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Published by Papel da palavra, 2022-10-07 12:46:10

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suas mesmas faculdades mediúnicas, e contatos que só podiam realizados através dos mecanismos anteriormente mencionados. O nome desse Mestre: Umahã.” (Álvaro, 1992 p.11) Conforme o passar de alguns anos, Neiva se desdobrava até o Tibet, para receber os ensinamentos do monge Umahã. Toda a doutrina, segundo os praticantes, foi recebida dos planos espirituais, por meio de Tia Neiva. Com sua clarividência ela se transporta, recebe informações com relação ao seu passado transcendental, como também as instruções dos mentores espirituais no que diz respeito às normas e regras da doutrina, que por sua vez são ainda são repassadas aos demais integrantes, mesmo após a morte de Neiva, em 1985. Após a morte de Tia Neiva, Mario Sassi, seu companheiro em vida assume o comando do templo. Passando o comando para Raul Oscar Zelaya Chaves, no ano de 2007. Tudo que o Vale do Amanhecer pratica, ritualiza e concretiza fisicamente, foi “recebido” dos planos espirituais por Neiva, ao todo são um pouco mais de 40 rituais, que são tratados pelos integrantes da doutrina como: “trabalhos espirituais”. Após toda preparação pelo monge tibetano, Neiva funda a primeira comunidade do Vale do amanhecer na Serra do Ouro, próximo à cidade de Alexânia – GO. Logo após mudou-se para Taguatinga, e a partir de 1969 situa-se dentro de uma área de zona rural na cidade-satélite de Planaltina, território que pertence ao Distrito Federal. A entidade denominada Obras Sociais da Ordem.

Espiritualista Cristã - OSOEC - popularmente conhecida como Vale do Amanhecer, abril de 1964, de natureza apolítica, beneficente, que funciona de acordo com as leis então vigentes no Brasil e das revelações emanadas pela própria Neiva. (Apud Reis p.16) Contudo até a sua fixação no espaço definitivo em Planaltina, passam-se aproximadamente 13 anos, o que de certa forma proporcionou o crescimento do corpo mediúnico. Para nós, esse “recebimento dos planos espirituais” caracteriza uma construção do universo religioso a fim de justificar as práticas existentes e realizadas dentro do movimento. Vale salientar que para o Vale do Amanhecer não existe a cobrança de nenhum valor pela visitação do espaço templário pelos pacientes (aqueles que não são membros ativos, estão apenas para visitação), nem a contribuição com nenhuma quantia obrigatória por parte dos próprios mestres (integrantes ativos da doutrina), a maioria dos templos é mantida a partir de recursos próprios arrecadados com a venda de lanches, de artigos próprios do movimento, rifas e doações (essas por sua vez são de forma espontânea por parte do mestrado).

O Vale do Amanhecer como Objeto Histórico A lgumas características são especialmente pertinentes ao Vale do Amanhecer, para os integrantes o Vale é uma doutrina espiritualista, não se consideram uma religião e não se integram na nomenclatura de seita. Porém esse movimento é caracterizado e identificado por muitos sociólogos e antropólogos como um movimento new age popular (da nova Era) que consiste em uma religião nova com relação à temporalidade e que possui uma mistura de várias outras religiões e crenças. Como afirma o Amurabi Pereira: “De fato, a NA no Brasil, adquire uma face própria que culmina com o que chamaremos de new age popular – NAP – , presente em movimentos como o Vale do Amanhecer, as religiões ayahuasqueiras de modo geral, a Umbanda Mística, a Legião da Boa Vontade entre outros – emergindo de forma plural e eminentemente sincrética, em constante diálogo com as ç religiões já estabilizadas no campo religioso.” (PEREIRA, p.15, 2008) Sendo assim, partiremos para a primeira característica analítica desse trabalho: O hibridismo cultural e religioso que

cerca a formação da doutrina Vale do Amanhecer. A doutrina integra traços do catolicismo romano, catolicismo popular, religiões de matriz africana, hinduísmo, figuras orientais, espiritismo com base em Allan Kardec, traços relacionados aos povos andinos (astecas, incas e maias), menções aos gregos, egípcios, ciganos, escravos, europeus, dentre outros. Esse hibridismo existente para os integrantes da doutrina é entendido e explicado segundo a tese dos princípios que regem a herança transcendental, a qual os mentores (espíritos evoluídos) e mestres são regidos, e que partem do princípio da reencarnação. O próprio nome da instituição já nos apresenta uma característica peculiar, o Vale do Amanhecer atende institucionalmente como OSOEC - Obras Sociais da Ordem Espiritualista Cristã, segundo o dicionário on-line de português o termo espiritualismo significa “Filosofia religiosa que prega a existência de um ser ou realidade distinto da matéria.” No caso do Vale do Amanhecer, o seu nome institucional já indica qual o ser que está no centro do movimento, nesse caso é a figura de Jesus Cristo. Mas não só o próprio Cristo, como também várias entidades, que figuram em diversos espaços e épocas diferentes. Pai Seta Branca, abaixo de Jesus Cristo é o maior mentor espiritual do Movimento, sendo ele representado como um índio da região de andina da América do Sul. Outro exemplo de hibridização estão nas figuras dos pretos velhos e caboclos, que são característicos das religiões de matriz africana, e que são figuras fundamentais em alguns rituais da doutrina. Nesse sentido, podemos destacar a

mistura do cristianismo com religiões de matriz africana, outro exemplo característico é o princípio da reencarnação e karma que advém das filosofias orientais a exemplo do budismo que acreditam no efeito e consequências dos atos, além disso, encontramos trabalhos espirituais atribuídos a Allan Kardec, existe a leitura do Evangelho por ele elaborado. Esses e muitos outros elementos estão interligados dentro da doutrina do Vale do Amanhecer. Sobre a hibridização ou sincretismo religioso do Vale do Amanhecer, o autor José Jorge de Carvalho afirma: “Aqui trata-se do culto tido como o mais sincrético de toda a experiência religiosa brasileira de sua origem colonial até os dias de hoje: O Vale do Amanhecer. Apesar de seu caráter universalista, a base doutrinal do Vale é sem dúvida o sincretismo clássico brasileiro: espiritismo, catolicismo, tradição afro-brasileira”. (Carvalho p.80 s.d) Em dado momento da história, todos “os personagens” estiveram próximos, em um processo de trocas culturais e ideológicas. Essas são as engrenagens que dão sentido ao Vale, tudo está interligado espiritualmente, a partir do princípio do karma, e nesse sentido, todas as entidades e características, que compõem o movimento, passam a fazer sentido de forma muito efetiva e clara dentro da doutrina. A hibridização é consequência dos encontros, das trocas culturais realizadas a partir desses encontros. Sendo assim, a hibridização pode ser encontrada em várias esferas de acordo com o que Peter Burke afirma:

“Por sua vez, as práticas culturais híbridas também podem ser identificadas na música, na religião, na linguagem, no esporte e nas festividades a partir das relações entre as instituições e as pessoas.” (BURKE, 2006, p. 27-28). Nesse sentido, dentro do Vale do Amanhecer essas trocas culturais aconteceram no encontro entre gerações e além das gerações, e da relação de vida e morte, a partir de encontros efetuados pelos princípios cármicos que para o espiritismo é considerado a partir da reencarnação. Outra categoria analítica fundamental para ser empregada no Vale do Amanhecer é o conceito de representação do historiador Frances Roger Chartier, vinculado à Escola Historiográfica dos Annales. Chartier afirma que a representação faz ver uma ausência, a representação faz “vivenciar” e ver um objeto ou pessoa que não mais está presente naquele meio, sendo assim a representação é o indicativo de como aquela pessoa ou objeto era enquanto existia, e se fazia presente. De acordo com trecho do seu trabalho citado abaixo: “À palavra “representação” atesta duas famílias de sentido aparentemente contraditórias: por um lado, a representação faz ver uma ausência, o que se supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado, de outro é uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou uma pessoa (...) A relação da representação – entendida como uma imagem presente e um objeto ausente uma valendo pelo outro porque lhe é homologa.” (CHARTIER 1991 p.184)

No caso do Vale do Amanhecer, nota-se claramente imagens representativas, como veremos nas imagens abaixo: Pai Seta Branca está representado no movimento com a representação típica de uma de suas reencarnações na terra. Segundo a bibliografia e os integrantes do movimento, Pai Seta Branca foi um índio andino, que no processo de conquista espanhola da América estava numa tribo ameaçada de dizimação, em um descampado do vale andino. Os guerreiros de “Lança Branca” e a facção dos espanhóis se defrontam. Com a sua lança e o seu dente de javali preso a ela fez com que os espanhóis se movessem em direção oposta sem nenhuma ação violenta entre eles, ele é a o símbolo de maior representatividade hierárquica dentro do Vale do Amanhecer abaixo de Cristo. Considerado um espírito de luz, que está ao lado de Jesus Cristo para a evolução dos encarnados. A representação de Seta Branca tem como objetivo mostrar a sua Esse termo é utilizado para referenciar os espíritos que estão vivos na terra. Que possuem um corpo físico. Já que se acredita que o espírito no Vale do Amanhecer não morre, ele apenas habita planos diferentes. Imagem tal como ele vivia/era enquanto encarnado, de acordo com os elementos descritos na sua história. Mais um exemplo bem característico de representação é a imagem de Pai João de Enoque, um africano que veio para o Brasil colonial para ser escravo e sanar o seu karma, pois em uma de suas encarnações teria sido um grande faraó e teria cometido grandes atrocidades, então ele e outros negros também ligados pelo princípio da transcedentalidade tiveram

que ser escravizados. Essa história é contada por Tia Neiva e intitulada “A cachoeira do Jaguar”. Assim, a sua representação dentro dos templos do Vale do Amanhecer é de uma pessoa simples, tal como era o Enoque escravo nas terras brasileiras. Outro ponto que analisamos trata-se das regras que afetam o cotidiano dos que se propõem a integrar a doutrina, citaremos algumas para exemplificar de que forma o cotidiano é modificado a partir das regras que compõem o Vale do Amanhecer. Nesse sentido a tática e a estratégia de Certeau (1998) nos fazem entender as mudanças no cotidiano social e religioso daqueles que visitam e integram o espaço do Vale do Amanhecer. “Assim, a estratégia é organizada pelo postulado de um poder”(Certeau p.101, 1998). É com as estratégias que os membros da doutrina conseguem organizar e reorganizar o seu cotidiano, para que ele se ajuste também ao convívio religioso da doutrina. Para visitar o Vale do Amanhecer, antecedendo um prazo de 24 horas, recomenda-se que os visitantes não devem ingerir nenhum tipo de bebida alcoólica, bem como os seus integrantes a partir dos rituais iniciáticos não podem ingerir bebidas alcoólica , caso isso ocorra o “mestre jaguar” da doutrina precisa se consultar com uma das entidades da doutrina para receber novamente a autorização para a volta dos trabalhos. Outro exemplo típico da mudança no cotidiano das pessoas que fazem parte do movimento mediúnico é a não participação nos rituais de outras religiões, o que caracteriza

“cruzamento de corrente” na linguagem empregada no movimento. As preces são outro exemplo típico da intervenção no cotidiano de seus praticantes, em horários específicos os integrantes do Vale do Amanhecer emitem as suas preces. Nesses horários, comumente os integrantes estão em atividades comuns como o trabalho e o estudo, ou na rua, em qualquer das situações é comum que a pessoa pare momentaneamente a atividade e emita a sua prece, ou na maioria dos casos tente ao menos conciliar a emissão da prece com a atividade que estava realizando. Dentro da estrutura interna do Vale do Amanhecer, existem atividades e dias específicos para realização de cada trabalho, nesse sentido existe toda uma preparação dos mestres para que se possa participar de determinado trabalho espiritual. Muitos integrantes utilizam as suas folgas no trabalho para a realização destes, visto que em templos de primeiro e segundo estágio são realizados trabalhos geralmente aos fins de semana e em dias específicos na semana, em templos de terceiro estágio os trabalhos espirituais acontecem geralmente todos os dias da semana, e nesse caso o integrante da doutrina em meio ao seu convívio social e as suas atividades cotidianas, separa um “espaço” na sua agenda para poder frequentar os templos. Essa nomenclatura (templos de primeiro/segundo estágios) é dada para templos que realizam trabalhos mais simples, os templos de terceiro estágio são os que realizam trabalhos espirituais mais complexos e tem uma quantidade maior de mestres ativos.

Nesse contexto de cotidiano, para Theotonio, não se repete segundo os mesmos princípios imutáveis, existe sempre uma reorganização dos fatos, que por sua vez se torna um objeto de construção e desconstrução da história: O cotidiano não é uma repetição mecânica e imutável de gestos, tradições ou costumes, na realidade ele é reinventado sempre a cada refazer de atitude que o homem e a mulher desempenham na vida em sociedade (...) elaborando a construção e desconstrução da história, partindo de novas fontes e de novos objetos. (Theotonio, p.2) Ainda com relação às práticas cotidianas, Certeau (1998) se posiciona da seguinte maneira “As práticas cotidianas estão na dependência de um grande conjunto, difícil de delimitar e que a título provisório, pode ser designado como o de procedimentos”. (CERTEAU, p.109 1998) Os integrantes do Vale do Amanhecer passam por um processo de adaptação dos seus afazeres diários, da sua forma de vida anterior ao ingresso na doutrina, e passam a reorganizar as suas atividades a partir dessa nova vivência, desse novo contexto ao qual passam a integrar.

Considerações Finais C omo observamos, o Vale do Amanhecer é um objeto histórico amplamente híbrido, assim como as demais religiões constituídas no Brasil. Trata-se de uma doutrina que mesmo com a sua quantidade de templos e adeptos ainda figura no desconhecimento, mas que possui uma riqueza de detalhes que podem nos ajudar a compreender o mosaico das diversas manifestações religiosas no Brasil, bem como combater os cenários de intolerância religiosa que o país enfrenta desde a sua constituição enquanto nação.

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O PROTESTANTISMO E SUA TRANSVERSALIDADE DIALÓGICA- FORMATIVA COM A CULTURA RELIGIOSA BRASILEIRA A EXPERIÊNCIA EDUCATIVA DO SEMINÁRIO UNIDO 1916-1932 JOÃO MARCOS LEITÃO SANTOS

Introdução D isse alguém – com maior ou menor razão – que “o Brasil não é inteligível sem passar pela caserna e a sacristia” realçando como na formação social brasileira o segmento religioso e o militar exerceram um protagonismo que não pode ser olvidado. Gilberto Freire costumava referir às nossas tradições católicas como “cimento da nacionalidade”, frágil nacionalidade, diríamos nós. O fato a ser constatado e tomado como pressuposto na presente discussão é a experiência “do maior país católico do mundo”, ainda quando esse catolicismo se expresse em tantas nuances quase impossíveis de serem recenseadas, como ele foi levado a adotar a forma de cristianismo católico e romano com seu referente religioso, ainda quando caracterizado na literatura especializada como “catolicismo nominal”, para sugerir que uma quantidade considerável dos professos daquele credo, não guardam simetria com os que vivem os itinerários da fé, da doutrina e da práticas da ortodoxia que emanam de suas fontes autoritativa, a saber: a Escritura, o Magistério e a Tradição.

Apesar da categoria “patrimônio cultural” ser plurívoca, e tomanda entre as possíveis, a concepção de patrimônio cultural como a reunião de bens, expressões populares, tradições materiais, imateriais de importância histórica e identitária de uma nação, havemos de concluir que a crença católica no Brasil transfigurou-se da profissão pura e simples de uma crença religiosa, para uma matriz cultural de nossa sociedade, e assim, erigida em patrimônio cultural do país, ainda que em crescente diluição de sua hegemonia em anos recentes. Esta problemática amplia sua significação quando o grupo que historicamente deteve uma prevalência quase exclusiva dos bens religiosos, se viu em relação com a emergência de novos sujeitos religiosos, ora distintos, ora antagônicos, colocando aquela pretendida hegemonia, sua herança religiosa e seu patrimônio cultural sob contestação, o que está discutido neste trabalho. Neste caso específico referimos a chegada do protestantismo no Brasil em meados do Dezenove, sua consolidação no período republicano, e como, entre outros mecanismos de inserção social, o protestantismo elegeu o processo educativo para sua formação de quadros, como arena para enfrentamento com a religião (instituição) e com a religiosidade (popular) tradicional. Assim, o ensino teológico, notadamente da Faculdade de Teologia Evangélica do Brasil, ou Seminário Unido, se erige sob matriz apologética e como antagonismo a referentes diversos do patrimônio cultural do país, suas práticas religiosas e seus derivativos. O significado (e o fracasso) do projeto protestante o que chamamos aqui de

transversalidade dialógica-formativa com a cultura religiosa brasileira, ocupa as argumentações deste texto

Religião e Patrimônio Num sentido geral se tem chamado de patrimônio cultural a referida acumulação de bens materiais e imateriais, expressivos da cultura, de valor histórico e identitário de determinado agrupamento humano, tomada a cultura neste sentido como a organização e apropriação destes bens pelos indivíduos pertencentes a qualquer ajuntamento societário, na manipulação de capacidades para desenvolvimento de atividades complexas, notadamente a linguagem. Convencionou-se referir “a oposição homem/natureza”, quando mais precisamente seria a dialética homem/natureza/homem o princípio operante para estabelecer como os comportamentos humanos são artificialmente produzidos, em detrimento de elementos genéticos, tornando-os apreendidos socialmente a partir das vivências grupais. Esta apropriação social e espacialmente mediada sugere que os comportamentos são remissos por necessidades materiais, utilitárias e simbólicas a tradições culturais.

Apropriação/propriedade acaba por conduzir a um viés de hereditariedade, portanto, os produtos culturais são herdados e transmitidos em sucessão variável, no cenário histórico de continuidades e descontinuidades, que herdamos de Bachelard, na noção de ruptura de uma perspectiva cumulativa e linear (BACHELARD, 2006), no rastro da qual vieram Braudel e sucedâneos. Coincidentes nos aspectos materiais e simbólicos, cultura e patrimônio cultural revelam-se em termos categoriais, indissociáveis, e conforme lembra Neves: O resultado é o acesso diferenciado aos elementos da natureza necessários à materialização da existência, bem como às ferramentas intelectuais do saber fazer. Tomando agora como exemplo os artefatos sacros, em que claramente estão presentes as dimensões materiais e simbólicas. O devoto católico encomenda ou compra uma imagem de São José, leva para sua casa e a instala em seu oratório ou em uma mesa qualquer. A força que ele atribui ao santo de sua devoção está para ele materializada naquela imagem de madeira, mas a própria força desse santo e sua crença estão no plano do simbólico (NEVES, 2003, p. 16). Estas proposições nos remetem então a questão do sagrado, enquanto transcendência, e a religião, enquanto institucionalidade. Nas distinções que Blackham faz sobre quatro tipologias religiosas, a saber: eclesiástica, política, popular, cultural, a última nos interessa particularmente que sugere religião cultural como o ponto de vista a partir do qual devem ser consideradas todas as atividades e interesses culturais, apontando na direção da relatividade da religião

como evento histórico juntamente com as pretensões absolutas. Durkheim já chamava atenção para o aspecto epistemológico da religião como responsável pelo provimento de categorias que serviam para tornar o mundo inteligível, que acabam por adotar o status de fundamento ético, no qual hão de fundar-se as ações (morais), e além disso, oferecendo o aporte para guiar a ação de forma mais radical referindo as dimensões volitivas e comunitárias, para concluir que quanto à religião “sua verdadeira função... [é] fazer-nos agir, de ajudar-nos a viver” (DURKHEIM, 1996, p. 595). A religião, portanto, se traduz não apenas como um sistema de idéias, ou crenças – sistemáticas ou assistemáticas – mas como agência de provimento de capacidade de ação, à qual, em última instância, ela diz respeito. Assim, nossa tentativa é no sentido de reafirmar que esta agência motivacional e volitiva dos indivíduos, fundadora da vida societária, a religião, que provê sentido para a realidade operar, enquanto agregado de bens expressivos de uma cultura por meio da apropriação hereditária, eventualmente não sucessiva, que expressa ainda sua habilitação para promoção atividades complexas, que se torna inerente às dimensões comportamentais e suas necessidades simbólicas, como forma completa de cultura, e sua preservação é a expressão de patrimônio a ser manifesto e preservado. Lembra Ianni que a cultura não é inocente. Todas as expressões culturais, compreendendo valores e padrões, maneiras de pensar e dizer, modo de viver e

trabalhar, criam-se e recriam-se na trama das relações sociais. O que parece ser uma cultura brasileira é um complexo de formas de viver. Cada grupo, classe, movimento ou partido lida de forma diferente com o acontecimento, a situação, as forças sociais, o fato, o mito (IANNI, 1992, p. 43, 46).(grifo nosso)

Protestantismo Brasileiro C om o fim do Império, já contando com importantes adesões à sua mensagem, inclusive pela presença de ex-clérigos romanos; com o aparecimento de um clero nacional e com as mudanças sócio-políticas resultantes da República; além da experiência de sua nova condição jurídica e da retração na atividade política da Igreja Católica, o protestantismo experimenta na virada do século XX um período de desenvolvimento das suas igrejas e de amadurecimento das suas instituições eclesiásticas, com os esforços emancipatórios de setores nativos em relação às missões estrangeiras que lhes deram origem. Porém, a ausência destas discriminações legais, e o favorecimento jurídico dos cristãos não-católicos, não significaram a ausência de hostilidades e tensões, passando a Igreja Católica a servir-se de instrumentos sociais restritivos, deslocando as perseguições do pólo jurídico para o sociológico, eventualmente físico. O protestantismo sofreu ainda os influxos do cenário internacional, assistindo as duas principais assembléias

religiosas protestantes do período, realizadas em Edimburgo (1910) e no Panamá (1916), sendo que a primeira, de maior vocação ecumênica, considerava o continente latino- americano já cristianizado pela presença secular católica, mas sem conseguir o consenso com os setores majoritários do protestantismo, que fazem realizar uma segunda conferência, na qual fixou a estratégia missionária para a América Latina, e que tem como principais decorrências o surgimento de diversas entidades de cooperação de âmbito local/nacional; e a proliferação da obra social, - médica e educativa, etc. - do protestantismo em geral (SANTOS, 2015). O desenvolvimento de um clero nacional mais “qualificado” do ponto de vista intelectual e a ascensão social resultante de uma maior educação esteve na gênese dos sentimentos nativistas e da procura pela demarcação de canais de participação política. Os elementos estavam fixados, pela consolidação institucional, modelada nos eventos continentais mencionados, pela construção de uma identidade social e religiosa comum, tanto quanto possível, e pela emergência de suas lideranças. Assim, o protestantismo emerge dos anos 20 com uma nova configuração, resultado deste processo de reorganização. O que mais importa para o argumento desenvolvido neste texto é o fato que, sob influxo de fatores conjugados – formar um frente única em relação ao catolicismo e a tendência para formação de entidades associativas, como se dava no resto do mundo e na América Latina – o protestantismo brasileiro deu origem a mais de vinte organizações gregárias para operar

tanto no fortalecimento exógeno da sua condição eclesial, como expressões da sua presença social ante o Estado e a sociedade brasileira, e neste contexto, no âmbito da educação para a formação de quadros, o Seminário Unido, do qual nos ocuparemos mais detidamente em seção subseqüente. Embora o projeto de um centro único de formação teológica para os ministros protestantes não tenha oferecido o retorno esperado, diluindo-se em 1932, impactou positivamente o protestantismo até os anos 30, quando se apercebeu que o quadro era de todo favorável ao protestantismo, que mais organizado, havendo superado a fase dos problemas eclesiásticos internos, com a luta emancipatória das igrejas nacionais, ante as missões religiosas estrangeiras que lhe deram origem, e pelo desaparecimento das lideranças mais apaixonadas nestes embates, volta-se agora para um arrojado projeto de proselitismo, ao mesmo tempo em que se alterava a sua composição social, simetricamente a emergência dos setores médios. O protestantismo, que tivera em suas origens imperiais a adesão de alguns poucos membros das elites, em São Paulo e no Rio de Janeiro, principalmente, foi progressivamente substituído, e fazia com que “as classes liberais e o comércio fossem abundantemente representadas no protestantismo brasileiro de hoje” (LEONARD, 1981, p, 225). Leonard fala em 1951. Tal ascensão social progressiva era em grande medida resultado do esforço educativo dos ambientes protestantes. É também importante declarar, embora um tanto óbvio, que apesar da migração para as cidades, e da crescente

urbanização da experiência protestante, expressivos setores do protestantismo ainda se constituíam de campesinos e pequenos proprietários rurais, em ambos os quadros um clero habilitado a conflitar vitoriosamente com seu concorrente no mercado de bens religiosos era um fator importante ao longo do período republicano. O elemento mais significativo para a compreensão do processo mais geral de inserção protestante no Brasil é caracterizar esta mobilidade social e cultural, ascendentes nos ambientes protestantes, com o conseqüente impacto na sua concepção do mundo. Além disso, a exemplo das mudanças sociais em curso, o protestantismo também procurava canais de participação política como referido (SANTOS, 2013). Sua condição minoritária, mesmo sugerindo certa discrição em tal ação política, e mesmo anunciado seu status “espiritual”, como contrastante com a intervenção na ordem social e política, pronunciou-se sempre sobre a conjuntura política, especificamente quando seus interesses particulares estavam sob alguma ameaça (SANTOS, 2016).

Cultura MATRIZES CONFLITUAIS Não é o caso de reeditar neste contexto as discussões teóricas sobre as concepções de poder e seu exercício calcado em qualquer um dos diversos modelos pacificados na literatura, sob a máxima “não há vazios de poder”. O que se pretende, apenas para fins argumentativos, é demarcar o fato que a disputa por “espaço” dentro do que se convencionou chamar de mercado de bens religiosos, em quaisquer sociedades, no Brasil em particular, se travou em grande medida em torno da disputa pelo espólio do patrimônio cultural e religioso nacional. Toda sociedade sofre a demanda pelas mudanças sociais, desejavelmente por processos inclusivos de sujeitos e grupos, ainda que heterogêneos e à margem do status quo. Classicamente a Sociologia tem colocado o conflito como ícone da construção social, como se constata facilmente na citação de Coser: “Na forma o processo social é uma incessante reação de pessoas movidas por interesses, que em parte estão em conflito com os de seus companheiros e em parte conformados com os de seus companheiros” (SMALL, apud. COSER, 1961, p. 17).

Todavia, o conflito sempre foi um mecanismo invariável da interação humana, e, numa perspectiva positiva, resultante de um estado de comportamento consciente e auto- consciente, fundados em uma conduta racional”, embora a Sociologia propositiva caminhe na direção de investigar fórmulas de ajuste que previna o caos social nas estruturas e seu funcionamento, próximo do que Durkheim entendia ser a coesão social, que outros fizeram derivar para a teoria do controle social. Todavia, Coser traz uma inovação ao sugerir que conflitos não são necessariamente dissociativos e que no caso dos grupos minoritários, estes devem ser percebidos como demandando a necessidade de afirmação militante da identidade do grupo, assim, “só os esforços do grupo mesmo produzem a sua emancipação” (COSER, 1961, p. 26). De resto, expressões de tensões e violências poderiam indicar uma pressão tendente a modificar acordos institucionais básicos, como no caso brasileiro da assimilação da dissidência religiosa dentro de um paradigma excludente. Uma maneira de caracterizar o protestantismo, em grande medida recorrente, pode se inferida meridianamente nas palavras do líder positivista Teixeira Mendes quando afirmou, entre outras coisas, que a deterioração progressiva do conceito de autoridade, em função do ideário democrático, tinha origem clara: ...[a] gênese é a exaltação da liberdade individual, que fora enfatizada pelo protestantismo. É ele o início sistemático da revolução moderna que começou espontaneamente no século XVI, justamente porque as crenças teológicas não correspondiam mais

as exigências sociais e morais. Ao protestantismo segue-se o deismo (MENDES, apud AZZI, 1980, p. 149) (grifo nosso). Na formulação clássica de Georg Simmel (2006), nenhum grupo pode ser inteiramente harmonioso, porque não poderíamos falar a seu respeito de processo e estrutura. Os grupos requerem da desarmonia o mesmo que da harmonia, portanto, a formação de grupos é resultado dos fatores positivos e negativos que se constroem as relações grupais, equivalendo para as funções sociais tanto o elemento conflitivo como o cooperativo, inclusive quando consideramos que o conflito se constitui em elemento básico para a diferenciação ampla das identidades, na medida em que fixa fronteiras entre os grupos internos, robustecendo a consciência do grupo, uma vez que a distinção com o que se estabelece identidade. A repulsa recíproca mantém o sistema social total ao criar um equilíbrio. Reclamam delimitação entre eles e o meio ambiente, para manter constantemente seu patrão. Quando refere as minorias dentro da compreensão das formações societária, Bastian é muito claro ao afirmar o papel dos atores cuja condição minoritária tem sido tomada como sinônima de ausência: “el estúdio de un fenómeno marginal puede remitir también a los procesos globales de transformacion y crises que afetan la sociedade...” (BASTIAN, 1989, p. 16). A distribuição desigual de privilégios e direitos pode provocar sentimentos hostis, mas não necessariamente conduzem ao conflito. O conflito se realiza na interação entre duas ou mais proposições. Efetivamente para que possa ocorrer um

conflito, os grupos não privilegiados hão de adquirir consciência e rechaçar qualquer justificação.

A Faculdade de Teologia Evangélica do Brasil O SEMINÁRIO UNIDO Nestes processos de enfrentamento político, político em sentido stricto referido a pólis, a sociedade, Charaudeau indica que ele se institui na dependência de aspectos sociais, axiológicos e jurídicos. Suas eficácias estão relacionadas ao convencimento da validade da proposição que enunciavam e da adesão que provocavam, o que implicava algum grau de remissão “valores transcendentais fundados historicamente” para os representantes protestantes. Operacionalmente elabora uma dupla identidade discursiva, quanto ao conceito político [enquanto lugar de constituição de um pensamento sobre a vida dos homens em sociedade] e o ao posicionamento ideológico do sujeito do discurso. Daí decorre sua prática política, isto é, o lugar da gestão das estratégias exercício do poder mediante a posição do sujeito no processo comunicacional. E conclui: Neste aspecto, as instâncias do discurso político e religioso têm qualquer coisa em comum: o representante de uma instituição de poder e o representante de uma instituição

religiosa ocupam uma posição intermediária entre uma voz- terceira da ordem do sagrado (voz de um deus social ou de um deus divino) e o povo (a terra, ou o povo de Deus) (CHARAUDEAU, 2006, p. 80)(grifo nosso). É preciso, portanto, que o político saiba inspirar confiança, admiração, isto é, que saiba aderir à imagem ideal, e que seu discurso considere seus adversários, antecessores (culturais inclusive) e a oposição formal que enfrenta. Com esta perspectiva pode engendrar o valor das idéias, a legitimidade da causa (moral, etc.), o valor do programa que propõe e o “valor dos sujeitos que atuam na política (competência, experiência...)”. É em função dessa lógica, entendido o conflito pelo mercado de bens religiosos no Brasil da Primeira República, e pelo esforço protestante de vencer os óbices que até bem pouco se erigiam sob o caráter de religião oficial que guardava o catolicismo, que afirmamos que uma estratégia inadiável para o enfrentamento dos seus oponentes, notadamente o catolicismo, passava pela formação de quadros aos quais se pudesse prover de competência e experiência. A constituição de uma instituição de ensino superior que reunisse em seus quadros o melhor que cada denominação religiosa dispusesse, não era apenas esforço pela unidade, mas estratégia de ação (política). Todas as conjunturas sócio-políticas e religiosas que sacudiram as sociedades da virada do século XX, como ação reflexa também se impuseram às tradições protestantes no sentido de promover maiores graus de interação, e no nosso contexto isto vai tomar forma e corpo no chamado pan-

americanismo. Em 1916, em fevereiro, no Congresso Evangélico Pan-Americano de Panamá, na cidade do mesmo nome, realizou-se o “Congresso da Obra Cristã da América Latina”. O evento visava ser um ponto de partida para um conjunto de iniciativas que o protestantismo latino iria desenvolver de forma conjunta com vista às soluções para os problemas regionais, estimulando que cada região pudesse elencar problemas e propor alternativas como empreendimento comum, e iniciassem reuniões específicas nas diversas áreas geográficas a serem posteriormente congregadas para análise e ação unificada. Como efeito da decisão, no Rio de Janeiro, nos dias 12 a 18 de abril de 1916 realizou-se então, o 4º Congresso Regional da Obra Cristã na América Latina, ali, dentre o conjunto de temáticas foi apresentada uma proposição para a criação de uma “Associação Teológica Evangélica”, com a finalidade de oferecer a oportunidade para a formação de um ministério evangélico “de Nível Superior”, idôneo e intelectualmente bem preparado, o que seria feito por meio da organização de um Seminário Unido e interdenominacional, uma vez que à época cada denominação protestante se debatia com o funcionamento de suas próprias instituições de formação. A sede do Seminário Unido seria na capital federal, (hoje, cidade do Rio de Janeiro). Decidiu-se constituir uma comissão organizadora formada pelos reverendos Willian A. Waddell, (da Junta de New York), Álvaro Reis (presbiteriano), Eduardo Carlos Pereira (presbiteriano independente) e João

Evangelista Tavares (metodista), para elaborarem o Estatuto do Seminário Unido, e providenciarem o seu registro jurídico. Apesar de que ainda no segundo semestre daquele ano a comissão representativa da Associação Teológica Evangélica, incumbida de estruturar o Seminário Unido, reunidos na Associação Cristã de Moços, apresentar resultados preliminares para os representantes das diversas denominações, como uma proposta de estruturação estatutária para a então chamada da Faculdade de Teologia das Igrejas Evangélicas do Brasil – Seminário Unido, o processo como um todo não apresentava bases sólidas e sofria resistências a serem vencidas, e que, não vencidas, acabariam por determinar o insucesso do projeto alguns anos depois. Sempre houve mais entusiasmo do que pragmatismo. Apesar de tudo, foi eleita sua a primeira diretoria, e que ficou assim constituída: Presidente: Álvaro Reis (presbiteriano) Vice Presidente: Dr. Willian A Waddell (presbiteriano) Secretário: João Evangelista (metodista) Tesoureiro: Francisco Antonio de Souza (congregacional) Reitor: Paul E. Buyers (metodista) Além dos eleitos, compareceram ao encontro líderes e ministros das denominações: Metodista – ofereceram apoio moral e institucional representantes dos diversos grupos protestantes, entre os quais o bispo metodista M. Moore, Donald Mc Laren, Charles Alexander Long, Paul E. Buyers; João Evangelista Tavares; James L. Kennedy: John Willian

Tarboux; Willian A Wanddell, Erasmo Braga, Álvaro Reis, Matatias Gomes dos Santos; Galdino Moreira, Franklin do Nascimento, Laudelino de Oliveira Lima, Eduardo Carlos Pereira, Alfredo Borges Teixeira, Francisco Antonio de Souza, Alexander Telford, Samuel G. Inman, Samuel R. Gammon, Webster Browning, Hugh C. Tucker, Vicente Rego Themud Lessa. Em 16 de Agosto de 1916 estava assim fundado o seminário, a Faculdade de Teologia das Igrejas Evangélicas do Brasil – Seminário Unido O empenho por este ideal de convivência em mútuo relacionamento era manifestado nos esforços conjugados por líderes do protestantismo brasileiro, no sentido de formar uma consciência definida a favor da cooperação cristã, firmada na unidade espiritual. Com este espírito deliberaram sobre a fusão dos seminários existentes, na Faculdade Evangélica Interdenominacional. As denominações cooperaram para isso, e a Igreja Congregacional chegou a fechar o seu seminário, e transferir os seus alunos para o Seminário Unido. Em Março de 1917, abriram-se as matrículas e iniciaram-se as aulas para o Curso Abreviado e ouvintes. Somente em 1920 foram ministradas as aulas para os 12 bacharelandos de Teologia. A Faculdade de Teologia das Igrejas Evangélicas do Brasil – “Seminário Unido”, mantinha dois cursos: a) Bacharelado, ministrado em cinco anos, para alunos aprovados em curso propedêutico, com um currículo que compreendia matérias de Teologia, de Conhecimento Humanístico e de Filosofia, e b) o curso Abreviado com duração de três anos para candidatos sem preparo completo de nível secundário, e tinha um corpo docente composto dos

mais ilustres doutos e reverendos, e contava também inicialmente com uma biblioteca com 1500 volumes. O Seminário Unido funcionou com sede provisória, por alguns anos no Instituto Central do Povo (da Igreja Metodista ), na rua do Livramento, nº 233, no centro do Rio de Janeiro. Em maio de 1929, foram adquiridas para sedes próprias, cinco casas na rua Bahia, nº 90, junto à Quinta da Boa Vista em São Cristóvão. Até a cessação das suas atividades, por ali passaram grandes ícones do protestantismo brasileiro, entre os quais Anselmo Chaves, Benjamim Morais, e professores eruditos como Erasmo Braga, Galdino Moreira e Júlio Nogueira, entre outros. A preeminência da formação de quadros para o desenvolvimento do protestantismo foi uma constante desde as suas origens, como se percebe nesta carta do missionário presbiteriano J. R Smith, à sede da missão nos Estados Unidos, ainda em 1878 (...) Imploro a Igreja que esta missão seja reforçada imediatamente. É de importância vital hoje. Dois homens não podem se incumbir oficialmente do trabalho que tem aberto rapidamente em nossa frente, a congregação na cidade, as aulas dos rapazes, congregações em torno de nós e locais que poderiam ser abertos. (...) É nosso desejo que o Sr. Pontes, agora em Goyana, não volte ao trabalho de colportor. Precisamos de seu trabalho em relação à Missão, para nos ajudar a cuidar melhor destas congregações... o Sr. Pontes pode ir de lugar em lugar ficando dois ou três meses de cada vez (grifos nossos) (SMITH, abril de 1878).

Smith, nesta e em outras correspondências, e outros missionários insistiram sistematicamente na formação de rapazes. O modelo de formação de então era deixar dois ou três, às vezes mais aspirantes ao pastorado sob orientação individual dos missionários, num tipo de formação sob tutela, dada a ausência de instituições do formação teológica. A abrangência dos conteúdos desta formação podem ser inferidas do relatório do presbitério de Pernambuco, publicado no jornal O EVANGELISTA em 1890 e 1991. Presbitério de Pernambuco O candidato M. A. Guimarães foi examinado em inglês, francês, português, aritmética e história sagrada... O candidato João O. do Rego foi examinado em inglês, português, historia universal e aritmética... começou a estudar geometria elementar e latim. Ambos estudarão as matérias com o ministro João B. de Lima (O EVANGELISTA, II - 25 de outubro 1890 nº 52, p.5). Francisco Solano Magalhães da Igreja do Recife foi examinado em português, francês e aritmética, exibindo-se com brilhantismo, devendo no ano vindouro ser examinado em inglês, geometria, geografia, evidências do cristianismo, introdução geral e especial etc., retórica sagrada, teologia sistemática e pastoral. M. A. Guimarães e João O. do Rego, em 1892 devem ser examinados em sintaxe da língua portuguesa, gramática inglesa, latim, grego, filosofia e teologia, tanto quanto possível”. (Evangelista, II 25 de setembro de 1891 nº 85 pp. 5,6)

Uma questão em particular que aludimos aqui era o ensino de História. Mais tarde incorporado ao currículo como história do cristianismo geral e história do cristianismo no Brasil, não fazia parte do curso, explicado em parte pela condição de brasileiros dos que almejavam o ministério ordenado, em a relação aos quais se supunha o conhecimento elementar da história-pátria. A história do cristianismo do Brasil não era “interessante”, uma vez que o protestantismo brasileiro era jovem, restaria contar os feitos dos adversários católicos, daí a opção pela história natural e geral, na qual se encaixaria a narrativa dos pretendidos triunfos da Reforma Protestante e seu desenvolvimento em vários países nos séculos precedentes. Mas a formação mediante a orientação de um tutor foi se mostrando inadequada, tanto pela perda de homogeneidade nos conteúdos, como na subtração do tempo dos agentes da atividade “missionária” ou “evangelística”, em detrimento das atividades educativas, sendo iniciado o esforço dirigido para a formação de classes de estudantes e na sequência em escolas precariamente organizadas para tal fim. Há uma farta discussão nos vários periódicos protestantes deste período entre os setores a favor e contra o funcionamento da faculdade comum, com as quais não vale a pena exaurir o leitor, mas há alguns pontos que podem sugerir o caminho para o esgotamento do empreendimento comum acalentado originalmente no idealismo. Em primeiro lugar, embora se reconhecesse no catolicismo o inimigo comum, e a conjugação de forças como uma vantagem neste conflito, o protestantismo brasileiro não

tinha este grau de unidade pretendida e o seu sectarismo era mais forte, exemplarmente tipificado nas tradições batistas. Ou seja, os motivos para conjugação de esforços era menos denso do que os projetos particulares de cada denominação. Ao lado disso, uma remissão aos caminhos abertos na Reforma Religiosa do século XVI mostra como a organização sucedânea dos diversos grupos unidos sob alcunha geral – e imprecisa – de protestantes, cedo mostrou sua diversidade de fórmulas doutrinais e organizacionais. O protestantismo era um processo diverso, que suas lideranças primitivas entenderam não devia/podia ser diferente, isto é, ser presbiteriano, não era ser metodista ou congregacionalista, e assim por diante. Isso remete a outra questão associada na direção da Teologia. Os vários grupos foram se diversificando em fórmulas confessionais, dogmáticas e teológicas distintas, portanto, por maior que fosse o esforço, geraria aproximação, eventual co-beligerância, mas não conformidade. Assim, não era de se esperar a superação desta trajetória histórica se efetivasse na experiência local do Brasil do início do século XX. Por exemplo, por mais que um professor de Teologia – disciplina fundante no curso – se esforçasse pela exposição “imparcial”, sua biografia, formação, vinculações eclesiásticas, tenderiam a obrigá-lo, involuntariamente até, a colocar certas ênfases sobre sua herança teológica, talvez numa questão controversa como calvinismo-arminianismo, etc.

Neste particular (conteudista?), a história interessa ao apontar ainda como os vários grupos reformados se organizaram a partir de rupturas com grupos precedentes, e tal história, tendia facilmente a instrumentalização como ratificação ou razão para legitimação da experiência de cada grupo e suas divisões. Finalmente, havia as próprias personalidades envolvidas. A historiografia protestante biografa o rev. Álvaro Reis como uma personalidade difícil, apesar dos atributos intelectuais incontestes, e a tensão permanente que viveu com o rev. Eduardo Carlos Pereira é conhecida dos estudiosos do protestantismo. Estes elementos de subjetividade que poderiam ser ampliados geravam uma ambígua convivência fraterna e tensa.

Considerações Finais E sta problemática que apresenta a face interna do protestantismo dual em sua busca de unidade, a afirmação de identidades, no formato em que foi exposta neste texto, nos sugere uma leitura de como a constituição de projetos institucionais que visam prover a unidade dos segmentos sociais, esbarra na hermenêutica social e em outros fatores que conspiram contra sua realização, ou seja, a forma de “ler” o Brasil, que oferecia diretriz para ação missionária era irredutível a um único formato. O que tentamos apontar aqui foi como o importante exercício de hermenêutica do patrimônio cultural – religioso – brasileiro feito, ainda como pretendido, “em alto nível” se esvaiu, sem conseguir uma idealizada “percepção da dimensão temporal e ou eventos históricos”, societários e culturais doBrasil, e das características das missões que para cá migraram no século XIX. Maurice Duverger explica que quando grupos sociais antagonizam em relação aos projetos de sociedade que

esposam, por exemplo, religiosa e laicista, tendem no enfrentamento a desenvolver armas e estratégias para o embate. Afirma o autor que nestas estratégias, os antagonistas agem segundo um projeto pré-estabelecido, antecipando as ações pelos e sobre os adversários, e suas réplicas. Esta referência está feita aqui para deixar claro que a formação de quadros nos diversos grupos religiosos não se destina apenas a habilitação para a propaganda religiosa (a evangelização, a missão e os misteres do culto), mas visa demarcar seu espaço social e a implementação dos respectivos “projetos pré-estabelecidos”, no caso, maior catolização ou protestanização da sociedade, e como tudo isso colidia com os cenários concretos em sua operacionalização. Constatada a modesta eficácia dos modelos de formação no âmbito do protestantismo, também se verificou que a dispersão de recursos financeiros e humanos era contraproducente, o que fez com que as lideranças de cada grupo começassem a cogitar algo além dos seus próprios esforços setoriais, sobretudo, o contexto da ideologia associativista que referimos. Esta é a gênese do processo de um Seminário Unido, mas sem sucesso, notadamente quando as decisões estavam sob a tutela dos líderes das “igrejas- mães” nos Estados Unidos, para os quais a intelegibilidade da realidade brasileira e latina não era simples. Evidência inequívoca que o projeto se destinava ao que referimos como hermenêutica social do patrimônio cultural- religioso brasileiro, e a adoção pelos setores protestantes do texto da lavra do pastor Eduardo Carlos Pereira Nossa, atitude

em face do catolicismo romano, libelo acusatório, de marcado viés apologético, o que não surpreende, pois como está reconhecido na bibliografia especializada, a apologética, ou seja, os textos de combate intelectual e doutrinais, que se constituíram uma das principais armas do protestantismo em sua inserção no Brasil, notadamente no período republicano. Assim, precocemente, mas por razões previsíveis esgotou-se este projeto específico para a unidade do protestantismo, embora esforços continuassem a ser realizados na direção de aproximação e co-beligerância, sobretudo, face ao catolicismo.

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