Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore 978-65-84621-32-9

978-65-84621-32-9

Published by Papel da palavra, 2022-09-05 19:46:07

Description: 978-65-84621-32-9

Search

Read the Text Version

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 49 Fechado operativamente, mas aberto cognitivamente. No nível da codificação, isso é, na utilização do código binário direito/ não direito, o sistema do direito é fechado operativamente, pois só exerce sua recursividade operacional das comunicações que se inclui neste código. O sistema do direito é aberto cognitivamente no que tange as programações. Além do código binário, o sistema se utiliza dos programas para ter a certeza de que os valores codificados estão sendo atribuídos de forma correta. Assim os programas condicionais estabelecem as condições das quais dependem algo para ser consi- derado legal ou ilegal. Para Carlos Gomes Jara-Diez, é no nível da programação que pode estabelecer que estímulos tem que proces- sar cognições. Por tanto, tomando mão da programação, o próprio sistema jurídico resolve os problemas de imutabilidade temporal e de capacidade de adaptação do sistema. Graças aos programas condi- cionais, o sistema jurídico pode realizar uma vinculação adequada entre autorreferência e heterorreferência.( Jara - Diez, 2005. 408). O sistema do direito, assim, está desligado do sistema da ética, da moral, da política. Como também são subsistemas cada um tem a sua própria função e não pode se comunicar com o outro sistema, apenas podem ser considerados como ruídos ou irritações, mas que não influem diretamente na comunicação jurídica. O direito, deste modo, é um sistema funcionalmente dife- renciado da sociedade moderna. A diferenciação do sistema do direito se verifica com uma e uma única função, a função de estabilizar as expectativas normativas que existem na sociedade. Desta forma, a função do sistema jurí- dico está ligada a idéia de norma. Entretanto, a norma, no sistema do direito não assegura um comportamento conforme a norma, mas protege a quem tem esta expectativa. Segundo Bernardo Feijoo Sanchez, no artigo La normativización del derecho penal, há que se aclarar que no pensamento de Luhmann a definição de norma

50 | Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos não corresponde exatamente com o conceito jurídico de norma, como parte do direito positivo, mas que tem um sentido mais fático. Expectativa normativa não é só a norma garantida juridicamente mediante sanções formalizadas, mas sim toda norma social que se mantem contrafaticamente vigente apesar de sofrer defraudações. (Jara Diez, 2005: 460-61). Segundo Luhmann na obra El dereho de la sociedad, a função do direito tem a ver com expectativas, mas não só com expecta- tiva enquanto estado atual de consciência de um indivíduo, mas em relação ao tempo do sentido na comunicação. E o tempo, aqui, se refere ao futuro. O direito descrimina: decidir a favor de um e contra o outro, isto é um marco de um tempo futuro que não pode ser previsto. As normas jurídicas constituem um entramado de expec- tativas simbolicamente generalizadas. Com isso não só produzem indicações gerais que são independentes das circunstâncias, mas que os símbolos estão referidos ao que não é visível e ao que não pode ser translúcido: o futuro. (LUHmann, 2006: 186-7) A referência temporal do direito, assim, está concentrada na função das normas, na intenção de se preparar, pelo menos no que diz respeito ao nível das expectativas, para um futuro incerto. Em vista do inegável incremento incontrolável das expecta- tivas normativas ( costumes, exigência moral, hábitos), o direito tem a função de estabilizar a expectativa da norma e isto só se pode levar a cabo quando existe uma seleção das expectativas que real- mente merecem a pena. Em concreto, a função do direito se trata de estabilização das expectativas normativas através da generalização dos aspectos tempo- ral, social e objetivo. O direito permite tomar conhecimento de quais expectativas tem respaldo social e quais não possui. Através da segurança que se obtém do sistema jurídico, uma pessoa pode

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 51 enfrentar os percalços de sua vida cotidiana com mais confiança de não ver-se desacreditado com relação as suas expectativas. Assim, o sistema jurídico é um sistema que opera na incer- teza, o futuro é visto sempre como algo incerto. Existe a incerteza se determinado comportamento vai se efetivar, como existe a incerteza se determinada sanção se vai aplicar. As incertezas não são elimi- nadas nem pela normatização, nem pela aplicação dos programas condicionais, mas tornam-se sustentáveis na medida em que adqui- rem a forma de incertezas contingentes. O sistema jurídico, assim, permite assinalar este valor de incerteza porque ele mesmo promete elucidá-la posteriormente, quando se chegar a uma decisão. A JUSTIÇA A questão da justiça se trata de uma auto-observação e auto- descrição do sistema, mas não no nível do código (legal/ilegal), mas sim no nível dos programas e na forma de uma norma. Deve-se partir da aceitação de que a justiça se pode entender como fórmula de contingência do sistema jurídico. Um sistema que processa suas operações internas mediante informações, sempre tem em vista outras possibilidades. Se o sistema jurídico realiza a função de estabilizar espectati- vas normativas, parece lógico permitir que a justiça apareça como norma, mas não como critério de seleção, e sim como uma exigên- cia de validez contra-fática que ainda se sustenta mesmo se houver caso de desengano. De forma mais geral, a fórmula da contingência da justiça se evidencia como igualdade. Igualdade designa unicamente um conceito formal que conota e exclui a desigualdade. A distinção igualdade – desigualdade, enquanto operação interna do sistema jurídico torna manifesto o fato que as condições de igualdade são

52 | Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos contemporaneamente condições de desigualdade, isto é, no direito existe igualdade porque existe a desigualdade. A justiça se pode designar como consistência da tomada de decisões. Entretanto, tal configuração se torna fraca ao observar que o sentimento de justiça aumenta a medida em que aumenta a legis- lação, a qual permite decidir casos iguais de forma desigual e casos desiguais de forma igual.a exigência da tomada de decisão consis- tente é insuficiente para a idéia da justiça. Na verdade, o valor da justiça está difundido no interior do sistema na forma de igualdade. Mas a igualdade como pré-requi- sito da decisão, e não uma condição de justiça. A Igualdade não e referida ao tratamento dos destinatários, mas igualdade dos casos jurídicos. Seria o caso de um tratamento desigual possível porque suficientemente motivado. Os procedimentos judiciais requerem que alguns ( no casos os juízes) vejam a validade da norma como vínculo para todos e que decidam de maneira consequente. É dizer que as decisões judiciais não podem introduzir diferenças diver- sas daquelas praticadas pelo direito e expressas nas suas normas ou impressas nos seus princípios. O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Os Tribunais, a partir do Século XIX, passaram a ter mais poderes interpretativos, não só aqueles que lhes eram conferidos pelos legisladores, mas se ocuparam de problemas diversos como a interpretação de contratos e da vontade dos contraentes. E tal fato se mostra evidente com a evolução do direito e na medida em que o direito moderno renuncia sua própria fundação baseado em pres- supostos externos, para se transformar em direito positivo, ou seja, o direito posto sobre si mesmo e privado de qualquer norma irre- nunciável. Dessa forma, com a completa positivação do direito, os

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 53 conteúdos jurídicos deixam de se ancorarem nos conceitos tradi- cionais, e ganham liberdade para se adaptarem as exigências do mutação social. Hoje se discute a pluralidade de métodos de interpretação das leis e cada vez menos se fala em dedução severa. Segundo Luhamnn na obra el derecho de la sociedad, o juiz enfrenta uma dupla exigên- cia: decidir sobre cada caso e decidir de maneira justa. Quer dizer, aplicar a igualdade nos casos particulares, isto é, as mesmas regras. A interpretação da lei, que na competência judicial desenvolve suas próprias regras, deve ser justa. A necessidade de que se decida e a liberdade que surge precisamente ao buscar razões, para chegar a uma decisão, resultam restringidas pelo ponto de vista da justiça. E essa tríade de necessidade-liberdade-restrição é a que produz o direito. (LUHMANN,2005: 366) Os tribunais, então, devem se empenhar através da particular forma de observação que é a interpretação da lei, de produzir uma série de processos decisionais destinados a estabelecer a correta apli- cação da norma proveniente da periferia, a controlar sua validade e a resolver eventuais incompatibilidades presentes em tais normas. Só por meio da organização se garante a universalidade da competên- cia do dever decidir/poder decidir sobre todas as questões jurídicas. Só aos tribunais corresponde a tarefa de superar o paradoxo do sistema do direito, decidir sobre todas as questões que lhe são postas, incluindo aquela que não se pode decidir( não se pode negar a justiça). Os tribunais devem decidir sobre qualquer demanda que se lhes apresente. Só eles devem, onde seja necessário, transformar a indeterminação em determinação, só eles fingem, quando é neces- sário, a indisponibilidade dos princípios, Só eles estão obrigados a decisão. Só eles gozam do privilégio de transformar a necessidade em liberdade.

54 | Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos E, é com base nestas premissas, da obrigatoriedade de deci- dir tudo que lhe é posto que o Supremo Tribunal Federal Brasileiro passou a julgar demasiados casos sobre o direito a saúde. A relevân- cia do tema se dá em face do crescente número de ações judiciais propostas em que se busca a proteção do direito à saúde, com as quais os tribunais têm se deparado e, consequentemente, com a crescente interferência judicial na atividade legislativa e executiva. Diante da situação, e após, diversas decisões em que se objetivava garantir o amplo direito a saúde, seja a pedidos individuais ou coletivos, foi que o Supremo Tribunal Federal passou a propor os limites a atua- ção judicial nas questões sobre o direito a saúde. A judicialização do direito à saúde, respeitado seu devido mérito de concretizar direitos sociais, muitas vezes reduz o tema ao fornecimento gratuito de medicamento ou tratamento médico. E, tal decisão se torna em um excesso, que pode ser prejudicial. Tanto, que no julgamento da STA 175-AgR/CE, o Supremo Tribunal Federal, em nenhum momento se propôs a definir o que é saúde, limitando-se ao seu contorno normativo constitucional. Na década de 90 e no início dos anos 2000, imbuídos do propósito de conferir plena efetivada às normas da Constituição recém promulgada, os Tribunais Superiores proferiram decisões em defesa da saúde - e dos direitos sociais, em geral -, sem qualquer consideração quanto às questões financeiras, orçamentárias, bem como quanto aos princípios da universalidade e isonomia que regem o sistema de saúde pública. É o que se denota, por exem- plo, do Recurso Extraordinário n. 271.286/RS, em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a obrigação do Município de Porto Alegre de fornecer gratuitamente medicamentos a favor de porta- dores hipossuficientes do vírus HIV (BRASIL, 2000). Posteriormente, à vista do efeito multiplicador e do grave impacto orçamentário e na própria saúde pública sob o aspecto

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 55 coletivo produzido por suas decisões, passou-se a considerar alguns critérios como condicionantes à intervenção judicial. Alguns debates têm sido travados no âmbito do Supremo Tribunal Federal com relação a interferência da justiça em questões de políticas públicas. Algumas teses estão sendo levantadas como por exemplo: a possibilidade de formulação de políticas públicas pelo Judiciário quando houver injustificada omissão por parte do Legislativo e Executivo ou ainda a injustiça que a judicialização excessiva e sem limites do direito à saúde pode causar. Os debates cresceram tendo em vista as questões orçamen- tárias, devido ao reconhecido impacto que milhares de decisões individuais podem causas às contas públicas, bem como uma maior preocupação com as consequências que tais demandas de massa podem provocar no Sistema Único de Saúde (SUS), no qual há um planejamento visando ao atendimento isonômico e universal. Não obstante a presença de tais questões nas discussões empreendidas no âmbito da Suprema Corte – e demais tribunais pátrios –, há muito, ainda, que se evoluir. É certo que a juridicização de matérias que, originalmente, gozavam de natureza estritamente política, abre margem à atuação do Poder Judiciário, aproximando, cada vez mais, o direito da política. Mas tal fato não pode ser funda- mento para decisões dos Tribunais. No mais das vezes, as decisões judiciais que refletem uma atuação ativa na implementação das políticas públicas se fundam no papel do Poder Judiciário de promover a concretização da ordem constitucional à vista de uma violação ativa ou de uma persistente omissão de quem quer que seja. O Poder Judiciário está condicionado a realizar a justiça no caso concreto, à revelia da análise da realidade política como um todo sistêmico e interdependente, de modo que o juiz, ao deci- dir a situação particular, não tem como dimensionar os efeitos que

56 | Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos aquele julgamento, somado a inúmeros outros, pode causar para o sistema público de saúde. O Supremo Tribunal Federal como órgão máximo do poder judiciário brasileiro exerce uma atuação judiciária excessiva, espe- cialmente na tentativa de efetivação do direito a saúde, que pode levar a um desequilíbrio nas finanças públicas e no próprio sistema da saúde. O problema não é o quanto de judicialização, mas como as questões judicializadas devem ser decididas. O judiciário deve intervir, mas nem sempre deve interferir, pois não faz parte da função do sistema do direito, resolver questões que dizem respeito a outros sistemas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a delimitação e análise sobre o tema, conclui-se que: 1 - O sistema do direito não se é especificado em base a um valor ou a um princípio. O direito, em outros termos, não se fecha na realização de uma ideia, não para em base a justiça. Isso não signi- fica que o sistema opere em um modo arbitrário. Significa que o direito é determinado pela estrutura, não por referência externa. O direito não tem a função de realizar o controle social, de resol- ver os conflitos ou de produzir a paz; 2 - a justiça não é um ideal, nem um valor, mas uma condição do sistema que descreve um nível de consistencia do decidir. E, ao citar Luhmann, aponta que a justiça não é fórmula da perfeição ou da necessidade, mas formula da contingência. O direito é só um dos componentes do código, o outro componente é o não direito. Quanto mais se produz direito, mais se produz o não-direito.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 57 3 - A justiça se pode designar como consistência da tomada de deci- sões. Entretanto, tal configuração se torna fraca ao observar que o sentimento de justiça aumenta a medida em que aumenta a legis- lação, a qual permite decidir casos iguais de forma desigual e casos desiguais de forma igual.a exigência da tomada de decisão consis- tente é insuficiente para a idéia da justiça; 4 - Os tribunais, então, devem se empenhar através da particular forma de observação que é a interpretação da lei, de produzir uma série de processos decisionais destinados a estabelecer a correta apli- cação da norma proveniente da periferia, a controlar sua validade e a resolver eventuais incompatibilidades presentes em tais normas. Só por meio da organização se garante a universalidade da competên- cia do dever decidir/poder decidir sobre todas as questões jurídicas. 5 - O Supremo Tribunal Federal, exerce na efetivação do direito à saúde, uma atuação judiciária excessiva, com potencial de provo- car um desequilíbrio nas finanças públicas e no próprio sistema de saúde. Malgrado seja notória a crescente preocupação com as questões adjacentes à implementação de políticas públicas de saúde, enten- de-se que o debate judicial, que apresenta muitas peculiaridades, ainda não atingiu um nível satisfatório, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo, quanto no que se refere aos atores participantes das discussões. A realidade revela que a judicialização do direito à saúde ocorre, quase sempre, em demandas individuais, que apresen- tam ao juiz apenas os pontos de vistas das partes, desconsiderando outros atores sociais. O judiciário deve intervir, mas nem sempre deve interferir, pois não faz parte da função do sistema do direito, resolver questões que dizem respeito a outros sistemas.

58 | Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos REFERÊNCIAS BRASIL. Supremo Tribunal Federal. “Recurso Extraordinário n. 271286/ RS”. Relator: Celso de Mello - Segunda Turma. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 12 de setembro de 2000. Disponível em: <http://stf. jusbrasil.com.br/jurisprudencia/779142/agregno-recurso-extraordinario- -re-agr-271286-rs>. Acesso em: 19 de nov. 2015. DE GIORGI, Raffaele. Referenza e Ostaculo. In: Temi di filosofia del diritto. Lecce:Pensa,2006. _____. Stato e Diritto alla fine del secolo. In Temi di filosofia del diritto. Lecce;Pensa,2006. DIEZ. Carlos Gomez J. Teoría de Sistema y Derecho penal: culpa- bilidad y pena en una teoria constructivista del derecho penal, in. DIEZ, Carlos Gomes J. Teoria de sistemas y derecho penal. Fundamentos e possi- bilidades. Comares, Granada, 2005. LUHMANN, NIklas. El derecho de la sociedad. México:Herder,2005. SANCHEZ, Bernardo Feijoo. La normativizacion del derecho penal: hacia una teoría sistemica o hacia una teoria intersubjetiva de la comu- nicación?. DIEZ, Carlos Gomes J. Teoria de sistemas y derecho penal. Fundamentos e possibilidades. Comares, Granada, 2005.

O PODER JUDICIÁRIO COMO OBSERVADOR DECISÓRIO Carlos Wagner Dias Ferreira Per costruire teorie è necessario trasformare ovvietà in problemi, diceva Luhmann. Sorprendersi e inventarsi, diceva Heinz von Foerster. E cosi La scienza diventa poesia perché cognizione è comportamento, conoscenza è costruzione, invenzione del sé che inventa un mondo, invenzione della machina nella quale la percezione percepisce se stessa. Raffaele De Giorgi CONSIDERAÇÕES PREAMBULARES Nesta nova era da sociedade atual, em que cada vez mais se intensificam redes de comunicação e de interação, ganha importância apreciar que papel o Poder Judiciário desempenha, ao observar fatos sociais já jurisdicizados e que, através de sua observação, termina por proferir decisões constituindo e criando o próprio direito. A decisão, em geral, e, no caso do Judiciário, a decisão judi- cial passa, no palmilhar de Luhmann, a se constituir no paradigma

60 | Carlos Wagner Dias Ferreira central do direito, como acentua Castanheira Neves[3]. Para o profes- sor lusitano, decisão “é a opção resolutiva que a si própria se afirma ou impõe”, sendo “desvinculada quanto ao conteúdo e relativa- mente a uma qualquer pré-determinação, ainda que porventura num quadro alternativo de possibilidades em que apenas se esco- lhe”[4]. Consoante entende, decisão, pois, seria o resultado de uma opção entre as várias alternativas existentes, só eleita no processo judicativo decisório[5]. A comunicação, na linha de Luhmann, é um evento impro- vável, que se realiza a partir da informação, do ato de comunicar e da compreensão[6]. Mas a comunicação não existe sem que haja a figura do observador. O Poder Judiciário também assume as vestes de verdadeiro observador. O observador que observa, mas não consegue se autoobser- var, provoca relevante e até mesmo decisivo impacto na constituição da decisão jurídica e, primordialmente, na construção da decisão judicial (observação de segunda ordem). 3   Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz”, ou entre “sistema”, “função” e “problema” – os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicio- nal do direito. In: Digesta. Vol. 3º. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 185. 4   Metodologia jurídica: Problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 32. 5   Ibidem, pp. 71-72. 6   Teoria della Società. Milano: FrancoAngeli, 2003, p. 61. O primeiro de seus elementos essenciais, a informação, entrelaça-se com a possibilidade de alar- gamento da capacidade cognitiva, na medida em que “com l’auito degli altri ci si può procurare molte più informazioni e, cio che più conta, in un modo più rapido di quanto non sarebbe possibile fare attraverso i propri organi di senso. La soluzione del problema sembra esser data, allora, dallo sviluppo simultaneo di una estrema dipendenza sociale e di un alto grado di indivi- dualizzazione: questo sviluppo sarebbe raggiunto mediante la costruzione di un complesso ordine della comunicazione fornita di senso, la quale deter- minebbe poi l’ulteriore evoluzione dell’uomo” (Ibidem, p. 63).

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 61 Neste sentido, almeja este estudo analisar como se operacio- naliza, por meio da observação, a produção da decisão judicial pelo Poder Judiciário. A OBSERVAÇÃO NA COMUNICAÇÃO O ato de observar não é tão singelo como se imagina. A obser- vação constrói a realidade e constitui o direito e qualquer objeto que se deseje criar. Essa criação corporifica-se pela decisão obser- vada. A decisão, antes da efetiva decisão, não é a mesma daquela depois da decisão, e no exato momento em que se decisão não é possível observá-la[7]. Heinz Von Foerster aponta contradições na teoria do conhe- cimento, desenvolvida no primeiro quarto do século passado, que defendia a concepção de uma ciência definitiva em busca de uma descrição objetiva do mundo sem subjetivismos e, portanto, despida de visões e óticas pessoais dos sujeitos. E, para eliminar tais contradi- ções, sugere a necessidade de se admitir, ao menos, um observador (um sujeito) e de se deixar de compreender as observações como apreciação absoluta do objeto, na medida em que representam apenas uma particular percepção do observador. Ladeado a isso, ainda propugna que o ato de observação influencia o objeto obser- vado a ponto de torná-lo imprevisível até mesmo para o próprio observador[8]. Em Luhmann, observar é uma operação de distinguir e indi- car uma e outra parte que se desencadeia em um mesmo instante em sistemas autopoiéticos, porém o observador não pode ver a si 7   LUHMANN, Niklas. Organisation und Entscheidung, Opladen/Wiesbaden: Westdeutcher Verlag, 2000, p. 171. 8   Sistemi che osservano. A cura di Mauro Ceruti e Umberta Telfner. Roma: Casa Editrice Astrolabio, 1987, p. 152.

62 | Carlos Wagner Dias Ferreira mesmo[9]. Segundo constrói, “L’osservazione dell’osservare non ha altra funzione che quella di agire come filtro per gli errori della conos- cenza. Anche gli altri osservatori, se li si osserva, sono oggetti”[10]. É possível ainda apontar a existência de uma observação de primeira ordem e outra observação de segunda ordem. A de primeira ordem, baseada em valores, guia o observador a agir. O observador de segunda ordem medita sobre a semântica dos valores utilizada na comunicação[11]. O observador do observador, longe de se reve- lar como um melhor observador, é apenas um outro observação e, pois, uma outra observação[12]. Para Von Foerster, a ordem não decorre da estrutura da coisa em si considerada, mas da forma como o observador a percebe. E exemplifica no caso de duas sequências numéricas (A: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e B: 5, 2, 9, 8, 4, 6, 7, 3, 1). A primeira vista somente a A obedeceria uma ordem, a B, não. Porém, a B também atenderia uma ordem, a alfabética (cinco, dois, nove, oito, quatro...), de sorte que tudo poderia ser concebido como ordem, bastando que fosse assim compreendido. Por isso, o que importa não é associar lei e ordem, mas que tipo de lei e qual ordem se deseja[13]. Neste sentido, 9   DE GIORGI, Raffaele. Teoria della Società, p. 23/24. Luhmann desdobra ainda a ideia, quando leciona que: “La distinzione che l’osservatore rispet- tivamente utilizza per indicare l’una o l’altra parte, serve come condizione invisibile del vedere, come punto cieco. E questo vale per ogni osservare, indipendentemente dal fatto che l’operazione sia psichica o sociale, che venga realizzata come processo attuale della conscienza o come comunica- zione” (Ibidem, p. 24). 10   Organisation und Entscheidung, p. 351. 11   Ibidem, p. 395. 12   Ibidem, p. 400. 13    Op. cit, pp. 120/121. Para tanto, Von Foerster invoca uma comédia de Aristofane: “gli uomini più saggi di um certo paese si accingono a risol- vere um problema che, in linea di principio, è insolubile. Essi infatti si

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 63 a ordem e a desordem seriam invenções, e não propriamente uma descoberta, que dependeria da linguagem utilizada e de sua forma para abordar tais fenômenos[14]. O diálogo, inequivocamente, representa uma forma de comu- nicação que liga dois ou mais pontos ou sinais comunicantes. No diálogo, inexiste uma pretensão de hierarquia, embora nem sempre se esteja diante de situações de equilíbrio entre os polos que se comu- nicam. Mas isso não afasta o perfil de horizontalidade nele impresso. Adverte von Foerster que a noção de comunicação, frequen- temente, vem ligada à troca de informações, como se fosse um tubo em que se deixa cair um produto por uma das extremidades até se alcançar o outro vértice, repetindo a operação em sentido inverso para se chegar à extremidade inicial. A comunicação compreenderia esse processo na íntegra a revelar uma espécie de troca de infor- mações. Contudo, para ele, não seriam informações a circular de um ponto a outro, mas sinais. Idêntica parábola poderia, de igual modo, ser atribuída à palavra “diálogo”. Diálogo corresponderia a uma troca de “idee ed opinioni o uno scambio di pensieri e sensa- zioni”[15]. Do mesmo modo, seriam sinais, e não necessariamente diálogo. Apenas se constituiria em diálogo ou conversação quando se compreende o sinal, entende o seu significado[16]. propogono di stabilire, una volta per sempre, tutte Le proprietà caratteris- che di un oggetto o di un atto osceno. Ovviamente, l’`oscenità`non è una proprietà inerente alle cose, ma una relazione soggetto/oggetto, poisché se mostriamo al signor X um quadro, e questi lo definisce osceno, ciò ci dice molto sul signor X, ma pochissimo risguardo al quadro. Ecco dunque che quando i nostri legislatori immaginari alla fine arriveranno a compilare la loro lista, verremo a sapere molto su di loro, ma le loro leggi saranno assurde e pericolose” (ibidem, p. 120). 14   Ibidem, pp. 193 e 199. 15   Ibidem, pp. 169-170. 16   Ibidem, p. 171.

64 | Carlos Wagner Dias Ferreira E se há diálogo, no olhar de von Foerster, no sentido de todos estarem a participar, a utilização de expressões do outro termina por abrir novas perspectivas, valendo-se de diferentes fontes e elemen- tos em contínuo e permanente processo de interpretação, que permitam estabelecer novas conexões de pensamento nunca antes empreendidas[17]. Seria, metaforicamente exemplificado por Gustavo Zagrebelsky, como a refração de um espelho em que alguém vê a si mesmo através do outro em uma relação de mesmo nível, sem um hierarquia preestabelecida, participando os dois sujeitos dialo- gantes do mesmo processo de construção histórica[18]. Mas, será que essa perspectiva dialogante confunde-se com a famosa dialética? Ao que parece, não. São, inegavelmente, concep- ções diversas. Hegel considera a dialética método da ciência para estabe- lecer conceitos, já que se desenvolve a partir de si mesmo através da progressão e produção de particularizações do universal[19]. Há muito Platão já havia conceituado dialética como o único método “que procede, por meio da destruição de hipóteses, a caminho do autêntico princípio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie de lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas, utilizando como auxiliares para ajudar e conduzi-los as que antes analisámos”[20]. 17   Ibidem, p. 34. 18   La Legge e la sua Giustizia. Bologna: Il Mulino, 2008, pp. 405-406. 19   Grundlinien der Philosophie des Rechts. Berlin: Nicolaischen Buchhandlung, 1821, p. 118. 20   República. 14ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 347.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 65 O OLHAR DECISÓRIO DO JUDICIÁRIO NA OBSERVAÇÃO O Poder Judiciário e, em particular, os juízes e tribunais, desempenham função primordial na circulação e operacionalização sistêmica das decisões judiciais. Decisões influenciam e interagem com outras decisões, criando outras mais. Luhmann eleva as decisões dos tribunais à posição central no sistema jurídico[21]. E os tribunais teriam o papel de supervisionar a consistência das decisões jurídicas (leis, contratos, testamentos, entre outros). Esse olhar configuraria a observação de segunda ordem (Beobachtung zweiter Ordnung) que observa as decisões jurídicas, que, por seu turno, já observou o direito (observação de primeira ordem), através da interpretação. Os tribunais interpretam, mas o fazem de modo diverso mediante a argumentação, para comprovar a racionalidade de suas decisões judiciais[22]. Observação de segunda ordem é a observação dos observa- dores (Beobachtung von Beobachtern) que se diferencia da observação já realizada de primeira ordem incidente sobre atores e vítimas, tendo o papel de examinar a relação com o mundo de acordo com o direito ou em desacordo com ele (observação que analisa a lici- tude e a ilicitude)[23]. Na linha de Luhmann, os tribunais seriam organizações e, neste palmilhar, poderiam harmonizar-se entre eles intensa intera- ção através de premissas decisionais[24]. E as organizações, por sua vez, sistemas autopoiéticos que se produzem e se reproduzem a si 21   Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1993, p. 307. 22   Ibidem, p. 327. 23   Ibidem, p. 70. 24   Teoria della società, p. 330.

66 | Carlos Wagner Dias Ferreira mesmas a partir das próprias operações. Essas operações nada mais se apresentam do que as decisões[25], ou melhor, comunicações de decisões (Kommunikation von Entscheidungen)[26]. Essa modalidade operativa exige contínuo reforço de informações e de motivos, que se obtem no próprio sistema, mas também podem receber estímu- los do ambiente[27]. Os tribunais, portanto, no pensamento de Luhmann, consubs- tanciam organizações e, como tais, somente se criam a partir de tribunais, cujo crescimento notabilizar-se-ia pela interação mediante a rede de relações interorganizacionais[28]. As organizações, ao contrário do que se pode imaginar, não seriam concebidas na ótica luhmanniana como vínculos e liames entre pessoas, mas como transformação de decisões em decisões[29]. Os elementos do sistema seriam as decisões e, na hipótese de tribu- nais, judiciais, cujas operações sistêmicas desenrolar-se-iam através da prolação de decisões mediante a interferência e o diálogo com outras decisões anteriores. No século XIX, relembra Luhmann que a teoria da organi- zação apoiava-se na hieraquia desde o vértice e na decisão racional e eficiente dada na perspectiva de um indivíduo[30]. Daí não se surpreen- der com a ideia mais comum que se formou a respeito de decisão 25    Organisation und Entscheidung. Opladen/Wiesbaden: Westdeutcher Verlag, 2000, p. 9. 26   Ibidem, p. 63. 27   Ibidem, p. 71. 28   Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimiento comunica- tivo. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial, 2005, p. 60. 29   Organisation und Entscheidung, p. 376. 30   Organisation und Entscheidung, p. 44.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 67 como processo de escolha de uma opção entre várias possibilida- des, sendo fruto de um “posso, quero e mando”[31]. No entanto, na ótica de Luhmann, como bem sintetiza Artur Stamford da Silva, decisão jurídica não resulta de ato de escolha, nem de poder (arbitrariedade) quer individual ou coletivo, nem de comunidade de intérpretes, nem uma questão exclusivamente política ou económica, nem de consenso[32]. Decisão jurídica, por isso mesmo, não diz respeito à legislação em si mesma considerada, nem à interpretação ou argumentação, nem muito menos desfruta de relação com a cultura jurídica, pois se consubstancia mediante a operação de observação de primeira ordem do sistema jurídico[33]. Assim, decisão jurídica não se equipara à decisão judicial ou judiciária, já que aquele representa a observação de primeira ordem, enquanto a segunda, observação de segunda ordem[34]. As decisões dos tribunais, que se dá pela interpretação por argumentação, é “uma observação da auto-observação que o sistema jurídico já fez de si mesmo”[35]. 31   BRONZE, Fernando José. Breves considerações sobre o estado actual da questão metodonomológica. In: Analogias. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 15. 32   Teoria reflexiva da decisão jurídica: observações a partir da teoria dos siste- mas que observam. In: Juridicização das Esferas Sociais e Fragmentação do Direito na Sociedade Contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 33. 33   Ibidem, p. 47. 34   Ibidem, p. 34. 35   Ibidem, p. 49. Artur Stamford da Silva desdobra esse pensamento ostentando que: “Distintas da decisão jurídica, a decisão judicial e a decisão judiciá- ria são observações de segunda ordem, pois observações das observações já processadas autopoieticamente pelo sistema jurídico. Como, pois, observa- ções de segunda ordem, a decisão judicial e a judiciária são argumentações legislativas, doutrinárias (dogmática, filosófica, sociológica), contratuais, jurisprudenciais (Poder Judiciário), peticionárias (decisão tomadas por

68 | Carlos Wagner Dias Ferreira Decisões, em Luhmann, são observações, que se revelam por distinções a que denomina de alternativas. A alternativa é a que faz de uma observação a decisão e torna, ao mesmo tempo, parti- culares espécies de distinções em que cada um dos lados pode ser indicado[36]. E só a alternativa faz da decisão uma decisão[37]. A autopoiese de decisões torna sólido o sistema e o orienta para o futuro, traçando uma diferença entre a decisão tomada no passado e no futuro[38]. Luhmann, ao tratar da relação entre decisões, aponta três carac- terísticas assentadas na unidade, seletividade e temporalidade. Em princípio, devem as decisões se apresentarem como unidade hábil a servirem de premissas para outras decisões posteriores no tempo. Além disso, impõe que se selecione uma entre as várias alternati- vas e que, por esse motivo, estabeleçam ligações ou as impeçam com outras decisões[39]. As relações entre decisões nos sistemas advogados, promotores, delegados, procuradores), e ainda argumentos de não juristas. Ou seja, são informações a serem processadas pelo sistema jurí- dico de forma a poderem vir a constituir ou não o sentido de lícito e ilícito, conforme o sistema jurídico venha a observar tais informações. Para suprir a confusão que ocorre com o uso dos termos interpretação e argumentação como observação de primeira ordem, propomos os seguintes usos terminológicos: decisão jurídica como distinção produzida pelo sistema mesmo, incontro- lável por qualquer indivíduo ou coletividade, fruto da autopoiesis do direito, da redundância de comunicação sobre o sentido de lícito e ilícito; decisão judicial como distinção produzida por juristas ou demais sistemas sociais, de forma que, por acoplamento estrutural, influenciem (ou não) a constru- ção de sentido do direito da sociedade; decisão judiciária como distinções (interpretações e argumentações) produzidas exclusivamente pelos tribu- nais superiores” (Idem, pp. 50-51). 36   Organisation und Entscheidung, pp. 132-133. 37   Ibidem, p. 135. 38   Ibidem, p. 162. 39   Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimiento comunicativo, p. 17.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 69 organizacionais constituem-se no primeiro conteúdo da decisão, uma vez que se decide porque já se decidiu ou para que se decida. Há inegável implicação recíproca entre as decisões, demarcando os contornos de uma e de outra[40]. A conexão entre decisões fazem com que as decisões anteriores sejam pressupostos para a prolação de decisões ulteriores[41]. Essa rede recursiva autopoiética torna as decisões referências para outras decisões e também sofrem influências dessas outras deci- sões[42]. No entanto, não se pode garantir uma coordenação livre de atritos das operações do sistema, sobretudo em decorrência do fator tempo. Em cada momento do tempo, a reação às irritações podem repercutir diferentemente[43]. Como já advertiu Luhmann, a integração entre as organizações, ao contrário do que se imagina, não conduz ao consenso, como sempre defendeu Habermas, mas a limitação do grau de liberdade dos sistemas organizacionais e, portanto, podendo levar ao dissenso[44]. 40    Ibidem, p. 21. E, ainda, desdobra essa concepção destacando que: “La presión de decisión conduce al almacenamiento de decisiones o de elemen- tos de decisión para el uso repetido. La decisión, en consecuencia, se prepara mediante La reunión de componentes prefabricados, sobre los quales se ha decidido en outro tipo de decisiones. La diferencia real de estas situacio- nes de decisión es sobrepasada. La pregunta directriz es: qué es lo que ya tenemos?; y no: qué alternativas para la decisión concreta que corresponde adoptar?” (Ibid, p. 83). 41   LUHMANN, Niklas. Organisation und Entscheidung, p. 175. 42   Ibidem, p. 230. 43   Ibidem, p. 239. 44   Ibidem, p. 99.

70 | Carlos Wagner Dias Ferreira É oportuno realçar que, na doutrina luhmanniana, não existe uma única solução correta para as decisões, mas soluções satisfató- rias, a depender da forma como a organização chega a decisão[45]. Para Luhmann, a absorção da incerteza só vem quando as decisões são coligadas a outras decisões[46]. Ou, como diz em outras palavras, a conexão entre decisões absorve a incerteza, construindo decisões por meio de decisões e estruturas mediante decisões sobre premissas decisionais[47]. O grande desafio, porém, é saber se a ideia luhmanniana de premissas decisionais pode ser usada no diálogo entre decisões judi- ciais. Premissa decisional seriam aqueles dados ou pressupostos já testados, sem que se busque a verdade nela constante, objetivando a absorção da incerteza. Não se confunde com as decisões anteriores que se constituem em pressupostos para as decisões posteriores[48]. Um aspecto de enorme relevo e que não pode ser, de forma alguma, desprezado é reconhecer que a analogia encontra-se em todos os tipos de pensamentos, sendo, como bem enaltece Castanheira Neves, “o conteúdo intencional de todo o pensamento”[49]. A analo- gia baseia-se na lógica do “particular a particular, de semelhante a semelhante”[50], afastando-se dos tradicionais métodos dedutivo (subsunção da lei ao caso concreto ou silogismo legal) e indutivo como critérios por demais conhecidos de aplicação do direito. 45    Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimiento comuni- cativo, p. 35. 46   Organisation und Entscheidung, p. 195. 47   Ibidem, p. 304. 48   Ibidem, pp. 222-223. 49   Metodologia jurídica, p. 238. 50   Ibidem, p. 259.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 71 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de tudo que fora visto neste trabalho, pode-se inferir que os tribunais, como organizações que se comunicam e se repro- duzem a partir de decisões, ou melhor, comunicações de decisões (Kommunikation von Entscheidungen)[51]. Essas decisões, a bem da verdade, são observações, que se reve- lam por distinções a que denomina de alternativas. A alternativa é a que faz de uma observação a decisão e torna, ao mesmo tempo, particulares espécies de distinções em que cada um dos lados pode ser indicado. E só a alternativa faz da decisão uma decisão[52]. Essa rede de observações torna as decisões referências para outras decisões e também sofrem influências dessas outras decisões. No entanto, não se pode garantir uma coordenação livre de atri- tos das operações do sistema, sobretudo em decorrência do fator tempo. Em cada momento do tempo, a reação às irritações podem repercutir diferentemente. A integração entre as organizações, ao contrário do que se imagina, não conduz apenas ao mas também, em muitos casos, ao dissenso. 51   Ibidem, p. 63. 52   Ibidem, p. 135.

72 | Carlos Wagner Dias Ferreira REFERÊNCIAS BRONZE, Fernando José. Breves considerações sobre o estado actual da questão metodonomológica. In: Analogias. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. DE GIORGI, Raffaele. Temi di Filosofia del Diritto. Lecce: Pensa MultiMedia, 2006. FOERSTER, Heinz von. Sistemi che osservano. A cura di Mauro Ceruti e Umberta Telfner. Roma: Casa Editrice Astrolabio, 1987. HEGEL, Georg W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Berlin: Nicolaischen Buchhandlung, 1821. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1993. _____. Organisation und Entscheidung. Opladen/Wiesbaden: Westdeutcher Verlag, 2000. _____. Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimiento comuni- cativo. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial, 2005. LUHMANN, Niklas, DE GIORGI, Raffaele. Teoria della Società. Milano: FrancoAngeli, 2003. NEVES, Castanheira. Metodologia Jurídica: Problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. _____. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz”, ou entre “sistema”, “função” e “problema” – os modelos actualmente alternativos da realização juris- dicional do direito. In: Digesta. Vol. 3º. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. PLATÃO. República. 14ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 73 SILVA, Artur Stamford da. Teoria reflexiva da decisão jurídica: observa- ções a partir da teoria dos sistemas que observam. In: Juridicização das Esferas Sociais e Fragmentação do Direito na Sociedade Contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. ZAGREBELSKY, Gustavo. La Legge e la sua Giustizia. Bologna: Il Mulino, 2008.



CULTURA VISUAL, VISIBILIDADE E DIREITO Eduardo R. Rabenhorst OS ESTUDOS SOBRE CULTURA VISUAL Em uma época em que as experiências visuais se tornaram tão centrais, constituindo-se em modo privilegiado de expressão e de comunicação, não é de causar espanto o surgimento de uma área de estudos interdisciplinar que vem recebendo o nome de “Estudos sobre cultura visual” ou simplesmente “cultura visual”. Cultura é um termo pretensioso, com um largo campo de expressão. Porém, ao se falar em “cultura visual” não se está enfatizando outra coisa senão a cultura como processo de produção e circulação de sentidos dentro de um grupo, algo que se dá por meio de práticas e discursos comuns. O que se busca destacar com a expressão “cultura visual”, portanto, é o fato de que alguns aspectos da cultura são “eventos visuais”: imagens, objetos e experiências. Em outros termos, que os diversos grupos constroem, cultural e historicamente, manei- ras diferentes de visualizar e de representar visualmente a realidade (modelos de visibilidade, agentes, processos e objetos). Como elucida Gonzalo Abril, a “cultura visual” “é uma forma de organização sócio-histórica da percepção visual, da regulação das

76 | Eduardo R. Rabenhorst funções da visão e de seus usos epistêmicos, estéticos, políticos e morais”. Do mesmo modo, é uma maneira socialmente organizada “de criar, distribuir e inscrever textos visuais, processo que implica sempre umas determinadas tecnologias de fazer visível, técnicas de produção, reprodução e de arquivo” (ABRIL, 2013:35). Falar de “cultura visual” é questionar a ideia de universalidade da experiência visual. É reconhecer que a visualização não pode ser reduzida ao conjunto de operações ópticas, químicas e nervosas envolvidas na visão, mas que o “ver” é uma operação igualmente submetida a uma gestão social, isto é, que se trata de uma prática afeita a um conjunto de instruções bastante precisas: quem vê, quem é visto; como se vê, como se é visto. Esse modo como o olhar é construído socialmente recebe o nome de visibilidade. O que se busca destacar nessa ideia, em primeiro lugar, é o fato de que há ordenações do ver e do ser visto, dos modos de fazer ver e dos modos de ser visto. Tais ordenações, chamadas “regimes de visibilidade” têm formação histórica, dependem de instituições intermediárias que as modelam e as modulam, e estão submeti- das à lógica do poder político, ou seja, cada sociedade, por razões concretas e com uma estratégia determinada, decide, em uma situa- ção dada, utilizando um meio específico, tornar visível ou invisível algo. Nesse sentido, um regime de visibilidade consiste não somente naquilo que é visto, mas naquilo que torna possível o que se vê. Em outros termos, há que se diferenciar a visualidade ou visua- lização, que se refere ao dado físico que é percebido pela vista, ligada às capacidades físicas de nosso sentido visual e às propriedades espaciais e temporais das circunstâncias nas quais o visualizador se encontra (campo de visão), da visibilidade propriamente dita, que diz respeito aos mecanismos socioculturais partilhados que cons- tituem e regulam os modos de ver e as experiências visuais, isto é,

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 77 às estratégias que transformam a percepção psicofísica em fluxo propriamente semiótico. O interesse pelo estudo da “cultura visual” seria limitado a algumas disciplinas específicas, especialmente a antropologia e a história da arte, não fosse o fato de que as experiências visuais se tornaram paradigma de nossa época. Vivemos em uma cultura que modificou completamente a concepção da percepção visual em termos de modo de produção do fenômeno visual e do surgimento de novos objetos de visão, uma cultura que fez massivamente da imagem o meio privilegiado de representação, produção de signi- ficado e de comunicação. Daí a ideia de alguns autores de que após o linguistic turn, que textualizou no século XX a realidade social, teria chegado agora o momento de se propor uma visual turn, que atribuiria à visualidade o papel de tópico central das discussões (MIRZOEFF, 1998:5). No âmbito dos estudos sobre “cultura visual”, interessa compreender, entre tantos temas, como, por exemplo, a visibilidade ganhou tamanha amplitude no mundo moderno em detrimento do invisível e do secreto, mas também em prejuízo da própria “pala- vra” como forma de expressão. Em outros termos, trata-se de saber como passamos do “mundo como texto” ao “mundo como imagem”. Por outro lado, os estudos sobre cultura visual também buscam compreender as modificações impostas por essa centrali- dade da visão em diferentes níveis da funcionamento da sociedade (trabalho, lazer, conhecimento etc.) e entender as transforma- ções infligidas aos outros modos de ser e de sentir dos indivíduos. Outrossim, os estudos sobre “cultura visual” também perquirem como a visibilidade se tornou um valor central da política, afetando de modo particular a própria compreensão da democracia como exercício público do poder.

78 | Eduardo R. Rabenhorst Muito por conta dessa amplitude temática, os estudos sobre “cultura visual” foram alvo de críticas que destacaram alguns proble- mas teóricos e metodológicos, especialmente a ausência de um objeto de estudo bem definido. Para Mieke Bal (2004), teórica da Universidade de Amsterdam, por exemplo, esse objeto de estudo não poderia ser a visualidade em sua pureza, vez que o ato de ver seria inerentemente sinestésico e multissensorial, não podendo ser essencializado. W. J. T. Mitchell (2003), por sua vez, além de concor- dar com essa perspectiva de interação da visão com outros sentidos, destaca a importância de se conceber a “cultura visual” de modo dialético, isto é, não apenas como “construção social do campo visual”, mas também como “construção visual do campo social”. VISIBILIDADE E DIREITO De todo modo, pode-se indagar, em que medida essas discus- sões sobre visão, visualidade e visibilidade interessariam ao direito? Em outros termos, quais seriam as dimensões jurídicas do tema da visibilidade? Para além das tradicionais questões atinentes à imagem que interessam os juristas desde o surgimento da fotografia e do cinema, e mais recentemente, as questões específicas suscitadas pelo surgimento das imagens numéricas, outros aspectos também acen- dem preocupações entre aqueles que se dedicam à reflexão teórica sobre o direito: a visibilidade como forma de reconhecimento social, a repartição social do visível, o “direito de olhar” e a visibilidade como vigilância e controle, para citar alguns. Andrea Brighenti, sociólogo italiano do direito, tem procu- rado mostrar em seus escritos que a visibilidade faz confluir o ato físico de ver, as novas tecnologias do visual e os elementos discur- sos que elaboram o que é a visão, ou seja, que a visibilidade conjuga “relações de percepção” (aspecto estético) com “relações de poder”

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 79 (aspecto político). Para Brighenti, os efeitos da visibilidade dependem de arranjos territoriais, relacionais, organizacionais e tecnológicos particulares, algo que evidencia o papel importante que desempe- nha o direito nesse processo enquanto modalidade de simbolização da ação humana por intermédio de normas. Donde a importân- cia de se entender que na visibilidade estão confluídos o ato físico de ver, as novas tecnologias do visual e os elementos discursos que elaboram o que é a visão, ou seja, que a visibilidade conjuga rela- ções perceptivas com relações políticas. No entender de Brighenti, três grandes aspectos estão envolvidos na categoria da visibilidade enquanto fato social: o reconhecimento social, a vigilância e a espetacularização. Tanto por conta de suas genealogias quanto em razão de seus desdobramen- tos, esses aspectos da visibilidade estão completamente imbricados, porém nos limites desse curto texto eles serão analisados em tópi- cos separados. VISIBILIDADE E RECONHECIMENTO A capacidade de ver e de ser visto não repousa apenas em qualidades naturais, mas é algo que depende largamente de regras sociais, podendo inclusive se transmutar em exigência política em torno da qual os atores individuais e coletivos entram em confronto (VOIROL, 2005). A luta por visibilidade, conforme observou Axel Honneth (2004), é parte da “luta por reconhecimento”, ainda que “ser visível” não seja garantia de ser “reconhecido”. No entender de Honneth, há dois momentos que configuram o ato de reconhe- cimento: o momento da identificação cognitiva, que ocorre quando o sujeito ou o grupo é visto pelo outro a partir de suas características particulares, e o momento da expressão, quando ocorre a demons- tração pública deste reconhecimento.

80 | Eduardo R. Rabenhorst No âmbito de uma sociedade liberal, quando indivíduos ou grupos são invisíveis, de modo absoluto ou relativo, isso significa, do ponto de vista jurídico, que as estruturas legais criadas para promo- ver a liberdade e a igualdade não funcionam ou que elas funcionam com menos rigor quando se trata de determinados segmentos. A invisibilidade social, além de denegar a participação justa dos grupos na cena pública, serve para reforçar ideias estereotipadas acerca de seus membros. Muitos dos movimentos em favor de direitos de um determinado grupo são movimentos por visibilidade. Do mesmo modo, muitas violações de direitos humanos estão conectadas à questão da visibilidade: mulheres, pessoas com deficiência, pessoas expostas à situação de rua, detentos, doentes mentais internados, imigrantes, prostitutas etc. Daí a necessidade de se pensar a ideia de uma “visibilidade justa”. É preciso observar, no entanto, que a visibilidade não opera sem ensejar ambivalência, como bem mostraram N. Aubert e C. Haroche (2011). Alguns grupos sociais, por exemplo, são invisí- veis sob certo ângulo, porém são excessivamente visíveis sob outro. O caso das mulheres é bastante ilustrativo. Invisíveis do ponto de vista social em muitos aspectos, elas são, em contrapartida, exces- sivamente “visíveis” nos meios de comunicação e na publicidade, quase sempre a partir de representações visuais que reforçam este- reótipos de gênero e buscam disciplinar o corpo do sexo feminino. O mesmo pode ser dito em relação a outras manifestações da visibilidade operadas pelos meios de comunicação que manipulam códigos de representação e expõem a vida íntima e os laços afetivos à vida pública: reality shows, revistas de celebridades, redes sociais etc. Para além das questões de ordem social, estética e até mesmo psicanalíticas, há efeitos políticos e jurídicos nesses processos que deveriam interessar aos juristas, notadamente questões de justiça ligadas à representação mediática e a maneira pela qual o direito

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 81 considera atualmente os chamados “direitos morais” (respeito, consideração, dignidade etc.). Por outro lado, prossegue Brighenti, é importante reconhecer que a visibilidade não depende apenas daquele que olha, mas igual- mente daquele que é olhado. Há uma forma de ver, mas há também uma forma de ser visto. Para certos grupos sociais a visibilidade é por isso mesmo ameaçadora. Estar visível pode ser uma armadilha. Para moradores de rua no Brasil, por exemplo, sempre expostos à violência, a invisibilidade é uma estratégia de sobrevivência. Como observa Brighenti (2013), o espaço público não é apenas o espaço de acesso comum que possibilita a discussão racional, mas é também o espaço de “afecções”, de impressões afetivas que conduzem à ações irrefletidas. Do domínio da afetividade nunca é possível se excluir os efeitos afetivos ambivalentes ou incontroláveis advindos com a visibilidade de um grupo. Nesse sentido, a visibili- dade reivindicada como direito é sempre uma via de mão de dupla, podendo se transformar em vigilância e espetáculo, algo que enseja distorções no processo de reconhecimento. VISIBILIDADE E VIGILÂNCIA Nicholas Mirzoeff tem procurado descrever a visibilidade como dispositivo de poder. Questionando a celebração acrítica da expansão do visual e da proliferação de imagens no mundo contemporâneo, Mizoeff entende que a visibilidade tem a ver primeiramente com vigilância, isto é, com as formas de disciplinar, normalizar e orde- nar a visão. Do ponto de vista de sua genealogia, destaca Mirzoeff, a visibilidade se relaciona com a plantação escravista e o exercito moderno. Nos dois casos a ideia é a mesma: trata-se da visibilidade como forma de conhecimento absoluto do outro, forma assimétrica de visualização na qual não há reciprocidade do olhar. Contra essa

82 | Eduardo R. Rabenhorst articulação entre visibilidade e poder, Mizoeff reivindica o que ele chama de “direito de olhar” (2011), uma “contra-visualidade” que consistiria não somente na possibilidade de ver as imagens de modo distinto, mas principalmente na capacidade de criar estratégias de desarticulação do sistema hegemônico. Para Mizoeff, essa “contra- -visualidade” estabeleceria um “olhar” mais igualitário, relacional e recíproco, e consequentemente reconhecimento Ser reconhecido pelo outro, no entanto, pode significar também ser vigiado e controlado por ele. A injunção da visibili- dade na sociedade contemporânea está ligada primeiramente ao controle e à vigilância de pessoas e populações. No entender de Brighenti, está em curso nos dias atuais uma reordenação dos regi- mes de visibilidade que amplia consideravelmente a margem do visível (satélites, tecnologias de geolocalização e de visualização miniaturizadas, microscópios etc.), ao tempo em que expande o monitoramento e a vigilância nos espaços públicos e privados, algo que importa também ao direito. Já Foucault havia alertado para essa onipresença dos dispositivos de controle e de registro na sociedade contemporânea. Os estudos contemporâneos sobre visibilidade, entretanto, vão mais adiante. O sociólogo do direito Thomas Mathiesen, por exemplo, acre- dita que ao panóptico concebido por Foucault como característica da sociedade do controle, soma-se hoje o dispositivo do sinóptico. Na sociedade atual, entende Mathiesen, a vigilância e o registro se tornaram tão banais quanto desejáveis, incidindo sobre muitos objetos diferentes: dados, meta-dados, perfis, estilos de vida etc. O fenômeno global da observação ensejado pelo ciberespaço “demo- cratiza” e inverte o controle: além da multiplicidade de meios de vigilância (câmeras, chips, drones, reconhecimento facial biomé- trico etc.), os observados são agora também observadores recíprocos ávidos em verem e serem vistos.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 83 Contudo, aqui também há possibilidade de uma ambivalên- cia interessante no uso das tecnologias vigilantes que recebe o nome de sousveillance (Mann, 2004). O neologismo remete à palavra fran- cesa “surveillance”, que designa vigilância. O prefixo “sur” em francês, indica algo que está por cima (sobre), enquanto o prefixo “sous”, nomeia o que está por baixo (sob). Assim, a “sousveillance” seria uma contra-vigilância feita, por exemplo, a partir de apare- lhos portáteis, e que reduziria as disparidades entre quem controla e quem é controlado. VISIBILIDADE E POLÍTICA Como observa Gonzalo Abril (2011), não existe ordem política que não tenha sustentado e expressado um regime de visibilidade, administrando o olhar e definindo o que pode ser visto e o que deve permanecer invisível. O poder, em qualquer sociedade, requer uma “mise en scène”, uma teatralização, conforme já havia assinalado Georges Balandier (2006). A novidade dos dias de hoje está no fato de que a atividade política passou a se desenvolver na esfera de uma visibilidade pública cada vez mais controlada pelos meios de comu- nicação, operando a partir de uma lógica publicitária. A política passou a funcionar de modo semelhante aos produtos da indústria cultural, buscando captar a atenção do público no placo mediático, através de jogos e lutas simbólicas. Por isso, o espetáculo, no sentido atribuído à expressão por Guy Débord, passou a ser outro aspecto da visibilidade, essencial para a manutenção do poder disciplinar na sociedade contempo- rânea. O espetáculo, no entender de Debord, tem dois sentidos que estão articulados, indicando tanto a centralidade da merca- doria no capitalismo avançado, quanto a transformação do real em imagens, isto é, a autonomização da representação frente

84 | Eduardo R. Rabenhorst à realidade: “O espetáculo é o momento em que a mercado- ria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo” (DEBORD, 2012, p. 30). Ora, quais seriam as implicações decorrentes dessa espetacu- larização da política nos processos de tomada de decisões? Se, como diz Jacques Rancière, a política ocupa-se “do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto”, de que maneira os modos de ver e ser visto interferiram nos processos decisórios? Primeiro, é preciso entender a própria transformação do espaço público como âmbito que organiza a experiência social no mundo contemporâneo. O desenvolvimento de dispositivos tecnológicos de mediação ensejou uma nova forma de comunicação que além de ter tornado a esfera pública muito mais complexa em termo de variedade, também a fez funcionar a partir de uma grande heterogeneidade de situações de interação, ampliando as formas tradicionais de visibilidade. No entender de Thompson (2008), esse novo cenário afeta radicalmente a democracia em pelo menos dois grandes aspectos. Em seu célebre livro sobre as promessas não cumpridas da democracia, Bobbio afirma que esta nasceu com o propósito de fazer desaparecer o poder invisível, colocando em seu lugar um poder transparente, cujas decisões seriam sempre visíveis e contro- láveis por todos. Em que pese a crescente exigência contemporânea de exercício público do poder, que se dá por meio de uma série de conceitos e práticas (transparência, prestação de contas, acesso à informação etc.) a imagem fortemente confiante da visibilidade na democracia vem sendo abalada pela forma como a visibilidade é mediatizada pelos meios eletrônicos. No entender de Thompson, esses meios, que não são apenas canais de transmissão da infor- mação, mas elementos geradores de novas formas de ação e de interação. Ao tempo em que ensejam maior capacidade de controle

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 85 pelos cidadãos, dão lugar igualmente à novas fragilidades sociais e à demandas políticas incompatíveis, tais como a exigência de admi- nistrações totalmente abertas, por um lado, e a existência líderes fortes e confiáveis, por outro. Brighenti também tem procurado destacar outras distorções provocadas pela injunção das novas formas de visibilidade na demo- cracia contemporânea, em especial o retorno da “multidão”. No entender de Brighenti, o grande debate sobre a multidão no século XIX representou uma tentativa de entender a nova situação social, espacial e material advinda com o desenvolvimento urbano das grandes metrópoles, o que produziu um conjunto de saberes sobre a multidão. Hoje, é preciso igualmente fazer frente a uma nova multidão que se configura antes de tudo como uma multidão de dados ensejada pelas novas tecnologias da informação e da comu- nicação. A nova multidão, entende o autor italiano, é pós-urbana e pós-humana: posts, comments, likes, tweets, feeds etc. Entretanto, tal como ocorria com a multidão do século XIX, essa profusão caótica de dados é a constatação de um plenum social confuso e de uma visibilidade fortemente hierarquizada (BIGHENTI, 2011; 2013). Mas é preciso também reconhecer os novos arranjos e possi- bilidades da esfera pública advindos na contemporaneidade. Mesmo não atendendo a todas as exigências para se falar de uma efetiva discussão pública, as novas tecnologias virtuais possuem uma capa- cidade enorme de conectar indivíduos em redes que ultrapassam as limitações tradicionais de espaço e de tempo impostas às discussões off-line. Por outro lado, ao contrário dos meios de comunicação da época do apogeu da televisão, os novos meios virtuais possibilitam uma comunicação direta da informação política, sem intermediá- rios, proporcionando que o publico venha em tese exercer um papel ativo e não o papel de simples apreciador do jogo político.

86 | Eduardo R. Rabenhorst CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo deste texto, fortemente exploratório, foi destacar alguns aspectos do tema da visibilidade que podem ser explorados pelo direito a partir das contribuições oferecidas pelos estudos sobre “cultura visual”. Embora esse estudos ainda configurem um campo disciplinar emergente e controverso, eles estabelecem estimulantes perspectivas sobre as dinâmicas sociais e políticas dos processos de visibilização e invisibilização, e oferecem aos juristas diversas possi- bilidades de intervenção. REFERÊNCIAS ABRIL, Gonzalo. Cultura visual, de la semiótica a la política. Madrid: Plaza y Valdés, 2013. AUBERT, Nicole e HAROUCHE, Claudine. Tyrannies de la visibi- lité. Être visible pour exister? Paris: ERES, 2011. BAL, M. “El Esencialismo Visual y el Objeto de los Estudios Visuales”, Estudios Visuales, 2, Diciembre 2004, p. 11-49. BALANDIER, Georges. Le pouvoir sur scènes. Paris : Fayard, 2006. BERGER, John. Mirar. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2001. BERGER, John. Modos de ver. Edições 70, 1987. BRIGHENTI, Andrea. “Visibility: A Category for the Social Sciences”, Current Sociology, n. 55, May 2007, p. 323-342,

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 87 BRIGHENTI, Andrea. Pour une territoriologie du droit, In: FOREST, Patrick (Dir.) Géographie du droit. Épistémologies, développe- ments et perspectives. Québec: Presses de l’Université Laval, 2009, pp. 239-260. BRIGHENTI, Andrea. Le nuove politiche di visibilità in rete. Cosmopolis. Revista di filosofia e teoria politica, VI/2, 2011. BRIGHENTI, Andrea. La démocratie à l’heure des visibilities hiérar- chisées. In: La Cité en danger? Dictature, transparence et démocartie. Recontres d’Averroès, 19, 2013. CAMPOS, Ricardo. “Juventude e visualidade no mundo contemporâ- neo”, Sociologia, problemas e práticas. n° 63, 2010. DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DEBORD, Guy. Panegiric. Vol 1 e 2. London-New York, Verso, 2004. DELEUZE, G. Foucault. Lisboa: Vega, 1998. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1983. HAROCHE, Claudine. A condição sensível. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008. HONNETH, A. La lutte pour la reconnaissance. Paris: Éditions le Cerf, 2005. HONNETH, A. «L’invisibilité: sur l’épistémologie de la reconnaissance». Réseaux, vol. 23, n. 129-130, p. 41-57, 2004.

88 | Eduardo R. Rabenhorst JAY, Martin (1996). Introduction: Vision in context : reflections and refractions. In : BRENNAN, T. ; JAY, M. (Ed.) Vision in context: historical and contemporary perspectives on sight. New York/ London: Routledge, 1996. MANN, S. “Sousveillance: Inverse Surveillance in Multimedia Imaging. Proceedings of the 12th Anual ACM International Conference on Multimedia, ACM, pp. 620-627, 2004. MIRZOEFF, Nicholas. Visual Culture Reader. London: Routledge, 1998. MIRZOEFF, Nicholas. The Right to Look: A Counterhistory of Visuality. Durham, NC: Duke University Press Books, 2011. W. J. T. Mitchell, Mostrando el ver: una crítica de la cultura visual, Estudios visuales, 1 (2003), pp. 17-40. RANCIERE, Jacques. Le partage du sensible. Paris: La Fabrique, 2000. THOMPSON, John B. A nova visibilidade. Matrizes, Vol. 1, N°2. VOIROL, Olivier. Visibilité et invisibilité: une introduction. Reseaux, n° 129-130, 2005, p. 9-36.

AUTONOMIA MORAL E CAPACIDADE LEGAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: UM DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ITÁLIA Glauber Salomão Leite APRESENTAÇÃO O presente trabalho é uma singela homenagem ao Professor Raffaele De Giorgi: a sua pessoa e a sua obra. E busca inspiração especialmente em suas ideias sobre democracia, marginalização e processo de exclusão social. DO MODELO MÉDICO AO MODELO SOCIAL: A PROTEÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COMO QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS O reconhecimento da pessoa com deficiência enquanto sujeito de direitos é recente e teve como embrião uma série de estudos realizados especialmente nos Estados Unidos, a partir da década de 70 do século passado, centrados na vida independente e promoção de direitos fundamentais, fomentando o que se denominou poste- riormente de modelo social de deficiência.

90 | Glauber Salomão Leite Antes disso, contudo, a problemática relativa à deficiência era explicada sob uma outra perspectiva, médica. Sob esta rubrica, a deficiência era associada a uma patologia e todas as limitações vivenciadas por pessoas com disfunções do corpo ou da mente eram reduzidas ao fato de estarem fora dos padrões de “normalidade”, por serem doentes, de sorte que, em tais casos, a melhor resposta seria de natureza médica, a cura de tais pacientes. É dizer que a deficiência era reduzida a uma questão de ordem individual, cingida às limitações funcionais da pessoa, o que acabava por desobrigar o Estado e a sociedade de implementar medidas voltadas à inclusão social desse grupo populacional. Explicar a deficiência como uma anomalia claramente se baseava na atribuição de um caráter negativo às diferenças. Estar fora dos padrões físicos, sensoriais, mentais ou intelectuais signifi- cava estar “doente” e ser “anormal”. Desta forma, o caminho para uma possível inclusão social dessas pessoas se basearia necessaria- mente em sua cura, que, em última análise, as permitiria finalmente retornar ou se inserir no padrão de “normalidade”. A pessoa com deficiência, nessa ordem de ideias, seria um inválido, incapaz de levar uma vida independente e de decidir com autonomia sobre questões do seu próprio interesse. Não por outro motivo, as respostas oferecidas pelo direito eram de natureza paternalista (mera caridade em favor de quem nada teria a contribuir socialmente e marcado por enorme depen- dência), basicamente sob a forma de pensões e da instituição do regime jurídico da curatela. O modelo social, portanto, foi concebido como uma resposta a essa concepção excludente e estigmatizante de deficiência. Sob essa perspectiva, faz-se uma diferença entre a limita- ção funcional e a deficiência. Eventuais limitações do corpo ou da mente são reconhecidas como meros atributos da pessoa humana,

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 91 características que integram a identidade, como altura, etnia etc. A deficiência, por sua vez, é externa à pessoa, situa-se no meio, consistindo nas barreiras estruturais que impossibilitam que tais pessoas exerçam os direitos em igualdade de condições com os demais indivíduos. Não se atribui um caráter negativo a tais características indi- vidualizantes, que são compreendidas como parte da diversidade humana. A deficiência, desta forma, não tem natureza pessoal, mas caráter relacional, por advir da falta de preparo de toda a sociedade em conviver com pessoas que estão fora dos padrões majoritários. É dizer que a deficiência não é a ausência de visão ou de audi- ção, nem a dificuldade física de deslocamento, mas sim a falta de acessibilidade nos prédios públicos, ausência de adaptação dos meios de transporte, recusa em disponibilizar intérprete de LIBRAS nas escolas públicas e particulares para alunos com necessidades educa- cionais especiais, falta de material didático em braille etc. As desvantagens enfrentadas pelas pessoas com deficiência em seu cotidiano e o agudo processo de exclusão econômica, social e cultural advém exatamente das barreiras encontradas no meio e não de eventuais limitações de ordem funcional. Com isso, na medida em que fica descaracterizada a ideia de um problema individual, a supressão de tais barreiras torna-se um dever do Estado e de toda a sociedade. Afastadas tais barreiras estru- turais, considera-se que a pessoa com deficiência passa a ter plenas condições de levar uma vida integrada e independente. Apenas com o advento do modelo social foi possível o reco- nhecimento da pessoa com deficiência como sujeito de direitos e deveres, fundamentando uma mudança de paradigma no que diz respeito à sua proteção jurídica. De destinatário de simples medidas

92 | Glauber Salomão Leite assistencialistas, a pessoa com deficiência se torna titular de direi- tos e deveres em igualdade de condições com as demais pessoas. O processo de exclusão sofrido pelas pessoas com deficiência tem como efeito mais nocivo a falta de acesso a direitos considerados essenciais a uma vida digna. Com isso, há uma clara relação entre deficiência e pobreza, que se retroalimentam. A modificação desse quadro passa, obrigatoriamente, pelo correto equacionamento da tutela jurídica conferida a tais pessoas, mediante o seu enquadra- mento como questão de direitos humanos, que significa conferir à pessoa com deficiência exatamente os mesmos direitos assegurados a todos os demais indivíduos. Nessa direção, a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (aprovada em 2006, em Nova York), tratado internacional do qual Brasil e Itália são signatários, é o diploma normativo mais significativo, por representar um divisor de águas na proteção internacional aos direitos das pessoas com deficiência, na medida em que sedimentou novo paradigma a esse respeito ao consolidar o modelo social. Por isso mesmo, a referida norma a rigor não criou novos direitos, tendo como pressuposto, na verdade, a reafirmação dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em favor das pessoas com deficiência. Com base no princípio da igualdade e de não discriminação, estabeleceu os mecanismos necessários para a realização dos direitos humanos tradicionais no contexto da deficiência. Essa questão fica evidenciada já em seu artigo 1º, ao dispor que “o propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos huma- nos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 93 Ao dispor, também no artigo 1º, que “pessoas com deficiên- cia são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”, a Convenção estabelece como paradigma, que transpassa todos os dispositivos, o modelo social de deficiência, a partir do qual fica plas- mado que a inclusão social e a realização de uma vida independente são objetivos realizáveis, bastando, para tanto, que os obstáculos estruturais que impedem ou dificultam o acesso aos direitos huma- nos sejam afastados. AUTONOMIA MORAL E CAPACIDADE LEGAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Era uma consequência lógica da implementação do modelo social que, além da titularidade de direitos, fosse reconhecida à pessoa com deficiência a autonomia para exercer pessoalmente esses mesmos direitos. Desta forma, a Convenção da ONU, no artigo 12, consigna que as pessoas com deficiência “gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspec- tos da vida”. Na verdade, esse novo paradigma da capacidade jurídica está inserido em uma sistemática mais ampla, visto que a referida norma traz como alguns de seus princípios basilares, no artigo 3º, a “autonomia individual”, “liberdade de fazer as próprias esco- lhas”, “independência” e “a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade”. Por trás disso está o reconhecimento da autonomia moral da pessoa com deficiência, com base na premissa de que tal indivíduo

94 | Glauber Salomão Leite tem plena condição de decidir a respeito dos seus próprios inte- resses. É dizer que está apto a se posicionar ante os fatos da vida e circunstâncias que lhe dizem respeito. Isso, a despeito de certa confusão conceitual que ainda persiste entre as noções de autonomia e independência no tocante à pessoa com deficiência. A primeira, conforme já exposto, consiste na capa- cidade de fazer escolhas, enquanto a segunda está ligada à ideia de, sozinho, realizar ações ou praticar atos. A limitação funcional, em regra, não impede que alguém decida por si sobre questões liga- das à sua vida, ao passo que, em razão das barreiras estruturais e da inacessibilidade do meio, é provável que uma pessoa com deficiên- cia necessite de auxílio para executar determinadas ações no seu cotidiano (ÁGUILA, 2015, p. 64). Mesmo pessoas com deficiência mental ou intelectual preser- vam, total ou parcialmente, a capacidade para se posicionar ante os acontecimentos da vida, estando habilitadas para emitir juízos de valor e expressar a vontade. Isso nada tem a ver, portanto, com eventual necessidade de auxílio para a realização de tarefas no dia-a-dia, que será propor- cional à medida da inacessibilidade do meio. De todo modo, a respeito dessa questão em particular, também se faz imperativo um olhar crítico renovado, a fim de que a necessi- dade de adaptações estruturais ou do auxílio de outras pessoas não se confunda com falta de independência. Apenas sob uma perspec- tiva egoística é que vida independente se confunde com dispensa de suporte material ou humano. No mundo contemporâneo, com base em uma ética solidarista, por diferentes razões (etárias, físicas, emocionais, econômicas etc.), as pessoas necessitam umas das outras para viverem de modo saudável, independentemente da existência de alguma deficiência (PALACIOS, 2008, p. 142).

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 95 Portanto, a pessoa com deficiência pode, sim, levar uma vida independente, a despeito de eventualmente necessitar ser auxiliada para realizar determinadas atividades. Mas retomando a questão da autonomia moral, é possível dizer que uma das disposições mais inovadoras da Convenção da ONU é exatamente o artigo 12, 2, que estabelece a presunção de capacidade jurídica em relação a todas as pessoas com deficiência. Trata-se de capacidade de exercício e não apenas de capaci- dade de direito, ou seja, é aptidão para exercer pessoalmente atos e negócios jurídicos, para tomar decisões independentemente de representação ou assistência, e não a simples qualidade para ser titu- lar de direitos. É dizer que a pessoa com deficiência tem assegurado o direito de decidir validamente a respeito de questões pessoais e patrimoniais de seu interesse. Desta forma, a Convenção da ONU estabe- leceu presunção geral de capacidade civil plena em relação a todas as pessoas com deficiência. Como não há nenhuma restrição na norma, é presunção que alcança todas as modalidades de deficiên- cia, inclusive as de natureza mental e intelectual. Certamente são as pessoas com deficiência mental e intelec- tual as que mais se beneficiam com esse novo preceito, vez que, em regra, a capacidade de agir já é comumente reconhecida em favor dos indivíduos com deficiência física e sensorial. Todavia, é possível falar em verdadeira “presunção social” de incapacidade no tocante a pessoas com síndrome de Down, com paralisia cerebral, autistas etc., a despeito de muitas vezes simplesmente inexistir norma jurídica que expressamente restrinja ou exclua o direito à capacidade civil de tais indivíduos. Lamentavelmente, é situação normalmente pautada em precon- ceito e não em preceito normativo.

96 | Glauber Salomão Leite Questão relevante é saber se essa presunção geral de capaci- dade civil foi instituída sob a forma de presunção absoluta, iure et de iure, e que não poderia, assim, sofrer limitação, ou se, ao contrário, teria natureza relativa, juris tantum, hipótese que admitiria exceção. Em outras palavras, no caso de eventualmente ser presunção relativa, os países signatários do tratado poderiam, na prática, estabelecer na legislação nacional eventuais restrições ao exercício da capacidade legal pela pessoa com deficiência? Parece-nos que se trata de presunção relativa, na medida em que a própria Convenção admite, no artigo 12, 3 e 4, a adoção de “medidas” voltadas ao exercício da capacidade legal. Nesse sentido, o referido tratado internacional adota como medida preferencial de intervenção na capacidade civil a figura da decisão apoiada, em oposição ao ultrapassado instituto da curatela. É dizer que se fez a opção pelo modelo de assistência na tomada de decisão, em contraponto ao modelo de substituição da vontade. Através do apoio para a tomada de decisões, eventual redu- ção ou limitação no discernimento é tomado como marco inicial (e não final, como tradicionalmente ocorria) no processo para o exercício do direito à capacidade civil. Ou seja, como a capacidade de exercício passou a ser a regra, constatando-se que determinada pessoa tem o discernimento reduzido, a resposta não será a elimina- ção do direito em questão (mediante a decretação de incapacidade e subsequente nomeação de representante legal), mas a implemen- tação de todas as medidas necessárias para que a capacidade seja exercida com segurança. Sendo, aqui, a figura da decisão apoiada a medida padrão a ser adotada no caso, de acordo com o preceituado no artigo 12, 3, da Convenção. Significa que a máxima preservação da autonomia moral da pessoa com deficiência é o paradigma norteador a esse respeito.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 97 Portanto, eventual intervenção no direito à capacidade da pessoa com deficiência é admitida, mas prioritariamente sob a forma da decisão apoiada, e sempre com vistas a assegurar que a pessoa continue à frente das decisões de seu interesse, ainda que sob o auxílio dos apoiadores. Sob o novo paradigma da presunção geral de capacidade torna- -se inadmissível, entretanto, que eventual limitação à capacidade de agir se baseie na própria deficiência. Assim, laudo médico que ateste a existência de transtorno mental ou intelectual é insuficiente para fundamentar decisão que vise restringir o direito à capacidade legal, sob pena de configurar discriminação por motivo de deficiência, que, de acordo com o artigo 2º, da Convenção da ONU, “significa qualquer diferencia- ção, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbi- tos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável”. Antes de mais nada, é necessário refutar a visão tradicional (e equivocada) que associa transtorno mental e intelectual à inca- pacidade. Mais ainda, é imperativo desconstruir a percepção de que esse tipo de deficiência implica obrigatoriamente em ausên- cia de discernimento. Como é sabido, transtornos dessa natureza são muito variados, com sintomas múltiplos e afetam as pessoas em níveis bastante diversos. Portanto, o foco deve ser outro. Não é a mera aferição de transtorno mental ou intelectual a justificativa cabível para inter- vir no regime jurídico da capacidade civil, mas sim a limitação no discernimento (independentemente da causa) para administrar a

98 | Glauber Salomão Leite própria vida. E, é fundamental ressaltar, o discernimento deverá ser objeto de análise funcionalizada e não estática. Deve-se obser- var de que maneira a ausência ou redução no discernimento afeta concretamente a vida da pessoa, quais atos ela necessita praticar e suas necessidades reais. CAPACIDADE LEGAL NO BRASIL E NA ITÁLIA APÓS O ADVENTO DA CONVENÇÃO DA ONU Brasil e Itália são países signatários da Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, portanto estavam obri- gados a “adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer natureza, necessárias para a realização dos direitos” nela contidos e também a “adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes”, que eventualmente se revelassem discriminató- rias em face das pessoas com deficiência, de acordo com o previsto no artigo 4º da norma em comento. No caso do Brasil, essa era questão premente, na medida em que, por força do Decreto Legislativo 186, de 9 de julho de 2008, o tratado havia sido incorporado ao direito interno com status de emenda constitucional, portanto norma de hierarquia superior. De modo que, indiscutivelmente, ambas as nações se compro- meteram no plano internacional a adequar, no tocante ao regime jurídico da capacidade legal, suas respectivas legislações à nova siste- mática estabelecida na Convenção. A Itália modificou a sistemática de capacidade civil antes do Brasil, por meio da Lei 6/2004, que inseriu no Código Civil (arti- gos 404 a 413) a figura do amministratore di sostegno, cujo sentido é a fixação de um regime de apoio para a tomada de decisões.


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook