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(Re)Pensando Direito - Nº 2

Published by comunicacao, 2015-04-29 22:34:06

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Jul./Dez. 2011 02 ISSN 2237-5953REVISTA DO CURSO DE DIREITO DA CNEC SANTO ÂNGELO - RS



(DREI) RPEENSIATNODOAno 1, n. I2SS-Nju2lh2o3/7d-5ez9e5m3 bro 2011Catalogação na Fonte(RE) Pensando Direito / Revista do Curso de Direito da CNEC Santo Ângelo –RS. – Vol. 1, n. 2. (jul/dez. 2011) – Uberaba: CNEC Edigraf, 2011. Semestral ISSN 2237-59531. Direito. 2. Direito – Periódico. I. Curso de Direito da CNEC Santo Ângelo – RS CDU: 34(05)

(RE) PENSANDO DIREITO Revista do Curso de Direito da CNEC Santo Ângelo – RS Campanha Nacional de Escolas da ComunidadeDiretor Presidente: Deputado Alexandre José dos SantosDiretor Vice-Presidente: Prof. Juarez de Magalhães RigonDiretora Secretária: Profª. Anita Ortiz CorrêaDiretor do IESA: Prof. Júlio César LindemannCoordenação Editorial: Prof. Gilberto KerberDiretores da Revista: Prof. Doglas Cesar Lucas e Prof. José Lauri Bueno de JesusComissão Editorial: Gilberto Kerber, José Lauri Bueno de Jesus, Doglas Cesar Lucas, Darcísio Corrêa, Salete Oro BoffConselho Editorial: Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC), Dr. Vicente de Paulo Barretto (Uerj), Drª. Jânia Saldanha (UFSM/Unisinos), Dr. Darcisio Correa (Iesa/Unijuí), Dr. Doglas Cesar Lucas (Iesa/Unijuí), Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo (UFSM), Dr. Sidney Guerra (UFRJ), Dr. Thiago Fabres de Carvalho (Cesusc/SC), Dr. Wagner Menezes (USP), Drª. Ângela Araújo da Silveira Espíndola (Unisinos), Drª. Fabiana Marion Spengler (Unisc), Drª. Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (PUC- Pelotas), Drª. Salete Oro Boff (Iesa/Unisc), Dra. Nuria González Martín (Universidad Nacional Autónoma de México)Revisão: Prof. Artur HamerskiCapa: CNEC PropagandaEditada em 1981 com o título Revista da Faculdade de Direito de Santo Ângelo (nº 1), em1999 como Revista IESA (nº 2), de 2002 a 2004 como Revista Habeas Data (nº 3 a nº 5), eem 2011 como (Re)Pensando DireitoEndereço do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo:Rua: Dr. João Augusto Rodrigues, 471CEP: 98801-015 – Santo Ângelo-RSFone: 55 33131922 – fax 55 33131922e-mail: [email protected] da revista via on linehttp://www.iesanet.com.brDireitos de Publicação, Capa, Programação Visual, Editoração Impressão:Editora e Gráfica Cenecista Dr. José FerreiraAv. Frei Paulino, 530 - Bairro AbadiaPABX: (34) 2103-0700 - FAX: (34) 3312-5133CEP: 38025-180 - Uberaba, MG - e-mail: [email protected]

SUMÁRIOAPRESENTAÇÃO�������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 5ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EMBUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAS�������������������������������������������������������������������������������� 9 Eduardo Matzembacher Frizzo Dênis Alberto Nascimento MachadoO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DODIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARAUM DIREITO PENAL MÍNIMO�������������������������������������������������������������������������35 Fernando Antonio da Silva AlvesA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNA SOCIEDADE DORISCO: O CONTROLE PENAL E SUAS (IM)POSSIBILIDADES������������������������������������ 55 José Francisco Dias da Costa LyraOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: ANTES E DE-POIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004�������������������������������������������������������� 79 José Lauri Bueno de Jesus Tanelli Fiorin de JesusO MEDO NO E DO DIREITO PENAL: O PARADIGMA DA SEGURANÇACIDADà E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA EM FACE DO PROCESSO DEEXPANSÃO DO DIREITO PUNITIVO���������������������������������������������������������������������������� 115 Maiquel Ângelo Dezordi WermuthO SUJEITO ÉTICO E A RESPONSABILIDADE PELO OUTRO: EMERGÊNCIAPARA A CONSTRUÇÃO DA HUMANIDADE������������������������������������������������������������������ 139 Marina Bertarello



APRESENTAÇÃO APRESENTAÇÃO Com muita satisfação, estamos dando continuidade a nossarevista (RE) Pensando Direito do Curso de Direito da CNEC-IESA,a qual traz assuntos pertinentes ao cotidiano e relativos às lidesjurídicas. Inicialmente, com o tema Estado-nação, globalização econstitucionalismo mundial: em busca de novas perspectivas, emque os autores muito bem retratam a situação contemporânea e seguemem busca de novas possibilidades devido ao constitucionalismo mundial,partindo dos elementos essenciais do Estado-nação, com ênfase naPaz de Vestfália, bem como no papel da soberania estatal na formaçãoda sociedade internacional moderna, estamos abrindo a revista de n. 2. Também é apresentado um artigo denominado O princípio daintervenção mínima conforme a filosofia do direito em Hegel,demonstrando, assim, as contribuições da filosofia hegeliana para umdireito penal mínimo. Neste texto, o autor pretende demonstrar como ascategorias filosóficas empregadas por Hegel na sua definição de direitopodem ser utilizadas no sentido de se analisar o âmbito de aplicação dalei penal e de verificar até que ponto pode o crime e a liberdade seremregulados por normas jurídicas, sem que isso implique uma eventualcontradição, nos termos de uma sociedade crescentemente punitiva,diante de um Estado Democrático de Direito. De uma forma muita clara e lúcida, é apresentado o artigo sobre Aexpansão do direito penal na pós-moderna sociedade do risco e odecorrente controle penal e suas (im)possibilidades. É importanteverificar que o autor se preocupa com o destino do direito penal e realizauma reflexão sobre a expansão do controle penal na moderna sociedadedo risco. Nessa esteira, criticam-se os recentes rumos expansivosdo direito penal, que se converteu em arma política de combate aoscrescentes riscos enfrentados pela sociedade atual. Analisa-se queo entorno social e político conferem ao controle penal a missão decontrolar riscos sistêmicos, o que leva o direito penal a uma situação de(des)controle, com preocupações pertinentes aos penalistas.(RE) PENSANDO DIREITO 5

Outro tema que está em debate é o relativo aos direitos humanosem que o autor discorre sobre Os tratados internacionais dedireitos humanos, analisando a situação antes e depois da emendaconstitucional n. 45/2004, quando de seu ingresso na ordem internajurídica, pois tem implicações intrínsecas com o respeito aos direitosdas pessoas. Seguindo na linha do direito penal, é apresentado aos leitores umartigo sobre O medo no e do direito penal: Aborda-se o paradigmada segurança cidadã e a criminalização da pobreza em face doprocesso de expansão do direito punitivo. Assim, o autor aborda aproblemática do medo como ideia motora do processo de expansãodo direito penal diante dos riscos da sociedade contemporânea, oque tem por consequência, diante do enxugamento do Estado debem-estar social em razão do avanço do neoliberalismo, a retomadado punitivismo, a partir da construção do paradigma da segurançacidadã. Dito modelo de política criminal, por meio de equiparaçõesconceituais equivocadas, passa a dar maior ênfase à criminalidade“tradicional”, pugnando pelo recrudescimento punitivo e pelaconsequente flexibilização de garantias penais e processuais típicasdo direito penal liberal clássico. Com isso, o medo no e do direitopenal presta-se à manutenção da violência estrutural inerente aomodelo econômico neoliberal, pautado na submissão dos desvalidosà vontade dos detentores do poder econômico. De uma outra banda, percebe-se que o sujeito moderno seconsolidou sob o paradigma individualista, tornando-se distantedo senso de humanidade e da onipresença do Outro, um indivíduoencapsulado em si, perpetuador da soberania de um Eu solipsista, umser humano desumano e egoísta, incapaz de reconhecer o Outro comosujeito, a inegável alteridade constitutiva. Contudo, o reconhecimentodo Outro como sujeito é fundamental para a constituição de umahumanidade humana, pois é na alteridade que se constrói o homem.A humanidade apenas pode se erigir diante do sujeito ético cientede sua responsabilidade pelo Outro. Com este pensamento a autora6 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

APRESENTAÇÃOapresenta um artigo sobre O sujeito ético e a responsabilidade pelooutro: emergência para a construção da humanidade. Desejamos a todos uma boa leitura, esperando que ostextos apresentados atinjam as suas expectativas. Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas Prof. Ms. José Lauri Bueno de Jesus Diretores da Revista (RE) Pensando Direito(RE) PENSANDO DIREITO 7



D(REI)RPEENSIATNDOO ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAS Nation state, globalization and global constitutionalism: in search for new perspectives Eduardo Matzembacher Frizzo1 Dênis Alberto Nascimento Machado2Resumo:O presente trabalho pretende tratar de maneira panorâmica a relação existente entre Estado-Nação eglobalização, apontando novas perspectivas para o Estado-Nação a partir da noção de constitucionalismomundial. Sendo assim, em um primeiro momento aborda o surgimento e os elementos essenciais doEstado-Nação, com ênfase na Paz de Vestfália, bem como no papel da soberania estatal na formação dasociedade internacional moderna. Dadas essas disposições, a seguir procura relacionar as implicaçõesdos processos globalizadores na estrutura do Estado-Nação, tratando por fim das alternativas traçadaspelo constitucionalismo mundial na busca de perspectivas para o Estado-Nação em frente à globalização.Palavras-chave: Estado-Nação. Globalização. Constitucionalismo mundialAbstract:This paper intends to deal with panoramic way the relationship between nation state and globalization,pointing out new prospects for nation-state from the notion of global constitutionalism. Thus, at firstdiscusses the rise and the essential elements of the nation state, with emphasis on the Peace of Westphaliaand the role of state sovereignty in the formation of modern international society. Given these provisions,then attempts to relate the implications of globalizing processes in structuring the nation-state, trying toend the alternatives outlined by constitutionalism world in search of prospects for the nation-state facingglobalization.Keywords: Nation-state. Globalization. Global constitutionalism.1 Mestrando em Desenvolvimento (Bolsista CAPES), tendo por Área de Concentração Direito, Cidadania e Desenvolvimento pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ 2009/2010). Pós-graduado no Curso de Pós-Graduação Especialização Lato Sensu em Docência para o Ensino Superior pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA 2006/2008), pelo qual também é Graduado no Curso de Direito (CNEC-IESA 2002/2006). Advogado e professor dos cursos de Direito e Biomedicina do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA). E-mail: eduardo7frizzo@ hotmail.com.2 Mestrando em Desenvolvimento (Bolsista CAPES), tendo por Área de Concentração Direito, Cidadania e Desenvolvimento pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ 2010/2011). Graduado no Curso de Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA 2005/2009). E-mail: [email protected].(RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011 • p. 9-34

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento MachadoINTRODUÇÃO Em razão das profundas mudanças que têm ocorrido nos maisdiversos segmentos da vida e do conhecimento, seria de admirar se umadas maiores invenções da humanidade, o Estado-Nação, também nãosofresse significativos impactos na sua estrutura. A grande influênciados processos globalizadores na esfera social, política, econômicae cultural, faz com que instituições antes tidas como perfeitamentesólidas quedem convulsas diante de tão significativas provocações. Nesse contexto, o presente trabalho pretende tratar de maneirapanorâmica a relação existente entre Estado-Nação e globalização,apontando novas perspectivas para o Estado-Nação a partir da noçãode constitucionalismo mundial, especialmente em virtude do adventodos direitos humanos como um tema global a partir da segundametade do século XX. Sendo assim, em um primeiro momento abordará o surgimentodo Estado-Nação, com ênfase na Paz de Vestfália (1648), bem comoseus elementos essenciais, consoante a concepção clássica daCiência Política, frisando a soberania como fator centralizador do poderjurídico-político do Estado na formação da sociedade internacionalmoderna. Dadas essas disposições, a seguir falará das implicações dosprocessos globalizadores na estruturação do Estado-Nação, as quaiscolocam em xeque os marcos fundamentais do Estado pelo fato deterem abrangência e amplitude difíceis de mensurar tanto no cenárionacional quanto no internacional. Dessa maneira, por derradeiro, tratará das alternativas doconstitucionalismo mundial na busca de novas perspectivas parao Estado-Nação no contexto da globalização, dando especialatenção para os direitos humanos e para as modificações que umconstitucionalismo mundial operaria na sociedade internacionalmoderna. Delimitado nesses eixos, acredita-se que a reflexão acercado Estado-Nação mergulhado em um forte processo globalizador,10 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAScontribui de forma significativa para a compreensão da “crise” ou da“transição” na qual se encontra a humanidade, abrindo espaço para(re)formulações teórico-práticas que, caso levadas a cabo, terão efeitofundamental no cenário jurídico-político global.O SURGIMENTO DO ESTADO-NAÇÃO E SEUSELEMENTOS ESSENCIAIS Distante de polêmicas historiográficas acerca do seu surgimento,o qual ocorreu na transição entre a Idade Média e a Idade Moderna,o aparecimento do Estado-Nação3 , na fala de Raquel Kritsch, não seconfigurou “ao mesmo tempo nem por um processo único em toda aEuropa” (2004, p.103). Ao contrário, entendendo-se que a Idade Médiase encontra entre a queda do Império Romano no século V e o adventodo Renascimento no século XV, percebe-se que um largo espaço detempo foi necessário para que a humanidade atingisse, consoanteNewton de Menezes Albuquerque, “a formação e a consolidação doEstado Moderno no século XVI” (2001, p.31). Apesar disso, algunsteóricos defendem a tese de que a formatação de certos elementosessenciais e mesmo da conceituação do Estado-Nação remonta apolis grega ou mesmo ao Império Romano. Aristóteles aduz que “a sociedade formada por inúmerospequenos burgos constitui-se uma cidade completa, com todos osmeios para se prover a si mesma, e tendo alcançado, por assimdizer, a finalidade que se tinha proposto” (2002, pp.14-15), a qual,para o filósofo, “subiste para uma existência feliz (2002 p.15). Vê-se,segundo Christopher W. Morris, que “a preocupação de Aristótelesera de que a polis permanecesse suficientemente pequena para serautogovernada e autossuficiente” (2005, p.52). Disso se depreende o fato de que a polis grega detinha uma claraincapacidade de expandir seus territórios ou mesmo de incorporaroutros grupos a esse território, característica que em muito a diferenciados Estados Modernos, os quais, nas palavras de Luigi Ferrajoli,3 Desde já se alerta que Estado Moderno, Estado-Nação e Estado Nacional serão termos utilizados de forma equivalente no contexto deste artigo.(RE) PENSANDO DIREITO 11

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machado“detêm vocação expansionista e destrutiva” animados pela “soberaniaestatal” (2007, p.37). Como relata Raquel Souza (2001), basta atentarque um dos únicos momentos da história grega na qual a fragmentaçãodo seu território em polis foi posto de lado para dar lugar a uma uniãoentre as cidades-estado, ocorreu quando das Guerras Pérsicas, noformato de ligas ou confederações. No que diz respeito ao Império Romano, a explicação aparentaser mais simples. A própria extensão territorial do Império, o qualdetinha seu centro nevrálgico em Roma, de maneira alguma lhe davaintegridade territorial ou mesmo unidade. “As fronteiras do Império nãoeram limites, mas meramente demarcações – o ponto mais distanteatingido pela conquista” (MORRIS, 2005, p.56). Logo, ainda que apolis grega e o Império Romano há séculos seduzam filósofos e, nessecaso, especialmente alguns cientistas sociais, as mesmas consistemem sociedades pré-estatais, diferenciando-se dos Estados Modernospela seguinte razão: “o poder e a autoridade eram descentralizados”(MORRIS, 2005, p.58), o que de maneira alguma sonega, por exemplo,a penetração do Direito Romano nos Estados Modernos. Dito isso, parece “desnecessário referir que não há data precisadelimitando a passagem do feudalismo (ou da forma estatal medieval)para o capitalismo, onde começa a surgir o Estado Moderno em suaprimeira versão (absolutista)” (2000, p.22), como ensinam Lenio LuizStreck e José Luis Bolzan de Morais. O mais sensato é afirmar que porséculos conviveram na Europa Ocidental e Central o decadente modode produção feudalista e o ascendente modo de produção capitalista.Quanto à decadência do feudalismo em face do capitalismo, ocorridana Baixa Idade Média4 , é de se dizer que esta se deu de modo lentoe gradativo, delineando aos poucos os contornos sociais, políticos,econômicos, culturais e teóricos que resultaram no surgimento doEstado-Nação. O acontecimento culminante que redundou na afirmação históricado Estado Moderno, relaciona-se com os tratados remanescentes da4 Para fins historiográficos, no ensinamento de Gilmar Antonio Bedin (2001), costuma-se dividir a Idade Média em quatro períodos distintos: Primeira Idade Média ou Antiguidade Clássica Tardia (séc.V a VIII), Alta Idade Média ou Idade Média Média (séc.VIII a X), Idade Média Central (séc.X a XIII) e Baixa Idade Média (séc.XIII a XV).12 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVASPaz de Vestfália, datada de 1648. Resultado da Guerra dos Trinta Anos,a qual envolveu praticamente todos os Estados europeus, a guerraem princípio esteve localizada na Europa Central, especificamentenos Estados alemães, tendo início em 1618 quando o Sacro ImpérioRomano-Germânico tencionou arruinar os protestantes da Boêmia.Quando houve repercussões nos Estados vizinhos, a guerra se deunuma luta entre Império e Estados alemães, na qual o caráter religioso,segundo Charles Tilly, “opunha uma Áustria monárquica e católica aosEstados alemães, feudais e protestantes” (apud BEDIN, 2001, p.170). Saíram “vitoriosos desse conflito a Suécia e os Estadosprotestantes”, incluindo aí os Estados imperiais, “que passaram a termais autonomia e liberdade religiosa” (BEDIN, 2001, p.171). Aforaestes, principalmente a França se tornou a grande potência europeiado período, perdendo a guerra o Sacro Império Romano-Germânico,a Santa Sé e a Espanha. O que é importante observar nos tratadosque resultaram na Paz de Vestfália é o fato de que esta nasceu de umlongo período de negociações diplomáticas entre os diversos Estadosparticipantes dos conflitos. De tais negociações, consubstanciadas em Conferências de Paz,resultaram três princípios fundamentais: “a) o princípio da liberdadereligiosa dos Estados; b) o princípio da soberania dos Estados; c) oprincípio da igualdade entre os Estados” (BEDIN, 2001, p.173). Essestrês princípios inauguram a sociedade internacional moderna, surgindoigualmente “o direito internacional público, a institucionalizaçãoda diplomacia e as conferências de cúpula, o intento de reduzir asguerras, a aceitação do princípio da integridade territorial, o conceitode equilíbrio de poderes” (BEDIN, 2001, p.173), dentre outros, dando-se a afirmação histórica do Estado Moderno. Segundo Lizst Vieira, “a constituição do sistema internacional deEstados” (2001, p.95), provinda da Paz de Vestfália, trouxe consigoquatro “princípios normativos centrais: a) territorialidade; b) soberania;c) autonomia e d) legalidade” (VIEIRA, 2001, p.95). Esses princípios,por sua vez, invocam noções mais profundas para que efetivamentese identifiquem os elementos essenciais do Estado-Nação, os quais,(RE) PENSANDO DIREITO 13

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machadosegundo a concepção clássica da Ciência Política, são três, sendo queé a partir deles que o Estado pode ser definido: o povo, o território eo poder juridicamente organizado, todos centralizados pela soberaniaestatal. O primeiro elemento essencial constitutivo do Estado-Nação é oelemento humano caracterizando o povo e a Nação. O povo, enquantoelemento que constitui o Estado, é resultado do agrupamento socialque se dá no próprio Estado, considerando-se que para Hans Kelsen,na explicação de Celso Albuquerque de Mello, já apontando parao poder político-jurídico do Estado, o indivíduo faz parte do Estadona medida em que “submetido a uma ordem coerciva relativamentecentralizada” (1999, p.318), vez que, como refere Cabral de Moncada,um grau maior de “concentração, organização e institucionalização do‘político’” (1955, pp.165-166) é que diferencia o Estado Moderno dasorganizações políticas anteriores. Com relação à diferenciação entre povo e Nação dentre oselementos essenciais do Estado-Nação, Darcy Azambuja predizque o “povo é a população do Estado, considerada sob o aspectopuramente jurídico, (...) grupo humano encarado na sua integraçãonuma ordem estatal determinada, (...) sujeitos às mesmas leis, (...) oscidadãos de um mesmo Estado” (2001, p.31). Determina-se, então,que o povo sempre é o elemento humano atrelado de forma genéricae permanente à ordem jurídico-política do Estado. “Nação”, por outro lado, “é um grupo de indivíduos que se sentemunidos pela origem comum, pelos interesses comuns e, principalmente,por ideais e aspirações comuns. Povo é uma entidade jurídica; naçãoé uma entidade moral no sentido rigoroso da palavra” (AZAMBUJA,2001, p.31). Nação é distinta de povo como personalidade moral: seo povo está para um vínculo jurídico, a Nação está para um vínculomoral. Conforme Friedrich Müller, “não existe na realidade nenhumacomunidade ‘de sangue’, mas comunidades culturais que representamculturas constitucionais na esfera do direito constitucional: a ‘nação’política dos que querem viver sob essa constituição” (1998, p.52). Daíé que parece emergir o que se entende por Estado-Nação, sendo o14 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVASEstado uma manifestação jurídica e a Nação uma manifestação social. O segundo elemento essencial do Estado Moderno é o território,o qual, nas palavras de Luciane de Medeiros Fernandes, é “a basefísica sobre a qual se estabelece o povo, organiza-se e realiza-se opoder estatal e vigora o sistema normativo” (2002, p.38). Mais do queisso, o território, segundo Dalmo de Abreu Dallari, “é o espaço ao qualse circunscreve a validade da ordem jurídica estatal, pois, emboraa eficácia de suas normas possa ir além dos limites territoriais, suavalidade como ordem jurídica estatal depende de um espaço certo,ocupado exclusivamente” (2001, p.87). “Sem território não pode haverEstado” (AZAMBUJA, 2001, p.38). O que o território traduz é um certo “sedentarismo” do povo quehabita aquele espaço fixo e soberano em razão da sua ordem jurídico-política figurada pelo monopólio do poder. O que caracteriza o territóriono Estado Moderno, com suas linhas divisórias naturais ou artificiaisque o distanciam de outras formatações políticas, é mais uma questãode “jurisdição do que de propriedade” (MORRIS, 2005, p.37). “Não sepode evitar a submissão à autoridade de algum Estado quando nosencontramos no território desse Estado” (MORRIS, 2005, p.36). Para Georg Jellinek, esse sentido jurídico inerente ao territóriodetém uma consequência positiva e outra negativa: “negativa una, entanto que se prohibe a cualquier otro poder no sometido al del Estadoejercer funciones de autoridad en el territorio sin autorización expresadel mismo; positiva la otra, en cuanto las personas que se hallan enel territorio quedan sometidas al poder del Estado” (1974, p.295).Dentre a negativa da afirmação territorial que delimita seus contornose a positiva da possibilidade de ação do Estado nos limites do seuterritório por meio da ordem jurídico-política estabelecida, repousaesse elemento essencial constituinte do Estado-Nação. Se o Estado, nas palavras de Fabiana Marion Spengler ao fazeruso da teoria de Max Weber, define-se como “uma organização quereivindica o monopólio sobre o uso legítimo da força dentro de umdeterminado território, sendo que sua legitimidade também sofreinfluências do prestígio internacional que possui” (2008, p.41), vê-se(RE) PENSANDO DIREITO 15

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machadoque “o território é o país propriamente dito, e portanto país não seconfunde com povo nem com nação, e não é sinônimo de Estado, doqual possui apenas um elemento” (AZAMBUJA, 2001, p.38). Assim, o terceiro elemento essencial que constitui o Estado-Nação está para o poder juridicamente organizado ou poder político-jurídico, o qual é dependente dos outros dois elementos para quese estabeleça em determinado espaço-tempo. O Estado impõe seupoder político-jurídico aos indivíduos que habitam seu território, podereste que, para a organização estatal, torna-se indispensável para agarantia da estabilidade social. “O sentido normativo do poder políticoé conferido pelo ordenamento jurídico”, já que “o poder político nãodeve ter caráter de poder de fato (não vinculado ao direito), mas sim, depoder jurídico, não se podendo dissociar Estado de Direito, na medidaem que o Direito vai regular a atuação do poder” (FERNANDES, 2002,p.40). Dadas de maneira sucinta estas explicações acerca dos elementosessenciais que constituem o Estado-Nação, necessário afirmar que éa soberania que aglutina os mesmos em torno de um único conceito.Nas palavras de Morris, os [...] Estados modernos reivindicam uma variedade de poderes para si próprios e os negam para não Estados. Afirma-se que os Estados reclamam o monopólio do uso da força legítima. Governantes e governos declaram, de modo característico, possuir autoridade. A forma que isso assume no Estado moderno é a soberania: uma certa autoridade exclusiva sobre seu domínio e uma certa independência de outros Estados. Somente os Estados são assegurados como detentores de tais poderes (2005, p.35). É a soberania estatal, por conseguinte, que dá suficiente força aoselementos essenciais do Estado-Nação. Por conta dela, nos limites doseu território e em relação aos indivíduos que nele habitam, o Estadodetém o monopólio da força configurada no poder jurídico-político. Entretanto, se a soberania estatal é o conceito responsável poraglutinar os elementos essenciais que compõem o Estado-Nação em16 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAStorno de um único poder centralizador dotado de força jurídico-política,essa mesma soberania passa atualmente por intensas dificuldades deafirmação social em razão das mudanças promovidas pelos processosglobalizadores. Como a soberania estatal é elemento fundamentalpara a organização da sociedade internacional moderna, o estudode quaisquer fatores que contribuam para a sua relativização é defundamental importância enorme para a contemporaneidade envoltaem uma crise que, além de ser paradigmática, vez que carrega apecha da “transição” e da “incerteza”, é social, política, econômica ecultural.OS IMPACTOS DA GLOBALIZAÇÃO NO ESTADO-NAÇÃO A partir da segunda metade do século XX, com o advento daglobalização5 conjugada ao neoliberalismo6 , como aduz ZygmuntBauman, surge um [...] admirável mundo novo caracterizado por fronteiras eliminadas ou rompidas, pela avalanche de informações, a globalização5 Convém referendar que o conceito de globalização é essencialmente impreciso, uma vez que delimita uma série de fenômenos que são percebidos de maneiras diferentes por diferentes pessoas. Como expõe Luiz Carlos Delorme Prado, tal conceito “(...) começou a ser empregado desde os meados da década de 1980, em substituição a conceitos como internacionalização e transnacionalização. Originalmente, esta ideia era sustentada por setores que defendiam a maior participação de países em desenvolvimento, em especial os NICs (New Industrialized Countries) latino-americanos e asiáticos em uma economia administrada internacionalmente. Somente ao fim da década de 1980 e, particularmente, na década de 1990 é que o termo globalização veio a ser empregado principalmente em dois sentidos: um positivo, descrevendo o processo de integração da economia mundial; e um normativo prescrevendo uma estratégia de desenvolvimento baseado na rápida integração com a economia mundial. Como todo conceito imperfeitamente definido, globalização significa coisas distintas para diferentes pessoas. Pode-se, no entanto, perceber quatro linhas básicas de interpretação do fenômeno: (i)- globalização como uma época histórica; (ii)- globalização como um fenômeno sociológico de compressão do espaço e tempo; (iii) globalização como hegemonia dos valores liberais; (iv) globalização como fenômeno socioeconômico” (2009, pp.1-2). Entretanto, da profusão de entendimentos correlacionados à globalização, percebe-se que a mesma, de toda maneira, está diretamente associada ao fato de que se trata de um fenômeno que afeta todos os níveis da vida humana.6 Com relação ao neoliberalismo, conforme Alberto Tosi Rodrigues (2009), pode-se dizer que consiste em uma prática econômica que rejeita a intervenção do Estado na economia e deixa o mercado se autorregular com total liberdade, caracterizando-se principalmente pelas privatizações e pela livre concorrência. Assim, é o mercado que promulga as regras e conduz a produção, sendo que os defensores do neoliberalismo sustentam que essa liberdade é saudável e que por meio dela os países encontrariam um caminho na direção de um bem-estar geral. Nessa dicção, desde as suas origens, “(...) o pacote neoliberal de “ajuste” tem incluído forte contenção monetária, eliminação de constrangimentos e regulamentações sobre o livre fluxo de capital financeiro, aumento das taxas de juros reais, reformas fiscais de caráter antirredistributivo e aumento deliberado das taxas de desemprego, entre outras medidas” (2009, p.1).(RE) PENSANDO DIREITO 17

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machado galopante, uma orgia consumista no Norte abastado e um “penetrante sentimento de desespero e exclusão em grande parte do resto do planeta”, proveniente do “espetáculo da riqueza, de um lado, e da destituição, de outro” (2005, p.86). Deste modo, com a globalização [...] tem-se a conformação de um novo momento do desenvolvimento da humanidade, que produz uma surpreendente redefinição das noções de tempo e, especialmente, de espaço, conduzindo a uma diminuição das distâncias e tornando instantâneo qualquer acontecimento em qualquer lugar do planeta (BEDIN, 2003, p.507). Os processos engendrados pelo fenômeno globalizante passama produzir grandes transformações, unificando e ampliando o“sistema-mundo”7 para todas as localidades e para todas as pessoas.Contudo, tais processos promovem essas mudanças em diferentesgraus e intensidades variadas, revelando assim um dos seus maiscontundentes paradoxos, já que a globalização tanto [...] divide como une; divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo. Junto com as dimensões planetárias dos negócios, das finanças, do comércio e do fluxo de informação, é colocado em movimento um processo “localizador”, de fixação no espaço. Conjuntamente, os dois processos intimamente relacionados diferenciam nitidamente as condições existenciais de populações inteiras e de vários segmentos de cada população. O que para alguns parece globalização, para outros significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejado e cruel (BAUMAN, 1999, p.8).7 Como explica Odete Maria de Oliveira, “não sendo a globalização um processo homogêneo nem consolidado, os autores e estudiosos desse assunto, de acordo com seus âmbitos de conhecimentos, elaboram entendimentos acerca do conceito desse fenômeno. Em suma, o conceito de globalização apresenta-se vago, ambíguo e impreciso. A literatura ocupa-se em fazer a mais extremada apologia do fenômeno que, repleto de conotações simbólicas e de metáforas, presta-se a manipular o imaginário social. Transmuda-se à possibilidade do mais conveniente ou do conteúdo ideológico que se lhe quer dar” (2002, p.475). Nesse sentido, algumas das metáforas empregadas para referir a globalização e suas consequências são: “economia-mundo, sistema-mundo, sociedade-informática, mundialização da cultura, cidade global, sociedade amébica, disneylândia global, tecnocosmo, shopping- center global, fábrica global, ocidentalização do mundo, aldeia global, fim da história, fim da geografia, desterritorialização, terceira onda, cidadão-mundo, capitalismo-global, cidade-internet, entre outros” (2002, p.479).18 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAS Milton Santos, desse modo, refere que o período contemporâneotem na base uma crise e que, como [...] período e como crise, a época atual mostra-se, aliás, como coisa nova. Como período, as suas variáveis características instalam-se em toda parte e a tudo influenciam, direta ou indiretamente. Daí a denominação de globalização. Como crise, as mesmas variáveis construtoras do sistema estão continuamente chocando-se e exigindo novas definições e novos arranjos. Trata-se, porém, de uma crise persistente dentro de um período com características duradouras, mesmo se novos contornos aparecem (2008, p.34). Quanto ao aspecto social desse momento crítico, é possívelrelacioná-lo às promessas ou valores fundamentais da modernidade,pois, conforme Boaventura de Sousa Santos, a [...] lógica concentracionária e exclusivista da modernização torna possível negar os valores fundamentais da modernidade através de processos de racionalização legitimados em função da afirmação desses valores e accionados (sic) pretensamente ao seu serviço. No entanto, a modernização científico-tecnológica e neoliberal alastra hoje, paradoxalmente, na mesma medida em que alastra a sua crise, certificada por aquilo que parecem ser as suas consequências inevitáveis: o agravamento da injustiça social através do crescimento imparável e recíproco da concentração da riqueza e da exclusão social, tanto em nível nacional como em nível mundial; a devastação ecológica e com ela a destruição da qualidade e mesmo da sustentabilidade da vida no planeta (1997, pp.90-91). Dessa maneira, Ulrich Beck traz à tona a tese da sociedade derisco, a qual carrega tanto possibilidades de desastres quanto deoportunidades. Conforme Beck, “a sociedade moderna se tornouuma sociedade de risco à medida que se ocupa, cada vez mais, emdebater, prevenir e administrar os riscos que ela mesma produziu”(2009, p.1). Essa ocupação com a antecipação do desastre fazcom que alguns setores da sociedade tirem proveito da situação,massificando o consumo de produtos que visam evitar o desastre que(RE) PENSANDO DIREITO 19

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machadoo risco anuncia. Para alguns, há o interesse da massificação do risco:ela customiza lucro e maior possibilidade de manipulação de umasociedade intermitentemente situada no medo – ou na antecipação dodesastre que gera constante temor. Um exemplo recente e real dessa estratégia pôde ser visto nacalamidade causada em 2005 pelo Furacão Katrina em Nova Orleans(EUA), a qual Naomi Klein não considera um desastre natural, vezque envolveu uma clara omissão do Estado. Após o furacão terdeixado milhares de pessoas desabrigadas, “um proeminente políticorepublicano, Richard Baker, assim se pronunciou: “nós finalmentefizemos a limpeza dos prédios públicos de Nova Orleans. Nós nãopodíamos fazer isso, mas Deus fez” (KLEIN, 2008, p.13). A partir daí, uma rede de associações, alinhadas com taispensamentos, aportou em Nova Orleans para converter o sistemaeducacional público vigente em escolas privadas e licenciadascom ajuda financeira do governo de George W. Bush. O desastreigualmente atraiu um conjunto de empresas especializadas, comoos bombeiros Blackwater, empresa militar privada que apareceu emNova Orleans pronta para substituir a polícia, e a Helpjet, empresaque oferece serviços que proporcionam um plano de fuga rápido eluxuoso em caso de furacão. Nessa realidade, que tanto está para um cenário local quantopara um cenário global, é que Beck dispõe que a sociedade derisco é composta de três fatores fundamentais: a des-localização,a incalculabilidade e a não compensabilidade. A deslocalização deriscos não calculáveis está, por sua vez, para três níveis: espacial,temporal e social. Com relação ao plano espacial, nota-se que os riscos nãorespeitam qualquer fronteira, a exemplo das mudanças climáticas queafetam a população mundial. No que condiz com o plano temporal,este aponta o reconhecimento de que “a antecipação das catástrofesfuturas não pode mais ser baseada em experiências passadas”(BECK, 2009, p.3). O risco enquanto probabilidade baseada nopassado não mais funciona. A incerteza e a incalculabilidade da20 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVASabrangência desse risco, o qual pode ter um longo período de latência,como ocorre com o lixo nuclear, denotam a ocorrência do inesperadoconcernente à possibilidade da catástrofe. Quanto ao plano social,a recente crise financeira global é um bom indicador disso: suacomplexidade e amplitude espaço-temporal gerou efeitos em cadeiacujas consequências não são plenamente mensuráveis. A incalculabilidade que compõe a sociedade de risco, aliás,está diretamente relacionada com os fatores econômicos, já quenem mesmo a economia, com sofisticadas construções teóricas, éconfiável em suas previsões, admitindo-se que toda ciência econômicatraz consigo um grau elevado de não conhecimento – ou seja: asexperiências passadas não dão conta das possibilidades futuras. Por conta da não compensabilidade dos riscos, o clamor socialde segurança e controle institucionalizados por parte do Estadoé suscitado, o qual, manipulando um mecanismo imantado deracionalidade e histeria, teria de dar conta dessa situação. Porém, sea própria situação detém um grau elevado de não conhecimento, [...] o limite entre a racionalidade e a histeria torna-se obscuro. Dado o direito investido neles para evitarem perigos, os políticos, em particular, podem facilmente ser forçados a proclamar uma segurança que não podem honrar – porque os custos políticos da omissão são muito mais elevados do que os custos do exagero. No futuro, consequentemente, não será fácil, no contexto de promessas de segurança do Estado e a fome por catástrofes dos meios de comunicação de massa, limitar e impedir ativamente um jogo de poder diabólico com a histeria do não conhecimento (BECK, 2009, p.4). Ainda que a sociedade de risco conte com a propagação domedo que consiste na antecipação do desastre por meio da mídia,essa mesma sociedade traz consigo a possibilidade do que Beckchama de “momento cosmopolita”. A possibilidade desse “momentocosmopolita” reside na percepção da ambivalência do risco. Ouseja: se por um lado o risco antecipa a tragédia, por outro trazoportunidades. Essas oportunidades não estão para aquela parcela(RE) PENSANDO DIREITO 21

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machadode indivíduos que se aproveitam do medo tornado paranoia para obterlucros absurdos. Contrariamente, essas oportunidades preconizadaspelo “momento cosmopolita” estão para a percepção de que se o risconão respeita mais fronteiras, caracterizado pela deslocalização, pelaincalculabilidade e pela não compensabilidade, esse mesmo riscodeve induzir uma percepção cosmopolita do próprio risco. Desse modo, [...] o momento cosmopolita da sociedade de risco significa a conditio humana da irreversível não exclusão do estrangeiro distante. Os riscos globais destroem os limites nacionais e confundem o nativo ao estrangeiro. O outro distante está se transformando no outro inclusivo – não através da mobilidade, mas através do risco. A vida cotidiana está se tornando cosmopolita: os seres humanos devem encontrar o significado da vida nas trocas com os outros e não mais no encontro com o mesmo. Estamos todos presos num espaço global compartilhado por ameaças – sem saída. Isto pode inspirar respostas altamente conflituosas, às quais igualmente pertencem a renacionalização, a xenofobia, etc. (BECK, 2009, p.5). Ao mesmo tempo em que traz o medo manufaturado pela mídiaque movimenta bilhões ao redor do globo, o risco traz consigo acaracterística de consistir não apenas em um momento de temorglobal e consequente inércia, mas sim em um momento de esperançamarcado pela interdependência entre global e local e local e global. Essaesperança cosmopolita “abre nossos olhos para as responsabilidadesincontroláveis, para algo que acontece conosco, sucede conosco, masao mesmo tempo nos estimula a um novo começo que transcendafronteiras” (BECK, 2009, p.8). Diante de tais considerações, torna-se clara a complexidade dofenômeno da globalização, o qual inevitavelmente causa impactosna estrutura do Estado-Nação, pois, conforme expõe José EduardoFaria, há um expressivo esvaziamento [...] da soberania e da autonomia dos Estados Nacionais. Por um lado, o Estado já não pode mais almejar regular a sociedade civil22 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAS nacional por meio de seus instrumentos jurídicos tradicionais, dada a crescente redução de seu poder de intervenção, controle, direção e indução. Por outro lado, ele é obrigado a compartilhar sua soberania com outras forças que transcendem o nível nacional. Ao promulgar suas leis, portanto, os Estados nacionais acabam sendo obrigados a levar em conta o contexto econômico- financeiro internacional para saber o que podem regular e quais de suas normas serão efetivamente respeitadas (1998, p.11). Assim, o momento crítico pelo qual passa o Estado Moderno,como afirma Doglas Cesar Lucas, caracteriza-se [...] pela perda de autonomia para definir políticas sociais e econômicas, pela redução da imperatividade do Direito estatal (que passa a conviver com formas alternativas de normatividade), pelo surgimento de problemas de alcance global que transcendem as possibilidades de resposta estatal tradicional, pela reorganização dos espaços e tempos econômicos desterritorializados e carentes de um centro, pela exigência de regras universais sobre direitos humanos e pelo terrorismo que inaugura uma espécie de violência pós-moderna [...] (2009, p.49). Se o Estado é fruto de uma construção nas linhas do seuajustamento histórico-teórico, no dizer de Nestor Canclini, “as naçõessão cenários multideterminados, onde diversos sistemas simbólicosse cruzam e se interpenetram” (2006, p.136). Tratando-se demultideterminadas faces, obviamente que o Estado-Nação deve seranalisado em sua relação com a globalização atualmente vivenciada. Nesse sentido, é de se buscar alternativas diversas para esseEstado diante da globalização ou, ao menos, para sua adaptação àstendências globalizantes sem que esse Estado seja privado da própriaconsecução de suas finalidades de sociabilidade8. Isto se deve aofato de que os “principais problemas (...) adquiriram rapidamente ocaráter de questões mundiais ou globais” (BEDIN, 2003, p.506). A8 Na constatação de Vieira, o “Estado não tem mais o monopólio das regras, pois há regras internacionais que deve partilhar com a comunidade internacional. E perde força com o avanço da globalização” (2001, p.237). Ocorre assim o seu “enfraquecimento (...) principalmente à sua função de elaborar e decidir políticas, bem como à sua capacidade autônoma de elaborar projetos políticos nacionais” (2001, p.237). Consequentemente, a soberania estatal é diretamente afetada.(RE) PENSANDO DIREITO 23

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machadoglobalização não pode ser vista somente “como um fenômeno capazde gerir múltiplas realidades condicionadas apenas pelo mercado e deconduzir um reinado do lucro que represente um retrocesso” (LUCAS,2009, p.63) para o que até agora foi conquistado pela humanidade emséculos de revoluções jurídicas, políticas, sociais e culturais. Se a globalização atualmente suscita vários questionamentosacerca da finalidade estatal e da sua contextualização na sociedadeinternacional moderna, uma vez que a própria soberania pareceindelevelmente afetada pelos processos globalizadores, os direitoshumanos, a partir da segunda metade do século XX, da mesmamaneira ocupam um papel importante nesse sentido, vez que foramresponsáveis por uma relativização da concepção tradicional desoberania. Além disso, tendo em vista o “momento cosmopolita”da sociedade de risco apontada por Beck, os direitos humanos,principalmente por meio de Ferrajoli, assinalam a emersão de umconstitucionalismo de alcance mundial por meio de uma reestruturaçãoda sociedade internacional moderna.ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO ECONSTITUCIONALISMO MUNDIAL Nas palavras de Richard Pierre Claude e Burns H. Weston, citadospor Flávia Piovesan, “(...) a soberania estatal não é um princípioabsoluto, mas deve estar sujeita a certas delimitações em prol dosdireitos humanos” (1997, p. 141). Após a Segunda Guerra Mundial,surge a “(...) necessidade de reconstrução dos direitos humanos,como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral”(PIOVESAN, 1997, p.140). Torna-se então impossível aceitar queuma violação a tais direitos por parte de determinado Estado sejaassunto apenas de sua jurisdição particular, sendo, pelo contrário,um problema de amplitude e interesse internacionais. Nasce assima Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, seguida pelaDeclaração Universal dos Direitos do Homem em 1948.24 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAS Para Ferrajoli, o nascimento da ONU e a sucessiva DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geraldas Nações Unidas, marcam o fim da soberania no plano do direitointernacional, visto que a partir [...] de então que o próprio conceito de soberania externa torna- se logicamente inconsistente e que se pode falar, conforme a doutrina monista de Kelsen, do direito internacional e dos vários direitos estatais como de um ordenamento único (FERRAJOLI, 2007, p.40). Desse modo, alude Antonio Cassesse (apud PIOVESAN, 1997)que um Estado violador dos direitos humanos é digno de reprovaçãoe pode até mesmo ser considerado “ilegítimo” pelos outros Estadosà luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Apesar disso,o ordenamento internacional atual se revela impotente em virtude deseu conteúdo, pois a própria ONU continua a ser condicionada, tantono plano factual quanto no jurídico, pelo princípio da soberania dosEstados. O inciso I do Art. 2.º da Carta da ONU preceitua que a “(...)Organização é fundada sobre o princípio da igualdade soberana detodos os seus membros”, sendo que, conforme o inciso VII do mesmoartigo, tal princípio “(...) comporta o veto de ingerência da Organizaçãonas questões internas de qualquer Estado” (FERRAJOLI, 2007, p.42). Essa situação mantém aqueles valores fundamentaissancionados pela Carta da ONU sujeitos à deliberação exclusiva porparte de cada ente estatal, dando margem a que inúmeras violaçõesde suas normas, que são verdadeiros direitos supraestatais, fiquemsem possível sanção. A “(...) ausência de garantias idôneas contra taisviolações por obra dos Estados é, por sua vez, configurável como umalacuna indevida que deve ser preenchida” (FERRAJOLI, 2007, p.43). Se no plano do direito interno ocorreu a organização do Estado-Nação em decorrência do poder jurídico-político inerente a este noslimites do seu território em decorrência da soberania estatal, o quese deu principalmente em virtude da ordem constitucional comoelemento norteador da postura jurídica do Estado, a ideia de um(RE) PENSANDO DIREITO 25

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machadoconstitucionalismo mundial mostra-se como solução sensata paraa resolução de conflitos hoje existentes no plano do direito externo,inclusive com a inserção das mesmas garantias e direitos fundamentaisdas constituições dos Estados em nível mundial. É imprescindível,portanto, repensar o Estado e a soberania na atual crise que atravessaambos, pois repensar [...] o Estado em suas relações externas à luz do atual direito internacional não é diferente de pensar o Estado em sua dimensão interna à luz do direito constitucional. Isso quer dizer analisar as condutas dos Estados entre si e com seus cidadãos – as guerras, os massacres, as torturas, as opressões das liberdades, as ameaças ao meio ambiente, as condições de miséria e fome nas quais vivem enormes multidões de seres humanos –, interpretando-as não como males naturais e tampouco como simples “injustiças” [...], mas sim como violações jurídicas reconhecíveis em relação à obrigação de ser do direito internacional vigente, tal como ele já está vergado em seus princípios fundamentais (FERRAJOLI, 2007, p.46). Essa perspectiva não deve ser encarada como um horizonteirreal, mas como uma perspectiva imposta, principalmente ao se levarem conta a radical época atual caracterizada pela sociedade de riscoexposta por Beck. Contudo, em relação ao constitucionalismo mundialé necessário frisar que ele estabelece uma integração baseada nodireito, mas não deve ser confundido com um governo mundial, poissua intenção é efetivar os direitos humanos proclamados pela Cartada ONU e definidos na Declaração Universal dos Direitos do Homemde 1948 e não absorver os Estados, transformando-os em um enteestatal de domínio global. Além disso, faz-se necessária a ciência de que, num mundoglobalizado, o Estado [...] é pequeno demais com respeito às funções de governo e de tutela que se tornam necessárias devido aos processos de internacionalização da economia e às interdependências cada vez mais sólidas que, na nossa época, condicionam irreversivelmente a vida de todos os povos da terra (FERRAJOLI, 2007, p.51).26 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAS Por esse prisma, fora do “(...) horizonte do direito internacional,de fato, nenhum dos problemas que dizem respeito ao futuro dahumanidade pode ser resolvido, e nenhum dos valores do nosso tempopode ser realizado” (FERRAJOLI, 2007, p.51). Dentro de um contextode globalização, no qual problemas de âmbito global exigem soluçõestambém globais, surge a alternativa da democracia cosmopolita,exigindo a superação da ideia “de uma soberania clássica, a sersubstituída por um critério/princípio jurídico de responsabilidade entreas comunidades (...)” (LUCAS, 2009, p.63). Esse critério, segundoVicente de Paulo Barreto, não deverá ser [...] o reflexo da vontade de um Estado nacional soberano, nem muito menos de um Estado mundial, mas sim de um sistema jurídico que deite suas raízes e os seus limites em função daqueles direitos comuns a todo ser humano, direitos esses que se expressam juridicamente nos direitos humanos, patamar moral legitimador das soberanias e parâmetro jurídico universal determinante de responsabilidades [...] (apud LUCAS, 2009, p.63). Logicamente que tal projeto cosmopolita não deve ser obra deuma só nação, devendo, conforme Lucas, pautar-se por princípiosque considerem os direitos humanos como um mínimo ético para odiálogo entre as culturas, encontrando neles “(...) a sua formulaçãojurídica e o seu núcleo substancial de reciprocidade”, com força para“(...) comprometer mutuamente as nações a um regime universal degarantias e de obrigações” (2009, p.64). O percurso a ser indicado passa assim pela superação daformatação clássica do Estado-Nação por meio [...] da reconstrução do direito internacional, fundamentado não mais sobre a soberania dos Estados [...]. O paradigma, em todo caso, não pode ser senão [...] o da sujeição à lei dos organismos da ONU, de sua reforma em sentido democrático e representativo, enfim, da instauração de garantias idôneas que visem a tornar efetivos o princípio da paz e os direitos fundamentais, tanto dos indivíduos quanto dos povos, em seu relacionamento com os Estados (FERRAJOLI, 2007, p.52).(RE) PENSANDO DIREITO 27

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machado Há algumas décadas, Kelsen, “(...) em seu livro A paz através dodireito”, dispôs a necessidade “(...) de uma limitação efetiva da soberaniados Estados por meio da introdução de garantias jurisdicionais contraas violações da paz (...) e dos direitos humanos” (FERRAJOLI, 2007,p.54). Nesse sentido, a necessidade de um constitucionalismo mundialemerge inclusive com o intuito de pôr a salvo as próprias conquistasde direito interno por meio das constituições nacionais. É certo que, a curto prazo, não há razão para ser otimista,porquanto [...] as orientações das tendências da atual política interna e internacional estão indo em direção exatamente oposta: pensa- se no predomínio, por exemplo na Itália, de culturas políticas que tendem à desvalorização das regras e dos contrapesos constitucionais em nome do poder absoluto da maioria; no esvaziamento do papel da ONU nas recentes crises internacionais por obra da iniciativa dos Estados mais fortes; no novo espaço tomado, após o fim dos blocos, pelas políticas de poder; e no fechamento sempre mais rígido das fronteiras (FERRAJOLI, 2007, p.59). De qualquer forma, deve-se fugir das posturas excessivamentecéticas e resignadas, evitando-se a falácia que prensa o direito ao fatonum realismo sem perspectivas de futuro. Assim, a tarefa que hoje sevislumbra reveste cada vez maior importância e urgência, até porque “averdadeira alternativa que temos à frente não é entre realismo e utopianormativista, mas sim entre realismo a curto prazo e realismo a longoprazo” (FERRAJOLI, 2007, p.62). Desse modo, faz-se imprescindíveluma efetiva universalização dos direitos humanos e fundamentais,a qual poderia, por exemplo, dirimir inúmeros desmandos tanto dosEstados quanto das empresas transnacionais, os quais caracterizamgrande parte das mazelas da atualidade. Se o mundo passa por um momento de transição, momentocomplexo que se utiliza de uma palavra plurívoca como “crise” paradefini-lo, também complexo precisa ser o seu método de estudo. Assim,poderão surgir conclusões livres de dogmatismos, reconhecendo28 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAStodos os seres humanos como pertencentes a um único gênero,reformulando ou até abandonando a noção tradicional de soberaniaem prol da ideia de uma democracia cosmopolita consolidada em umconstitucionalismo de alcance mundial baseado nos direitos humanose tendo como principal objetivo a fraternidade universal. É preciso, por fim, colocar em relevo as hoje um tanto esquecidaspromessas da modernidade, já que elas próprias deram nascimentoao Estado Moderno. Tidas no princípio como metas do modeloestatal forjado pelas revoluções do período, tais promessas – quese consubstanciam, grosso modo, no ideal de uma vida melhor –foram sendo pouco a pouco relegadas a segundo plano pela lógicainserida no modus vivendi burguês, lógica explicitada atualmentepelo consumismo exacerbado e pelo dogma do livre mercado. Énecessária, assim, não o esquecimento, mas uma revisão de diversosparadigmas da modernidade para que sejam efetivados os inúmerossonhos preconizados pelo período moderno, com o constitucionalismomundial assumindo o compromisso de evitar um fuzilamento dasfunções do ente estatal pelo trem da história.CONCLUSÃO O cenário global da atualidade não pode ser considerado deuma forma única ou a partir de um único local, sendo que apesar deexistirem tendências que estão para uma massificação cultural delimites ainda desconhecidos, existe uma comunidade de diferençasplenamente palpável no mundo contemporâneo. Essa comunidade de diferenças, entretanto, muitas vezes gera umdiálogo cujo alfabeto é desconhecido daqueles que tentam entendê-lo.Desconhecimento que, por sua vez, está para o fato de que os fatorespostos em jogo, ainda que há muito conhecidos, são realocados eressignificados de modo completamente diverso de épocas anteriores,suscitando configurações novas de antigos conceitos em razão dodesenfreado movimento atual que, dando mais valor ao tempo do queao espaço, deve ser compreendido em uma totalidade, uma vez queafeta todos os níveis da existência humana.(RE) PENSANDO DIREITO 29

Eduardo Matzembacher Frizzo - Dênis Alberto Nascimento Machado Dessa maneira, tratou-se neste trabalho acerca de assuntosque ganham maior relevância no cenário mundial e nas agendas deprioridades dos Estados nos últimos anos. Abordaram-se, assim, asimplicações dos processos globalizadores na estruturação do Estado-Nação, indicando-se a proposta de um constitucionalismo mundialcalcado nos direitos humanos como forma de substituir a ideia desoberania estatal. Nesse sentido, o problema em questão denota que nummundo em constante marcha globalizadora no qual se acentua ainterdependência, é inviável defender a soberania em estado pétreonum cenário mundial que se mostra cada vez mais “líquido”, parausar uma expressão baumaniana. É neste ponto que a ideia de umconstitucionalismo mundial fundamentado nos direitos humanos comopilares básicos para uma democracia cosmopolita ganha relevo. Todos os caminhos traçados estão a indicar um fenecimento dasoberania diante da globalização e das transformações ocorridasnos últimos tempos, bem como revelam que o Estado precisa serrepensado em suas funções, tudo com o intuito de não deixar emsegundo plano as promessas da modernidade. Vislumbra-se assimque o tão mencionado constitucionalismo mundial não retiraria dosEstados as suas respectivas funções e competências, pois criariaregras que efetivariam a própria preservação dessas funções paraa criação de políticas públicas locais de desenvolvimento social.Do mesmo modo, uma efetividade dos direitos humanos em nívelmundial preservaria os Estados ao proibir ingerências arbitrárias deuns na esfera de outros, ingerências não raro justificadas pelo próprioprincípio da soberania. Portanto, mesmo que todas essas considerações sejamaparentemente distantes e utópicas, é preciso, como faz Ferrajoli,ponderar a respeito de que a escolha que se mostra não é entreutopia normativista e realismo, mas sim entre realismo a curto prazoe realismo a longo prazo. Parece que o mais sensato a ser feito éabandonar as idiossincrasias apegadas a um ceticismo que prensa oDireito ao fato, sob pena de assumir uma cumplicidade mórbida com30 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

ESTADO-NAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO MUNDIAL: EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVASos atuais desmandos de muitos entes estatais e de muitas empresastransnacionais no que concerne ao respeito aos direitos humanos,mantendo-se um perigoso estado de natureza em nível global.REFERÊNCIASALBUQUERQUE, Newton de Menezes. Teoria política da soberania.Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.ARISTÓTELES. Política. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: MartinClaret, 2002.AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência política. 42. ed. São Paulo:Globo, 2001.BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas.Trad. de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999._____. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 2005.BECK, Ulrich. “Momento cosmopolita” da sociedade de risco. Trad.GermanaBarataeRodrigoCunha.Disponívelemhttp://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=41&id=501. Acessadoem 07.10.2009.BEDIN, Gilmar Antonio. A sociedade internacional e o século XXI:em busca da construção de uma ordem judicial justa e solidária.Ijuí: UNIJUÍ, 2001._____. A sociedade global e suas possibilidades de realização. In:DAL RI JÚNIOR, Arno; OLIVEIRA, Odete Maria de (Orgs.). Relaçõesinternacionais: interdependência e sociedade global. Ijuí: UNIJUÍ,2003. pp.505-536.CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos: conflitosmulticulturais da globalização. Trad. Maurício Santana Dias. 6. ed.Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado.22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.(RE) PENSANDO DIREITO 31

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(RE) PENSANDO DIREITO O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMO The Minimum Criminal Intervention according the LawPhilosophy in Hegel Fernando Antonio da Silva Alves9Resumo:Este texto pretende demonstrar como as categorias filosóficas empregadas por Hegel na sua definiçãode direito podem ser utilizadas no sentido de se analisar o âmbito de aplicação da lei penal, e de até queponto pode o crime e a liberdade ser regulados por normas jurídicas, sem que isso implique uma eventualcontradição, nos termos de uma sociedade crescentemente punitiva, diante de um Estado Democráticode Direito.Palavras-chave: Filosofia do Direito. Legalidade. Direito Penal Mínimo.Abstract:This article intends demonstrate how the philosophy categories applied by Hegel, in his concept of law,may be employed in the meaning of analysis the penal law application environment and even that crime andfreedom may be ruled by legal rules, without eventual contradiction, in terms of growing punitive society,in between a Democratic State of Law.Keywords: Philosophy of Law. Legal System. Criminal Law Minimum.9 Doutorando em Direito Público pela UNISINOS. Mestre em Ciência Política pela PUC/SP. e-mail: [email protected](RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011 • p. 35-54

Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento MachadoINTRODUÇÃO Homens livres também são homens regrados. São aquelesa cujas condutas estão destinadas sanções correspondentes nomomento em que praticam algo definido como um ato criminoso. Adefinição do que é crime e do que não é depende, sob o aspectofilosófico, da conceituação inicial do que é entendido como jurídico,pois a repressão penal só confere sua legitimidade e própria existênciase é definida juridicamente. Por isso, a filosofia de Hegel surge comoum instrumental teórico relevante para se determinar no cálculo dapunibilidade, que condutas podem ser tidas como delituosas e quaisaquelas em que outras formas de sanção podem ser materializadas. Um direito penal mínimo não equivale, necessariamente,a um Estado mínimo. Porém, como bem poderá ser visto nesteestudo, as categorias da política, assim como do jurídico, andambem entrelaçadas na filosofia de Hegel, mormente em seu estudoda juridicidade e de seu historicismo revelado nos seus conceitosde Ideia absoluta e Espírito Objetivo. O interessante do sistemafilosófico hegeliano é que, a exemplo da filosofia de Kant, que, decerta forma, deu asas ao positivismo jurídico, o pensamento de Hegelcontribui para o desenvolvimento da pesquisa sociológica no estudodo direito. Isso se deu pela ênfase que Hegel dá, diferentemente deKant, à experiência humana concreta, rompendo com uma tradiçãodo jusnaturalismo, preso a conceitos abstratos, e que dá uma novadimensão ao direito, agora subordinado aos processos históricos queacometem a realidade de um povo. Deve-se notar que, no estudo do direito penal e do crime,associa-se a discussão sobre o crime e a injustiça, com a discussãosobre a liberdade, tema caro à filosofia de Hegel. Um direito relacionadoàs manifestações da vontade é a chave para se compreender até queponto uma conduta pode ser penalmente reprimida ou não. É nessesentido que as modernas teorias do dolo e algumas consideraçõescríticas à doutrina clássica do direito penal serão encontradas nopensamento de Hegel no momento em que se pressupõe o criminoso36 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOcomo alguém dotado de vontade livre, autoconsciente de sua vontadee que age, necessariamente, sob impulsos destinados à violação deregras de conduta. Por fim, são esboçados os primeiros traços de um direitopenal mínimo, à luz da filosofia hegeliana e com a contribuição dopensamento jurídico penal moderno, a fim de se compreender arealidade de um Estado Democrático de Direito onde o regime jurídicodas liberdades possa ser respeitado, sem que isso implique um Estadoplenipotenciário e plenamente punitivo, uma economia punitiva queleve em conta aquilo que moralmente é tido como reprovável pelacoletividade e que mereça o respaldo social de uma coação penal.O CONCEITO DE DIREITO EM HEGEL Compete a Bobbio uma visível apresentação da filosofia dodireito em Hegel, apresentando uma concepção latu sensu de direitoque tanto pode ser entendido como Recht, que diz respeito ao direitodos juristas, o direito abstrato, propriamente dito, como tambémo direito que deve ser entendido como todas as determinações daliberdade (um dos principais objetos da filosofia prática para Hegel)10.O motivo dessa ambiguidade é que Hegel fragmenta o sistemajurídico a partir do direito privado, chegando a transferir o conceitode direito penal do âmbito do direito público para o privado quandose refere à injustiça enquanto dano, impostura e crime11. Explica-setambém a diferenciação das categorias hegelianas sobre o jurídico,tendo em vista que Hegel se contrapõe a Kant, na sua crítica ao direitonatural, evitando a perspectiva kantiana de reduzir a sociedade auma comunidade jurídica universal, como se o direito fosse capaz deunificar em seu âmbito toda a vida social a partir de sua consideraçãocomo um supremo ente abstrato12. A filosofia da sociedade e afilosofia do Estado não se resumem à filosofia do direito, mas, aocontrário, o direito encontra-se subordinado a um âmbito filosóficomais amplo, onde é o direito que se torna influenciado historicamente10 BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel-direito, sociedade civil, estado. UNESP: 1989, p.58.11 HEGEL, Georg Wilhem Friederich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.81-83.12 BOBBIO, op. cit. p.83.(RE) PENSANDO DIREITO 37

Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento Machadopela sociedade e não o contrário; destruindo o mito da supremaciafilosófica do direito pensada pelo jusnaturalismo. Pode-se dizer, portanto, num primeiro momento, que, naverdade, Hegel não faz uma filosofia do direito, mas sim uma filosofiasobre o direito, pois entende que a eticidade que desponta de seuconceito de ideia absoluta e que irá fornecer subsídios para umacompreensão filosófica do direito13. O direito não é mais uma categoriaabstrata, mas sim um ente histórico, vivo, que nasce e se desenvolvede acordo com os movimentos da vida prática, como a política com aformação do Estado, a economia por meio do trabalho e o costumemediante as relações familiares. Como se trata de um filósofo idealista,mas que tributa sua contribuição filosófica ao desenvolvimento daconcepção de Ideia, não mais vista como ente abstrato, mas sim comoefetivo e prático ator histórico no desenvolvimento da humanidade,Hegel credita ao seu conceito de Espírito o vetor por onde despertaráa razão como fio condutor desse desenvolvimento14. O Espírito, para Hegel, origina-se na história do mundo, no reinodo Espírito entendido como reino dos homens, que se diferencia doReino de Deus. Se há um reino físico entendido como a natureza, paraHegel, o reino do Espírito se desenvolve com os homens, no momentoem que, em relação à teologia, os homens podem ser considerados emrelação à divindade como meras criaturas imperfeitas diante de um serperfeito e acabado, com suas leis próprias; porém, enquanto homensentre si, eles se podem reconhecer não como seres imperfeitos, massim como seres históricos, dotados de desejos e inclinações que osimpulsionam a fazer e desenvolver história. Os conflitos, as guerras,as conquistas, as legislações e os jogos de dominação subjacentes aisso seriam resultado de um objetivo final da humanidade, que seriao da realização do Espírito, entendido como criação humana e nãocomo divina. É no âmbito do Espírito, historicamente moldado, que iráse desenvolver o direito. Não se pode falar de um conceito de direito em Hegel sem seater ao conceito correlato de liberdade, que perpassa pela concepção13 HEGEL, Georg Willem Friederich. A razão na historia. São Paulo: Centauro, 2001, p. 61.14 HEGEL, ibid., p.62-63.38 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOde Ideia e de Espírito que Hegel desenvolve em sua filosofia. A liberdadeenquanto realização do Espírito é uma “existência autocontida”, nosdizeres de Hegel, pois essa existência é a consciência própria queo Espírito tem de si, a consciência de que o homem é apenas livre,quando está consigo próprio. A liberdade é o reconhecimento de simesmo, é a descoberta de sua própria natureza, e por isso o objetivofinal do mundo seria a realização da liberdade, pois com ela viria oreconhecimento de um ser-em-si-mesmo no mundo; ou seja, maisuma vez a realização do Espírito. É a busca dessa realização queconduz à história, e dessa história surge o arcabouço jurídico a partirda sociedade que fundamenta o Estado, como realização da Ideia, ouseja, do Espírito do mundo, pois a lei é a expressão do direito modernoe o fundamento jurídico do Estado, que é a Constituição15. Assim, a partir do Estado, a lei surge como a realização daliberdade. Pelo Estado, segundo Hegel, é possível exercer a liberdade,pois, ao discordar novamente dos jusnaturalistas, Hegel se contrapõeà concepção de que o Estado surge para limitar a liberdade, pois ohomem seria livre por natureza; quando, na verdade, ocorre o contrário.Ora, para ele, dizer que o homem é livre por natureza significa dizerapenas que é livre em si mesmo, ou seja, livre quanto ao seu destino,livre no tocante a sua existência, tornando-se, ao ser livre, existente nanatureza. O problema que ocorre é quando o homem não se vê maiscomo um ser natural e sim como um ser histórico, pois é nesse sentidoque surge o Estado para a preservação de sua liberdade. A natureza,contraditoriamente, ao mesmo tempo em que faz nascerem homenslivres, porque se reconhecem como existentes e como detentores dedireitos, não permite, ao revés, que esses homens possam exercer asua liberdade, em virtude da injustiça, das perversões, dos institutosnaturais violentos e impulsivos que se encontram presentes noestado de natureza. A consciência e o desejo de liberdade surgemexatamente por conta do conflito gerado na natureza ao querer seexercitar essa liberdade16. A liberdade toma consciência de si e passaa se desenvolver enquanto Ideia no momento em que ela é atingida.15 HEGEL, ibid, p.87-99.16 HEGEL, ibid. p.92.(RE) PENSANDO DIREITO 39

Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento MachadoDaí surge na filosofia de Hegel a necessidade da lei e da moral comocondição para o exercício da liberdade. Hegel entende que o impulso, o desejo, a paixão, típicosdo homem natural no estado de natureza, são empecilhos para oexercício da liberdade e uma verdadeira limitação desta. Em buscade seu desejo de emancipação, a liberdade do ser histórico faz comque ele procure a sociedade e o Estado para que sua liberdade serealize; pois, ao contrário, se o homem quisesse ver-se em si mesmoenquanto ser livre na natureza, teria que se ver como um ser sozinho,livre das limitações dos impulsos e dos desejos dos outros, mas não éisso que ocorre. Por outro lado, Hegel vê o desenvolvimento da lei e do direitocomo categorias históricas e não abstratas, a partir do princípio éticoda família, para explicar como a lei e a moral se depreendem deseu conceito de liberdade17. A família é uma individualidade, uma sópessoa, onde seus membros renunciam a seus egoísmos e paixõesindividuais em função dos sentimentos de amor, fé e confiança um nooutro; pois o espírito familiar (enquanto dado objetivo e não um enteabstrato) existe não apenas na consciência de si proporcionada pelaliberdade, mas também na consciência do outro. Nesse sentido é que,para Hegel, a exemplo do espírito da família, existe um espírito do povo,personificado no Estado. Se a família é uma unidade de sentimentos,o Estado é uma unidade de seres morais, vinculados entre si por meioda lei, que confere às consciências a condição de indivíduo livre, masde livre em relação ao outro e vice-versa. Todo o edifício jurídico e adimensão do direito público terão aí seu fundamento na concepção deHegel. Daí reside a definição de Hegel acerca da Constituição. AConstituição como fundamento jurídico do Estado não correspondea uma definição formal de direito abstrato, no sentido de pensar oEstado como uma entidade abstrata que resulta da consciência doscidadãos, para daí bastar simplesmente existir apenas uma ordemjurídica assentada numa vontade popular, onde uns dão ordens e17 HEGEL, Id, p.93.40 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOoutros obedecem (a obediência aqui parece estar paradoxalmentedistante da liberdade). Para Hegel, não é a partir da definição abstratade Estado (patriarcal, monárquico ou democrático) que se chegará aum conceito de Constituição, mas sim a partir da realidade concretado povo. A Constituição reflete juridicamente ao nível do Estado o queem sua realidade o povo define como cultura. Nos jogos de dominaçãosucessivos que marcam periodicamente o desenvolvimento do Espírito,carregado de historicidade, na evolução de uma sociedade, o Estadorevela o Espírito na manifestação da vontade humana como umaliberdade coletiva, racional e consciente de si enquanto ser existente,assim como, sob o aspecto particular, o indivíduo tem a consciência desi a partir de sua liberdade18. O Estado representa para Hegel um meiode mudança histórica, como fase de seu conceito de Ideia Absoluta,relacionada ao reino dos homens, e via de canalização do Espírito dopovo, na medida em que um povo é reconhecido por sua Constituição.Dos gregos e romanos, aos povos do Oriente, seu desenvolvimentohistórico e sua evolução enquanto povo é explicada à luz de suasconstituições. Daí que para Hegel toda ordem constitucional só podeser reconhecida à luz do conhecimento e da cultura de seu povo.O DIREITO ENQUANTO ETICIDADE Se, ao tratar do direito, Hegel pretende tratar do direito nãode indivíduos isolados, mas sim do direito de um povo historicamenteorganizado, é porque ele pensa o povo não como um mero somatóriode indivíduos, mas sim como um organismo próprio, vivo, dotado departicularidades distintas dos indivíduos isolados, submetido a umsistema de normas de conduta. É nisso que para Hegel será empregadoo termo “eticidade”, usado para definir povo enquanto totalidade éticaque não depende do sistema jurídico para existir, mas sim de umaexperiência mais profunda, traduzida no Espírito do povo a que sereferiu o filósofo alemão, condicionante de seu processo histórico19.18 Conjugando seu conceito de Espírito Objetivo no progresso histórico do povo, com o afastamento que mantém das concepções formais de Estado do jusnaturalismo, Hegel chega a afirmar que: “uma constituição não é uma questão de escolha, mas depende da fase de desenvolvimento espiritual do povo (HEGEL, id, p.97).19 BOBBIO, op.cit. p.71.(RE) PENSANDO DIREITO 41

Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento MachadoSe povo é mais do que uma sociedade juridicamente organizada esubordinada a um conceito abstrato de Estado, este seria aquele quetudo regula, será o povo na sua densidade histórica que dirá o queé o Estado e o que é o direito, a partir de sua experiência cultural,de sua autoconsciência enquanto coletividade (daí o surgimento dasconstituições). O Estado moderno é o resultado da manobra do EspíritoObjetivo, a partir de uma eticidade amadurecida. Nesse sentido, o direitoprivado seria a primeira face negativa do direito, pois corresponderiaainda a um direito atomizado, resumido na figura do déspota, nomomento em que não surge o Estado moderno e democrático comoexpressão do amadurecimento da liberdade coletiva enquanto umaliberdade pública na autorrealização de um povo no seu projetohistórico de construir uma consciência de si. É nesse sentido que a leitem um papel fundamental para a eticidade, pois, se no direito privadoo costume é a primeira representação jurídica do ethos de um povo,reunindo uma eticidade natural que advém do sentimento de unidadecoletiva proporcionado pela instituição familiar, no direito moderno alei irá servir como instrumento de afirmação do Estado e não mais dafamília, pois será pelo Estado onde irá convergir a eticidade de umpovo na sua consciência de sujeito histórico20. A vontade do Estado enquanto este ser histórico e coletivo nãopode se exprimir por meio do costume, de que é repositório, massim pela lei que traz o costume ao alcance do Estado e sobre a qualesse Estado poderá manifestar a sua vontade. No sistema do direitopositivo, portanto, o direito estatal é simbolizado pela lei, pois, destaforma, esta estabelece sua diferença com o costume, marcando umanova eticidade, sob o manto do Estado moderno. É pela lei que o direitoreaparece no processo histórico conduzido pelo Espírito Objetivo, pormeio da eticidade de um povo. Hegel irá se referir a isso quando dizque “a comunidade – a lei do alto que vigora manifestamente à luz dodia – tem sua vitalidade efetiva no governo, como o lugar onde ela é oindivíduo”21. Isto implica dizer que a eticidade de um povo é a correia20 BOBBIO, ibid. p.75.21 HEGEL, Georg. Friederich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2007, p.313.42 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOde transmissão do Espírito, que se apresenta como consciência, eque, por sua vez, se traduz em ação a partir da legislação. A sínteseconstrutiva do direito moderno parte do momento em que a eticidadedeixa seu complexo universo de relações familiares para relaçõestransindividuais, sob a órbita estatal. É nessa definição que seestabelece um novo regime de liberdades e onde a coação do Estadoserá legitimada pela lei quando surge o princípio da legalidade comouma resultante natural de uma ordem jurídica racional estabelecidanos moldes da evolução histórica de um povo. O Espírito, segundo Hegel, presente na eticidade, passapela família, retirando o homem de seu estado primitivo na natureza,condicionando suas paixões a um sentimento de unidade proporcionadopelo vínculo familiar, até chegar ao Estado, onde os homens passam ater sua autoconsciência de comunidade. Para conservar sua unidade,a comunidade é regida pela lei que também institui o governo, quereflete o Espírito de um povo. Desta forma, governos despóticos oudemocráticos terão sua gênese nesse Espírito do povo, que, em suaeticidade, conjura formas de governo e de legislação. Pela eticidadedesenvolve-se o direito, surgem os cidadãos e os criminosos. O que ocorre no conceito de eticidade em Hegel é que,diferentemente de Kant, que operava uma separação entre direitoe moral, para Hegel a moral permanece no direito enquanto direitoprivado (incluindo-se o penal), no âmbito da comunidade organizadaenquanto sociedade civil, e o Estado não é subordinado ao direito,mas sim à política, pois o Estado só é visto juridicamente por umaConstituição quando reflete o Espírito do povo22. A definição desociedade, vista em termos abstratos por Hegel enquanto eticidade,leva o filósofo a considerar o direito em termos de direito privado(enquanto uma resultante da experiência social cotidiana de um povo),com seus desdobramentos em torno da propriedade, do contrato e dainjustiça (onde residirá o dano e o crime). Resta saber na filosofiahegeliana como será tratado o fenômeno do crime, e quais respostassociais serão dadas, sob um regime jurídico que Hegel consideravalegitimador de liberdades e não repressor destas.22 BOBBIO, op.cit., p.78,(RE) PENSANDO DIREITO 43

Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento MachadoO CRIME NA FILOSOFIA DE HEGEL Torna-se necessário saber quanto ao crime como o direito,enquanto uma expressão da eticidade no Estado Moderno, iráinfluenciar na legitimidade de um ordenamento formado na crençade que sua existência é fundamental para manter a autoconsciênciacoletiva da vontade de um povo. Para Hegel, em primeiro lugar, ao tratardo crime, seria necessário definir a violência em sua visão filosóficado mundo jurídico. A violência relaciona-se com a vontade, no aspectoda posse que reside no desejo e na necessidade de possuir o quese encontra fora do alcance do sujeito. Essa vontade de querer podeestar sujeita ao uso da força, uma vez que, para Hegel, todo homemestá sujeito a ser coagido, ou seja, tudo que ele deseja externamentecomo seu pode estar sujeito à dominação de outrem23. A vontade sóé livre quando está em si mesma, mas quando ela se dirige a algo,mediante o exercício da posse, ela poderá, naturalmente, encontrarobstáculos. Ora, se o exercício da vontade é o que caracteriza a liberdadee delimita a própria existência do ser, para Hegel, então, qualquerato que viole essa liberdade, atingindo essa vontade, pode ser vistoenquanto uma violência, e, posteriormente, como um crime. Destaforma, ergue-se o instituto da punição, pois, segundo Hegel, umaviolência é anulada com outra violência. A violência se torna jurídicaquando é empregada contra outra violência, no sentido de anulá-la e,assim, garantir a existência do ser, pela manutenção de sua liberdade.Coagir o coator torna-se, então, o maior exercício jurídico de proteçãoda liberdade no momento em que a violência estatal, por meio dapena, transforma-se em segurança e em garantia constitucional, e nãomais é vista como mera repressão do ordenamento jurídico. Daí que Hegel define como crime aquela primeira coaçãoviolenta que lesa a existência da liberdade em seu sentido concreto, naexteriorização da vontade em relação a algo que é desejado24. Ocorreque o crime e a quantidade de coação que será dirigida contra ele se23 HEGEL, 1997, p.83.24 HEGEL, ibid. p.85-87.44 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOdiferenciará de acordo com a quantidade e a qualidade de vontade queé lesionada. Desta forma, Hegel critica a legislação draconiana quepune todos os crimes com morte e ferocidade, exatamente porque adefinição do crime por um direito abstrato, e não por um direito imersosocialmente em sua eticidade, desconsidera a existência do elementoexterior da vontade, que tem sua realidade concreta e, é por si própria,a materialização da Ideia, visto como conceito filosófico caro aopensamento de Hegel, e como mola propulsora de toda historicidadeque marcará sua filosofia e sua concepção de desenvolvimento dasociedade e do direito, já que é pela Ideia que se manifesta o EspíritoObjetivo de um povo (a própria essência da comunidade). Para Hegel,“o crime que mais perigoso se apresentar nas suas característicasimediatas, esse é o que constitui a violação mais grave do ponto devista da qualidade e da quantidade25”. Existe, portanto, no pensamento de Hegel, uma distinção docaráter das violações do direito, que ensejarão a definição de crimes ounão. Aquela violação, que apenas fere a existência exterior da vontadeou a posse, trata de um dano que será abolido mediante uma coaçãosob a forma da indenização civil. Já o crime tem a peculiaridade deexistir não por ser a violação da vontade de alguém por coação àsua liberdade, mas sim por ser a vontade do criminoso em quererexteriorizar sua vontade por meio da subjugação da vontade do outro.O crime existiria por si só, por ser ele também uma exteriorização devontade, dando origem à outra vontade, a vontade de punição quevisa suprimir o crime. Acerca da teoria da pena, Hegel critica a doutrina clássica dodireito penal, acerca da malignidade do delito, que atribui ao crimeenquanto um mal, outro mal destinado ao criminoso, que seria a suasupressão por meio da pena (a pena vista também como um mal).Ora, o delito não é nem um bem nem um mal, e o autor do crimenão responde pela malignidade de sua conduta, mas sim pelo fatode ter cometido um injusto em detrimento do que é tido como justo.A definição do crime parte, portanto, por uma definição objetiva de25 HEGEL, id, p.86.(RE) PENSANDO DIREITO 45

Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento Machadojustiça, que foge aos conceitos abstratos que o jusnaturalismo tentouimpor ao direito. A pena é uma modalidade de justo que se manifestaenquanto vontade de supressão do injusto que é o delito26. Todo crimeenquanto vontade enseja, portanto, uma vontade de sua negação queé a pena, apenas alterando-se em sua forma exterior a gradação devalor entre o que pode ser uma pena mais severa e uma menos severa.O que vale para a pena em sua essência não é seu valor punitivo, massua existência enquanto uma vontade direcionada a outra vontade,que é a do criminoso. É nesse sentido que crime e pena transitam damoralidade subjetiva para a objetiva, no pensamento de Hegel.A MORALIDADE SUBJETIVA E A MORALIDADEOBJETIVA NA CONSTRUÇÃO DE UM DIREITOPENAL MÍNIMO Se a definição de crime depende da definição da natureza daviolação e da quantidade e da qualidade da vontade exteriorizada queé violada, entende-se que a visão do direito, no que tange à injustiçapara Hegel, visto no âmbito do direito privado, deixa opções limitadaspara o direito público, enquanto regulador de um ente estatal punitivo,no sentido de interferir nas liberdades, por meio da coação que sedestina a atingir violações. Em primeiro lugar, Hegel define a moralidade subjetiva comoassociada ao conceito de liberdade. Se a vontade é real por sersubjetiva, a liberdade só encontrará sua existência na exteriorizaçãoda vontade quando a liberdade se torna ato. Uma vontade moralé aquela se realiza por meio da ação. Só quando essa vontade seexterioriza é que existe ação. A vontade moral é uma vontade dada acerta finalidade e por isso ela se exterioriza27. A vontade do criminosoé, por exemplo, uma vontade de violação, direcionada a um objetoexterno que é a vontade do outro, manifestada pela liberdade que é26 Na teoria da pena, Hegel compara a pena ao próprio direito, ao afirmar que é por meio da pena que o direito à liberdade é garantido: “A pena com que se aflige o criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também o ser em si da vontade do criminoso, uma maneira da sua liberdade existir, o seu direito” (HEGEL, id., p.89).27 HEGEL, id., p.102.46 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011

O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA CONFORME A FILOSOFIA DO DIREITO EM HEGEL = CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA HEGELIANA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMOviolada pelo ato criminoso, assim como a vontade do proprietário dealgo pode se constituir em violação quando produz dano à vontade dooutro, quando se questiona, por exemplo, a posse de uma casa, deum terreno ou de um prédio. A subjetividade que identifica o sujeito éque se encontra presente na vontade, conferindo-lhe uma moralidadequando essa vontade se dirige a uma finalidade de um dever-ser daexigência. Isso implica dizer que tanto a vontade moral quanto a imoraltem seu fundamento na subjetividade28. Se a vontade é subjetiva, e daí resida a sua moralidade,a moralidade objetiva para Hegel corresponde a uma ideia deliberdade vivente, ou seja, uma vontade que, na consciência de si,atua externamente para manifestar sua realidade, apresentando umconteúdo fixo, externo, visível, acima da mera opinião e da vontadesubjetiva. É onde repousam as leis e instituições, segundo Hegel, queexistem em si e para si29. Essas leis e instituições não são estranhasao sujeito, pois sua substância está carregada da moralidadesubjetiva; mas ocorre que para existirem, enquanto realidade objetiva,elas manifestam a moralidade por meio de seus atos. O princípio dalegalidade seria, portanto, uma expressão da moralidade objetiva queganha seu conteúdo na subjetividade da vontade em compreendercertos atos como justos ou injustos. A moralidade objetiva dá origem ao costume, como uma segundavontade que é colocada no lugar da moralidade primitiva. Quando amoralidade ganha o contorno da juridicidade, o princípio da legalidadesurge desde a Lei das XII Tábuas entre os romanos até a Declaraçãodos Direitos do Homem e do Cidadão, na Revolução Francesade 178930. Se o princípio da legalidade enseja, nos termos de umasociedade democrática, uma igualdade formal, sob o aspecto penalentre homens livres (enquanto que a igualdade material só é concebidaem termos econômicos e sociais), ou seja, o mito de que todos os28 Conforme aduz Hegel: “O que é moral não se define, antes de tudo, como o oposto do que é imoral, nem o direito como o que, imediatamente, se opõe ao injusto, mas todo o domínio do moral e também do imoral se funda na subjetividade da vontade. (HEGEL, id., p.99).29 HEGEL, Id., p.142.30 FREITAS, Ricardo de Brito A. P. Princípio da legalidade penal e estado democrático de direito: do direito penal mínimo à maximização da violência punitiva. In: BRANDÃO, Claudio, CAVALCANTI, Francisco, ADEODATO, João Maurício Adeodato (coord.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.366-375.(RE) PENSANDO DIREITO 47

Fernando Antonio da Silva Alves - Dênis Alberto Nascimento Machadohomens são igualmente punidos por seus atos, no caso de violaçãoda lei, isto se dá por residir o âmbito da legalidade na subjetividadede uma moral, que tende a conceber formalmente as relações doshomens entre si, ainda sob a lógica do direito privado, a que se remeteHegel, em que juridicamente os homens se veem entre si enquantoproprietários ou partes de um contrato. Para Hegel, quando o direito contra o crime assume a forma desimples vingança, ele apenas existe enquanto uma vontade em si (noâmbito da moralidade subjetiva) e, portanto, ainda não está revestido docaráter propriamente dito do jurídico, que estaria relacionado à esferado justo31. Se a lei penal deve ser imposta para todos, independentede sua origem, estado econômico, sexo, raça ou profissão, isto se dáno âmbito de uma moralidade que se exteriorizou e que revelou umavontade punitiva que não discrimina em função da condição social,mas tão somente porque pensa a pena como uma realidade objetivanatural, decorrente da existência de outra realidade, que é o crime. Épor isso que a vingança permanece presa aos limites da subjetividade,sob seu aspecto penal, enquanto que a punição, ao contrário, pelalegalidade extravasa os contornos da moralidade objetiva, pois o atode punir configura em sua racionalidade o exercício da liberdade deuma vontade autoconsciente, manifestada pelo Espírito Objetivo deum povo, materializado por meio de sua legislação. A legalidade enquanto princípio é a expressão realista damoralidade objetiva no aspecto penal, principalmente porque emrelação ao crime, a lei é experienciada como algo desejável e comoum ditame da vontade exteriorizada, porque sob o prisma da eticidade,o caminho da lei para o indivíduo é considerado um caminho delibertação32. Se o crime surge como um embaraço à liberdade pelaexteriorização da vontade do criminoso, a lei surge como um freio àsubjetividade desenfreada pela violação da norma e, ao suprimi-lo, alei restaura uma liberdade ameaçada em sua existência pela coação31 HEGEL, op.cit. p.196.32 HONNET, Axel. Sofrimento de indeterminação - uma reatualização da filosofia do direito de Hegel. Tradução Rúrion Soares Melo. São Paulo: Esfera Pública, 2007, p.98.48 Ano 1 • n. 2 • jul/dez. • 2011


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