas Sociais, Luhmann já informa que as principais características da Sociedade moderna são: a complexidade, a diferenciação social e a formação de sistema. O que, de idêntica forma, já anuncia que a Teoria dos Sistemas e a Teoria da Sociedade luhmannianas são mutuamente dependentes. A sociedade, portanto, não é a representação do processo de união e das interações sociais, mas sim um sistema de tradução de uma ordem bem mais complexa determinada pela diferenciação funcio- nal entre sistema e ambiente, e não sujeito e objeto. O pensamento de Luhmann é de que a Sociologia, no que se refere a concepção científica, só esboça legitimidade como Teoria da Sociedade. A crítica de Luhmann à sociologia é contundente, ao afirmar que tanto a Ciência quanto a Sociedade representam unicamente uma expres- são da realidade social, premissa não reconhecida pela sociologia. A sociedade não é um objeto de investigação da sociologia, a socie- dade e todo seu sentido operacional são a condição essencial de uma possibilidade própria da cognição social. O que significa, por outras palavras, que a sociologia se traduz por um sujeito que exerce a função de pensar a sociedade reflexivamente, o que vem espelhar uma transferência da concepção de estrutura do modo de opera- ção autoreferencial do sujeito para a teoria dos sistemas sociais. O que pode ser perfeitamente percebido na teoria dos sistemas sociais de Luhmann é a ideia afirmativa de uma concepção de sociedade 55 Para um aprofundamento das questões intituladas por Luhmann como preconceitos construídos pela sociologia clássica europeia para explicar a teoria da sociedade, veja-se DE GIORGI, Raffaele. LUHMANN, Niklas. Teoria della Società. Milano : Franco Angeli, 1999.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 155 radicalmente diversa daquele modelo europeu central humano-ilu- minista, uma sociedade não onto-antropológica e afirmativamente construtivista radical. A Teoria dos Sistemas Sociais, que objetiva explicar a Teoria da Sociedade moderna, que em função das reformulações impressas por Luhmann como, p. ex., a substituição do conceito de sujeito, a trans- ferência da diferenciação sujeito/objeto para a distinção entre sistema/ ambiente, caracteriza-se como matriz de uma teoria pós-ontoló- gica da sociedade. São características da Teoria da Sociedade moderna: a) o fenômeno da complexidade – que na sua descrição significa o conjunto das múltiplas possibilidades de ações e vivências que o processo de comunicação faz surgir no mundo. O que significa dizer que esta problemática deve ser interpretada como a referência dos sistemas sociais; b) o apontamento da diferenciação funcio- nal – emerge para afirmar a existência dos subsistemas da sociedade (direito, economia, política, religião, arte), estes se diferenciam internamente, na sua própria estrutura, pelos seus próprios elemen- tos (direito civil, penal, constitucional, tributário). A característica da sociedade é a negação do processo hierárquico e a afirmação do processo das funções diferenciadas, que são em última análise a tradução do fenômeno da complexidade; c) a característica inerente da formação de sistema – para além da complexidade e diferen- ciação social ou funcional, a construção teórica informa sobre a característica de formação de sistema da sociedade moderna. E um elemento para a formação de sistema é a contingência, mais além, a dupla contingência. O elemento contingência pode inclusive se revelar como fenômeno indecifrável, o processo de comunicação nas relações sociais que faz surgir a contingência (expectativas cogni- tivas e expectativas normativas) nem sempre pode revelar suas razões. E, finalmente, também o elemento sentido é condição da possibi- lidade da formação de sistema.
156 | Luciano Nascimento Silva As investigações de Luhmann, portanto, lhe proporcionaram elaborar um desenho aperfeiçoado da Teoria dos Sistemas Sociais. O desenho não é senão estabelecer o processo de diferenciação funcio- nal, que se constrói entre sistema e ambiente. A tradução do termo sistema é processo em série que revela eventos inter-relacionados de natureza operacional (seres vivos/processos fisiológicos – siste- mas psíquicos/processos de ideias – relações sociais/comunicações). Assim a construção conceitual de sistema é relacional. Significa dizer que a identificação da fronteira constitutiva do sistema é que permite informar sobre a distinção interna e externa. A opera- ção de um sistema reproduz essa fronteira funcionalmente, pois faz aparecer uma rede complexa de operações que se funcionali- zam simultaneamente de forma a proporcionar ao sistema unidade e identidade, portanto, a conceituação de fronteira do sistema não é espacial e sim operacional. CONSIDERAÇÕES FINAIS O mundo. Os mundos. A existência. A inexistência. A inven- ção. A criação. Os sistemas. Os subsistemas. A ideia da ideia. O conceito do conceito. O Observador e a invenção do Saber traduzem a nossa inequívoca ignorância. O Saber representa o nível máximo do nosso Não-saber. As ideias que se tem ou sobre as quais se toma conhecimento, representam um mundo infinitamente menor do que àquelas ideias que ainda não se teve ou sobre àquelas que ainda não se conhece. O Observador é a personagem nuclear na constru- ção do Saber ou teoria do conhecimento, sem ele não há Saber, sem ele não há conhecimento. No entanto, com ele, o que é construído é realmente um Saber? Ou é um Saber do Não-saber, que caracteriza a necessária ignorância de uma teoria do conhecimento?
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 157 O Saber ou teoria do conhecimento traduz os limites do pensamento, limites que se abrem e se fecham pelas simplificações operacionais dos sistemas. Aqui o ponto nuclear no qual se encontra o Observador, pois toda ideia ou pensamento é ideia ou pensamento do Observador. O Saber ou teoria do conhecimento é sempre a mesma, sempre diversa, projeta-se sobre um novo Saber ou Conhecimento sempre o mesmo, sempre diverso. Trata-se do processo operacio- nal impulsionado pelo Observador, ou seja, operações que assumem a função de construir horizontes que partem de outros horizontes numa diversidade que exige seleção de possibilidades de horizontes. O Saber ou teoria do conhecimento representa os confins de uma cognitividade que tem como limite a autoreprodução, que é autoreferencial e reflexiva. O Saber se reproduz a partir de si mesmo e retorna a si mesmo. O Saber é o horizonte das possibilidades que se reproduz na teoria do conhecimento. Portanto, aquilo que não era horizonte se torna horizonte a partir de si mesmo. A partir de então aquilo que era Saber ou Conhecimento pode ser renominado de evolução científica. O Saber é Saber e Não-saber que se autodetermina, determina seus confins na invenção contínua de horizontes de possibilidades que são atualizáveis. As atualiza- ções de horizontes se dão por expectativas agora denominadas de Ciência, atualizadas por outras expectativas. Finalmente, o Observador, nas suas operações de observação, não pode observar as distinções que produz nas suas observações. O Observador, a distinção e a observação estão expostas a outros proces- sos de observação, fundados em outras observações, estas realizadas por outras distinções.
158 | Luciano Nascimento Silva REFERÊNCIAS BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Campinas : Bookseller, 2000. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. 18ª edición. Buenos Aires : María Kodama y Emecé Editores, 1989. DE GIORGI, Raffaele. Temi di Filosofia del Diritto. (Collana Scienza del Diritto, nº 5). Lecce : Edizioni Pensa MultiMedia, 2005. _____. Direito, Tempo e Memória. Tradução por Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo: Quatier Latin, 2006 DE GIORGI, Raffaele. LUHMANN, Niklas. Teoria della Società. Milano : Franco Angeli, 1999. DE GIORGI, Raffaele. MAGNOLO, Stefano. Mondi della società del mondo. (Collana Teoria della Società, nº 6). Lecce : Edizioni Pensa MultiMedia, 2006. HEIDEGGER, Martin. “Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft”. In: Frühe Schriften, Frankfurt am. Maim, Vittorino Klostemann, 1972. Luhmann, Niklas. Soziale Systeme: Grundriß einer allgemeinen Theorie. Suhrkamp- Taschenbuch-Wissenschaft, 1984. MARX, Karl Das Kapital – Demokratischen Wochenblatt, Leipzig, 1868. MATURANA, Humberto. VARELA, Francisco Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living Boston Studies in the Philosophy of Science. Paperback, 1991. _____. Autopoiesi e Cognizione – La realizzazione del vivente. Traduzione di Alessandra Stragapede. Prefazione di Giorgio De Michelis. Venezia : Marsilio Editori, 1985).
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 159 PARSONS, Talcott Edgar Frederick. The Social System. (Routledge Sociology Classics). With a New Preface by Bryan S. Turner. Editor: Bryan S. Turner/Routledge – Taylor & Francis Group. London: 1952/2005. VON FOERSTER, Heinz. “Wissen und Gewissen”. SCHMIDT, Siegfried J. (Org.). Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1994. _____. Sicht und Einsicht : Versuche zu einer operativen Erkenntnistheorie. Braunschweig/Wiesbaden, Friedr. Vieweg & Sohn, 1985. WEBER, Max. Wertschaft und Gesellschaft: Grundriss der Vertehenden Soziologie, Tübin-gen, 2. Habbd., Paul Siebech, J. C. B. Mohr, 1956.
MEMÓRIA DO DIREITO E SUPREMA CORTE DO BRASIL – OBSERVAÇÕES A PARTIR DO PENSAMENTO DE RAFFAELE DE GIORGI Tiago Medeiros Leite CONSIDERAÇÕES INICIAIS Quem, porventura, já esteve nas aulas do Professor Luciano Nascimento, na Universidade Estadual da Paraíba ou na Universidade Federal da Paraíba, com toda certeza percebeu a presença do pensa- mento de pelo menos três autores: Heinz Von Foerster, Niklas Luhmann e, principalmente, Raffaele De Giorgi. O observador constrói uma realidade durante as aulas. Melhor dizendo, ele inventa uma realidade, ou ainda melhor, inventa sua realidade. Mas quem é o observador? São os que observam o profes- sor Nascimento? Será o professor Nascimento ao observar as aulas do Professor De Giorgi. Ou ainda o professor De Giorgi ao obser- var as observações de Luhmann sobre as observações de Foerster? Este trabalho pretende realizar observações sobre a memória, especificamente a Memória do Direito. Passeando brevemente sobre várias observações sobre o observador e sua construção de realidade.
162 | Tiago Medeiros Leite Buscando com isso compreender a Memória do Direito e algumas decisões judiciais atuais na Suprema Corte brasileira. A opção metodológica é por observações do pensamento do autores citados. Não se pretende aqui buscar conclusões sobre as decisões do Direito brasileiro, mas tentar compreender a necessi- dade de se observar ainda mais as decisões jurídicas e sua memória. O OBSERVADOR E A MEMÓRIA COMO FUNÇÃO DO ESQUECIMENTO Quando o professor Nascimento observa o pensamento de vários observadores, ele constrói uma realidade de grande valor para o seu pensamento. Esta característica não é somente sua, mas de qualquer observador. Nas obras do professor De Giorgi, os obser- vadores de valor estimável em suas observações possuem espaço dedicado e de referência. São comuns em sua linguagem, capítu- los dedicados a certos autores, como também, observações, não só sobre o pensamento de cada autor, mas várias passagens de sua vida, relacionando com seu pensamento. Da mesma forma Luhmann ao observar o pensamento de outros autores, como Von Foerster e Parsons, por exemplo. Mas conceituar a observação não é tarefa fácil, há muito os pensadores da Teoria dos Sistemas tentam pensá-la. Quando falamos em observação, nos deparamos com um primeiro problema: a distin- ção entre observar e observador. Luhmann explicou que observar é uma operação, enquanto o observador é um sistema (LUHMANN, 2010). Dessa forma, ao observar, o observador (sistema, portanto possuindo relação entre o meio) realiza uma operação. Esta opera- ção, no entanto, necessita de outra operação: a memória. Mas o observador pode observar de forma psíquica, quando, por exemplo, o professor Nascimento observa os alunos em uma sala de aula e os alunos observam o professor Nascimento. Outra forma
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 163 de observação é a observação social, quando a interação observa os alunos que observam o professor como centro de discussão. A observação social observa a observação psíquica, sendo o inverso também uma verdade. O observador é um sistema. Ele observa a si mesmo (auto- -observação) e também observa outros sistemas (hetero-observação) (LUHMANN, 2010). Quando o professor Nascimento é observado, os discentes (sistemas), por exemplo, observam ele e suas observa- ções sobre outros pensadores. A observação faz parte do processo de comunicação do sistema com seu meio externo. A comunicação aqui é um elo necessário entre o sistema e o meio, entre os obser- vadores e o observar. O processo de comunicação é complexo e improvável. Mas a comunicação entre os sistemas relaciona os observadores. Relaciona os sistemas. O processo de construção do conhecimento é sistemá- tico, portanto via comunicação e observação. Luhmann e De Giorgi consideram a linguagem como meio fundamental da comunica- ção: “Il medium fondamentale della comunicazione, quello che garantisce la regolare, continua autopoesi della società, è il linguaggio” (LUHMANN; DE GIORGI, 2003, p. 68). A linguagem do observador constrói o processo de comunicação dos sistemas. No entanto a linguagem e a comunicação dependem de uma função inerente ao observador: a memória. Mas o que é a memó- ria? Memória é a mesma coisa de recordação? Ou a memória será esquecimento? Quando se caminha pela Piazza Santo’Oronzo, em Lecce, ou pela Pirâmide do Parque do Povo, em Campina Grande, o obser- vador percebe uma comunicação histórica daquele monumento: é a memória? Então a memória é recordação? Sem dúvidas um conto que bem explica o que é a memó- ria é Funes, el memorioso, de Jorge Luis Borges (BORGES, 1969).
164 | Tiago Medeiros Leite Na prosa, Irineu Funes era um jovem que perde sua memória ao cair do cavalo e bater a cabeça numa pedra. Mas diferente de todas as outras estórias, ele não perde a capacidade de recordar, mas de esquecer. Funes não consegue esquecer. Todos os momentos do dia estão na sua mente como se exatamente tivesse acontecido. Sentia-se sufocado, pois não conseguia esquecer. Funes morre de uma congestão pulmonar por não aguentar não esquecer. Yo recuerdo - não tenho direito de pronunciar esse verbo, somente um homem na terra teve esse direito - inicia seu conto Jorge Luis Borges (1969). O primeiro verbo do conto é um para- doxo. Realmente Irineu Funes recordava. Mas o fato de recordar e não esquecer fazia de Funes um homem sem tempo, sem memória. Assim, explica De Giorgi, o que explica que os monumentos como a Piazza Sant’Oronzo e a Pirâmide do Parque do Povo são monu- mentos mais de esquecimento do que de recordação: Na realidade, Ireneo morreu porque ele não pode viver. Ele não pode viver porque não tem tempo; não tem tempo porque não tem presente e não tem presente porque não pode fazer distinções. Ele morreu, pois é incapaz de construir o tempo: não pode ativar, operativamente, a possibilidade de distin- guir entre o tempo dos eventos perceptivos e o tempo de sua reativação seletiva, por meio de seu sistema nervoso. Não tem condições, portanto, de construir uma memória (DE GIORGI, 2006, p. 41). Assim, sem poder esquecer, Funes não conseguia construir uma recordação cronológica das ações, não conseguia diferenciar o que ocorreu pela manhã ou pela tarde, naquele mesmo dia ou no dia anterior, Funes não possuíam tempo.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 165 O indivíduo possui a memória individual. Os sistemas possuem memória. “A memória é uma função que se desenvolve quando o organismo, ou melhor, o sistema observa as relações entres seus estados e as conecta” (DE GIORGI, 2006, 46). Sendo assim, a memória atua como sistema de esquecimento e de recordação. Para recordar e construir tempo, a memória esquece tudo que precisa para selecionar exatamente aquilo que busca recordar. A memó- ria é uma função do sistema, presente no indivíduo, na Política, na Sociologia, no Direito etc. Contudo a memória não resgata o passado, não recria exata- mente o que aconteceu. Até por ser necessário, para a própria atuação da memória, o esquecer para recordar, a memória necessita do esquecimento. Jean-Pierre Vernant ressalta que a memória não conduz à exploração do passado e nem mesmo à construção de uma arquitetura do tempo. “Ela, acrescentamos nós, realiza uma reintro- dução do tempo no tempo; é a construção de um segundo tempo” (VERNANT apud DE GIORGI, 2006, p. 64). Nesse sentido, os sistemas atuam com a memória numa releitura do passado. Em aspectos jurídicos, a memória do Direito atua diretamente nessa construção de passado. O processo em si é uma reconstru- ção de passado, uma reconstrução de uma verdade reconstruída. E quando se reconstrói uma verdade, os riscos são iminentes. Não existe memória da reconstrução do passado, a memória é a construção do presente pelo observador. E onde está a memó- ria? Em todos os lugares. Em todas as observações, comunicações e linguagens existe a atuação da memória. Não como função neuro- fisiológica, mas como função das estruturas dos sistemas. Dessa forma explicou De Giorgi:
166 | Tiago Medeiros Leite Da ciò seguono due conseguenze di grande rilevanza. La prima è che memoria, come riferimento ad esperienze proprie passate, è um costrutto di um osservatore. E quindi non c’è una funzione neurofisiologica che si possa chiamare memoria e si possa intendere como “deposito, serbatoio di rappresenta- zioni dell’ambiente che possano essere richiamate per differenti ocasioni”. La seconda conseguenza è questa: che la memoria è dappertutto. Essa è nella struttura “dello schema di colle- gamento e nelle modalità operazionali di tutti i punti nodali del reticolo” (DE GIORGI, 2006a, p. 155). Se a memória é complexa e imprevisível, ele caminha de mãos dadas com o risco. A reconstrução do passado, pela memória, a reconstrução de um novo passado, pelo observador, possui o risco de não corresponder exatamente com a verdade. E quando se trata de processo, de regras jurídicas, de decisões judiciais, da memória do Direito, pode gerar amplas complexidades. MEMÓRIA DO DIREITO E DITADURA NO BRASIL: O PARADOXO DA JURISPRUDÊNCIA Aury Lopes Jr., explicando o paradoxo do ritual judiciário, observa que este ritual é “um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado distante, com base em prova colhida num passado próximo e projetando efeitos (penas) para o futuro” (LOPES JR., 2015, p. 351). À luz do pensamento de De Giorgi, a memória do julgador, que nessa ocasião é a memó- ria do próprio Direito (jurisprudência/decisão judicial), reconstrói um fato que não é mais o mesmo reconstruído, na busca pela apli- cação de uma determinada pena ao indivíduo acusado.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 167 Esse trabalho de reconstrução de um fato, que não é mais o mesmo fato, e aplicação ao acusado, que não é mais o mesmo no momento do fato, gera um risco que pode ser incalculável e peri- goso ao Direito e, principalmente, ao sistema social. O Brasil passou por 20 anos de Ditadura, num governo auto- ritário militar (1964-1984). Ainda existem várias vítimas e vários desaparecidos opositores ao regime. Tal governo não atuou isolado na América do Sul, compondo com outros governos autoritários militares, como os da Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai, um plano de ação e repressão conjunta, denominado Plano Condor. O Direito Internacional Interamericano busca amenizar as consequên- cias desses atos através da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos. No caso brasileiro, a memória do Direito Interamericano atua por um lado e a memória do Direito nacional por outro. Importa aqui observar os caminhos percorridos até a atualidade, pela memó- ria do Direito interamericano e a memória do Direito brasileiro. Desde o acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de número 153 (ADPF – 153) do Supremo Tribunal Federal, no ano de 2010, que o julgamento e punição dos agentes que cometeram crimes durante o Regime Militar brasileiro tornou- -se tarefa difícil e complexa. Neste mesmo ano o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)[56] pelo assas- sinato e desaparecimento de cerca de 60 pessoas que participaram do conflito denominado Guerrilha do Araguaia. A partir do julga- mento da ADPF 153 e da sentença da Corte IDH, surgem debates, seminários, congressos, trabalhos e teses sobre a aplicabilidade da 56 Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil.
168 | Tiago Medeiros Leite justiça criminal a esses determinados casos de graves violações de direitos humanos. Não custa lembrar que desde a Lei nº 6.683 de 1979 (Lei da Anistia) a sociedade brasileira busca construir uma política de supe- ração ao período de medo e autoritarismo implantado pelos governos militares (1964 – 1985), tendo importante suporte jurídico e polí- tico a implantação da Constituinte de 1987/1988 e a entrada em vigor da atual Constituição Federal, em 1988. Os governos que sucederam implantaram, a partir de políticas públicas e legislação específica, medidas iniciais que possibilitaram a sociedade brasi- leira, juntamente com a sociedade civil organizada, tentar superar as recordações e sequelas que ainda permaneceram do regime. Mesmo sendo considerada a Lei da Anistia marco inicial de um processo de Justiça Transicional, como aponta Paulo Abrão (2012), as políticas do Estado brasileiro para alcançar os elementos necessários a uma efetiva Justiça somente surgiram após o início da década de 1990. Com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (1995), Comissão da Anistia (2001), 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (2009) e Comissão Nacional da Verdade (2011), por exemplo, o Brasil possibilitou a sociedade brasileira efetivar um trabalho de reparação aos danos sofridos pelas vítimas do regime castrense; criar políticas de recordação dos abusos ocor- ridos, fomentando a reconstrução histórica dos fatos ocorridos; reformar as instituições públicas que ainda carregam sequelas ideo- lógicas do autoritarismo, para uma prática da administração pública de forma democrática conforme a lei; e, por fim, permitir a possi- bilidade jurídica de submissão dos casos dos graves crimes contra opositores do regime e demais graves violações aos direitos huma- nos, ocorridos pelos mecanismos estatais ou a serviço deles, ao crivo do poder judiciário brasileiro.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 169 Essas políticas fazem parte do campo da Justiça de Transição, como explica Juan E. Méndez (2011) e Renan Quinalha (2013). Sendo assim, importa analisar a jurisprudência dos tribunais interna- cionais de Direitos Humanos quanto à aplicação da justiça criminal ou da possibilidade de anistia dos agentes que praticaram tais crimes na Ditadura brasileira. Percebe-se assim, um conflito entre a posição da Suprema Corte brasileira e as Cortes Internacionais, colocando o Brasil como um fora-da-lei no direito internacional. Futuramente o Supremo Tribunal julgará o recurso impetrado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que questiona o julgamento da ADPF 153. A Suprema Corte brasileira terá que optar por manter a decisão já proferida ou atender as exigências internacionais, particularmente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sendo assim, o Ministério Público Federal provocou o Poder Judiciário, denunciando acusados de sequestros e ocultação de cadáveres de vítimas ainda desaparecidas por agentes das forças de repressão do regime militar brasileiro. Contudo, parte dessas denún- cias tiveram como resultado sentenças absolutórias, tendo como fundamento teses confusas e não aceitáveis no campo do direito penal. Um caso que serve de exemplo é a denúncia do Coronel Ustra, que inicialmente, por meio de processo judicial, teve declarada sua autoria em crimes contra opositores do regime. O Ministério Público Federal de São Paulo apresentou denúncia contra Ustra por crime de sequestro e ocultação de cadáver. No entanto, o Juiz da 5ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo entendeu por absolvê-lo argumentando que o crime de sequestro e o crime de ocultação de cadáver são crimes permanentes e instantâneos, portanto, pres- critíveis. Para a classificação penal da execução dos crimes, crimes permanentes e instantâneos são tipos distintos. Também foi confusa a decisão da ADPF 153 por parte do STF, que fundamentou o acórdão
170 | Tiago Medeiros Leite num possível acordo histórico entre vítimas e agentes repressores da ditadura. Tese de frágil fundamentação para o mundo jurídico, que inclusive, não foi argumento suscitado pelos autores da ação. O que se percebe é que os membros do Poder Judiciário e os teóricos da teoria do Direito tentam criar falsos argumentos para não julgar e punir (ou ainda dificultar que haja julgamento e punição) aos agentes perpetradores de graves violações aos direitos humanos durante o regime militar. ESQUECER QUANDO NÃO SE QUER LEMBRAR: A MEMÓRIA DO STF Quais teses são apontadas, quais argumentos cabíveis ou não no processo penal e direito penal material e outras teses utilizadas fora do campo do direito que sirvam para condenar ou absolver os acusados? Há algum tempo a Suprema Corte brasileira vem tomando decisões confusas e inesperadas tanto para o mundo jurídico, como para a sociedade brasileira. Quais são os argumentos que o Poder Judiciário, por meio de sua memória, vai buscar para aplicar o direito? Como explica Raffaele de Giorgi (2006), o direito possui sua memória. Com sua função, a memória permite que o sistema jurídico invente uma nova realidade. Assim, O STF ao fundamentar num acordo político a anistia aos criminosos do Regime Militar, mesmo o Direito Internacional Interamericano e os tribunais internacionais proibirem este tipo de anistia, cria, com novos fundamentos, uma nova realidade, que possibilita perdoar os agentes criminosos do governo ditatorial. Como a memória para De Giogi (2006) não é somente recor- dação, mas a função de esquecer e recordar, o Direito esquece cada vez mais, construindo para si uma realidade. Ao anistiar os agentes criminosos da ditadura militar brasileira, o Supremo Tribunal Federal
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 171 esquece o Direito Internacional que o Brasil ratificou e faz parte, como também, os princípios fundamentados na sua Constituição Federal, para construir sua decisão. Em 2015 o Supremo Tribunal Federal, julgando a omissão do Poder Executivo brasileiro em relação ao sistema penitenciá- rio, decidiu pela intervenção do Judiciário na competência do Poder Executivo, com fundamento na tese do Estado de Coisas Inconstitucional. Entendeu a Suprema Corte brasileira que no caso de omissão da atuação do Poder Executivo em seus deveres, o Poder Judiciário poderia atuar, pois assim determina a Constituição Federal brasileira. Mas reconhecer competência que a Constituição Federal determina à outro Poder não seria contra a mesma Constituição? Pode o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição brasi- leira, decidir algo contrário à Constituição? Raffaelle De Giorgi, José Eduardo Faria e Celso Campilongo tomaram posição contrária ao Estado Constitucional de Coisas, observando a incompetência de tal decisão: Num país marcado pelos sem-teto, sem-saúde, sem-educa- ção e sem-segurança, o conceito de ECI despreza o fato de que o sistema jurídico não tem estruturas, meios e organizações que lhe permitam corrigir essas mazelas por sentenças judiciais. Proferidas as decisões com base nesse conceito, quem as executará? O guarda da esquina? O vereador do bairro? Se a fonte jurídica da autoridade – a Constituição – é ameaçada pelo ECI, o que dizer da autoridade daqueles que podem aplicar o conceito? Quais seriam os limites e os mecanismos de controle desse poder? (DE GIORGI; FARIA; CAMPILONGO, 2015).
172 | Tiago Medeiros Leite Nada leva a crer que o Poder Judiciário será mais atuante que o Poder Executivo, ou que sua honestidade é superior à qual- quer outro Poder ou sistema. Percebe-se aqui que o Supremo Tribunal decidiu, e vem decidindo, conforme sua memó- ria, conforme o seu Direito. E aí se encontra um paradoxo do Direito, pois quando a Suprema Corte brasileira decide, mesmo contrário ao Direito, torna-se Direito, torna-se válido. Outras ainda são as decisões que o Supremo Tribunal Federal vem decidindo conforme sua vontade. Por exemplo, o início da execução da pena sem o trânsito em julgado de processos, onde o acusado deverá cumprir a pena sentenciada mesmo antes da decisão final em grau de recurso, mesmo a Constituição Federal brasileira determinando como direito fundamental a presunção de inocên- cia, ou ainda, o julgamento, em trâmite, sobre a atipicidade do uso de drogas, mesmo existindo lei específica que determina a conduta como criminosa. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Sistema Judiciário produz decisão judicial, produz Direito. A Memória do Judiciário produz comunicação com todo o seu sistema. Da mesma forma que o professor Nascimento produz a comunicação e constrói sua realidade em suas aulas, o Judiciário produz a sua realidade. A decisão judicial produz Direito. No caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal tem produ- zido sua realidade em acordo com a Constituição do Brasil, o Direito Internacional e suas próprias decisões. Como também, pode-se bem observar, que em sentido contrário, em desacordo com a Carta Constitucional, as normas e decisões internacionais e seu próprio Direito.
RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 173 Estamos diante de um paradoxo. Quando a decisão judicial constrói sua realidade contrária às normas constitucionais ou legais, constrói uma nova realidade, portanto, um novo Direito. Qual o risco disso pra o Direito e para o Sistema Social? É de se bem obser- var. Mas, sem dúvidas, observamos que a memória é fundamental para a atuação do Direito, a memória deve ser sempre observada. REFERÊNCIAS ABRÃO, Paulo. Para Romper o medo e o silencio: por que questionar a Lei da Anistia? In: ABRÃO, Paulo; GENRO, Tarso (Orgs.). Os direi- tos da transição e a democracia no Brasil: estudos sobre Justiça de Transição e Teoria da Democracia. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012. BORGES, Jorge Luiz. Funes, o Memorioso. In: Borges, Jorge Luiz. Ficções. Porto Alegre: Globo, 1969. DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006. ______. Temi di filosofia del diritto. Lecce: Pensa MultiMedia, 2006a. DE GIORGI; FARIA; CAMPILONGO. Estado de coisas inconstitu- cional. São Paulo: Estadão, 2015. Disponível em: http://opiniao.estadao. com.br/noticias/geral,estado-de-coisas-inconstitucional,10000000043. Acessado em: 16 jul 2016. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 2010. LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffael. Teoria della società. Milano: FrancoAngeli, 2003.
174 | Tiago Medeiros Leite MÉNDEZ, Juan E. Responsabilização por abusos do passado. In: REÁTEGUI, Felix (Org). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília & Nova Iorque: Comissão da Anistia do Ministério da Justiça; Centro Internacional para a justiça de transição, 2011. QUINHALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões, 2013.
E OS OBSERVADORES SOBRE OS AUTORES Adriana Prizreni Pós-Doutora em Teoria do Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Unversidade Federal do Rio de Janeiro – PPGD/UFRJ. Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Salento, Lecce, Itália. Pesquisadora, em nível de douorado, no Max Planck Institut für europeische rechtsgeschischte de Frankfurt, estudos sobre os aspectos étnicos, culturais e políticos da diáspora albanesa, questões relacionadas aos importantes fluxos migrató- rios na história da Europa (2003). Ana Claudia Secundo Da Luz e Lemos Juiza de Direito no Estado do Rio Grande do Norte/RN. Doutora em Formas de Evolução do Direito pela Facoltà di Giurisprudenza dell`U- niversità del Salento, Lecce, Itália. Carlos Wagner Dias Ferreira Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Juiz Federal no Rio Grande do Norte. Membro Suplente do TRE/RN. Doutor em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Coordenador do Programa de Mediação da JFRN – JFMEDIA. Coordenador do Projeto de Pesquisa e de Extensão Pontes Processuais.
Eduardo Ramalho Rabenhorst Professor Titular de Filosofia do Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – CCJ/UFPB. Pós-Doutor e Doutor em Filosofia do Direito pela Université d’Aix-Marseille, França. Mestre em Filosofia da História pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Membro da Red de Académicos/as Latinoamericanos en Género, Sexualidad y Derecho – Red ALAS. Coordenador do Fórum Universitário da UFPB. Glauber Salomão Leite Professor no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba – CCJ/UEPB. Professor do Mestrado e da Graduação em Direito do Centro Universitário de João Pessoa-UNIPÊ. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Graduação em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – PUC/PE. Gustavo Barbosa Mesquita Batista Professor Associado Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – CCJ/UFPB. Docente no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – PPGCJ/UFPB. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa em Sistema Penitenciário, Política Criminal e Direitos Humanos – GPOC/ DGP-CNPq. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – PDR/UFPE. Mestre em Direito Econômico pelo PPGCJ/UFPB.
Hipólito de Sousa Lucena Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Estadual da Paraíba – MDR/UEPB. Graduação em Comunicação Social pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Coordenador de Comunicação da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Coordenador do Festival Audiovisual de Campina Grande – COMUNICURTAS/UEPB. Diretor da Ypuarana Cultural. Diretor Artístico da Companhia de Dança KARIBOKA. Jonas lemos (Org.) Professor Titular no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN. Pós-doutor em Direito pelo Cento di Studi sul Rischio della Facoltà di Giurisprudenza dell’Università degli Studi del Salento, Lecce, Italia. Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca, Espanha. Luciano Nascimento Silva (Org.) Professor Doutor no CCJ/UEPB. Pós-Doutor em Teoria e Sociologia do Direito pelo Centro di Studi sul Rischio della Facolta di Giurisprudenza dell`Universitá del Salento, Itália. Docente Colaborador no PPGCJ/ UFPB e PPGRI/UEPB. Investigador Científico da CAPES e FCT/PT no Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht – Departments of Criminal Law and Criminology – Freiburg in Breisgau – Baden Wüttemberg, Deutschland (Alemanha). Líder/Coordenador do NUPOD/CCJ/UEPB – DGP/CNPq.
Maria Cezilene Araújo de Morais Professora Titular no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba – CCJ/UEPB. Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba – PPGRI/UEPB. Professora convidada da Escola Superior de Magistratura ESMA-TJ/PB. Revisora da Revista de Estudos Jurídicos da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Pesquisadora vinculada ao NUPOD - Núcleo para Pesquisa dos Observadores do Direito e Grupo de Pesquisa em Direito Internacional Ius Gentium – UFSC\\DGP-CNPQ. Raffaele De Giorgi Professor Émerito de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade do Salento, Lecce, Itália. Foi pesquisador no Institut für Rechts- und Sozialphilosophie da Universität des Saarlandes, Saarbrücken, na Alemanha. Foi Professor Visitante no Max-Planck-Institut für euro- päische Rechtsgeschichte, Frankfurt am Main, na Alemanha. Fundador, ao lado de Niklas Luhmann, em 1989, do Centro Studi sul Rischio (Università degli Studi di Lecce). É um dos mais relevantes estudiosos da Teoria dos Sistemas. Tiago Medeiros Leite Doutor em Ciências Jurídicas (PPGCJ/UFPB). Mestre em Direitos Humanos (PPGDH/UFPB). Docente no Curso de Direito das Faculdades Integradas de Patos – UNIFIP/PB. Desenvolveu Pesquisa Jurídico-Social na Facoltà di Giurisprudenza dell`Università del salento, Lecce, Itália. Pesquisador no Núcleo para Pesquisa dos Observadores do Direito – NUPOD/DG-CNPq. Advogado. E-mail: [email protected].
ISBN 978-65-84621-31-2 | Físico ISBN 978-65-84621-32-9 | Digital TRILOGIA DOS OBSERVADORES VOLUME II RAFFAELE DE GIORGI E OS OBSERVADORES Jonas Lemos Luciano Nascimento Silva Organizadores 1ª Edição 2022 direitoplural obras singulares
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