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A tempestade vem por dentro

Published by Lucilia Dowslley, 2021-03-15 19:46:53

Description: Autor: Hudson pereira
Dowslley Editora

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2020 Primeira Edição RJ - Brasil

Copyright © 2020 by Hudson Pereira Projeto editorial e Arte final da capa: Lucília Dowslley Ilustração da capa e da página 53: Fel Barros Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Lumos Assessoria Editorial Bibliotecária : Priscila Pena Machado CRB - 7/6971 P436 Pereira , Hudson . A tempestade vem por dentro : poesia / Hudson Pereira . 2O2O. —— 1. ed. —— Rio de Janeiro: Dowslley , 56 p. ; 21 cm. ISBN 978 - 65- 5854 - O76- 2 1. Poesia brasileira . 2. Literatura brasileira. I . Título. CDD B869. 1 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive através de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet sem a autorização expressa da Editora (Lei nº 9.610, de 19/2/1998). Dowslley Editora Contato: (21) 96714-5001 [email protected]

Sumário 1. Ė ĖĪ İ ĜŤ Į Ì Ė ĖĪ Ì Ė a tempestade vem por dentro, 13 marco zero, 14 moto-contínuo, 15 exercício n° 5, 16 exercício n° 6, 17 processo simplificado, 18 criação é tormenta, 19 sem precedentes, 20 estágio de atenção, 21 por respeito, o silêncio, 22 breve rebeldia contra os poemas de amor, 23 equilíbrio instável, 24 2. Ė GĜĬ Į Ì ĖÍ HĶĖT Î GH Ī HĖ corpus christi, 27 fogo no céu, 28 feito fóssil, 29 ele, 30 finalmente, a face da humanidade, 31 pobre criança, 32 prato frio, 33 instinto, 34 autopunição, 35 antes feito rocha que de carne, 36 a tal desumanidade, 37 a pátria que pariu, 38

3. ĜĬ İ ĖĪ IJHIJÎ ÆÏ Į ĜĖİ Ī ĜIJHÌ ĜÍ İ Î os dias se tornam mais árduos com o passar dos anos, 41 estar vivo, que atrevimento, 42 ofogonãohádequeimarsódeumlado, 43 teto preto, 44 penitência, 45 na tentativa de se manter são, 46 medicinal, 47 então sorrio, 48 hurry up, 49 sedentos, 50 corpo narcótico, 51 a insistência que permanece, 52 SOBRE O ARTISTA E OBRA SONHAR COM PEDRAS E AMOLAR FACAS, 54 AGRADECIMENTOS, 55

ĦÞŌŒPÒŒPJ MŅŅÑ” ĞǾÒÑŇǾÒŃOJ ŎÕŅ



Ė MǾPÑÑŒPÙMØÞÒŐMǾMprovar, e para ajudar a descobrir, o fato de que toda segurança é uma ilusão”. James Baldwin



1. Ė Ė Ī İ ĜŤ Į Ì Ė Ė Ī Ì Ė “Tudo é arte, tudo é política.” “A liberdade diz respeito a nosso direito de questionar tudo.” “A história nos ensina que no início das maiores tragédias havia ignorância.” Ai Weiwei



a tempestade vem por dentro somente os atentos contarão a história como ela é sem enfeites, manipulação todo caos detalhado nossa descivilização somente os artistas retratarão as ameaças que pairam no ar os seres que rastejam que precisamos desviar os algozes que nos perseguem que devemos escapar as guerras que nos mutilam que insistem em travar as mordaças que querem calar que querem invalidar a nossa voz a tempestade vem mas ela vem por dentro de nós. 13

marco zero o marco zero é a arte. o ponto de partida. o combustível da nave. as peças do quebra-cabeça o caminho inevitável: insistir por que a poesia? por que enfrentar a odisseia diária do campo minado do julgamento e todos os seus abismos? por que escrever poemas sob o risco de tornar-se pedra diante da medusa do fascismo? 14

moto-contínuo escrevo sem foco escrevo sem motivo escrevo sem projeto escrevo e nem noto escrevo e ponto escrevo e morro escrevo e volto. 15

exercício n° 5 que nasça o poema imperfeito completamente descompassado sem roteiro cheio de entraves desritmado incoerente cheio de armadilhas quase feito a própria vida. 16

exercício n° 6 escrever deve ser exercício contando até 3, começo poema não se cala influenciado pelo caos estou preso ao grande rebu a vida nunca basta estar vivo não é sorte. 17

processo simplificado o essencial desata o crucial alimenta o abominável atormenta o corporal fascina e tudo num mero poema germina. 18

criação é tormenta chorar copiosamente é inevitável é latente não reter a água que redemoinha dentro da gente não segurar o tsunami que pode arrebentar usar toda revolta para criar. 19

sem precedentes o nascimento do poema diante dos desastres não sou religioso a ponto de acreditar em milagres mas, me curvo vai saber. 20

estágio de atenção entre o mundo e o poema existe o poeta sempre alerta às consecutivas catástrofes. 21

por respeito, o silêncio no anseio por certezas, escrevo laudas e laudas de poemas sem técnica, sem desejo - apenas escrevo em seguida os rasgo, inteiros a contagem dos mortos do dia me acerta em cheio não tenho direito de ser poeta em meio a tamanho desespero. 22

breve rebeldia contra os poemas de amor o poema dança no vazio elegante, fugaz, esguio persigo esse poema o agrido a beleza do poema me ofende estou como o mundo, doente. 23

equilíbrio instável para Paul Klee simbolicamente estamos todos presos ora aos gritos, ora ofegantes mas, jamais ilesos a vida se revela uma obra de arte incompreensível um zeitgeist absurdamente perturbador e nada verossímil realisticamente estamos também presos numa redoma invisível de incontáveis pesadelos e o que talvez nos redima o que talvez nos acalme quem sabe nos explique e nos salve seja essa incompreendida e subestimada arma chamada arte. 24

2. Ė GĜĬ Į Ì Ė Í HĶĖ T Î GH Ī HĖ “Eu respondi: ando a pensar que Deus não reparou que aqui estamos ou nos mandou para aqui exatamente para não ter de reparar.” Valter Hugo Mãe



corpus christi tudo que é vivo é mais vivo ainda quando olhado de perto as formigas, as rugas nos cantos dos olhos, o cu, a gengiva, os nossos poros, tudo se expande e acaba não parecendo o que é mas um corpo morto não é para ser visto de perto ele já não é, nem virá a ser e nem continua o que foi ao certo talvez por isso, a gente não se espante tanto com um corpo morto no meio do caminho, e desvie dele pela rua como de um objeto aparente a gente esquece que ali teve vida a gente esquece que aquilo é a gente. 27

fogo no céu “fogo no céu” era um filme que me apavorava quando criança, mas hoje, a criança – já não a minha – a da favela, a da esquina, a caminho da escola, a da vizinha se apavora com o fogo que vem de cima e já não é mais filme e nem é de noite a TV desligada no sol do meio-dia ou amanhecendo e o fogo no céu matando e crianças morrendo e a mãe chorando e não é filme e a mãe chorando e já não choca e a mãe chorando e já é costume? cotidiano? 28

feito fóssil feito um fóssil jaz o feto os restos mortais da liberdade a sociedade sonhada já não promete realidade esqueletos negros, pobres, lgbts, crianças, mulheres, inocentes feito fósseis, restos como se nem fossem gente soterrados sob as botas dos regimes vigentes. 29

ele sou eu, o próprio com vestes bonitas e que na rua permeia incêndios e secretas reuniões devaneios, subsídios os homens se perdem em meio aos bichos animais de nós mesmos lutamos contra uma ordem que compactua em toda parte viril, sou aquele que não se deve dizer o nome e a quem se agrega todo tipo de maldição o homem não compreende sua própria corrupção. 30

finalmente, a face da humanidade a sensação de completo abandono que ronda a nós todos só escancara o pior que temos só espelha o horror que somos. 31

pobre criança pobre criança tão bonita tão inteligente mas tão infeliz, sempre como pode uma criança tão cheia de vida parecer tão vazia, sempre como pode uma criança jamais esquecida se sentir tão sozinha, sempre como pode uma criança assim crescer sadia se ninguém compreende o que se esconde por trás dessa carinha contente como pode, então, crescer essa pobre criança que todo mundo olha mas pouca gente vê? 32

prato frio no horário do almoço - os mortos por bala perdida antes da novela - os índices de violência o gosto amargo do medo combinado com a impotência do existir. 33

instinto a coisa anda tão estranha que agora são os cordeiros que precisam se fingir de lobos ser violento é um tanto pouco. 34

autopunição sentir raiva é o preço que se paga por entender mas a paz dos alienados não me interessa. 35

antes feito rocha que de carne a pedra é mais bonita que o homem, ela não sabe agredir. 36

a tal desumanidade sem dúvida os ingênuos fomos nós quando acreditamos que nos importamos uns com os outros cada um por si e ninguém é de ninguém. 37

a pátria que pariu população brasileira: galinhas cegas prontas pra virar canja, lambendo as botas do dono da granja quero dizer que a pátria que me pariu é a tal gente patriota que te traiu panela fumegante fogão de lenha país biscate todos cantando e indo pro abate. 38

3. ĜĬ İ Ė Ī IJHIJÎ ÆÏ Į ĜĖ İ Ī ĜIJHÌ ĜÍ İ Î “Essa sensação de que era muito, muito perigoso viver, ainda que por apenas um dia.” Virginia Woolf



os dias se tornam mais árduos com o passar dos anos os dias se tornam mais árduos com o passar dos anos e os anos se tornam mais curtos com o erguer dos muros e os muros se tornam mais altos com o soar dos alarmes e os alarmes ficam mais frequentes com o ranger dos dentes e mais dentes foram quebrados com o perfurar dos dardos e mais dardos foram lançados com o cair dos alvos e mais alvos foram abatidos com a ascensão dos mitos e mais mitos foram forjados com a proliferação dos ratos e mais imundo ficou o mundo e mais obstruídas as engrenagens eles contaminam nossa água, mas não minam nossa coragem. 41

estar vivo, que atrevimento para e sobre Fel Barros loucura mesmo é seguir em frente tendo o peso da intolerância nos ombros e pisando sobre escombros, alumbramentos, frestas cacos de vidro final de festa loucura mesmo é abrir os olhos de manhã e enxergar as cicatrizes, já suaves a violência aparentemente superada talvez não sangre, mas as feridas ainda ardem mutilação causada pela realidade, de tão absurda, inacreditável estar vivo, que atrevimento da nossa parte e ser artista: um crime o estranho dever de ter o rosto dilacerado e sobreviver. 42

ofogonãohádequeimarsódeumlado o fogo não há de queimar só o lado dos necessitados sufocando pretos pobres viados os sem latifúndio, os sem trabalho nem ficarão livres seus incendiários ostentando a impunidade de dentro de seus blindados o fogo há de queimar os privilegiados, a carne branca e nobre dos bem-nascidos virá exposta em garfos o couro duro e ignóbil do seu gado, débil e podre que só vê o próprio rabo o fogo há de queimar todo translado, purificando e restituindo todo legado dos que morrem diariamente sem esperança de serem salvos o fogo há de vingar os inocentes aniquilados por essa sociedade doente o fogo há de honrar o sangue derramado de toda essa gente. 43

teto preto formigamento nos pés cansaço tudo se expande ao redor - o que eu não daria por um abraço? o tempo se expande esquisito, restrito chegar ao fim do dia lúcido sem sucumbir tarefa nada fácil continuar aqui. 44

penitência expurgo os extremos confronto os queridos bato de frente comigo mesmo a existência, às vezes, é uma coisa muito vil. 45

na tentativa de se manter são buscar o silêncio amadurecimento saber a hora de falar o que vem do pensamento calar ansiedades evitar calamidades tantos universos tantas guerras dentro do peito tudo efeito desse momento ultraviolento. 46

medicinal poesia é superar todos os desvios, colisões e encontrar a beleza arruinada nas coisas a feiúra agradável o inexplicável o desconhecido da razão de ser a impossibilidade do compreender. 47

então sorrio ser capaz de atravessar mais um dia tardiamente percebo o atrevimento e sorrio. 48

hurry up urgências temos urgências coisas elementares como a liberdade não podem esperar. 49

sedentos queremos tantas, tantas coisas mas queremos mesmo é querer sonhamos, renascemos morremos e voltamos a nascer again and again e seguimos sendo absolutamente nada. 50


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