HED OROZIMBO SOARES BRITTES somente se a proibição de diferenciação ou equiparação arbitrária no interior do sistema em questão é tida em conta”.74 A preservação do princípio da igualdade tem como parâmetro a concepção de justiça no âmbito do sistema: “é examinado se a determinação legal está em uma contradição interna com a concepção global do sistema de regulação ao qual ela pertence; se esse é o caso, então está nisso um indício para uma violação do princípio da igualdade”.75 Na jurisprudência recente do tribunal, o significado do princípio da igualdade geral, como proibição de arbitrariedade, é ampliado progressivamente por elementos do princípio da proporcionalidade: segundo o objeto da regulação e característicos de diferenciação, traça, segundo isso, o artigo 3º, alínea 1, da Lei Fundamental, como resulta do seu texto e sentido, assim como da sua conexão com outras normas constitucionais, à liberdade conformadora do legislador, limites diferentes, que se estendem da mera proi- bição de arbitrariedade até uma vinculação severa a requisitos de proporcionalidade. A aquela corresponde, no exame judicial- constitucional, uma densidade de controle escalonada. Se, como critério, somente a proibição de arbitrariedade entra em consi- deração, então uma infração contra o artigo 3º, alínea 1, da Lei Fundamental, somente pode ser comprovada se a não-objetividade da diferenciação é evidente. Ao contrário, controla o tribunal, em regulações que tratam de uma maneira distinta grupos de pessoas ou repercutem eficazmente no exercício de direitos fundamentais, em particular, se entre os grupos comparados existem diferenças de tal índole e tal peso que elas possam justificar o tratamento desigual. Aqui é efetuado, portanto, um exame mais severo, como, também, de costume, a liberdade conformadora do legislador, sem- pre acentuada pelo tribunal, experimenta restrições diferentes.76 74 Idem, ibidem. 75 Idem, p. 336-337. 76 Hesse, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Ale- manha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 337.100 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
O DIREITO À IGUALDADE NA LEI FUNDAMENTAL ALEMÃ Segundo Hesse, a expressão arbitrariedade, de acordo comas decisões do Tribunal Constitucional Federal, “não é questão damotivação subjetiva, senão da desproporcionalidade objetiva de umamedida em relação à situação efetiva, à qual ele vale”.77 O princípioda igualdade é um dos suportes fundamentais da ordem jurídico-cons-titucional, cuja singularidade e importância evidencia-se no contextocomo “elemento essencial da abertura da Constituição [...], ao eleremeter a critérios não positivados e, desta maneira [...], converte-seem porta de entrada pela qual a realidade social, valorizada positi-vamente, penetra diariamente na normatividade estatal”.78 Sobre a proibição de arbitrariedade, Heck manifesta o seguinte: O art. 3º, alínea 1, da Lei Fundamental, contém uma proibição de arbitrariedade, que vincula o legislador e, por conseguinte, impõe limites à sua apreciação. A proibição de arbitrariedade está com- preendida no Princípio do Estado de Direito, configurando-se como um preceito estatal-jurídico geral. Esse limite significa que na seleção das situações, que serão reguladas, deve-se proceder de forma apropriada, i. e., segundo pontos de vista que resultem da peculiaridade dos fatos a serem regulados, portanto, não de modo arbitrário. Ela interdita tratamento desigual arbitrário de fatos iguais no essencial.79 O princípio da igualdade geral é um dos direitos fundamentaisdo indivíduo, resguardado pelo artigo 3º, alínea 1, da Lei Funda-mental, “mas vale, mais além, como preceito constitucional evidente,77 Idem, p. 337-338.78 Idem, p. 338.79 Heck, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos prin- cípios constitucionais. Contributo para uma compreensão da Jurisdição Constitu- cional Federal Alemã. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 226.(RE) PENSANDO dIREITO 101
HED OROZIMBO SOARES BRITTES não-escrito, para todos os setores e para todos os grupos de pessoas. O artigo 3º, alínea 1, da Lei Fundamental, ordena tratar todas as pessoas, diante da lei, como iguais”.80 Quanto ao sentido do preceito da igualdade geral, leciona Heck: Uma parte essencial do sentido do preceito da igualdade geral está em que nem todas as diversidades reais devem conduzir a tratamentos diferentes no direito, senão apenas tais desigualda- des reais, às quais pertencem, por considerações de Justiça e de adequação, também, para o Direito, significações distintas. Decidir acerca disso é, de primeiro, questão do legislador.81 Destaca-se como missão primeira do legislador avaliar sob quais parâmetros objetivos “dois setores da vida são reciprocamen- te tão iguais que tratamento igual é forçosamente indicado, quais elementos fáticos, por sua vez, são tão importantes que a sua diver- sidade justifica um tratamento desigual”.82 O legislador deve ser cri- terioso ao determinar as situações da vida indispensáveis de serem reguladas para receberem tratamento, “no direito, como iguais ou como desiguais decide, em essência, o legislador, que ainda é funda- mentalmente livre para estabelecer as características do par com- parado, que devem ser determinantes para a igualdade ou para a desigualdade da regulação legal”.83 80 Heck, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos prin- cípios constitucionais. Contributo para uma compreensão da Jurisdição Constitu- cional Federal Alemã. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 225. 81 Heck, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos prin- cípios constitucionais. Contributo para uma compreensão da Jurisdição Constitu- cional Federal Alemã. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 225. 82 Idem, ibidem. 83 Idem, ibidem.102 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
O DIREITO À IGUALDADE NA LEI FUNDAMENTAL ALEMÃ O Tribunal Constitucional Federal, ao lado da proibição dearbitrariedade, requer a observância do princípio da proporcionali-dade. Em decorrência da igualdade geral “resultam limites distintos,de acordo com a matéria à regulação e características diferenciais,que se estendem desde a mera proibição de arbitrariedade até umaestrita vinculação às exigências de proporcionalidade”.84 O princípioda igualdade de todos perante a lei proíbe “um tratamento diferen-cial injustificado, o legislador está sujeito, no tratamento diverso degrupos de pessoas, regularmente a uma vinculação estrita”.85 Essa vinculação estrita não está, todavia, limitada a diferenças relativas a pessoas. Vale, antes, também quando um trato distinto de fatos efetua mediatamente um tratamento diferencial de pes- soas. Em diferenças relativas a condutas, a medida dessa vincu- lação depende de até que ponto os afetados estão na condição de, por meio de sua conduta, influir na realização das características, segundo as quais se diferencia. Afora, estão assentados ao espaço de conformar do legislador limites tão mais estreitos quanto mais o tratamento diferencial de pessoas ou de fatos pode atuar de modo prejudicial sobre o exercício de liberdades protegidas como direito fundamental.86 A Lei Fundamental, no que tange às decisões valorativas espe-ciais, limita o espaço do legislador de “determinar o que deve ser‘igual’ ou ‘desigual’, na medida em que proíbe distinções que iriam84 Heck, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos prin- cípios constitucionais. Contributo para uma compreensão da Jurisdição Constitu- cional Federal Alemã. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 226.85 Idem, p. 227.86 Idem, ibidem.(RE) PENSANDO dIREITO 103
HED OROZIMBO SOARES BRITTES contrariar a vontade do legislador constituinte, expressa na decisão valorativa, para conceder a um determinado setor da vida ou relação de vida a sua particular proteção”.87 A proibição de arbitrariedade se estende às atividades admi- nistrativas e judiciárias. Quanto às autoridades administrativas, compreende não só “às suas decisões, mas também à formação e ao desenvolvimento do procedimento administrativo”88. Em relação ao poder Judiciário, “o preenchimento da margem de apreciação e de juízo, que lhe foi concedida, encontra na proibição de arbitrariedade o seu marco. Isso vale tanto na interpretação e na aplicação do direito material como na gestão do direito processual”.89 O preceito da igualdade geral vincula o legislador na medida em que “ele não deve tratar com arbitrariedade nem o essencialmente igual desigualmente nem o essencialmente desigual com igualdade”.90 O mesmo critério se estende ao poder Executivo, na condição de nor- matizador, “ainda quando a sua margem de conformar seja menor, porque situada no espaço delimitado pela norma legal autorizadora (art. 80, alínea 1, da Lei Fundamental)”.91 O Executivo deve atuar dentro dos parâmetros do princípio da igualdade, sem manifestar valorações desautorizadas; “não pode efetuar nenhuma diferenciação se essa significaria, para além dos limites da autorização formal e materialmente válida, uma correção do legislador”.92 O princípio da 87 Idem, p. 228-229. 88 Heck, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos prin- cípios constitucionais. Contributo para uma compreensão da Jurisdição Constitu- cional Federal Alemã. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 229. 89 Idem, ibidem. 90 Idem, ibidem. 91 Idem, p. 229-230. 92 Idem, p. 230.104 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
O DIREITO À IGUALDADE NA LEI FUNDAMENTAL ALEMÃigualdade geral estende-se aos poderes Executivo e Judiciário, namedida em que ele “vincula-os como direito auto-aplicável (art. 1º,alínea 3, da Lei Fundamental)”.93 Segundo Heck, o preceito geral da igualdade é violado pelolegislador, nas seguintes situações: a) quando um fundamento razoável, resultante da natureza da coisa ou de outro modo objetivamente elucidativo, não se deixa encontrar para a diferenciação ou para o tratamento igual legal, em suma, quando a determinação precisa ser caracterizada como arbitrária; b) quando o tratamento desigual dos fatos regulados não é mais compatível com um modo de ver orientado por idéias de Justiça, ou seja, quando falta um documento elucidativo para a diferen- ciação legal; c) quando a diferenciação realizada por uma lei não se deixa recon- duzir a um fundamento razoável ou de outra maneira elucidativo; d) quando um grupo de destinatários normativos, em comparação com outros destinatários normativos, é tratado de forma diversa, embora não haja, entre ambos os grupos, nenhuma diferença de tal arte e de tal peso que pudesse justificar o tratamento distinto; e) quando o legislador falta, ou omite, à consideração a igualdades ou a desigualdades reais das relações da vida a serem ordenadas, as quais são tanto significativas que precisam ser observadas em um modo de ver orientado por concepções de Justiça.94 Quanto às possíveis violações do princípio da igualdade pelopoder Executivo, ocorre somente “quando são desatendidas legiti-midades que estão na própria matéria, e as representações de justi-93 Idem, ibidem.94 Heck, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos prin- cípios constitucionais. Contributo para uma compreensão da Jurisdição Constitu- cional Federal Alemã. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 231-232.(RE) PENSANDO dIREITO 105
HED OROZIMBO SOARES BRITTESça gerais consolidadas na coletividade, há uma violação do preceitoda igualdade geral”.95 Com relação ao poder Judiciário, o “preceitoda igualdade geral já não está então violado quando a aplicação dodireito objetada ou o procedimento para aquilo são defeituosos”.96Acrescente-se que o princípio da igualdade é desrespeitado “quandotribunais, no caminho da interpretação de prescrições legais, chegama uma diferença semelhante àquela vedada ao legislador”.97Considerações Finais Verificou-se a importância de estabelecer a distinção entreum direito geral de igualdade dos direitos especiais. Entre os direi-tos fundamentais que tutelam a igualdade destaca-se o que prevê aigualdade de todas as pessoas perante a lei. Este direito, no entan-to, foi interpretado levando-se em consideração apenas a igualdadena aplicação da lei, vinculando apenas os órgãos aplicadores, semprever-se, num primeiro momento, a responsabilidade do legisladorpela previsão legal da igualdade. O sentido da igualdade não se concretiza apenas na aplicaçãoda lei, é algo mais complexo, compreendendo a delimitação do alcancede conceitos vagos, a ambiguidade e espaço valorativo amplo. Ao seconstatar essas dificuldades, torna-se relevante considerar que asnormas jurídicas devem ser observadas e incidirem naqueles casosque espelhem a sua previsão e não naqueles que não as refletem. O 95 Idem, p. 233. Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011 96 Idem, ibidem. 97 Idem, ibidem.106
O DIREITO À IGUALDADE NA LEI FUNDAMENTAL ALEMÃTribunal Constitucional Federal Alemão, em suas decisões, destacao dever de o legislador estar vinculado ao princípio da igualdade detodos perante a lei na formulação da legislação. A Lei Fundamental Alemã garante a igualdade jurídica formal,como, também, a de sentido material. A igualdade jurídica formal éa realização do direito sem estabelecer discriminação em relação aninguém. A igualdade jurídica material prevê que tudo que é igualdeve ser tratado de forma igual, de forma que não ocorra um coman-do desigual de fatos iguais, enquanto que situações iguais devemser orientadas por regra igual. O problema de se estabelecer quedeterminados fatos são iguais ou desiguais diz respeito à essencia-lidade ou não essencialidade das características dos fatos cotejados;a igualdade ou não dos fatos depende da ótica em que a comparaçãoé projetada. Em complemento ao princípio geral de igualdade, a Lei Funda-mental prevê os direitos especiais de igualdade. Entre esses direitosestá o de igualdade eleitoral. Como decorrência desta, apresenta-sea igualdade de oportunidades dos partidos políticos, estruturando,assim, um dos alicerces da ordem democrática, que é a proibição dadiferenciação jurídica entre maioria e minoria. Ainda no que concerne aos direitos especiais de igualdade, aLei Fundamental proíbe a discriminação entre homens e mulheres,inclusive no âmbito familiar, prevendo-lhes os mesmos direitos. Aproibição da diferenciação em razão do sexo se estende para outrosespaços, como proibição de discriminação em virtude da linhagem,raça, língua, pátria, fé, opiniões religiosas ou políticas. O princípio da igualdade geral, que é um dos fundamentos doEstado Social de Direito, requer dos poderes do Estado a incumbên-cia de levar em consideração para uma equiparação ou diferenciaçãocritérios justos, no sentido preconizado pelo entendimento do que é(RE) PENSANDO dIREITO 107
HED OROZIMBO SOARES BRITTESjusto, em que pese, a cada momento histórico, se projetarem entendi-mentos diferentes sobre a ideia de justo. Mesmo assim, se em razãode diferentes concepções deixar-se de observar o princípio da igual-dade geral, ocorre o afastamento da ideia de justiça e a regulaçãopassa a ser arbitrária.ReferênciasALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Traduzidopor Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Constitucio-nales, 1997. (Tradução de: Theorie der Grundrechte).HECK, Luís Afonso. O tribunal constitucional federal e o desenvolvi-mento dos princípios constitucionais. Contributo para uma compre-ensão da jurisdição constitucional federal alemã. Porto Alegre: SérgioAntônio Fabris, 1995.HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da RepúblicaFederal da Alemanha. Traduzido por Luís Afonso Heck. Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris, 1998. (Tradução de Grundzüge dês Verfassun-gsrechts der Bundesrepublik Deutschland).SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Traducido por FranciscoAyala. Madrid: Alianza, 1996. (Tradução de Verfassungslehre). Recebido em: 30/8/2010 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011 Aprovado em: 28/10/2010108
Constituções1967-1969 e 1988:Entre Atos Institucionais,Medidas Provisóriase Emendas Constitucionais(o que teria mudado, se mudou) Gilberto Kerber1ResumoO objetivo deste artigo é confrontar a Constituição de 1967-1969 com a Carta Magna de 1988,especialmente no que se refere à disponibilidade dos atos institucionais pelo governo revolucionário(1964-1985), das emendas constitucionais e das medidas provisórias dos governos democratica-mente constituídos a partir de 1986, apresentando suas diferenças ou aproximações, sem deixar deconsiderar as peculiaridades históricas e sociais de cada época.Palavras-chave: Atos institucionais. Constituição. Democracia. Medidas Provisórias.1 Graduado em Direito. Especialista em Direito. Mestre em Direito pela UFSC. Pro- fessor. Coordenador do curso de Direito CNEC-Iesa – Santo Ângelo-RS. gilberto. [email protected](RE) PENSANDO dIREITO • Editora Unijuí • ano 1 • n. 1 • jan./jun. • 2011 • p. 109-134
1967-1969 and 1988 Constitutions: Institutional Acts between the Provisional Measures and Constitutional Amendments (which would have changed, moved)AbstractThe objective of the article is to collate the Constitution of 1967-1969 with the Constitution of 1988,especially as for the availability of the institucional acts for the revolutionary government (1964-1985)and of the emendations constitutional and the provisional remedies of the governments democraticallyconstituted from 1986, showing differences in their approaches and, while considering the social andhistorical peculiarities of each season.Keywords: Institutional acts. Constitution. Democracy. Provisional Measures.
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988 O trabalho de pesquisa sobre o tema surgiu em razão da apre-sentação de trabalho de conclusão da Graduação do curso de CiênciasJurídicas e Sociais e do surgimento da divergência entre professoresde uma banca, em que, de um lado estavam os que entendem seruma só Constituição a de 1967 e a de 1969, ao passo que defendemosa existência de duas Constituições, ou seja, a Constituição de 1967e a de 1969. Assim, contamos desde nossa Independência com oitoConstituições (e não sete, como sustentam alguns), das quais quatroforam promulgadas e quatro foram outorgadas. Na verdade a Constituição de 69 tem aspectos da Constituiçãode 67 pelas razões naturais de serem oriundas do então movimentomilitar ou revolucionário de 1964. Sua aplicabilidade, entretanto,mais se deu em virtude dos Atos Institucionais, inclusive culminandocom o conhecido Ato Institucional nº 5, um dos mais temidos e querepresentou um retrocesso naquele momento na vida nacional, poisse esperava que o movimento militar cumpriria com a reorganizaçãoda sociedade em seus aspectos mais legítimos, “a democracia” e oimediato retorno das forças civis ao comando nacional, mas nadadisso ocorreu, pois o país foi entregue aos militares conservadores eque de certa forma estavam descomprometidos com a efetiva demo-cratização do país. Cabe salientar que os militares envolvidos diretamente nomovimento de 64 tinham o compromisso da “democracia”, mas pelosfatos e pelos reflexos dos acontecimentos políticos dos anos 50 etambém pelos “grupos de interesses” o Congresso foi fechado paraque fosse tornada realidade os desejos e os interesses de parcela dosmilitares. Sob o manto de diversas alegações, entre elas de defesada sociedade brasileira, da democracia e do território, tivemos anosduros de ditadura, com fechamento de diversos órgãos, simplesmentelhes tirando direitos ou lhes impondo censura implacável.(RE) PENSANDO dIREITO 111
GILBERTO KERBER O objetivo do texto é fazer uma análise do discurso da defesa dos AIs produzidos pelo “regime militar de 1964”, os quais tinham força pelo que dispunha a Constituição de 1967 e especialmente a de 1969, de aplicabilidade imediata, sem qualquer discussão pelos parlamentares do Senado ou da Câmara dos Deputados, comparati- vamente com as Medidas Provisórias aplicadas na forma como são usadas e em grande escala por todos os governos pós-Constituição de 1988. Por isso cabe indagar: O que temos de diferente dos anos 30, dos anos 50, dos anos 70 e dos anos 90? Especificamente nos anos 70 tínhamos um governo militar que depois do golpe militar podemos afirmar que ocorreu um golpe dentro do golpe, pois se mantiveram no poder via eleição indireta,2 sempre editando normas que diziam serem de interesse da sociedade, mas como se viu, muitas normas tiveram aspectos negativos para o avanço democrático nacional, como no caso da lei da censura. A partir da Constituição de 1988 poderíamos afirmar que se aproximam as mesmas facetas, apenas com nova nomenclatura, sob novos “direitos humanos”, mas, de forma geral, com bastante seme- lhança, até mesmo no campo político-partidário. No governo militar tínhamos apenas Arena e MDB, o denominado bipartidarismo. Na era democrática temos dezenas de partidos, o denominado pluripartidaris- mo, porém sob o argumento da governabilidade não mais se tem o obje- tivo de chegar ao poder, mas de estar no poder. Assim, nos encaminha- mos para uma bipolarização: de um lado diversos partidos e de outro lado outro grupo de agremiações políticas. No RS, particularmente, há um movimento de uma terceira via, mas sem trazer novidades, pois 2 O presidente era eleito pelo Congresso Nacional; os governadores eram escolhidos pelos deputados estaduais e os prefeitos eram nomeados pelos governadores.112 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988os integrantes são os mesmos que estão no plano nacional vinculadosa um ou ao outro grupo de partidos. Assim sendo, não surgem novasideias, tudo permanece como sempre, apenas sob novos termos. Desta forma, assim como eram editados os Atos Institucionais,agora são os planos ou projetos editados por Medidas Provisórias, inclu-sive o aumento do salário mínimo e dos aposentados. A sistemáticautilizada é o mecanismo de força e imposição, sem qualquer discussão,pois se normatiza uma suposta igualdade via Medidas Provisórias.Constituição 1967,Emenda Promulgada, Panorama A Constituição de 1967 foi semioutorgada. Foi elaborada peloCongresso Nacional, sendo que o Ato Institucional nº 4 atribuiufunção de poder constituinte originário, ou seja, “inicial, ilimitado,incondicionado e soberano”.3 O Congresso Nacional, transformadoem Assembleia Nacional Constituinte, com os membros da oposiçãoafastados, elaborou sob pressão dos militares uma Carta Constitu-cional que legalizasse a ditadura militar de 1964. A Constituição de 1969 foi “promulgada” pela junta militar, nouso de suas atribuições, as quais lhes eram conferidas pelo artigo 3º doAto Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o §1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Um dado interessante a registrar sobre a promulgação é queo artigo 1º da Emenda determina as alterações na Constituição de1967, e se inicia pela expressão “O Congresso Nacional, invocandoa proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte Constituição daRepública Federativa do Brasil”.3 Disponível no site <www.senado.gov.br>. 113(RE) PENSANDO dIREITO
GILBERTO KERBER No comparativo, podemos citar que na era democrática o gover- no apresenta emenda constitucional e o Congresso aprova, como no caso da reeleição, embora se fosse editada-publicada pesquisa da épo- ca, a grande maioria dos congressistas era contrária a tal aprovação, mas foi aprovado. Muitos desses congressistas reeleitos, porém, nada fizeram para restituir ao estágio originário de não reeleição, tendo a maioria no Congresso. Cabe salientar que o militar Arthur da Costa e Silva em nome da Junta assumiu o governo em 15 de março de 1967, tendo se afas- tado em 31 de agosto de 1969 por motivos de saúde. Destacam-se no governo Costa e Silva a criação do Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Con- vém, também, observar que, no início de seu governo, passou a vigo- rar o cruzeiro como moeda de circulação entre a população. Em discurso na Câmara Federal, o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), exortou o povo a não comparecer às festividades do dia da Independência. Os militares se sentiram ofendidos, exigiram sua punição, mas e a Câmara dos Deputados, contudo, não aceitou a exigência do Exe- cutivo. Em represália, a 13 de dezembro de 1968 o então ministro da Justiça, Gama e Silva, apresentou ao Conselho de Segurança Nacio- nal o Ato Institucional nº 5, que entregou o poder político do país às forças mais retrógradas e violentas da história recente. Comparativamente, na era militar se discutia a criação da Funai e do Mobral, hoje se debate a delimitação das terras dos Tapa- jós e os meios para tentar erradicar o analfabetismo, que aumentou sensivelmente no país.114 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988 O período mais violento, no entanto, estendeu-se de 31 de agos-to a 30 de outubro de 1969, quando a Junta Militar integrada pelosministros da Marinha, Augusto Rademacker; do Exército, Lyra Tava-res, e da Aeronáutica, Márcio de Souza e Melo, assumem o poder eem ato contínuo ocorre o fechamento do Congresso e é “promulgada”a Emenda nº 1 de 1969. Na sequência, em 30 de outubro de 1969 assume a Presidênciao militar Emílio Garrastazu Médici que governou até 15 de março de1974. Seu governo ficou conhecido como “os anos negros da ditadura”. Nesse período o movimento estudantil e o movimento sindi-cal foram contidos e silenciados pela repressão policial. Foi quandoocorreu a maior incidência de desaparecimentos políticos e a torturatornou-se prática comum da Doi-Codi, órgão governamental respon-sáveis por anular os denominados esquerdistas. Num exercício de aproximação, constatamos a pouca ação domovimento estudantil e dos sindicatos, embora inexista a repressão,mesmo assim não se manifestaram. Como conta a História, a Constituição de 1969 foi “promulgada”pela Junta Militar, no uso de suas atribuições conferidas pelo artigo3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinadocom o § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de1968. Deve ser ressalvado um dado interessante sobre a promulgaçãoda Constituição de 1969: o artigo 1º da Emenda, o qual determinavaas alterações na Constituição de 1967, inicia-se com a expressão “OCongresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promul-ga a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”. Em maio de 1969, pelo Decreto-Lei 574 o governo proibiu asinstituições educacionais de promoverem a redução de suas vagas,outorgando-lhes, no entanto, o direito de, sem prejuízo do total devagas existentes, promoverem a sua redistribuição pelos cursos.(RE) PENSANDO dIREITO 115
GILBERTO KERBER A redistribuição dos cursos determinou a organização da Rees- truturação das Universidades e Estabelecimentos Isolados de Ensino Superior, com autonomia universitária nos aspectos didáticos, cientí- ficos, financeiros e patrimoniais. A Lei 6.420, de 3 de junho de 1977, altera o artigo 16 da lei 5.540/68 em que se determina que as escolas oficiais e as universidades públicas teriam suas direções escolhidas via lista sêxtupla. Comparativamente o governo federal aumenta sua fiscaliza- ção sobre o ensino, especialmente no ensino superior, ao qual faz exigências, corretas, mas por outro lado cria novas universidades federais sem qualquer planejamento de estrutura própria, apresen- tando como grande transformação do ensino superior no país, embora tenha dificuldades imensas de resolver o problema educacional na sua amplitude. Atos Institucionais – Decretos O regime militar, assim como o governo de Getúlio Vargas no Estado Novo, amparam-se em cartas autoritárias, porém preferiram governar por decreto. Por isso, o fim do Estado Novo para a busca da democracia plena não suportou muito tempo, pois as conspirações eram permanentes entre os anos de 1950 e 1965. A Constituição de 1967, em si, quase não vigorou, mas tão ou mais importantes do que ela foram as complementações e modifica- ções, tanto por meio de emendas quanto por Atos Institucionais, que foram 17 ao todo até o fim dos governos militares. Getúlio Vargas fez uma Constituição e não a respeitou, não agiram diferente os governantes do regime miltiar de 1964 e tampou- co os idealizadores e constituintes de 1988, pois quando outorgaram a forma e a emissão de Medidas Provisórias a previsão dos constituin-116 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988tes era que o país passaria a ter um sistema parlamentar de governo,mas no final da redação da Carta, optaram pelo sistema de governopresidencialista, e não tendo tempo de alterar as regras no seu con-texto geral, determinaram que mesmo em curto espaço de tempo nãofoi possível governar levando às constantes emendas constitucionais,que já somam mais de 50, descaracterizando o conteúdo original daCarta Magna brasileira. Vamos por partes. Primeiramente dá-se enfoque aos Atos Ins-titucionais e na sequência para as Medidas Provisórias, as EmendasConstitucionais e alguns de seus efeitos, uma vez que estamos reali-zando um comparativo entre governos ditos “autoritários” e governosditos “democráticos”, da década de 30 até 1985 no Brasil. Mais especificamente entre 1964 e 1968 o governo militardecretou os seguintes Atos Institucionais: o primeiro ato, denomina-do de AI-5, teve como propósito a cassação de políticos e cidadãos queestavam na oposição e com uma oposição fragilizada pela cassaçãode diversos líderes são marcadas eleições, as quais foram realizadasem 1965. O segundo ato, denominado de Ato Institucional nº 2, mar-cou pela extinção dos partidos existentes e estabeleceu, na prática, obipartidarismo, criando o partido do governo e o partido da oposição,representados pelas siglas Arena e MDB. O terceiro ato, denominado de Ato Institucional nº 3 restrin-giu a extensão das eleições, estabelecendo eleições indiretas para osgovernos dos Estados, para os prefeitos das capitais e para os muni-cípios que foram escolhidos como área de segurança nacional, muni-cípios em sua grande maioria fronteiriços com os países do Prata.(RE) PENSANDO dIREITO 117
GILBERTO KERBER O quarto ato, denominado de Ato Institucional nº 4 determinou ao Congresso Nacional votar o projeto de Constituição. Já com o Ato Institucional nº 5 – durante o governo de Arthur da Costa e Silva, que ocorreu entre 15 de março de 1967 e finalizou em 31 de agosto de 1969 – o país conheceu o mais cruel de seus Atos Institucionais, na forma como se procedeu com a sociedade. O Ato Institucional nº 5, ou simplesmente como ficou mais conhecido – AI 5 –, que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, foi o mais abrangente e autoritário de todos os Atos Institucionais, e na prática revogou os dispositivos constitucionais de 1967, além de reforçar os poderes discricionários do regime militar. O AI5 vigorou até 31 de dezembro de 1978. A Constituição Brasileira de 1967, que foi votada em 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor no dia 15 de março daquele ano, foi elaborada pelo Congresso Nacional, por força do Ato Institucional nº 4 que lhe atribuiu função de poder constituinte originário, “poderes ilimitados e soberanos”, para elaborar a nova Carta Magna do país. Desta forma o Congresso Nacional, transformado em Assem- bleia Nacional Constituinte e com os membros da oposição afastados, elaborou, sob pressão dos governantes (leia-se poder Executivo), uma Carta Constitucional semioutorgada que legalizou e institucionalizou o regime militar, consequente da Revolução de 1964. Cabe ressaltar que apenas em 6 de dezembro de 1966 foi publi- cado o projeto de Constituição redigido por Carlos Medeiros Silva, ministro da Justiça, e por Francisco Campos. Da forma como foi publicado houve protestos por parte da oposição então MDB4 e da 4 MDB – Rebatizado com o avanço democrático para Partido do Movimento Democrá- tico Brasileiro – PMDB.118 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988Arena,5 em 7 de dezembro o governo editou o AI-4, convocando oCongresso Nacional de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de1967 para discutir e votar a nova Constituição. Nesse período o governo legislava com Decretos-Leis sobretemas como segurança nacional, administração e finanças. Por fim,no dia 24 de janeiro de 1967 foi aprovada, sem grandes alterações, anova Constituição, que incorporava as medidas já estabelecidas pelosAtos Institucionais e Complementares, com isso legitimando todosos atos do Executivo. Em 15 de março de 1967 o governo divulgou o Decreto-Lei 314,que estabelecia a Lei de Segurança Nacional. A necessidade da elaboração de nova Constituição com todosos Atos Institucionais e Complementares incorporados, foi para quehouvesse a reforma administrativa brasileira e a formalização legis-lativa, pois a Constituição de 18 de setembro de 1946 vinha con-flitando desde 1964 com os atos e a normatividade constitucional,denominada institucional. Atualmente, em contextos políticos e históricos diferentes, con-vivemos com situação que pode se aproximar, e comparativamente,das Emendas Constitucionais. Ao longo dos últimos anos nada dediferente ocorreu, pois inicialmente foram editadas Medidas Provi-sórias e depois as transformavam em PEC, para serem incorporadasà Constituição Federal, legitimando os atos do Executivo e quandodeclarados inconstitucionais, pelo Judiciário, não havia intimidação,novamente eram recriadas, porém com as inovações presentes nasdecisões dos Tribunais.5 Arena – Rebatizada como PSD – PPS e por fim partido Progressista – PP.(RE) PENSANDO dIREITO 119
GILBERTO KERBER A Constituição de 1967 foi a sexta do Brasil e a quinta da República. Buscou institucionalizar e legalizar o regime militar, aumentando a influência do poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário e criando, desta forma, uma hierarquia constitucional centralizadora. As emendas constitucionais, antes atribuições do poder Legislativo, com o aval do poder Executivo e Judiciário, pas- saram a ser iniciativas únicas e exclusivas dos que exerciam o poder Executivo, ficando os demais relegados a meros espectadores das aprovações dos pacotes, como seriam posteriormente denominadas as emendas e legislações baixadas pelo presidente da República. No contexto histórico nada de novo, tudo velho, apenas na forma e utili- zação das palavras, como já exemplificamos as constantes alterações das siglas partidárias, mas sempre os mesmos candidatos, os mesmos líderes políticos, e quando se fala em renovação, ela inexiste, pois o que existe é a troca de cargos. Outro dado histórico e que se segue 30 anos depois do golpe do Estado Novo, o Brasil ganhou uma nova Constituição autoritária. Desta vez, nos moldes exemplares de ditadura latino-americana. A Constituição de 1967 do Regime Militar, no entanto, foi alterada pelo Ato Institucional nº 5 (1968) e pela Emenda nº 1 de 17 de outubro de 1969. O marechal Humberto de Alencar Castelo Branco assumira a Presidência após o golpe de abril de 1964, que derrubou o governo de João Goulart,6 que havia assumido o governo após a renúncia de Jânio Quadros. 6 João Goulart era vice-presidente de Jânio Quadros, que renunciou. João Goulart assumiu, mas tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, ou seja, tivemos um período de 1961-1963 de parlamentarismo no Brasil, que foi revisto em Plebiscito Nacional que refez o sistema Presidencialista. O governo de Goulart não durou muito tempo, ocorrendo o golpe militar de 64.120 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988 Castelo Branco, ligado a um grupo de tendências mais progres-sistas da Escola Superior de Guerra, pretendia realizar um governode transição, com mandato-tampão até o ano de 1966, abrindo cami-nho para o retorno de governante civil, mais especificamente para umcivil que representasse setores que apoiaram o golpe de 1964, o qualseria eleito presidente da República. Os nomes indicados inicialmenteseriam Carlos Lacerda7 ou Magalhães Pinto8. Ressalta-se que a “linha dura”, uma corrente militar de posiçãomais conservadora e mais nacionalista que a corrente denominada“castelista”, representada por Costa e Silva, pressionou Castelo Bran-co, que acabou cedendo e extinguiu os partidos políticos, cancelou aseleições presidenciais de 1965, estendeu seu mandato até 1967 e fezaprovar a Constituição de 1967, frustrando os planos de Lacerda edas demais lideranças civis que integraram o Golpe de 1964. Os mili-tares sinalizaram que queriam ficar mais tempo no poder e prepara-vam o terreno para a aniquilação definitiva da “ameaça vermelha”. Desta forma, embora se escreva que o golpe de 1964 foi mili-tar, não se pode deixar de destacar que os militares obtiveram apoiode civis importantes da vida nacional, como de políticos de todosos Estados, de instituições como a Igreja, entre outras. Assim, nãoforam apenas os militares os golpistas de 1964, mas grande parcelade lideranças civis da época, que incluisve integraram o partido dogoverno, a Arena, ou estavam a lhe orientar, como no caso da própriaelaboração da Constituição de 1967, que teve nomes consagrados nomeio civil brasileiro.7 Lacerda, político de São Paulo. 1218 Pinto, político de Minas Gerais.(RE) PENSANDO dIREITO
GILBERTO KERBER Elaboração da Carta de 1967 O texto da Constituição de 1967 foi elaborado pelos juristas de confiança do regime militar, Levi Carneiro, Miguel Seabra Fagundes, Orosimbo Nonato e Temístocles Brandão Cavalcanti, sob encomenda do governo de Castelo Branco. Com maioria no Congresso,9 o governo não teve dificuldades para aprovar a nova Carta, em janeiro de 1967. Com ela, os militares institucionalizavam o regime militar, que tivera início em 1964 com caráter transitório. Os militares com apoio civil realizaram o golpe, mas este seguiu via institucional, com apoio de adesistas civis e militares que passaram a integrar o que se denominava como o maior partido do Ocidente e que dificilmente teria vida curta, proclamado pelos mais diferentes lideres da época. Principais Dispositivos da Constituição de 1967 As principais medidas da Constituição de 1967 concentram no poder Executivo o poder de decisão; conferem somente ao Executivo o poder de legislar em matéria de segurança e orçamento; esta- belecem eleições indiretas para presidente, com mandato de cinco anos; tendência à centralização, embora preguem o federalismo; estabelecem a pena de morte para crimes de segurança nacional; restringem ao trabalhador o direito de greve; ampliam a justiça militar e abrem espaço para a decretação posterior de leis de cen- sura e banimento. 9 A maioria aderiu ao partido do governo, a Arena. Por outro lado, os que defendiam os movimentos sociais mais à esquerda aderiram ao MDB.122 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988Constituição de 1969 A Constituição de 1967 recebeu em 1969 nova redação confor-me a Emenda Constitucional n° 1, decretada pelos “Ministros mili-tares no exercício da Presidência da República”. A Constituição éconsiderada por alguns especialistas, em que pese ser formalmenteuma emenda à Constituição de 1967, uma nova Constituição de cará-ter outorgado. A Constituição de 1967 foi alterada substancialmente pelaEmenda nº 1, baixada pela Junta Militar que assumiu o governo coma doença do presidente Costa e Silva, em 1969. A Junta intensificou aconcentração de poder no Executivo dominado pelo Exército e, juntocom o Ato Intitucional nº 12, permitiu a substituição do presidentepor uma Junta Militar, apesar da existência do vice-presidente PedroAleixo, o que para alguns teria sido novo golpe dentro do golpe. Além dessas modificações, o governo também decretou umaLei de Segurança Nacional, que restringia severamente as liberda-des civis (como parte do combate à subversão) e uma Lei de Impren-sa, estabelecendo a censura federal, que vigorou até o governo JoséSarney. Comparativamente, José Sarney foi líder do governo militarno Congresso. Com a redemocratização foi eleito em pleito indireto,em 1985, vice-presidente de Tancredo Neves, que assumiu e faleceu.Ao contrário do que ocorrera com Pedro Aleixo, Sarney assumiu aPresidência do país e o encaminhou para eleições diretas. Saiu dopoder central, mas volta com o PT vencendo as eleições com LuizInácio Lula da Silva e com poder de decisão, lidera o PMDB e sus-tenta a aprovação de todos os pedidos e vontades do Executivo, semqualquer discussão.(RE) PENSANDO dIREITO 123
GILBERTO KERBER A Constituição de 1969, que previa a possibilidade de o chefe do Executivo inovar a ordem jurídica por meio de decretos-leis, na forma do artigo 55 “O presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias: I – segurança nacional; II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos”. O decreto-lei seria submetido ao Congresso Nacional para apro- vação ou rejeição no prazo de 60 dias. Caso não houvesse deliberação neste prazo, o decreto-lei seria considerado aprovado se não fosse apreciado (§1º do artigo 55 da Constituição de 1969). Comparativamente, entre outras, mas que surge como polêmi- ca, por ocorrer em final de governo, a proposta que Lula enviou ao Congresso, como a regulamentação do aborto, o casamento entre pes- soas do mesmo sexo, a de reaver a outorga de concessões e renovações de rádio e TV e de modificações contra a agricultura comercial e sobre o tema relevante das denominadas invasões de terras pelo MST. O ato, para alguns, reedita 1964, quando estiveram na mesma trincheira as forças armadas, membros da Igreja, parte da imprensa escrita e falada, ruralistas e, como não poderia ser diferente, parte do próprio governo, os integrantes dos outros partidos que dão susten- tação ao Partido dos Trabalhadores. Tudo muito parecido, mas que com certeza não se deixará repetir os atos pós-64, nem para a extrema direita e muito menos para a extrema esquerda, mas para isso a socie- dade deve estar atenta e não se deixar levar pelo “canto da sereia”. Constituição de 1988 e as Medidas Provisórias Assim como os governos militares se utilizaram de mecanismos fortes, como os atos institucionais, constatamos por meio de pesquisa que somente o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou124 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988345 Medidas Provisórias no espaço de 71 meses, o que dá uma médiade 4,8 por mês. Ressalva-se que as Medidas foram editadas até o finaldo ano de 2008. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou recentemen-te ser “humanamente impossível governar sem medidas provisórias”,em resposta às pressões oriundas do Congresso Nacional e do Supre-mo Tribunal Federal para reduzir sua voracidade em emitir essesdispositivos. O mais elementar é que o ex-presidente Lula, que tantocriticou seu antecessor, editou uma Medida Provisória sob número444/2008, autorizando o poder Executivo a doar estoques públicos dealimentos à República de Cuba, à República do Haiti, à República deHonduras e à Jamaica. Quanto ao procedimento doação, pelo aspectohumanitário, nada se tem a criticar, mas a forma, ou seja, pela ediçãode mais uma Medida Provisória é que se deve questionar, pois issopode refletir ou ser incorporado em outros atos sob o argumento dedoação, o seria uma forma injusta. Por outro lado, vale lembrar que quando João Goulart foideposto do cargo de presidente, o foi sob o pretexto de que estariase aproximando muito dos líderes com tendência socialista e esta-ria elaborando atos e medidas extremas, sem o aval do CongressoNacional. Essas medidas extremas foram atribuídas ao então ex-deputado federal Leonel Brizola, que estaria inflando o ex-presidenteJoão Goulart, que por coincidência era seu cunhado, e lhe deu espaçossignificativos, bem como aos movimentos sociais da época. O foco, porém, são as Medidas Provisórias10 e nesse particularo processualista Cândido Rangel Dinamarco (2000, p. 93), em brevediscussão sobre o tema, comenta:10 A Constituição Federal de 1988 estabelece na seção do processo legislativo, disposições gerais, artigo 59 que “o processo legislativo compreende a elaboração de: emendas à Cons- tituição; leis complementares; leis ordinárias, leis delegadas; medidas provisórias (...)”.(RE) PENSANDO dIREITO 125
GILBERTO KERBER O fato de as Medidas Provisórias chocarem a consciência jurídi- ca do país ao serem ditadas sob falsos pressupostos de urgência e relevância, sempre em benefício da Fazenda Pública. Citando exemplos, o autor afirma que “a medida provisória n. 1.570, con- vertida na lei n. 9.494, de 10 de setembro de 1997, restringiu a possibilidade de concessão de tutela antecipada em face da Fazen- da Pública. A medida provisória n. 1.632-7, de 12 de dezembro de 1997, ampliou de dois para cinco anos o prazo para a propositura de ação rescisória por pessoas de direito público e instituiu novo fundamento, sempre em favor da Fazenda Pública, para a ação res- cisória contra a sentença em processo de desapropriação imobiliá- ria (art. 4º, caput e par.). Depois, suspensa a eficácia dessa medida provisória por decisão do STF, a de n. 1.774-20, de 14 de dezembro de 1998, concedeu prazo em dobro à Fazenda Pública também para a propositura de ação rescisória (red. Art. 188 CPC); (...) Será puro acaso, ou as medidas provisórias são empregadas como expedientes conscientemente direcionados ao objetivo de alterar o equilíbrio democrático entre a liberdade do cidadão e a autoridade do Estado, criando situações de desigualdade em favor deste? A situação relativa às Medidas Provisórias11 e de uma gravida- de pelo número e forma de sua edição, pois de 6 de outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição Federal – até 11 de setembro de 2001 – data da Emenda Constitucional n.º 32/01 – foram editadas originariamente 616 (seiscentas e dezesseis) Medidas Provisórias, acrescidas de 5.513 (cinco mil quinhentas e treze) reedições, o que totaliza 6.129 (seis mil cento e vinte e nove) Medidas Provisórias. E salienta-se que desse total, o Congresso Nacional rejeitou apenas 22 (vinte e duas). 11 O artigo 62 da CF estabelece: “em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”, embora o § 1º do referido artigo determine que é: “vetada a edição de medidas provisórias sobre matéria: (...)”.126 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988 O presidente do Senado, José Sarney denominou como “mons-truosidades” as MPs editadas pelo Executivo. Sarney afirmou que “éum trabalho lento, que estamos começando e vamos acelerar, emborapor um instrumento monstruoso que foi colocado em nosso caminho,que são as medidas provisórias, que mutilam o Congresso”.12 O exposto teve como objetivo apenas demonstrar alguns aspec-tos comparativos e de complementação da pesquisa sobre o PNDH.E, mais, de mostrar que o artigo 59 da Constituição Federal prevêque o processo legislativo compreende a elaboração de “Medidas Pro-visórias” e que elas devam ser editadas em caso de “relevância” e“urgência” o que seria originário do poder Legislativo, porém, permiteo artigo 62 que o presidente da República possa adotar as MedidasProvisórias com força de lei, e essa inversão do direito ao poder Exe-cutivo de legislar acumula praticamente mil medidas provisórias,mas com o absurdo de praticamente 6 mil reedições, que permitem sededuzir que totalizam 7 mil Medidas Provisórias, pelo baixo índice derejeição do poder Legislativo, que para não aprovar deixa que trans-corra o prazo de apreciação, mas pelos interesses, em sua grandemaioria econômica, as medidas acabam sendo reeditadas, para quenão se tenha um verdadeiro caos na economia.Plano Nacional dos Direitos Humanos Assim como ocorreu nos governos militares, o governo petis-ta apresentou o que se denominou de Plano Nacional dos DireitosHumanos. A diferença entre os governos de 64 e pós-Constituiçãode 1988 é que nos governos militares qualquer ato era considerado12 Manifestação do senador José Sarney, presidente do Senado na abertura do ano judiciário do Supremo Tribunal Federal, dia 1º.2.2010. Publicado nos jornais do Brasil.(RE) PENSANDO dIREITO 127
GILBERTO KERBER contra a sociedade, atos arbitrários e impostos que depois eram ins- titucionalizados pelas emendas constitucionais. Por possuir maio- ria absoluta no Congresso Nacional, a aprovação das medidas era certa. Por isso, a diferença do período revolucionário de 64-85 é que o Plano Nacional dos Direitos Humanos, além da previsão de uma Comissão da Verdade, que aparentemente teria poderes ilimitados, desde que apreciado e aprovado pelo Congresso Nacional, seja sancio- nada pelo presidente da República, passaria a encaminhar os temas das 521 Medidas Provisórias previstas para as mais diferentes áreas da vida nacional. Nos governos João Goulart houveram intenções de envio de medidas no campo dos direitos humanos que afetariam sensivelmen- te as relações da sociedade e governo, mas que não passaram de especulação, pois existia a necessidade de apreciação pelo Congresso. O atual Congresso estaria engessado com o governo federal, pelos cargos que os mais diferentes partidos possuem, via Executivo, mas preocupações jurídicas existem e até mesmo de ordem social. Vejamos as jurídicas. A primeira seria quanto aos princípios que garantem a segu- rança jurídica, que o constituinte de 1988 ratificou ao estabelecer a garantia da imutabilidade da coisa julgada e esse dispositivo é que permitiu e permite que se tenha a garantia jurídica e a normalidade democrática no país. A segunda inquietude é a imposição que terá a imprensa pela previsão de um monitoramento para auferir a cobertura aos direitos humanos. Ora, em caso de uma suposta violação na forma da pres- tação dos serviços que são de caráter público, já temos o Ministério Público, que é o órgão fiscalizador, para promover a competente ação judicial.128 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988 O terceiro ponto diz respeito a aspectos relacionados à Igreja, eo preocupante é quanto à legalização do aborto e do casamento entrepessoas do mesmo sexo. Particularmente defendo a não legalização doaborto, pela preservação da vida do nascituro, por ter este o direitoà vida. No tocante ao relacionamento entre pessoas do mesmo sexo,defendo que não deva ser questionado, tendo estes direitos a umavida em comum. O quarto ponto relaciona-se à agricultura e aos aspectos dadestinação da terra. O plano é claramente do interesse dos integran-tes do MST. O tema deveria ser mais claro e objetivo e não subjetivocomo é tratado, tanto pelos componentes do governo federal quantopelos integrantes dos movimentos sociais. O tema é controvertido,por isso merece uma maior discussão, aliás, o presidente do MSTdeclarou no Fórum Social Mundial de 2010 que “as invasões não sãomais de interesse do MST”.13 Isso posto é o que temos de diferente da era militar e do atualmomento brasileiro. Quando estávamos no período de incertezasnão existiam garantias dos chamados direitos humanos, dos direitosadquiridos, da coisa julgada, que eram desconsiderados. A imprensa vivia momentos de total incerteza, pois sua pro-gramação era vigiada e tudo passava pelo crivo do governo federal,até mesmo a relação de músicas deveria ser encaminhada para a cen-sura. O governo extinguiu todos os partidos políticos e criou apenasdois partidos, Arena e MDB.13 Pedro Stedile, presidente do MST em manifestação no Fórum Social Mundial, rea- lizado no mês de janeiro de 2010 na Grande Porto Alegre-RS.(RE) PENSANDO dIREITO 129
GILBERTO KERBER Comparativamente: sob a desculpa da governabilidade, quase todos os partidos estão aliados ao PT, que exerce o governo federal, como o PP, PTB, PDT, PSB, PMDB em âmbito nacional, mas o mes- mo PT e os partidos referidos agem de forma diferente nos Estados, e de outro lado temos o PSDB, PPS e o DEM. Essa configuração estaria próxima da reedição dos anos da ditadura de 64, como ficou conhecida, isso em razão de que os parti- dos fazem alianças no primeiro turno, assim ocorrendo a polarização entre dois grupos, quando o proposto pelo constituinte de 1988 foi a pluralidade partidária. Nas entrelinhas estamos vendo surgir uma terceira via com os partidos PSOL, PCdoB e PV, mas de forma muito tímida. Por outro lado, na esfera legalista, o Plano Nacional dos Direi- tos Humanos, mesmo devendo ser apreciado pelo Congresso Nacio- nal, fere diversos dispositivos constitucionais, tais como “ninguém será tolhido no seu direito de recorrer ao Judiciário”, ou ainda como do “direito de propriedade, de acordo com o inciso XVII da CF”. Por isso, os direitos subtraídos do cidadão no período de 64-85 foram recompostos pelo poder Judiciário, inclusive com indenizações milionárias sendo-lhes reconhecidos direitos adquiridos. No mesmo sentido, lembro que li em algum lugar e transcrevo o que recordo: “Nos anos 1964-65, em pleno início de ditadura militar, um jovem que estudava para ser piloto civil, quando se dirigia para o seu curso no Rio de Janeiro, teve sua trajetória interrompida por um atenta- do dos denominados esquerdistas que lhe tirou os movimentos, sua juventude e seu sonho de ser piloto”. Resultado: há cerca de dois anos, quando li tal notícia o rapaz que ficou inválido, depois de muita briga passou a receber uma inde- nização mísera de R$ 950,00 como ajuda de invalidez do INSS. O valor seria justo. Não sei.130 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988 Temos outros exemplos de pessoas que durante o mesmo perío-do, por terem sido presas e supostamente torturadas, mas com a voltaà democracia realizaram o seu sonho de serem políticos, receberam e/ou continuam a receber quatro a cinco vezes mais que o pobre rapazque teve interrompido seu sonho por pessoas que se diziam defenso-ras dos direitos do cidadão. O tema é controverso e merece uma discussão ampla, não ape-nas dos congressistas, mas da sociedade como um todo, pois o atualCongresso estaria viciado por interesses pessoais de seus membros,pela forma como agem e se aglutinaram em torno do Executivo fede-ral e todas as constantes denúncias de favorecimentos recíprocos. Cabe salientar o pensamento da OAB, que argumenta que ogoverno confunde a concentração de grandes empresas jornalísticasnas mãos de grupos econômicos com monopólio, e por isso não podeinterferir na liberdade dos meios de comunicação de informar à socie-dade. E por fim acrescenta que a liberdade de opinião jornalística,ainda que se discorde dessa opinião, é um direito fundamental e oEstado deve fomentar essa liberdade e não restringi-la.14 Com essa reflexão cabe mencionarmos que pela suposta inci-dência de diversos direitos e pretensões, quando um líder que nainvestidura no cargo deve se portar como um magistrado, deve ter ocuidado ao pretender apresentar transformações à sociedade, de fazê-lo com clareza. Assim, objetivar a felicidade de alguns cidadãos e aruína de outros, pelo simples prazer de revanches por circunstânciaspassadas, não levará à concórdia nacional. Por isso o alerta de Paulo bonavides (2003, p. 132) merece serlembrado14 A OAB criticou o novo texto do PNDH por seu presidente Cezar Britto. 131(RE) PENSANDO dIREITO
GILBERTO KERBER Princípios que compõem um sistema jurídico-democrático, tais como a liberdade e a igualdade, têm que ser postos conjuntamente, em relação dialética com a realidade, num debate de compromis- so, em busca da solução mais adequada, evitando-se construções unilaterais ou unidimensionais, que importem o sacrifício de um princípio em proveito de outro, por exemplo: a igualdade sufocando a liberdade, ou a liberdade reprimindo a igualdade15. A liberdade muitas vezes é confundida com igualdade, mas se esta sufocar a liberdade, com certeza é o início do autoritarismo, e nenhum argumento, mesmo o mais forte possível, não pode ser aceito pelas sociedades que defendem a democracia. Democracia é saber res- peitar a liberdade do outro pensamento, pois a sociedade tolhida da liberdade é sociedade engessada dos seus direitos mais elementares, que é o direito de liberdade de pensar e se manifestar, dependendo seu posicionamento pessoal e coletivo de instituições legalmente pro- postas e atuantes na sociedade. Conclusão O tempo passa e vamos constatar que o que era perverso quan- do a direita estava no governo, na verdade não era tão mau assim, pois enquanto a esquerda clamava por democracia e lutava por elei- ções, constatamos que depois de chegar ao poder a eleição passa a um plano secundário e aquilo que era um mecanismo perverso na forma de sua instituição, vamos perceber que direita e esquerda na verdade querem é permanecer eternamente no poder, custe o que custar. 15 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 132.132 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONSTITUIÇÕES 1967-1969 E 1988 Democracia. Essa palavra é uma palavra de retórica, para adireita é uma falácia quando a esquerda está no poder e, aliás, exem-plos estão presentes como no caso de Cuba, que teve um movimentopara democratizar o país, mas todos sabem o que vem acontecendo,até hoje inexiste eleição. A esquerda chega ao poder, busca abrir marcas que já estariamfechadas, como forma de justificar seus atos, não há outra razão paratamanha insensatez, de se pretender criar uma Comissão da Verdadepara ouvir apenas um lado. Se a intenção fosse boa a Comissão da Verdade deveria sereportar ao início do século, a entre outros atos apresentar a tesede que para resolver em parte o problema brasileiro deveremos abo-lir reeleição para qualquer cargo. Não teríamos mais reeleição, nemmesmo para síndico. Eleição seria única, aliás, a comissão políticaencaminhou o assunto. Teríamos um avanço, significativo ou não. Não custaria nadatentar, mas quem dos atuais dirigentes partidários faria essa grandeproeza de admitir que democracia seja efetivamente a participaçãode todos, mas não apenas para votar, mas para ser votado. Com o atual sistema ou com a proposta que se encontra trami-tando no Congresso, passaríamos a ter o voto distrital, voltaríamos aotempo da Monarquia. De pai para filho. Os cargos serão destinadospelo direito sucessório, ou alguém teria alguma dúvida quanto aosprimeiros integrantes das listas fechadas no caso do voto distrital? Formas novas, com os velhos sistemas. Democracia, comodizem os ditados, é boa e deve ser defendida enquanto a oposiçãoestiver fora do poder, porém ao chegar ao poder a democracia passaa ser repensada, ao menos em sua forma de aplicabilidade.(RE) PENSANDO dIREITO 133
GILBERTO KERBERReferênciasBRASIL. Constituição Federal de 1988. São Paulo: Saraiva, 2008.BRASIL. Código Civil, Código de Processo Civil, Constituição Fede-ral e Legislação Complementar. Organizadores: Valdemar P. da Luz;Paulo Roberto Froes Toniazzo. 5. ed. Florianópolis: Conceito Edito-rial, 2009.DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito ProcessualCivil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. Vol. I.FREITAS, Juarez. O intérprete e o poder de dar vida à Constituição:preceitos de exegese constitucional. In: GRAU, Eros Roberto; GUER-RA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito Constitucional: estudosem homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003.MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Edi-tora Atlas, 2009.SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10. ed.São Paulo: Malheiros, 2006.TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 19. ed. 2ª tira-gem. São Paulo: Malheiros, 2007. Recebido em: 30/8/2010 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011 Aprovado em: 20/11/2010134
Conflitos Sistêmicose a Procedimentalizaçãodo Conhecimento Jurídico Paulo Roberto Ramos Alves1ResumoA sociedade contemporânea tem se mostrado palco de uma incrível fragmentação de sentido. Nessecontexto, é visível a perda de centro epistêmico único, distribuindo-se o poder de cognição a diversossistemas sociais autônomos, como o Direito, a ciência, a política, a Economia, etc., bem como aoutras instâncias comunicativas da sociedade, como grupos de pressão e um incontável número deorganizações formais. O presente texto busca, pois, analisar o processo de diferenciação dos siste-mas e a consequente problemática de suas inter-relações, notadamente entre o Direito e os demaisdiscursos sociais. Recorrendo à matriz pragmático-sistêmica, busca-se a sucinta análise dos conflitosentre diferentes sistemas sociais enquanto centros cognitivos autônomos e, no sentido dado porGunther Teubner, a procedimentalização do processo de cognição como forma de harmonizar taisconflitos pela dispersão da cognição jurídica a atores sociais descentralizados.Palavras-chave: Autopoiese. Construtivismo. Procedimentalização. Teoria sistêmica.1 Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos; graduado em Direito pela Universidade de Passo Fundo – UPF; advogado. pauloalvess@yahoo. com.br(RE) PENSANDO dIREITO • Editora Unijuí • ano 1 • n. 1 • jan./jun. • 2011 • p. 135-158
Systemic Conflicts and the Proceduralization of Legal KnowledgeAbstractContemporary society is the scene of an incredible fragmentation of sense. In this context, it is clearthe loss of epistemic single center, distributing the power of cognition to several independent socialsystems, such as law, science, politics, economics, etc., as well as other instances of communicativesociety, as pressure groups and an untold number of formal organizations. This study aims thereforeto examine the process of differentiation of the systems and the consequent problem of their interre-lationships, especially between the Law and the other social discourses. Drawing on the pragmatic-systemic matrix, we seek to outline the analysis of conflicts between different social systems asautonomous cognitive centers and, in the sense given by Gunther Teubner, the procedimentalizationof the process of cognition as a way to harmonize these conflicts by the dispersion of cognition thelegal decentralized social actors.Keywords: Autopoiesis. Constructivism. Procedimentalization. Systemic theory.
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICO A observação da sociedade na forma de um sistema comunica-tivo consiste em um marco interdisciplinar sem precedentes. Profun-damente analisada em ramos como a Cibernética de Von Foerster ea Biologia de Maturana e Varela, a Teoria Sistêmica foi aproveitadaincondicionalmente por Luhmann como uma metodologia própria àexplicação das complexas relações sociais contemporâneas, viabili-zando, na segunda fase2 de sua teorização, um olhar sobre a socieda-de e o Direito como sistemas autopoiéticos. Com a transição da modernidade simples para a modernidadecomplexa – ou, ainda, em termos sistêmicos, de um modelo de socie-dade simples para a sociedade funcionalmente diferenciada –, a com-plexidade social aumentou drasticamente. Múltiplas possibilidadesforam irradiadas de modo a desencadear a necessidade crescente darealização de escolhas, afinal, o que era simples tornou-se complexo,contingente e arriscado. Essa expansão de possibilidades igualmentecaracterizou a sociedade como palco de uma incrível fragmentaçãode sentido por intermédio da constante autonomização de discursossociais, evidenciando, com isso, a intrínseca dispersão da razão eminstâncias difusas da sociedade global. O breve ensaio que ora é iniciado centra-se precisamente naquestão trazida por Gunther Teubner sobre eventuais conflitos entrediferentes racionalidades sistêmicas e as possibilidades de sua reso-lução. Para tanto, em um primeiro momento, são revisados os con-ceitos luhmannianos sobre autopoiese e a operação de diferencia-ção funcional sistêmica. Ato contínuo vislumbra-se o Direito como2 O trabalho de Luhmann pode ser dividido em duas grandes fases, a primeira delas quando o autor aperfeiçoa o estrutural-funcionalismo de Talcott Parsons sob uma ótica própria, passando-se a um funcional-estruturalismo. Já na segunda fase traz para a Sociologia o conceito de autopoiese, importado da biologia de Maturana e Varela.(RE) PENSANDO dIREITO 137
PAULO ROBERTO RAMOS ALVES sistema autopoiético, consoante a teorização de Teubner, bem como a capacidade cognitiva do sistema jurídico e o olhar final sobre os conflitos sistêmicos. Comunicação, Autopoiese e Diferenciação Funcional A superação do conceito de ação3 a partir da observação da sociedade como um sistema comunicativo4 autorreferencial deu vazão ao surgimento da ideia de autopoiese (autoprodução, autocriação). Inicialmente estudados pelos neurobiólogos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana, os sistemas autopoiéticos foram propostos, originariamente, como fator explicativo dos mecanismos constitutivo- organizacionais dos seres vivos, estabelecendo-se, então, a ideia de autoprodução e automanutenção dos sistemas vivos com base em seus próprios elementos constitutivos e nas relações e processos internos inerentes a tais sistemas.5 Com isso, pelas mãos de Luhmann, surge a ideia de autopoie- se social, que significa que “um sistema reproduz os elementos de que é constituído, em uma ordem hermético-recursiva, por meio de 3 A Sociologia era, até então, dependente do conceito de ação, razão pela qual o homem exercia papel central, eis que a ação, em sua compreensão tradicional, pressupunha necessariamente a existência de um sujeito, notadamente identificado enquanto ser humano. Ainda na gênese da teoria dos sistemas sociais, estes eram pressupostos por Parsons como “constituídos por estados e processos de interação social entre unidades de ação”. Parsons, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira, 1974. p. 18. 4 Em Luhmann, a ação é superada pela compreensão da sociedade como comunica- ção. Luhmann, Niklas. O conceito de sociedade. In: Neves, Clarissa Eckert Baeta; Samios, Eva Machado Barbosa (Org.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora da Universidade; Goethe-Institut, 1997. p. 78. 5 Maturana, Humberto; Varela, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases bioló- gicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001. p. 52.138 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOseus próprios elementos”,6 isto é, a comunicação se perfaz via outrascomunicações. Comunicações geram comunicações, que, por sua vez,geram novas comunicações e assim por diante, em uma cadeia de (re)produção comunicativa, cuja existência é impossível fora da própriarede de interações.7 Maturana e Varela definem a autopoiese de um sistema (bio-lógico) de forma que “a organização autopoiética significa simples-mente processos concatenados de uma maneira específica tal que osprocessos concatenados produzem os componentes que constituem osistema e especificam como uma unidade”,8 ou seja, o sistema auto-poiético é aquele em que, mediante operações hermético-recursivase autorreferentes, (re)produz seus próprios elementos, de forma queseu produto final é sempre ele próprio. Os sistemas sociais autopoiéticos funcionam sob condições declausura operativa, abarcando toda a comunicação atinente à socie-dade com o escopo de reduzir a excessiva complexidade de seu meioenvolvente. Dessa maneira, há a necessidade de ordenação das maisdiversas comunicações que ingressam no sistema de modo a ser pos-sibilitada sua operacionalização. Essa ordenação é possível em razãode contínuos processos de diferenciação funcional, os quais têm lugarquando ocorre uma superespecificação de funções dentro do próprio6 Luhmann, Niklas. O enfoque sociológico da teoría e prática do Direito. Seqüência, Florianópolis: Fundação Boiteux, n. 28, p. 20, jun. 1994.7 Luhmann, Niklas. The autopoiesis of social systems. In: Geyer, Felix.; Zouwen, Johannes van der (Eds.). Sociocybernetic paradoxes: observation, control and evolu- tion of self-steering systems. London: Sage, 1986.8 Maturana, Humberto; Varela, Francisco. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 72.(RE) PENSANDO dIREITO 139
PAULO ROBERTO RAMOS ALVES sistema. Assim, toda a comunicação binariamente identificável ten- derá à formação de subsistemas autopoiéticos autônomos de segundo grau com funções próprias. Para Luhmann e De Giorgi, es decisivo el que, en un cierto momento la recursividad de la reproducción autopoiética comienza a comprenderse a si misma y alcance una cerradura a partir de la cual para la política sólo cuenta la política, para el arte sólo el arte, para la educación, sólo la predisposición y la disponibilidad para el aprendizaje, para la economía sólo el capital y la utilidad, mientras que los correspon- dientes entornos sociales internos […] se perciben sólo como ruido irritante o como molestias.9 Quando determinada comunicação encerrar-se recursivamente sobre si própria tenderá à formação de subsistemas parciais. Em outras palavras, sempre que houver uma especificação comunicativa no âmbito social, de modo que tal comunicação seja apta a delimitar fronteiras de sentido10 e caracterizar-se como um subsistema auto- poiético parcial, deparar-se-á com a diferenciação funcional. Tal fenô- meno tem espaço por meio da codificação binária, que se caracteriza de forma a especificar novos sistemas funcionais. No âmbito do sistema da sociedade, as comunicações internas deverão ser identificáveis. A particularização dos diferentes tipos comunicativos torna possível a identificação de cada uma com base em um código específico, havendo então a especificação de funções 9 Luhmann, Niklas; De Giorgi, Rafaelle. Teoría de la sociedad. México: Universidad de Guadalajara; Univesidad Iberoamericana; Iteso, 1993. p. 326. 10 A delimitação de fronteiras de sentido é condição de possibilidade para a existência dos sistemas funcionalmente diferenciados da sociedade, eis que por meio desses limites é especificado ao sistema a área de sua abrangência, sendo-lhe lícito ope- rar apenas no âmbito estabelecido pelo sentido. Corsi, Giancarlo; Esposito, Elena; Baraldi, Cláudio. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Barcelona: Anthropos, 1996. p. 147.140 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOcom base neste código. É justamente essa codificação que possibili-ta a existência de comunicação da sociedade, pois as comunicaçõessão reconhecidas e passam a integrar os sistemas funcionais. Ditode outro modo, é a própria particularidade do código que remete aosentido fundamental de determinada comunicação. O processo de diferenciação funcional se dá “cuando un sistemase diferencia del propio entorno, al trazar limites”.11 Nota-se entãoque o surgimento de limites internos, dada a formação de subsiste-mas funcionais, pressupõe a compreensão da diferenciação sistema/entorno no interior do próprio sistema, logo o interior da sociedadeserá compreendido enquanto entorno dos demais subsistemas. Melhordito, o sistema social abarcará um sem-número de novos subsistemas,cada um diferenciado com base em funções específicas. Desse modo,para um sistema em particular, os demais subsistemas serão conce-bidos como entorno ou como sistemas no entorno.12 A ideia de código e função são requisitos indispensáveis à dife-renciação funcional, ou seja, cada comunicação particular possuiráum código binário que a identificará mediante a diferenciação sim/não.13 Dito de outra forma, a comunicação que ingressar no sistemadeverá possuir uma identificação que lhe possibilitará a realizaçãode operações exclusivas. Assim, a comunicação cujo código binário forgoverno/oposição será inerente ao sistema político, o código ter/nãoter ao sistema econômico, Direito/não Direito ao sistema jurídico, eassim por diante.11 Corsi; Esposito; Baraldi. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann, 1996. p. 56.12 Luhmann, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Barcelona: Paidós Ibérica, 1990b. p. 52.13 Corsi; Esposito; Baraldi, Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann, 1996. p. 40-43.(RE) PENSANDO dIREITO 141
PAULO ROBERTO RAMOS ALVES O Direito apresenta-se como um dos subsistemas sociais, ati- vando-se em razão do desenvolvimento da sociedade como um todo e adquirindo sua autonomia em virtude dos problemas originados por tal desenvolvimento e da necessidade de sua regulação.14 A codifica- ção binária do sistema jurídico obedece, então, à lógica Direito/não Direito, logo, “através da aceitação da um código binário (jurídico/ antijurídico), o sistema obriga a si próprio a essa bifurcação, e somen- te reconhece as operações pertencentes ao sistema se elas obedecem a essa lei”.15 Desse modo, todas as comunicações que se identifiquem com tal código pertencerão ao sistema jurídico, que, mediante sua própria autopoiese, operará no interior do sistema social com carac- terísticas particulares. O Direito Como Sujeito Epistêmico O Direito opera sob uma dicotomia fundamental entre Direi- to e não Direito. Esses dois aspectos comunicativos delimitam sua operacionalidade, excluindo da apreciação do sistema toda aquela comunicação que não se amoldar à binariedade do código (Direito/não Direito). Um dos grandes problemas enfrentados pela teoria jurídica quando observada sob as lentes sistêmicas é justamente a associação a uma teoria neopositivista, eis que a afirmação de que somente exis- te Direito no próprio Direito leva a frequentes mal-entendidos. Tal associação, porém, é flagrantemente rechaçada quando se observa a operacionalidade do Direito na forma de uma instância comunicativa 14 Luhmann; De Giorgi. Teoría de la sociedad, 1993. p. 327. 15 Luhmann, Niklas. O enfoque sociológico da teoria e prática do Direito. Seqüência, Florianópolis: Fundação Boiteux, n. 28, jun., 1994. p. 18.142 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOfechada e, justamente porque fechada, paradoxalmente aberta aosinfluxos da sociedade diferenciada e, por isso, capaz de constantesrevisões de seus pressupostos operativos. Nesse sentido, o Direito não é algo concedido pelos deuses,como era alegado pelas vetustas concepções do Direito divino, tam-pouco possui sua existência como algo inerente ao ser humano, comoum dado a priori, consoante a compreensão de Direito natural. ODireito é, antes, um produto da evolução social, um subsistema dife-renciado funcionalmente e autonomizado em razão de tal evolução.16À compreensão do sistema jurídico foge qualquer vinculação a algopré-existente, inexiste o Direito dado ou constituído por elementostranscendentes ao próprio Direito. O aparente solipsismo normativo, caracterizado ao se afirmarque somente Direito (re)produz Direito é afastado mediante a existên-cia da abertura cognitiva. O Direito é fechado, e, repita-se, somenteDireito produz Direito, todavia o sistema jurídico deve transpor paradentro de suas fronteiras os problemas do mundo (transposição deproblemas e dupla seletividade). Por meio da abertura cognitiva, viaconstantes acoplamentos, os problemas do entorno serão transpostospara dentro do sistema, fechando-se novamente em sua própria posi-tividade de modo a construir a realidade jurídica. Eis a autopoiese. Pela autopoiese, o Direito é produto do próprio Direito, o sis-tema jurídico é (re)inventado mediante a (re)produção hermético-recursiva e circular de seus elementos. A partir do momento em queo Direito encontra-se no âmbito do sistema social, vem apresentarpontos particulares e essenciais à sua compreensão, sendo sua auto-16 Queiroz, Marisse Costa de. O Direito como sistema autopoiético: contribuições para a sociologia jurídica. Seqüencia, Florianópolis: Fundação Boiteux, n. 46, p. 79, jul. 2003.(RE) PENSANDO dIREITO 143
PAULO ROBERTO RAMOS ALVES poiese objeto do estudo feito por Teubner,17 no qual propõe o sistema jurídico como autorreferente, indeterminado, imprevisível, circular e permeado pela existência de paradoxos. A autorreferência deve ser compreendida como uma operação indicativa de algo ao qual pertence. Desse modo é traduzida a capa- cidade dos sistemas em distinguir suas próprias operações, bem como o que lhes é próprio ante o restante, então pertencente ao entorno. Enquanto a autopoiese diz respeito à (re)produção das operações internas com base em seus elementos, pela autorreferência se dá a indicação dessas operações no âmbito interno do sistema.18 A partir da característica visceral19 da autorreferência dos sistemas autopoiéticos, Teubner propõe que “o Direito determina- se a ele mesmo por auto-referência, baseando-se na sua própria positividade”,20 fato este que exclui do sistema jurídico tudo aquilo que não respeitar a lógica binária legal/ilegal. Nesse passo, a autor- referência do sistema do Direito significa que o sistema deve (auto) observar-se de modo a possibilitar um agir seletivo hábil ao seu (auto) desenvolvimento com base em seus próprios elementos. Pela autorreferência, a indeterminação do Direito se dá no sentido de que ele retoma sua validade a partir de operações ante- riormente realizadas, logo, “o Direito é o que o Direito diz ser Direito, isto é, qualquer operação jurídica reenvia ao resultado de operações 17 Teubner, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. 18 Corsi; Esposito; Baraldi, Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann, 1996. p. 35. 19 Teubner, O Direito como sistema autopoiético, 1989. p. 2. 20 Ibidem, p. 2.144 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOjurídicas anteriores”.21 O Direito será válido sempre que buscar talvalidade em suas próprias decisões, referindo-se a si próprio e nun-ca importando sua validade externamente. Em outras palavras, osímbolo da validade jurídica depende unicamente da consonânciade determinada comunicação à binariedade do código jurídico. É poressa razão que discussões sobre a validade cedem cada vez mais lugara discussões sobre a efetividade do Direito. A indeterminação sugere uma segunda característica do Direitoautopoiético: a imprevisibilidade. Teubner explica que as discussões econclusões ocorridas em outros subsistemas sociais, ainda que previ-síveis, não interferem no curso das discussões jurídicas. Tudo aquiloocorrido fora do sistema jurídico não é considerado para fins de suaoperacionalidade. Sob os auspícios deste entendimento rompe-se coma crença em uma segurança jurídica no sentido de previsibilidade desua aplicação a determinado caso concreto, pois “o ideal da certeza esegurança jurídica, que repousa no postulado da previsibilidade daaplicação do Direito aos casos concretos da vida seria incompatívelcom essa característica da auto-referência”22 do sistema jurídico. Nas palavras de Rocha, “a própria contingência afasta o dog-ma da segurança jurídica e pode-se vislumbrar a indeterminaçãodiretamente vinculada à autonomia do sistema do Direito”.23 Dessemodo, pelo postulado da imprevisibilidade quebram-se determinadosparadigmas então vigentes: questiona-se aqui a estreita visão pro-porcionada pela dogmática jurídica, defensora da possibilidade de o21 Rocha, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In ______; Schwartz, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sis- tema autopoietico do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 41.22 Ibidem, p. 3.23 Rocha, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico, 2005. p. 40.(RE) PENSANDO dIREITO 145
PAULO ROBERTO RAMOS ALVES Direito abarcar a complexidade sistêmica com caracterizações hábeis a englobar todo um universo de possibilidades de forma generalizada e inequívoca. A imprevisibilidade do Direito resta, pois, estreitamente rela- cionada com sua indeterminação, dado que as decisões presentes serão remetidas sempre para feitos passados, com o escopo de cons- trução do futuro e validação do Direito a partir de seus próprios ele- mentos. O sistema jurídico observará seu passado de modo a garantir seu futuro. Com isso, qualquer possibilidade de previsão a determina- do caso concreto torna-se incompatível para com sua autorreferência originária.24 A partir da compreensão do Direito como indeterminado e imprevisível emerge a terceira característica do Direito autopoiético: a circularidade. Por circularidade entende-se que o sistema jurídi- co opera hierarquicamente, em que as normas superiores acabam por legitimar as inferiores, ocorrendo, todavia, de forma circular e reflexiva. Dito de outro modo, a operacionalidade jurídica é extre- mamente dependente de critérios procedimentais, responsáveis, em última análise, pela própria concretização dos pressupostos constitu- cionais.25 Ainda, com outras palavras, as normas inferiores remetem às superiores, porém ao se chegar no topo da cadeia normativa não há para onde ir, sendo o único caminho possível a remessa ao nível mais baixo da mesma. Dessa maneira, apesar de certa estranheza, 24 Teubner, O Direito como sistema autopoiético, 1989. p. 3. 25 Sobre a discussão acerca da procedimentalização do conteúdo constitucional, bem como acerca da produção comunicativa no âmbito organizacional, vide Pilau Sobri- nho, Liton Lanes; Alves, Paulo Roberto Ramos. Constituição, risco e a observação do futuro jurídico. In: Rodrigues, Hugo Thamir, Pilau Sobrinho, Liton Lanes (Org.). Constituição e política na atualidade. Porto Alegre: s.n., 2010. p. 49-60.146 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOas normas de nível superior (Constituição) acabam legitimadas pelasnormas inferiores (normas procedimentais), perfazendo, com isso, ahierarquia reflexiva do sistema jurídico. A quarta interpretação refere-se à existência dos inegáveisparadoxos no sistema jurídico.26 A própria constituição autorrefe-rencial do Direito funda-se em um paradoxo fundamental: o Direi-to somente existe por causa do não Direito, toda a funcionalidadejurídica baseia-se nesta distinção binária. O paradoxo permeia ossistemas sociais de modo inafastável, eis que a própria existênciados sistemas gravita em torno de uma diferença entre dois lados. Oprocesso de diferenciação, então, ocorre mediante a aplicação do para-doxo sobre o qual se fundam os sistemas (sim/não), empregando suadistinção constitutiva como parâmetro de seleção para “apreender eaferir situações do mundo real”.27 Sempre que houver o processo dediferenciação no âmbito dos sistemas sociais, isto é, quando ocorrera necessidade de se aplicar a distinção sim/não, ocorrerá a produçãode diferença mediante a repetição do paradoxo constitutivo do sis-tema. Os problemas referente aos paradoxos surgem no momento emque há a pretensão de aplicação da forma sobre si própria, ou seja,a autoaplicação do código Direito/não Direito, momento em que sur-gem os chamados paradoxos da autorreferência. Logo, quando essadistinção “é aplicada [...] com pretensões de validade para todo umuniverso de situações, então mais tarde ou mais cedo, essa mesmapretensão de validade universal acabará por conduzir a própria dis-tinção à tentação de valer igualmente para si mesma”.2826 Ibidem, p. 6-10. 14727 Teubner, O Direito como sistema autopoiético, 1989. p. 6.28 Ibidem, p. 6-7(RE) PENSANDO dIREITO
PAULO ROBERTO RAMOS ALVES Os paradoxos da autorreferência, dessa maneira, seriam res- ponsáveis pelo bloqueio no processo de tomadas de decisão, pois ao aplicar a distinção legal/ilegal sobre sua própria diferença constitu- tiva surgiriam resultados conducentes a conclusões como: é ilegal operar com o código legal/ilegal. Isso significa que o problema do fundamento inexoravelmente conduz a paradoxos como os supra- mencionados. Por isso o reconhecimento, por Luhmann, de que não há uma verdade inequívoca ou um pretenso fundamento da ordem jurídica que transcenda à própria ordem jurídica. O Direito, assim, é determinado pelo próprio Direito, não sendo vinculando ontologica- mente, bem como alheio a qualquer forma de teleologia.29 Vê-se, pois, que a aplicação do código sobre si próprio coloca em xeque a própria operacionalidade do sistema jurídico, todavia a consciência acerca dos paradoxos conduz à (re)afirmação de que, conforme Rocha, o Direito apresenta-se em uma realidade circular- mente estruturada, vinculando-se a partir de seus próprios elementos constitutivos de forma igualmente circular30 e autorreferencial. Isto sugere uma nova visão sobre o fenômeno jurídico: a possibilidade de o Direito efetivamente conhecer e aprender. O aspecto cognitivo é central para a compreensão do Direi- to como sistema autopoiético. O Direito (assim como outros siste- mas parciais como economia e política, por exemplo) efetivamente 29 Luhmann, Niklas. A terceira questão: o uso criativo dos paradoxos no Direito e na história do Direito. Estudos jurídicas, São Leopoldo, n. 32, p. 46, jan./jun., 2006. Vide igualmente, Magalhães, Juliana Neuenschwander. O uso criativo dos parado- xos do Direito. In: Rocha, Leonel Severo. Paradoxos da auto-observação: percursos da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997. p. 248-249; Rocha, Leonel Severo. Observações sobre a observação luhmanniana. In: Rocha, Leonel Severo, King, Michael; Schwartz, Germano. A verdade sobre a autopoiese no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 21-23. 30 Rocha, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico, 2005. p. 43.148 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOconhece, independentemente do que se passa na mente de juízes,promotores, advogados, etc. O Direito processa de forma autônomaas perturbações que sofre, cria sempre renovadas realidades jurídi-cas, constitui horizontes próprios de sentido jurídico, que apenas têmlugar no âmbito interno do próprio sistema. O Direito é um sistema comunicativo, isto é, formado exclusiva-mente por comunicações, não por normas.31 As comunicações jurídicasencontram-se relacionadas em uma rede de comunicações empenhadasempre na produção de novas comunicações. Estes eventos permitemque o Direito observe seu ambiente circundante, entretanto essa visãolimita-se aos critérios estabelecidos pelo próprio Direito. Em outraspalavras, o Direito jamais é determinado ou instruído pelo mundoexterior (entorno, ambiente, meio), mas sim ocorre uma construçãode mundo; o Direito constrói sua própria ordem e cria um mundopróprio de sentido jurídico. Nesse passo, a personalização jurídica, as figuras simbólicaserigidas pelo Direito (contratante e contratado, autor e réu, juiz, legis-lador, etc.) são meras construções do Direito. Tais papéis, enquantoidentificados juridicamente, não possuem valor fora do âmbito jurídi-co. Essa constatação não exclui o fato de que tais atores são, na indi-vidualização de suas consciências, sistemas autopoiéticos autônomos(psíquicos) em constantes interações com a produção da comunicaçãoque caracteriza a sociedade.32 Precisamente nesse ponto é possívelrebater grande parte das críticas à autopoiese social, notadamenteno que diz respeito à compreensão acerca da eventual desumanizaçãodo social. O homem não é meramente relegado a um plano de menor31 Teubner, Gunther. El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global. Bogo- tá: Universidad Externado de Colombia, 2005b. p. 41.32 Teubner, Gunther. El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global, 2005b. p. 44.(RE) PENSANDO dIREITO 149
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