os perseguidores colocavam até bombas e dinamites para destruir os lugares de reuniões. Além da agressividade do Código, a reação do clero era mais intensa, à medida que o Espiritismo se difundia na sociedade. Não eram apenas as elites intelectuais e as classes baixas que aderiam ao Espiritismo, a classe média também. O fenômeno desencadeou uma contra-ofensiva da Igreja, com os mesmos argumentos de sempre, tratando o Espiritismo como obra do demônio. Sem dúvida, com o advento da República, o embate entre os espíritas e a Igreja se acentua, revelando por parte da Igreja, segundo Miceli, um esforço “de revidar aos argumentos e às versões anticlericais, de resistir ao proselitismo dos concorrentes maçons, protestantes e espíritas”. (MICELI, 1988, p. 53) Em de janeiro de 1891, foi publicada no Jornal do Comércio uma coluna intitulada “O novo código e o espiritismo”, assinada pela FEB. A intenção da Federação ao publicar esse artigo, era rebater as acusações de charlatanismo e exploração da boa fé alheia que o Espiritismo acabou sofrendo com as proposições do advogado João Baptista Pereira, que simplificou as práticas espíritas à arte de curar e afirmou serem os espíritas especuladores e expropriadores. Procuraram, também, reafirmar princípios da Doutrina Espírita, procurando não limitá-la à arte de curar, mas, também a compreensão de mundo, orientação de vida, conduta moral e princípios de amor, bondade e caridade para como próximo, ou seja, princípios estes, contidos também na religião católica.
Mesmo com o Código Penal de 1890 e as perseguições realizadas a espíritas e aos centros por estes frequentados, o Espiritismo não arrefeceu, continuou a crescer e espalhar-se por dezenas de cidades brasileiras. Sobre isso, o historiador/pesquisador da Igreja Scott Mainwaring (1989, p. 53) comenta que a expansão do Espiritismo tornou aparente e preocupante para a Igreja o que era na verdade algo irreversível, pois a Igreja não estava efetivamente atingindo as massas, e isto estava contribuindo para o declínio do seu monopólio religioso, fato este que causava grande incômodo à sua hierarquia. Portanto, execrar os espíritas e também protestantes tornou-se lugar-comum dentro da Igreja Católica. Em artigo intitulado O que é um espírita e publicado no Jornal a Imprensa Catholica de 1921, na Paraíba, o clero tenta definir o que seja um espírita de fato, e começa a fazer adjetivações preconceituosas e comparações a outras religiões, colocando ao final como praticantes de seitas satânicas e diabólicas. A tentativa de definição situa-se nestes termos. Sim, afinal que é o espírita – catholico? Não, porque catholico é só o que acceita integralmente os ensinamentos da Egreja Catholica, e Ella condemna o espiritismo como seita e diabolica. Mas o espirita será christão? Tambem, não; porque christão significa discípulo de christo, e Jesus Christo prohibe e reprova formalmente o diabolismo, que nada mais é do que o espiritismo. Então o espírita será judeu? Ainda, não; mas, peior que judeu; porque ao judeu, como se ver na Biblia, era prohibido severamente evocar as almas dos mortos, e o espirita faz o que nenhum judeu podia fazer. (...) Eis o que é espirita, um hereje, um
apostata, um excommungado, indigno de ter ingresso no lugar santo durante a vida; indigno da sepultura sagrada após a morte; indigno dos sufrágios da Egreja por toda a eternidade. (AEPB – Arquivo Eclesiástico da Paraíba. Serie Jornais. JORNAL A IMPRENSA BI-SEMANARIO CATHOLICO – Parahyba - Quarta- feira, 19 de outubro de 1921 - ANNO XIX N.19) Como vemos a reação do clero é agressiva e mais intensa, à medida que o espiritismo difundia-se na sociedade. O fenômeno desencadeou uma contra ofensiva da Igreja e, usando os mesmos argumentos de sempre, tratava o espiritismo como obra do demônio. No discurso católico presenciamos uma aspereza do tratamento dado ao Espiritismo sem maior diálogo e tolerância. Considerações finais. Provavelmente, os espíritas acreditavam que a proclamação da República e de um Estado Laico deveria ter levado a uma maior liberdade e diálogo entre as diferentes correntes de pensamento religioso e filosófico. Porém, o que vemos na nossa pesquisa, é contra-ataques duríssimos em direção ao movimento espírita paraibano, e a criação de um estado de terror e medo que é incutido no seio da sociedade. As questões até então apresentadas sobre os embates entre católicos e espíritas, nos remetem à reflexão sobre a atuação do Espiritismo no Brasil e, em particular, na Paraíba. Nossa interpretação nos leva a acreditar, que o Espiritismo, seguindo o modelo das grandes religiões, também desenvolveu peculiar capacidade de apresentar interpretação coerente do mundo, explicando a posição dos indivíduos nas
estruturas de estratificação social e orientando a conduta moral, social e religiosa de seus integrantes, assim como fazia/faz o catolicismo. É verdade porém, que devido à relevante posição atribuída pela religião espírita à caridade e à fraternidade, como também à assistência espiritual e à educação dos seus participantes, os aspectos científicos tenham ficado inicialmente em segundo plano, porém, não podemos descartar a importância dos fenômenos mediúnicos que foram exaustivamente estudados desde a codificação. No nosso entendimento, o espiritismo foi igualmente capaz de preencher certas expectativas do pensamento racional vigente, possibilitando investigações de ordem comprobatória a respeito do próprio fenômeno mediúnico, por exemplo. A rejeição ao dogma católico e a adoção de procedimento sistemático na formação da Doutrina Espírita mostraram-se compatíveis com as aspirações intelectuais e de um número significativo da sociedade. Talvez seja compreensível para a época pesquisada, o desconforto gerado no seio do clero com o surgimento e expansão da Doutrina Espírita, cada campo religioso evocando pra si sua relevância e atuação dentro da sociedade.
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O EVANGELICALISMO ANGLICANO BRASILEIRO E A QUESTÃO HOMOSSEXUAL ALDENOR ALVES SOARES Doutor em Antropologia pelo PPGA/UFBA e Professor- Adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE)
Introdução A s instituições religiosas possuem interesses específicos, entre eles, a difusão de sua fé e expansão do número de seus membros (Mainwaring, 1986). Num contexto social marcado pelo pluralismo religioso, como é o caso do Brasil contemporâneo, tais interesses ganham relevância máxima. Nesse Sitz im Leben, o individualismo, isto é, a tendência à livre elaboração de sistemas de códigos e de significação do mundo (vale dizer, uma certa privatização do sagrado), configura uma religiosidade a “la carte” (Bibby, 1990:153), onde combinações diversas de produtos simbólicos oferecidos, são operadas de acordo com a regra: “do it yourself” (Willaime, 1992:108). Essa “lógica do mercado” (Berger, 1985:149-150), tão hegemônica nas sociedades ocidentais modernas, impregna “uma parte considerável” das atividades religiosas. Dessa forma, tradições, discursos e práticas religiosas são oferecidos como “bens para o consumo”.
Uma antiga situação de monopólio religioso (mantido pelo Estado!), onde uma determinada instituição foi imposta como religião oficial (a Igreja Católica, no caso brasileiro), transfigurou-se radicalmente quando submetida à desregulamentação: nasceu então a livre concorrência entre várias instituições religiosas, que agora (num contexto de pluralismo religioso), passam a competir entre si pelo maior número de adeptos (que tinham antes suas demandas reprimidas ou ignoradas). Livre mercado religioso, onde cada instituição é forçada a conquistar sua sobrevivência por conta própria e às custas do aumento de eficiência em termos de propaganda. Cada uma delas deve esforçar-se mais e mais para garantir sua manutenção e desenvolvimento. Várias estratégias de expansão são elaboradas para aumentar a produção de resultados (de lucro), isto é, o aumento significativo de adeptos. Esse aumento de pressão por resultados, fruto da intensificação da competição, afeta cada instituição religiosa de forma a que seus modelos de liderança, estrutura organizacional, liturgia etc, passem a ser mobilizados com vistas a uma nova ênfase na missão (esforço proselitista). Algumas dessas estratégias mercadológicas são mais bem sucedidas, e por isso provocam uma tendência à padronização, vale dizer, uma imitação de produtos, bens e serviços com vistas à satisfação de demandas de uma mesma fatia disputada num mercado consumidor. Às vezes, há assimilação de produtos simbólicos externos ao contexto especificamente religioso, na tentativa de evitar que os adeptos sejam seduzidos por “substitutivos mundanos”. Nessa “microeconomia do sacrifício” (Iannaconne, 1988), os
possíveis consumidores de “bens de salvação” não optam por uma proposta religiosa ao invés de outra de forma aleatória, pelo contrário, fazem sua adesão porque concluem que “ganham” com esta escolha religiosa (possuem expectativa de lucro pessoal). Pensando nisso, as instituições variam no nível de exigência (sacrifício) que fazem para seus postulantes. Stark e Iannaccone (1994) sugerem também algumas definições que contribuem para uma mais clara compreensão do funcionamento do mercado religioso. Assim sendo, “religião” é um sistema de crenças e práticas referentes ao significado último das coisas, baseado na crença do sobrenatural. “Empresas” sociais voltadas para o objetivo de criar, manter e fornecer religião para um grupo de indivíduos podem ser consideradas “firmas religiosas”. Todas as atividades religiosas presentes em uma determinada sociedade constituem uma “economia religiosa”, nas quais “produtos religiosos” (práticas e crenças) são oferecidos aos “consumidores” (indivíduos potencialmente interessados em religião). Tal oferta visa o “lucro” (quantidade de fiéis que uma firma religiosa é capaz de conquistar num determinado período de tempo). Quanto maior o número de firmas religiosas estiverem em atividade maior será o grau de “pluralismo” (situação da economia religiosa na qual mais de uma firma opera). Se determinada firma religiosa cria um produto capaz de atender as necessidades e gostos especiais de um segmento específico de mercado, diz-se, então, que tal empresa “especializou-se”.
Por um lado instituições religiosas e clérigos são visados como “produtores” que determinam as características e estratégias de venda de seus produtos (que devem ser tão ou mais atrativos do que os de seus concorrentes), enquanto os adeptos são visados como “consumidores” que decidem a qual religião vão aderir e o nível ou grau de participação ou engajamento que vão exercitar. Num contexto no qual a concorrência aumenta, o desempenho ou a ênfase na performance das organizações religiosas tende a crescer. Assim sendo, as instituições religiosas tendem a atrair e manter uma clientela que possa prover a força de trabalho e o capital que elas precisam para garantir sua sobrevivência e sucesso em situação de mercado (Iannaccone, Olson e Stark, 1995). O nível de participação ou mobilização religiosa tende a crescer não apenas em virtude do aumento da concorrência (em razão da desregulamentação), como também por causa da variedade de gostos dos consumidores, vale dizer, da forte diferenciação das demandas; a segmentação do mercado religioso visa justamente o suprimento de tais demandas. Os “produtores”, no entanto, fazem a mediação entre a oferta e a demanda, ou seja, os líderes realmente carismáticos são aqueles que conseguem captar a especificidade da demanda, e colocá-la a serviço do seu projeto eclesial. O cisma ocorrido na Diocese Anglicana de Recife (DAR) – da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) – em 2002, oferece um caso paradigmático para ilustrar como um líder carismático (o deão da Catedral da SS. Trindade) do anglicanismo brasileiro “consegue captar a especificidade da demanda, e colocá-la a serviço do seu projeto eclesial”.
I A primeira incursão do anglicanismo no Brasil deu-se sob a forma de capelania religiosa. Por volta de 1810, Portugal e Inglaterra firmaram um Tratado de comércio e navegação que incluía, entre outras cláusulas, permissão para o estabelecimento de cemitérios, hospitais, clubes e igrejas no território do Reino de Portugal. Tais igrejas, segundo a exigência portuguesa, deveriam realizar seus ofícios em inglês, serem frequentadas apenas por britânicos e evitarem aparência exterior de templo. Foi assim que em 1822 foi inaugurada, sob proteção policial, a primeira igreja anglicana em solo brasileiro: era a Capela Christ Church de Botafogo, no Rio de Janeiro. Posteriormente, outras capelas foram construídas em São Paulo (St. Paul’s), Recife (Holy Trinity), Salvador (St. George), Belém (St. Mary), Niterói (All Saints), Santos (Capela dos Marítimos) e São João Del Rey (Capela da Companhia de Mineração). No Recife, segundo Robinson Cavalcanti, “o templo funcionou onde é atualmente o Cinema São Luiz. O Ministro residia no ‘Beco do Padre Inglês’” (1998:1).
Como se pode notar, essa primeira incursão não possuía um objetivo “missionário”, mas apenas a prestação de assistência religiosa aos súditos ingleses. Dessa forma, nenhuma atividade caracteristicamente “evangelística” foi promovida para atrair os brasileiros. Istso somente aconteceria no final do séc. XIX, com a chegada de missionários norte-americanos. Tal fato deu-se em 26 de setembro de 1889, quando os missionários Lucien Lee Kinsolving e James Watson Morris desembarcaram no Rio de Janeiro. A chegada desses missionários, que estudaram no Seminário de Virgínia, era resultado do despertamento missionário pelo qual passavam as igrejas americanas, em virtude dos movimentos revivalistas daquele período. Apesar da resistência dos anglo-católicos que controlavam o Departamento de Missões da Igreja Episcopal Americana (pois consideravam o Brasil um país cristão), Kinsolving e Morris (que eram anglo-evangélicos) conseguiram levantar fundos nas paróquias e chegar ao Brasil como “voluntários” da Sociedade Missionária da Igreja Episcopal Americana. Permaneceram na capital paulista até 12 de novembro, quando então partiram para Porto Alegre (RS), onde chegaram no dia 19 do mesmo mês. Em Porto Alegre, realizaram o primeiro culto em português para brasileiros, no 1º Domingo de junho de 1990. No ano seguinte, mesmo em meio à perseguição religiosa, congregações foram estabelecidas em Porto Alegre, Rio Grande, Santa Rita e Pelotas.
O registro da missão deu-se em 1895. Em 1907 a igreja passou a ser um distrito missionário da Igreja Protestante Episcopal dos Estados Unidos da América. O status de igreja autônoma foi readquirido somente em 1964, quando a igreja passou a ser reconhecida como a 19ª Província da Comunhão Anglicana. O período de 1889 a 1949, que é considerado por Cavalcanti (Op. cit.: 2) a “fase evangélica” da IEAB, foi marcado pelos episcopados de Kinsolving e Thomas, respectivamente. O período Kinsolving (1889-1926) deixou vários frutos, entre eles, a ordenação de 30 clérigos, a fundação do Seminário Teológico, a tradução do Livro de Oração Comum (1913) e a expansão missionária. O período Thomas (1927-1949) também foi frutífero: o Jornal “Estandarte Cristão” foi criado (1929), o Colégio Santa Margarida foi fundado em Pelotas (1934), o Orfanato Evangélico de Pelotas foi estabelecido (1936), novas missões foram fundadas e templos construídos; segundo Cavalcanti (Op. cit.:3) “o seu período é considerado como o de maior crescimento”. Thomas, dono de um fecundo e longo episcopado, é lembrado na IEAB como o bispo que “consolidou a obra pioneira iniciada por Kinsolving” (IEAB, 2000:7). Embora os primeiros diáconos brasileiros tivessem sido ordenados em 1893, o primeiro bispo brasileiro foi sagrado somente em 21 de abril de 1940, exatamente 50 anos após a fundação da Igreja Episcopal no Brasil. O primeiro bispo primaz brasileiro foi eleito somente em 1965. Todos esses fatos revelam a demora da nacionalização da missão trazida por Kinsolving para o Brasil.
Quanto à eleição do primeiro bispo brasileiro, Kickhöfel analisa que “era inevitável que a discussão do problema surgisse, mais cedo ou mais tarde, embora não sem certo constrangimento” (1995:188). Em 1934, um memorial já se manifestava sobre a necessidade da eleição de um bispo brasileiro. Em 1936, um segundo memorial insistia na questão, indicando o modo da eleição por meio de votação secreta. Em 1937, a Convenção Geral da igreja americana aprovou o pleito da igreja brasileira e, em 8 de novembro de 1939, a Câmara dos Bispos da igreja americana aprovou o nome de Pithan para o cargo de bispo sufragâneo. Outro evento importante no processo de nacionalização da igreja brasileira foi a divisão do distrito em três dioceses. Em 1º de janeiro de 1950 a igreja brasileira passou a ter 3 dioceses: Brasil Meridional, com sede em Porto Alegre; Brasil Sul- ocidental, com sede em Santa Maria (RS) e Brasil Central, com sede no Rio de Janeiro, que era o Distrito Federal na época. Com essa divisão, a igreja brasileira instituiu organismos importantes para o processo de nacionalização, a saber: um Conselho Nacional, um Sínodo trienal e um Bispo Presidente para a igreja nacional. Após a eleição de um bispo nacional e da criação de dioceses faltava somente a conquista da autonomia para selar a nacionalização da missão anglicana no Brasil. Fundada como igreja autônoma em 1890, a missão anglicana no Brasil acabou perdendo este status e sendo reduzida a distrito missionário da igreja americana em 1907, em razão de dificuldades na área financeira.
Em 1965, no entanto, a igreja brasileira readquiriu sua autonomia de fato. Em 1961 o Conselho Nacional encaminhou uma concordata à igreja americana propondo a autonomia. A aprovação da PECUSA foi concedida somente em 1963 (Câmara dos 94 Bispos) e 1964 (Convenção Geral). Efetivamente, a igreja brasileira passou a ser autônoma em 22 de abril de 1965. O problema decorrente da autonomia dizia respeito à área financeira. Pelo acordo firmado com a PECUSA, os dólares vindos dos Estados Unidos seriam reduzidos progressivamente, até que a igreja brasileira conseguisse realmente sua autonomia financeira e não apenas administrativa. Esse acordo foi denominado de Plano Decenal (a ser implementado em dez anos: 1973-1982); que, na verdade, consistia na redução de 20% da verba americana a cada ano, a partir do sexto ano do Plano Decenal. Com essa redução drástica de receita, a igreja brasileira passou a decrescer estatisticamente, bem como a comprometer a qualidade de seu clero, pois os padres foram forçados a dividir seu tempo com trabalhos seculares, afim de conseguirem meios de subsistência. O pós-65 significou para a igreja episcopal brasileira, uma tomada de consciência radical das implicações financeiras da conquista da autonomia, ainda mais levando-se em consideração o fato de que o contexto econômico inflacionário do período da ditadura militar (1964-1985) passou cada vez mais a tornar-se caótico.
Esse período, no entanto, marcou mudanças importantes no perfil da IEAB: expansão para o norte e nordeste, envio de missionários para o exterior, envolvimento com organismos ecumênicos, abertura à Teologia da Libertação, aprovação da ordenação feminina etc. Segundo Kickhöfel: “Durante a década de 60, surgiram as primeiras manifestações sobre a responsabilidade social da igreja. A igreja vivia o período de exceção instalado no país pelo Golpe de 64. Pouco tempo depois, em 1968, o concílio divulgava um manifesto sobre a realidade brasileira, apelando às autoridades brasileiras e aos cristãos em geral para banir a miséria, o analfabetismo e as injustiças sociais que aniquilavam a classe média e marginalizavam grande parcela da população brasileira (1995:249).A IEAB levou 10 anos para equacionar o problema da ordenação feminina. Em 1974, o sínodo discutiu o assunto pela primeira vez; em 1975, o assunto foi encaminhado pelo sínodo para discussão de todo o povo e o clero da IEAB. Em 1978, pressentindo que o pleito da ordenação feminina pudesse ser aprovado, os conservadores fizeram uma manobra política, mudando o sistema de votação de maioria simples para maioria absoluta. Em 1980 e 1982 a proposta foi rejeitada sistematicamente e em 1983 nem sequer constou da agenda de discussão do sínodo. Em 1984 houve uma mudança radical, no sentido de que a Câmara dos Bispos aprovou por unanimidade a proposta, sendo seguida por ampla maior na Câmara dos Clérigos e Leigos.
Tudo indica que a substituição do conservador Kratz por Sherril no posto de primaz, bem como a evolução da discussão e da prática da ordenação feminina no contexto do anglicanismo mundial, foram fatores importantes na mudança do quadro e a consequente aprovação em 1984; não devendo ser descartada também a pressão sobre os delegados sinodais por parte da ala feminina da igreja, há bastante tempo excluída da administração e liderança. A ordenação feminina, no entanto, estava longe de ser a questão com maior potencial para dividir o anglicanismo brasileiro. No início do século XXI, a questão gay (ou o problema da ordenação de homossexuais) é que faria emergir o mais sério desafio do anglicanismo brasileiro, sendo o cisma de 2002, em Recife, o evento-gatilho para uma crise que assumiria proporções jamais vistas na história do anglicanismo brasileiro.
II E m 1956 o bispo Melcher visitou Manaus e Belém, ocasião em que crismou sete pessoas. Dois anos depois, o bispo eleito Sherril voltou a visitar algumas cidades do Norte e Nordeste. Nessa época, Salvador estava sem capelão (o último tinha ido embora havia meio século), Recife possuía apenas uma pequena congregação de estrangeiros assistidos por um capelão e Belém contava com a liderança do Pe. Leslie Hallet, um missionário americano que dirigia uma escola e realizava cultos numa casa alugada. Quase uma década após sua visita, Sherril enviou ao Recife (1967) o Pe. Alfredo Rocha Fonseca Filho, que tornou-se o primeiro capelão brasileiro da Paróquia da Santíssima Trindade. Nesse mesmo ano, a Paróquia da Santíssima Trindade, que funcionava na Rua Carneiro Vilela, 569 (Espinheiro), transferiu-se oficialmente para a jurisdição da IEAB, ocasião em que foram crismadas 31 pessoas. Embora houvesse um capelão brasileiro, dois missionários americanos assistiam os estrangeiros da Paróquia.
O evento fundador da presença anglicana no nordeste do Brasil foi, sem dúvida, a chegada do pastor Paulo Garcia, em 1975, ao Recife. A história do anglicanismo na região pode ser datada antes e depois de Paulo Garcia. Seu carisma pessoal é o grande acontecimento que deslancha o crescimento do anglicanismo na região; sem ele tal fato seria incompreensível. Embora as capelanias anglicanas tenham fornecido o ponto de apoio para a implantação e o crescimento da IEAB na região e o bispo Sherril tenha tomado a iniciativa em relação a este projeto, nada disso teria tomado a direção que tomou e a proporção atual sem a participação decisiva do ministério de Paulo Garcia. Ele pode ser considerado o pai do anglicanismo na região Nordeste. Ao chegar em 1975, Paulo Garcia encontrou uma congregação com somente oito estrangeiros e dois brasileiros. Dois anos depois, a Paróquia já possuía 200 membros e continuava em ritmo acelerado de crescimento. As estratégias usadas por Paulo Garcia em seu ministério incluíam os encontros de casais, cursilhos e um programa na Rádio Jornal do Comércio. Em junho de 1975 o sínodo provincial criou oficialmente a Diocese Setentrional, com sede em Recife e abrangendo o norte e o nordeste do Brasil. O período de Edmund Knox Sherril (de tendência evangélica) à frente da Diocese Setentrional marcou a implantação da IEAB na região. Entre 1976 e 1985 o trabalho evoluiu de 3 paróquias, 4 clérigos e 3 missionários para 6 paróquias, 2 missões e 9 clérigos. Entre 1985 e 1997, o bispo Clóvis Erly Rodrigues (de tendência católica) liderou a Diocese num clima de animosidade com a maioria evangélica. Todos na região esperavam que Paulo
Garcia fosse eleito bispo no processo de sucessão de Sherril, no entanto o ísnodo provincial elegeu Clóvis, procurando dar uma cara mais católica à Diocese Setentrional, única neste período a encaminhar-se mais numa direção evangélica no contexto da IEAB. A eleição de D. Robinson Cavalcanti para o episcopado em 1997 marcou a revanche dos “evangélicos” do norte sobre os “liberais e católicos” do sul; conferindo à Diocese Anglicana do Recife (nome atual) uma face clara de hegemonia evangélica, tanto no aspecto teológico quanto no aspecto do poder político e eclesiástico. Essa hegemonia, no entanto, ocultava projetos e interesses antagônicos, que se revelariam no famoso cisma de 2002, ocasião em que o deão da Catedral da SS. Trindade, rompeu com a DAR-IEAB.
III E m 2002, a Diocese Anglicana do Recife (DAR), jurisdicionada pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), perdeu sua maior congregação local – a Catedral da Santíssima Trindade – para a Igreja Episcopal Carismática do Brasil (IECB). Na ocasião, o deão da Catedral (que liderou o cisma) afirmou aos quatro ventos que sua saída da Igreja Anglicana era motivada pela “liberdade exagerada” que a mesma concedia aos homossexuais. A mídia local deu ampla cobertura ao conflito institucional e o Jornal do Commercio (JC), maior jornal em circulação do estado, divulgou duas matérias – em 02 de outubro (JC, 2002a, p. 5) e 10 de novembro de 2002 (JC, 2002b, p. 1) – com as explicações dos principais atores/retores envolvidos no embate: o deão cismático da catedral e seu antípoda, o bispo diocesano local à época. Com o título “Paulo Garcia deixa Igreja Anglicana”, o JC de 02 de outubro de 2002 (JC, 2002a, p. 5), noticiou em meia página, o comunicado do religioso sobre sua saída da IEAB. O título coloca em destaque a figura do agente ou protagonista
(o deão) e o evento relatado pelo mesmo (a decisão de abandonar a Igreja Anglicana). O subtítulo da matéria frisa a experiência do deão (33 anos de ministério pastoral, 27 dos quais à frente da Catedral da SS. Trindade), como forma de credenciamento e legitimação do mesmo, assim como a razão principal alegada por ele, para sua tomada de decisão de abandonar e desistir da Igreja Anglicana (a saber: a “exagerada liberdade” concedida a homossexuais na Igreja!). O deão migrante fazia questão de frisar que não estava abdicando do seu posto de líder espiritual da Catedral da SS. Trindade, nem da ecclesia – enquanto totalidade simbólica representante do cristianismo como grupo ou sociedade sacral/religiosa –, e nem muito menos de sua vertente episcopaliana; afinal continuaria realizando os mesmos labores de pastor da Catedral, embora sob outro guarda- chuva institucional (IECB), extremamente semelhante do ponto de vista simbólico ao anterior (IEAB), pelo menos na percepção dos leigos. Tanto é que o Arcebispo Howard (da IECB), quando da recepção oficial de Paulo Garcia em 6 de outubro de 2002, propalou em alto e bom som durante sua homilia (referindo-se à Catedral da SS. Trindade): “[...] esta Igreja não precisará mudar nada, pois ela já é uma Igreja Episcopal Carismática” [itálicos nossos]. O tipo de produto simbólico ofertado e vendido aos clientes da Catedral, não sofreria alterações substanciais de conteúdo, mas apenas de forma. A abdicação é do anglicanismo, no sentido de instituição condescendente com o liberalismo teológico e moral (leia-se: permissividade em relação aos homossexuais!), bem como o pluralismo teológico em seu
próprio território (interna corporis). Esta, pelo menos, é a versão tanto do próprio deão quanto do seu adversário, o bispo da DAR/IEAB. O próprio bispo desfechou: “Paulo [Garcia] nunca incorporou o anglicanismo e sempre teve dificuldade em [...] conviver com uma igreja plural” (JC, 2002a, p. 5). A outra explicação do bispo para a ocorrência do cisma tinha a ver diretamente com sua relação institucional concreta com o deão: “Paulo [...] sempre teve dificuldade em obedecer ordem dos superiores [...]” (JC, 2002a, p. 5). Este é o tipo de crítica que também o bispo anterior (D. Clóvis E. Rodrigues, de tendência liberal) fazia ao atual bispo (D. Robinson Cavalcanti, de tendência evangélica), na época em que ele era um presbítero, por sua postura pouco submissa ao prelado de então. Repito: como os adversários mudam com o tempo, muda também, tanto o autor quanto o alvo do ataque; mas neste caso, só não muda mesmo a sede pela posse e manutenção do poder. Aqui então a verdade vem à tona: há um conflito pessoal entre bispo e deão; exercício de autoridade sendo questionada e disposição de obediência a evaporar; superiores e inferiores em confronto. Em suma: a questão da posse, exercício, manutenção e luta pelo poder. O burocrata da instituição defende a legitimidade de seu poder superior de bispo, enquanto o carismático deão, que atrai grande quantidade de seguidores, nega-se a submeter-se diante da autoridade oficial instituída. Um (o bispo) vê na máquina institucional a coincidência com seus interesses vinculados ao cargo, outro (o deão) encontra na satisfação que deve aos seus seguidores
a razão para continuar defendendo o modelo que gerou e mostrou ser eficiente, mesmo tendo de romper com a relação hierárquica, É interessante perceber que em momento algum o bispo legitimou seu discurso em Deus ou na Bíblia (como fez insistentemente o deão). A fala do prelado justifica-se a partir da instituição religiosa: “Como bispo e representante da Igreja no Estado, irei acionar a Justiça caso Paulo Garcia se negue a sair de lá [do templo objeto da disputa, após o cisma]” (JC, 2002a, p. 5). Sua preocupação é com a manutenção do direito de posse da IEAB sobre as propriedades da Catedral; sua estratégia é acionar mecanismos jurídicos, extra ecclesia, para manter o direito de propriedade ao lado da Instituição que representa (IEAB). Enquanto um fala para seu povo (o deão), o outro (o bispo) fala para a instituição. Enquanto um (o deão) usa a Bíblia o outro (o bispo) usa o Direito Civil. Enquanto um tenta passar uma imagem espiritual (o deão), o outro (o bispo) identifica- se com uma análise sociológica dos fatos (a questão do exercício da autoridade). Enquanto, finalmente, um age pastoralmente (o deão), o outro (o bispo) reivindica o poder de seu posto episcopal. O conflito que emerge claramente entre o bispo e o deão é, na verdade, a face mais visível e concreta do conflito entre burocracia e carisma. Modelos eclesiais, posturas teológicas e morais ou tendências políticas são a forma como o conflito carisma versus burocracia ganha historicidade nesse sitz im Leben específico. Ao lado da foto menor, o registro de uma informação interessante: “O pastor Paulo Garcia [...] não decidiu ainda
para onde vai, mas já foi convidado a participar da Igreja Episcopal Carismática, fundada em 1977 (JC, 2002a, p. 5 – itálicos nossos). O próprio deão afirmou: “Estou orando para descobrir qual o novo caminho que vou percorrer, mas ainda não decidi” (JC, 2002a, p. 5 – itálicos nossos). Tudo isso seria crível se não fosse uma correspondência divulgada – afixada no mural da catedral – pelo Secretário Geral da IECB (ao clero e povo da igreja) no dia 24 de setembro (bem antes das declarações ao JC), dando conta de negociações prévias do deão com o Arcebispo Howard (da Igreja Episcopal Carismática), com vistas à sua transferência de denominação: Em nome do Revmº Dale F. Howard – Arcebispo Supervisor da Agência Internacional de Desenvolvimento, da Comunhão Internacional da Igreja Episcopal Carismática; e Bispo da Igreja Brasileira –, comunico ao clero e aos fiéis da IECB que no último dia 20 de setembro do ano em curso, o Revmº PAULO RUIZ GARCIA – Deão da Catedral da Santíssima Trindade; da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Diocese do Recife –, solicitou formalmente sua recepção, juntamente com a mencionada Catedral, na Comunhão Internacional da Igreja Episcopal Carismática, através de nossa IECB. A comunicação feita somente em 2 de outubro, por meio do JC, já faz parte da propaganda que visa preparar o terreno para a implementação de um projeto já calculado, pensado e decretado com antecedência. Tudo feito na surdina, em reuniões privativas, e sem o conhecimento dos fiéis (clientes), que agora liam no jornal sobre a “indecisão” e a “espera” do deão por uma “direção divina” sobre que caminho novo percorrer. A lógica utilitária de mercado é tão
gritante que nem mesmo um homem de Deus envergonha-se ou furta-se de faltar com a verdade publicamente sobre seus intentos, a fim de perseguir objetivos e interesses pessoais. Ouvia-se da boca do próprio deão: “saio por amor à Palavra de Deus e por respeito ao meu povo” (JC, 2002a, p. 5). Ora, a Bíblia e o Povo de Deus não esperam e exigem que o pastor fale a verdade? Onde está o compromisso ético com aquele que disse: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo. 8,32)? Falar a verdade em situação de mercado pode significar o afastamento dos clientes; e neste contexto específico de mercado religioso, ludibriar o consumidor (fiel) parece ser essencial, segundo a lógica do deão, para mantê-lo fiel a determinados produtos. O discurso do produtor (deão) é: o produto interessa ao consumidor (fiel), o beneficiado é o cliente (fiel); no entanto, ao produzir determinado produto com intenção de vendê-lo em um mercado, o produtor (deão) visa, ainda que não confesse jamais, o interesse e lucro (ainda que nem sempre em forma de dinheiro) pessoal. O pastor (deão) diz: estou em função da ovelha; a realidade grita: a ovelha existe em função do pastor. Ademais, a imagem que o religioso tenciona mostrar para a opinião pública é a de um homem de Deus ou homem sagrado, vale dizer, aquele sujeito piedoso que age sob a inspiração, iluminação e direção divina; e coloca-se firmemente decidido a obedecer aos imperativos éticos implicados na relação com o Sagrado, mesmo que tenha de enfrentar dores e sofrimentos. Ele intenta passar a ideia de que não age por ímpeto simplesmente pessoal (pois espera a direção divina) ou de forma mundana ou carnal (pois faz
oração pedindo a direção divina), ou ainda visando interesses ou ganhos individuais; segundo a matéria: “Paulo Garcia conta que a decisão de desligar-se da Igreja Anglicana do Brasil foi muito difícil e dolorosa, mas ele agiu pensando em seu povo” (JC, 2002a, p. 5). Segundo o discurso do deão, sua obediência à ética da Palavra de Deus (que, segundo nosso deão, condena a homossexualidade) implica um alto custo e uma grande soma de ônus! Mas, ele é fiel e está disposto a pagar o preço, ficando inclusive triste por assistir ao “acúmulo de situações constrangedoras [relativas à homossexualidade]” (JC, 2002a, p. 5), a saber, aquelas que violam a Palavra de Deus na Igreja Anglicana! Segundo o deão: “os homossexuais merecem nossa compreensão e amor e estamos dispostos a ajudá-los, mas nosso referencial doutrinário e ético é a Bíblia, que é contrária ao homossexualismo” (JC, 2002a, p. 5). Mas, pergunta-se: como é possível compreender, ajudar e amar aos gays, ao mesmo tempo em que se vincula sua tendência sexual predominante ao pecado e ao erro, logo, ao impuro (antônimo radical do sagrado), cerceando a “liberdade exagerada” que os mesmos encontram na Igreja Anglicana? A justificação do deão é feita a partir de um discurso eminentemente teológico; a legitimação é realizada de forma a eximir o agente pastor (deão) de seus interesses e a colocar em Deus a razão última para os atos e interesses do religioso: é por causa de Deus mesmo e não por ele próprio, que o pastor (deão) toma a decisão de abandonar a instituição religiosa na qual serviu como presbítero ou sacerdote por 33 anos,
tentando passar a ideia de que o mesmo, depois de tanto tampo, ainda não se acomodou ao status quo, pelo contrário, dispõe-se a pagar um alto preço pessoal para continuar sendo um homem de Deus, vale dizer, comprometido com os imperativos éticos e morais da Bíblia. Segundo o Jornal, a alegação do religioso para sua decisão de sair da Igreja Anglicana, consistia no fato de haver “divergências litúrgicas e éticas com relação a posturas adotadas por parte de dirigentes da Igreja” (JC, 2002a, p. 5). Quem são esses dirigentes? Quais são essas posturas? Os dirigentes seriam: a) bispos anglicanos, predominantemente americanos e canadenses, que teriam ordenado e até realizado casamentos de gays; c) O bispo diocesano local, que embora não seja favorável à ordenação e ao casamento de homossexuais, teria como um dos amigos mais próximos e influentes, um homossexual atuando como eminência parda da diocese. Esse amigo gay do bispo, segundo se ouvia em círculos clericais, era híbrido, ou seja, não-assumido, mas com todos os trejeitos. Como se vê, preconceitos de ordem sexual fortemente sedimentados na tradição cultural são instrumentalizados politicamente para servir de arma retórica contra os adversários. Deduz-se, também, que o deão, independentemente do fato de desaprovar a prática homossexual pessoalmente, decidiu usar tal arma para capitalizar politicamente justamente por ter consciência do formato ou perfil de sua clientela (conservadora em sua maioria).
Na verdade, o deão tinha conhecimento de causa que a Igreja Anglicana permite certa diversidade de opiniões (inclusive sobre a homossexualidade) e correntes teológicas em seu seio (a famosa “inclusividade”), como forma de legitimar um éthos de corte mais pluralista. Ora, por que o deão rebelou-se somente agora contra este estado de coisas, após 33 anos de ministério pastoral? E durante as décadas anteriores, onde estava aquele homem de Deus, comprometido com os postulados éticos e doutrinários da Bíblia? Por exemplo, quando vários e vários clérigos assumidamente homossexuais foram ordenados na Igreja Anglicana mundo afora e na sua própria diocese? O deão, tendo já morado nos EUA e inclusive trabalhado como religioso no território da Igreja Episcopal dos EUS (TEC), não tinha conhecimento de que uma postura mais liberal em relação aos gays era algo relativamente antigo naquela região? Ao que tudo indica, estamos diante de um caso típico de dissimulação: aponta-se ou alega-se algo como razão para uma determinada conduta justamente para escamotear e dissimular as verdadeiras intenções e interesses inconfessáveis; os homossexuais, nesse caso, cumprem a função de bodes expiatórios. Esse “algo” apontado é escolhido com base numa grande percepção sociológica (a força que possui a sociedade para reprimir certas condutas julgadas errôneas aos seus membros); e, acima de tudo, com um objetivo político: lucrar (capitalizar) com o preconceito social, usando-o em proveito próprio e para atingir uma meta política específica.
Esse tipo de comportamento, no caso de retór examinado supra, é, como demostramos, deliberado e consciente, premeditado e urdido com finalidade pragmática, sob uma lógica utilitária. A demanda dos consumidores conservadores é captada e influencia o discurso vendido pelo fornecedor ou produtor. Por quais razões então estaria o Deão realmente saindo da Igreja Anglicana? Que tipo de ganho ou lucro pessoal teria ele em Mitra, digo, mira? Sejam quais forem as respostas, algo é irrenunciável: suas razões visam interesses pessoais, os ganhos e lucros almejados são para desfrute próprio, antes e acima de tudo. A comparação que o protagonista fez foi relativamente simples: tenho (na IEAB) um bispo no meu calcanhar (em Recife); amanhã poderei ter (na IECB) um arcebispo longe de mim (nos EUA). Hoje sou (na IEAB) presbítero/deão; amanhã serei bispo (na IECB). É a busca de poder para ser pastor de uma determinada forma e dentro de um formato eclesial específico, sem ser cobrado, importunado, desvalorizado, criticado tão de perto (como vinha acontecendo na DAR/IEAB). Como a simonia nunca saiu de moda no cristianismo, a oferta feita pelo Arcebispo Howard, interessado em expandir a IECB foi simples: se vieres da IEAB para a IECB, serás sagrado bispo! Como o deão tinha sua demanda por poder, a oferta tornou-se irrecusável. Os interesses foram conjugados e, na recepção oficial do deão em 6 de outubro de 2002, na Catedral da Santíssima Trindade, o Arcebispo Howard anunciou publicamente: “Paulo será sagrado bispo em seis meses!”.
Na IECB o bispo é nomeado pela hierarquia superior e não eleito pelo povo e clero (como na IEAB), o que por si só já eliminaria o risco de uma eleição perdida, experiência que o próprio deão já havia amargado anteriormente. Além do mais, as chances do deão eleger-se bispo da IEAB em Recife seriam mínimas, em virtude de sua impopularidade entre o clero. Seu projeto, todavia, não era simplesmente ser sagrado bispo, porque já havia surgido a oportunidade de o ser em outra diocese da IEAB (o deão fora sondado para substituir o bispo da Diocese Anglicana de São Paulo em tempos recentes); mas o interesse do deão era continuar na Catedral da SS. Trindade e em Recife, local onde construiu uma firma religiosa de sucesso ao custo de muito suor, e ao longo de quase 30 anos; e, obviamente, onde pretende ficar até morrer sem “largar o osso”. E quais seriam as divergências litúrgicas apontadas pelo deão em relação à postura de dirigentes da Igreja Anglicana? Neste ponto haveria uma referência específica ao contexto local: ao bispo diocesano e à DAR. Dessa forma ficaria clara a declaração do deão: “depois de uma turbulência recente no meu pastorado, quando tive desencontros doutrinários e litúrgicos em nível local e internacional [...]” (JC, 2002a, p. 5). O estopim da questão local teria sido a decisão do bispo diocesano de instituir o Rito Opcional para Divorciados. A questão para o deão é muito simples: como apoiar ou realizar um Rito Opcional de Divórcio se toda sua pastoral na Catedral é voltada para a família? Como sacramentar a separação, se nosso deão esforçou-se a vida inteira para vender a imagem de um pastor de sucesso, inclusive no seu
casamento? Como abençoar a divisão conjugal se um de seus atrativos mais eficazes sempre foi a reconciliação familiar estribada nos Encontros de Casais com Cristo (ECC)? O Jornal do Commercio de 10 de novembro de 2002 voltou a dar destaque ao deão. Desta vez a página 1 do Caderno Cidades (Seção Religião) não foi dividido com outra religião (como a matéria anterior, de 2 de outubro, onde o deão dividia espaço com o Pe. Marcelo Rossi), mas com uma propaganda de carros da Rede Renault (JC, 2002b, p.1). Numa mesma página, sintomaticamente, produtos de diferentes naturezas eram oferecidos e apelavam ao consumo. De um lado a Renault apelava para uma taxa de juros baixa (nem tão baixa assim!), preços atrativos (nem tão módicos assim para quem não dispõe de pelo menos 30 ou 40 mil reais para gastar em um bem de consumo), a estética dos modelos (com seu design moderno) e a tecnologia de ponta. Obviamente, tudo isso apelando para que o cliente potencial ficasse convencido da superioridade da Renault sobre as outras marcas. E a grife “deão”, fazia marketing de que forma? Primeiramente enfatizando a dimensão evangélica da IECB. O título da matéria já dizia tudo: “Evangélicos fundam Igreja Carismática em Pernambuco” (JC, 2002b, p.1). Frisar que a IECB é uma Igreja “evangélica” tinha pelo menos duas intenções: primeiramente, rebater a crítica do bispo diocesano de que a IECB seria uma Igreja mais próxima do modelo católico cismático; e também, reforçar na clientela – que obviamente, sempre tendeu mais para uma vertente evangélica dentro do espectro teológico do anglicanismo – a ideia de que continuariam fiéis à marca protestante que até
então abraçavam. Não haveria ruptura com o modelo até então em voga: esta era a mensagem. Lembra a pasta dental que mudou de nome, mas tinha o mesmo fabricante e a mesma substância. A IECB, segundo declarou o deão, “não é um cisma ou um grupo dissidente de outra religião. É um trabalho sem igual que Deus dispôs nos corações de clérigos dedicados e fiéis de várias denominações, que, por meio de profundas reflexões e incessante oração, percebem a necessidade de um lugar de convergência” (JC, 2002b, p.1). Como a IECB é desconhecida da opinião pública, faz parte da estratégia de marketing, para reforçar a marca, oferecer informações para possibilitar a construção de uma imagem ideal para o consumo. Pela maneira como o produto é apresentado, depreende-se que fatia de mercado é visada; ou qual demanda é desejada como alvo pelo produtor. Afirmar que a IECB é uma Opus Dei é continuar na estratégia de legitimar o produto simbólico a partir de um referencial teológico, no qual a ação humana e clerical é deslocada para segundo plano e a ação divina é elevada ao status de poder sacralizante. Dessa forma, a instituição ganha uma aura de transcendência e dissimula seus possíveis aspectos de ambiguidade humana e institucional. Afirmar que a IECB não é resultado de um cisma ou dissidência de outra religião é intentar provocar uma comparação com a concorrente nº 1: enquanto a Igreja Anglicana surgiu de um cisma com a Igreja Católica (ideias como “divisão” ou “dissensão” não criam uma boa imagem para um produto que pretende criar a unidade!), a IECB surgiu
do desejo de clérigos de várias denominações – católica e anglicana, inclusive – por um espaço de convergência entre catolicismo, protestantismo e pentecostalismo. Subtende-se, que catolicismo, protestantismo e pentecostalismo não são devidamente sintetizados no anglicanismo. Ora, sendo assim, a proposta da IECB é continuar do ponto em que o anglicanismo se perdeu (tentar ser via média entre catolicismo e protestantismo) e, ao mesmo tempo, incluir o mais poderoso movimento religioso do séc. XX (o pentecostalismo), atualizando-se com a agenda religiosa do momento. Eis aí um produto que se apresenta como novo, que pretende atingir eficazmente os resultados a que um produto antigo se propôs e fracassou. É continuidade com parte substancial do projeto anterior, e ao mesmo tempo, ruptura com os rumos e itinerários pelos quais a antiga Igreja dirigia-se. O deão, no entanto, não explica que tipo de convergência é essa entre clérigos de várias denominações. Mais: se a IECB pretende ser uma síntese entre três correntes do cristianismo (catolicismo, protestantismo e pentecostalismo), não seria um contrassenso afirmar que ela é uma igreja evangélica ou carismática? (SOARES, 2004). Como se vê, cada público recebe um tratamento especial na venda do produto: para os tradicionais evangélicos afirma-se que a IECB é uma igreja evangélica, mas para um público mais amplo vende-se a ideia de que a IECB é a completude que falta a católicos, evangélicos e pentecostais isoladamente. Em outras palavras: ela é o que o cliente já é (ou já possui), e é
mais, pois agrega valor de mercado, a saber, elementos que o potencial cliente pode detectar como faltando em sua própria igreja. É discurso para quem já é, e para quem pode vir a ser cliente. Criar uma demanda por um produto novo envolve, por um lado, reforçar a autoridade de seus criadores, e por outro, apontar o seu sucesso de consumo. O deão então frisa que os clérigos que inventaram o produto eram e são “fiéis e dedicados [...] pessoas de oração incessante e reflexão profunda” (JC, 2002b, p.1). É um produto com selo de qualidade, criado por líderes possuidores de densidade espiritual! Mais: a IECB é um produto novíssimo (existe apenas há dez anos: 1992-2002), e mesmo assim já dá sinais de seu sucesso e vitalidade. Segundo o deão: “a igreja começou com apenas um bispo e três paróquias. Dados atuais indicam a existência de 1.000 igrejas e cerca de 700 mil membros espalhados em 20 países [...] uma das denominações que mais crescem no mundo [...] instalada há menos de 1 mês no Brasil, já conta com cerca de 7.000 membros e 4 paróquias: Espinheiro, Janga, Timbaúba e Vitória de Santo Antão” (JC, 2002b, p.1). O produto funciona! As pessoas estão consumindo! Os efeitos são percebidos rápida e meteoricamente! Consuma: ele já está aqui à sua disposição. Venha até mim! Essa parece ser a mensagem cifrada da propaganda do deão, que dispara: “pretendo instalar uma paróquia por mês” (JC, 2002b, p.1). Aumentar as vendas, os pontos de distribuição e o número de consumidores. Eis o projeto do deão da Catedral da SS. Trindade: ênfase na concorrência, no aumento da produção e
nos resultados rápidos. É claro, tudo isso sob a batuta do empresário de fé mais bem sucedido da região: o deão.
Conclusão A s matérias publicadas no JC são verdadeiras peças de propaganda: o deão tem consciência do papel importante do mass media e usa seu bom relacionamento com membros da high society pernambucana para disponibilizar espaços preciosos no jornal (é amigo de Paes Mendonça, dono do Jornal do Commercio) e na televisão (é amigo do apresentador João Alberto), capitalizando assim bônus para sua pessoa e seu projeto/negócio pastoral e eclesiástico. Se na matéria de 2 de outubro de 2002, o deão pretendia legitimar sua saída da Igreja Anglicana, na de 10 de novembro de 2002, a estratégia é outra: reforçar a crítica à Igreja Anglicana (para legitimar ainda mais sua saída de lá), e, principalmente, vender a nova marca (IECB), vinculando-a acima de tudo à sua própria pessoa. Desta feita, sua foto, que na primeira matéria ocupava o lugar de destaque, fica abaixo de uma foto maior com a fachada do Templo da Catedral da SS. Trindade. A mensagem é clara: o deão e a Catedral se confundem, um não existe sem o outro.
Em razão disso: ele continuará lá, e a Catedral continuará no mesmo ritmo em que vinha! Muda o rótulo, não o fabricante ou o produto. Já a vinculação da marca à sua pessoa (personalismo), não apenas é típica da figura carismática, mas também do estilo pop priest, em que o produto é vendido de forma a fazer a vinculação com o garoto propaganda. Reforçar a imagem de um é reforçar a imagem do outro, colocar um em evidência é colocar o outro sob os holofotes. Mas esse tipo de estratégia tem um custo institucional e outro ético. O ético tem a ver com a mentira embutida na propaganda, vale dizer, a falsa propaganda, e isso num contexto em que não há órgão regulador (por exemplo: o Estado). Vejamos então como o deão se apresenta: 1) fala como bispo sem ainda ter sido sagrado para o ofício; 2) afirma ser o fundador da IEC no Brasil, quando, na verdade, a Igreja já havia sido fundada e contava com paróquias e clero funcionando há pelo menos dois anos, desde a primeira visita do Arcebispo Howard em 2000; 3) contabiliza 4 paróquias e 7.000 membros, exagerando os números para revestir de maior ufanismo seu projeto messiânico. Ora, se a Catedral ficara com 4.500 membros após o cisma e as 3 paróquias mencionadas possuíam não mais que 1.000 membros, como se poderia se chegar aos 7.000 mil citados? Por outro, também subtrai ou oculta, “esquecendo-se” de mencionar as paróquias que já integravam a IECB antes da chegada da Catedral. É como se tudo começasse a partir dele e da Catedral, sendo o clero e as paróquias anteriores reduzidos ao zero da inexistência ou do desconhecimento. O deão se
apresenta como o ponto alfa da caminhada da IECB: obviamente para evitar o surgimento de possíveis vínculos do povo com os clérigos mais antigos da IEAB na região, e também para desqualificá-los, afinal a IECB, apesar de estar presente no contexto, somente agora teria crescido vertiginosamente, o que corroborava e alimentava ainda mais o capital político de nosso deão. O custo institucional relaciona-se com a criação de conflito com o clero da IECB, que já estava na região antes da chegada do deão. Para este público, o deão argumentou, conforme pude colher de testemunhas oculares pessoalmente presentes numa reunião do clero, que a repórter do JC “não entendeu” corretamente as informações prestadas, ou seja, eximiu-se de assumir a responsabilidade por suas declarações. Como este tipo de atitude solapou a confiança dos pares, que se sentiram desvalorizados e excluídos do processo de construção eclesial, bem como foram forçados a não confiar mais na palavra do deão e futuro bispo diocesano; que ora dava provas de que seu estrelismo (palavra que ouvi de um clérigo da IECB à época da publicação da matéria no JC) desconhecia certos limites éticos, inegociáveis para quem necessita manter relações interpessoais baseadas em lealdade, parceria e cooperação. Ao afirmar: “pretendo instalar uma paróquia por mês” (JC, 2002b, p.1), o deão não apenas revelava seu personalismo e estrelismo, como explicitava o tipo de modelo pastoral que desejava implantar na IECB: formar quadros com um perfil construído à imagem e semelhança dele mesmo (o bispo, que segundo a Igreja é o Pai em Deus), ou seja, comprometidos
com o expansionismo do genitor. Dessa forma, pastor de verdade é aquele que funda igrejas e as faz crescer; é aquele que apresenta números cada vez maiores em cada relatório anual que deve ao bispo. Status pastoral nesse modelo é adquirido por quem demonstra maior produtividade e resultados. É o sucesso do modelo pastoral de vendedor espiritual, que tende a acumular benefícios na justa medida de seu aumento de produtividade! Numa firma em estágio de instalação, pequena e decidida a prosperar, tal realidade intensifica-se ainda mais em grau superlativo. Como se vê, o tipo de liderança forjado num modelo de pesada concorrência em livre mercado, é determinado pela necessidade de produção de resultados. Num contexto assim, pastores com sensibilidade para fazer teologia reflexiva e crítica, místicos voltados à contemplação ou profetas dispostos a sacrificarem-se pela libertação dos oprimidos, estão fadados à insignificância e ao ostracismo institucional, afinal seus carismas não são produtivos ou funcionais para a Igreja! Quanto aos homossexuais: têm utilidade para o projeto expansionista do deão, apenas na medida em que podem ser apontados como bodes expiatórios a serem culpados por sua saída da IEAB!
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LUXÚRIA DO CLERO DEIXAR-SE DOMINAR PELOS DESEJOS ALUSKA WANDERLEYA GOMES DA COSTA Mestrado em História pela UFCG; Pesquisadora no Grupo de Estudos Brasil Colonial e Imperial pela UFCG – Universidade Federal de Campina Grande. E-mail. [email protected].
O Celibato do Corpo Eclesiástico Na história do Celibato houve várias concepções acerca do mesmo, tanto como uma forma estratégica da Igreja Católica em se manter diferente de outras doutrinas, como também sobre a perspectiva de um ideal sagrado, ou seja, a permanência da pureza. Nesse trabalho será tratado justamente o ideal de pureza por meio da Lei do Celibato, além do aspecto geral que a lei viria transpassar para os servos de Deus, ou seja os sacerdotes. A Lei do Celibato fora instaurada justamente como uma das principais condições exigidas pela Igreja Católica para se fazer presente em um corpo clerical e que esses pudessem ser “detentores e gestores da salvação”, forma para se ter um corpo eclesiástico casto. A Santa Madre Igreja Católica, instituiu desde o século XII o voto de castidade como uns dos principais símbolos do que viria a fazer parte do corpo clerical em relação aos demais filhos da fé. Dessa forma, é possível ser analisada uma grande preocupação em manter o controle e manutenção da
abstinência sexual do corpo eclesiástico, que passa a ser compreendida e explicitada pela Legislação da Igreja Católica como um meio necessário e essencial, ou seja, visto com um gesto de sacrifício e renúncia que seria a entrada para consagrar os padres como verdadeiros símbolos e detentores da mensagem de Deus, representantes do que seria sacro e da pureza de Cristo, indo de encontro à banalização da vida impura, em outras palavras, profana. Assim, vemos a necessidade de se manter um corpo eclesiástico límpido, longe de toda procrastinação e isso era necessário ser revisitado pela consciência dos próprios sacerdotes, devido ao ideal de estar conectado com Deus e com o santo evangelho, altamente ligado à questão da abstinência sexual, para se estar castiço e estar transmitindo uma pureza espiritual para poder assim estar diante das ovelhas que necessitam de uma ajuda espiritual. Deveriam então ser um exemplo para os demais da colônia. A Igreja se viu necessitada de estabelecer o Celibato como um dos fatores essenciais para estar de acordo com os preceitos religiosos, transformando a vida dos indivíduos, nesse aspecto, estaríamos revisitando o que seria o certo para a Santa Madre Igreja. Fazendo-se necessário estar ciente do que seria o puro e o impuro e como seriam tratados, para isso podemos ver em Douglas (1991): As ideias sobre separar, purificar, demarcar e punir transgressões tem como função principal impor sistematização numa experiência inerentemente
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