PAULO ROBERTO RAMOS ALVES importância; a sua relevância é mantida de forma evidente quando é destacada a possibilidade de coexistência entre a autonomia epis- têmica humana e a fragmentação dos discursos sociais.33 Dito de outro modo, o processo de diferenciação funcional ao qual se submete a comunicação acaba por fazer emergir novos centros cognitivos. A unidade característica do homem cede lugar a uma multiplicidade de discursos sociais (diferenciação funcional) que, igualmente, conhecem, aprendem e constroem sempre renovadas realidades de acordo com suas próprias estruturas e, precisamente em decorrência disto, emergem inegáveis conflitos entre racionalida- des comunicativas diferentes, notadamente entre o Direito e outros discursos sociais. Conflitos Sistêmicos e a Procedimentalização do Conhecimento Jurídico A multiplicação de centros cognitivos autônomos provoca evi- dentes conflitos entre o Direito e outros sistemas sociais, eis que, ao mesmo tempo em que há a necessidade da construção de realidade próprias (jurídicas), paradoxalmente há a dependência de outros sis- temas que competem entre si. A capacidade sistêmica de conhecer produz realidades inerentes a cada observador em particular, por isso o Direito depende unicamente do Direito, produzindo comunicações jurídicas mesmo ao revés da vida cotidiana e da realidade aposta pelo discurso científico, político ou econômico. 33 Teubner destaca que “los atores humanos tienen uma doble ‘identidad’ en el mundo de la autopoiesis. Mientras que en la existencia social son el palido construto de los sistemas sociales autopoiético, entre ellos del derecho, en su existencia psíquica son vibrantes sistemas autopoiéticos” (Teubner, El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global, 2005b. p. 44).150 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICO Ante a pluralidade discursiva da sociedade contemporânea,os conflitos entre epistemes diferentes são evidentes. Cada sistemacognitivo opera de forma autônoma, por isso não há a verdade úni-ca e inequívoca: cada sistema, como já referido, constrói visões demundo a partir de seu ponto de observação. Por isso, o Direito criaverdades jurídicas, a Ciência, verdades científicas, a Economia, ver-dades econômicas, e assim por diante. Não há a possibilidade de umacomunicação una e indivisível. O Direito, por isso, enclausura-se em sua recursividade espe-cífica como forma de construir horizontes de sentido jurídico. Para-doxalmente, ao mesmo tempo em que produz uma realidade jurídicaautônoma, não pode se autoimunizar dos demais discursos sociais,não é possível um Direito solipsista. Tal paradoxo pode ser explicadopela existência de interferências extrasistêmicas, de acoplamentosestruturais e pela consideração das chamadas instituições de ligação,âmbitos comunicativos responsáveis pela aproximação do discursojurídico à policontexturalidade da sociedade diferenciada.34 Os sistemas produzem incessantes interferências uns aosoutros, cada qual abarcando tais perturbações conforme suas pró-prias estruturas internas. Em razão desse caráter conflitivo, o dis-curso jurídico é obrigado a examinar os novos conhecimentos produ-zidos exteriormente apenas se houver relevância ao próprio Direito.34 É razoável observar que a policontexturalidade da sociedade contemporânea traz ínsita a possibilidade de maiores interações entre Direito e sociedade. Teubner pro- move tal observação sob o conceito de instituições de ligação, que seriam formas comunicativas capazes de estabelecer ressonâncias diretas entre o sistema jurídico e a multiplicidade de discursos presentes (e integrantes) do sistema social. Essas ins- tituições conectoras sugerem interferências entre Direito e sociedade, sublinhando a possibilidade de instituição de comunicações jurídicas, bem como se evitando que o discurso jurídico perca-se nos labirínticos caminhos de outros sistemas sociais, como a política ou a Economia. Teubner, Gunther. As duas faces de Janus: pluralismo jurídico na sociedade pós-moderna. In: ______. Direito, sistema e policontexturali- dade. Piracicaba: Unimep, 2005a. p. 100.(RE) PENSANDO dIREITO 151
PAULO ROBERTO RAMOS ALVES Precisamente a relevância atribuída pelo código à determinada per- turbação é o que conduz à permanente reconstrução da comunicação jurídica. Resta, todavia, o questionamento sobre a possibilidade de se estabelecer certo equilíbrio entre o Direito e os demais discursos sociais. Pode-se escapar da armadilha do solipsismo – o que inega- velmente conduziria à autoimunização do sistema jurídico –, bem como do problema da heteronomia epistêmica – que espelharia um processo de indiferenciação em razão da eventual delegação da auto- ridade jurídica a outras racionalidades comunicativas –, por meio de regras procedimentais. Teubner refere que, “como condición previa para la incorporación del conocimiento social, el sistema jurídico defi- ne ciertos requisitos fundamentales en relación con el procedimiento y el metodo cognitivo”.35 Se, por um lado, o Direito não pode importar sua validade externamente e, por outro, não há a determinação jurídica por outros discursos sociais, escapando assim à vinculação a qualquer autori- dade senão à do próprio sistema jurídico, o Direito deve-se voltar àqueles procedimentos internos que estabelecem o conteúdo e os resultados de suas observações e construções próprias. Situações dessa natureza podem ser facilmente observadas quando enfrentados problemas como aqueles atinentes a questões ambientais36 ou questões relacionadas a possíveis formas de gestão jurídica do risco da biotecnologia. Nos referidos exemplos, o Direito deve necessariamente operar com questões que fogem a qualquer 35 Teubner, Gunther. El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global, 2005b. p. 63. 36 Vide Carvalho, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.152 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOexplicação racional unitária, isto é, ele passa a considerar outrasobservações sociais (políticas, econômicas, científicas, religiosas, etc.)que igualmente referem-se à temática ambiental ou biotecnológica,assim como comunicações difusas levadas adiante por incontáveisinstâncias da sociedade, como a existência de grupos ecológicos,organizações não governamentais, agências reguladoras, entre umaimensa quantidade de organizações formais existentes. Nesse passo, a racionalidade jurídica – cuja operacionalidadese dá mediante a paradoxal distinção entre abertura/fechamento –deve observar seu meio circundante, evidenciando, com isso, possi-bilidades construtivas ao Direito e à sociedade. Em outras palavras,a possível solução jurídica para a problemática ambiental ou paraa tematização jurídica do risco biotecnológico, conforme exemplosmencionados, encontra um ponto de apoio justamente na dicotomiaabertura/fechamento do sistema jurídico: externamente, pela capaci-dade de a sociedade viabilizar perturbações abarcáveis pelo jurídicoe, internamente, pela construção (jurídica) de procedimentos capazesde estruturar o processo de cognição jurídica diante das complexasquestões trazidas pela sociedade contemporânea. Vale dizer que o estabelecimento de regras procedimentais vaiao encontro do reconhecimento de que o próprio discurso jurídicofunde-se na teia comunicativa da sociedade global. Logo, a partirdessa possibilidade (contrutiva) de abertura pelo fechamento (regrasprocedimentais internamente desenvolvidas capazes de estabelecercritérios de abertura), tornam-se possíveis outras observações sobreo fenômeno jurídico contemporâneo, notadamente em relação ao fatode que o próprio código Direito/não Direito escapa da centralidadeestatal, fragmentando-se em um incontável número de manifestaçõesdifusas que, igualmente, operam sob tal distinção.(RE) PENSANDO dIREITO 153
PAULO ROBERTO RAMOS ALVES O Direito, desse modo, é capaz de delegar a capacidade epistê- mica a um incontável número de atores descentralizados, identifica- dos como organizações formais igualmente capazes de operar com a codificação Direito/não Direito em seus âmbitos particulares. Logo, em determinadas situações, o Direito não se ocuparia com constru- ções materiais da realidade,37 mas evidenciaria procedimentalmente a capacidade cognitiva de organizações descentralizadas sem que, com isso, atribuísse a racionalidade jurídica a outros discursos sociais. Tais regras procedimentais podem ser entendidas como uma alternativa para se situar a prática jurídica entre a armadilha do solipsismo e a heteronomia sistêmica ante a hipercomplexidade da sociedade contemporânea. A procedimenalização do processo cogni- tivo, assim, deve ser compreendida como uma seleção daquilo a ser observado e da maneira como o Direito observa, sendo possível ao próprio sistema jurídico38 estabelecer critérios de observação como forma de harmonização de conflitos cognitivos entre os diversos sis- temas sociais. Considerações Finais A teoria autopoiética oferece uma robusta base teórica para a compreensão do fenômeno social contemporâneo. Com a ideia de sistema a ação humana cede espaço à contemplação da comunicação como fenômeno essencialmente social, do qual é impossível prescin- 37 Teubner, Gunther. El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global, 2005b. p. 65. 38 Vale dizer que tais operações são levadas a efeito pelos tribunais, que, conforme Luhmann, são organizações que ocupam o centro do sistema jurídico, ao passo que a legislação e outras manifestações jurídicas ocupam a periferia do sistema. Luhmann, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. Ajuris, Porto Alegre, Ajuris, n. 49, ano XVII, p. 160, jul. 1990a.154 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOdir. Assim, tanto a sociedade quanto os demais discursos sociais,como o Direito, a política, a Economia, a educação, etc., são nada maisdo que comunicações passíveis de operacionalização. Precisamente pelo fato de a sociedade constituir-se comunicati-vamente há uma incrível pluralidade discursiva, isto é, há o constan-te processo de diferenciação no âmbito do sistema social, viabilizan-do, por isso, uma imensa fragmentação de sentido entre os diversosdiscursos e, logo, surgindo o problema do conflito comunicativo entretais centros cognitivos autônomos. Isso se torna um problema para oDireito quando a verdade jurídica particular colide com outras cons-truções de realidade, como a verdade científica ou econômica. Porisso, há a necessidade do estabelecimento de critérios de harmoni-zação entre o Direito e outras formas comunicativas presentes nasociedade contemporânea. Essa colisão entre diferentes racionalidades comunicativasevidencia a necessidade de construção de novos pressupostos jurí-dicos, nos quais sejam levados em consideração a complexidade quepermeia a sociedade diferenciada funcionalmente, estabelecendo-se, desse modo, a dispersão do processo de cognição jurídica a umincontável número de racionalidades concorrentes que, por sua vez,também são capazes de observar a realidade mediante a distinçãoprópria do sistema jurídico. O problema dos conflitos entre o Direito e os demais discursossociais é uma realidade evidente e presente no cotidiano das opera-ções sociais. Pela procedimentalização do processo cognitivo, o Direitopode estabelecer critérios prévios de verificação e operacionalizaçãode construções de realidade, ainda que esta paradoxal construção,internamente desenvolvida, possa ser vista tal como a ilustração doBarão de Münchhausen quando, puxando-se pelos próprios cabelos,consegue sair de um atoleiro.(RE) PENSANDO dIREITO 155
PAULO ROBERTO RAMOS ALVESReferênciasCARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsa-bilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Univer-sitária, 2008.CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosa-rio sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Barcelona: Anthropos,1996.KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes,2000.LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. Aju-ris, Porto Alegre, Ajuris, n. 49, ano XVII, p. 160, jul. 1990a.______. O conceito de sociedade. In: NEVES, Clarissa Eckert Baeta;SAMIOS, Eva Machado Barbosa (Org.). Niklas Luhmann: A novateoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora da Universidade; Goethe-Institut, 1997.______. O enfoque sociológico da teoria e prática do Direito. Seqüên-cia, Florianópolis: Fundação Boiteux, n. 28, jun. 1994.______. Sociedad y sistema: la ambición de la teoría. Barcelona: Paid-ós Ibérica, 1990b.______. The autopoiesis of social systems. In: GEYER, Felix; ZOU-WEN, Johannes van der (Eds.). Sociocybernetic paradoxes: observa-tion, control and evolution of self-steering systems. London: Sage,1986.______. A terceira questão: o uso criativo dos paradoxos no Direito ena história do Direito. Estudos jurídicas, São Leopoldo, n. 32, p. 46,jan./jun. 2006.______; DE GIORGI, Rafaelle. Teoría de la sociedad. México: Univer-sidad de Guadalajara; Universidad Iberoamericana; Iteso, 1993.156 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
CONFLITOS SISTÊMICOS E A PROCEDIMENTALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICOMAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. O uso criativo dos para-doxos do Direito. In: ROCHA, Leonel Severo. Paradoxos da auto-observação: percursos da teoria jurídica contemporânea. Curitiba:JM, 1997.MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhe-cimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo:Palas Athena, 2001.______. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo.3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo:Pioneira, 1974.PILAU SOBRINHO, Liton Lanes; ALVES, Paulo Roberto Ramos.Constituição, risco e a observação do futuro jurídico. In: RODRI-GUES, Hugo Thamir, PILAU SOBRINHO, Liton Lanes (Org.). Cons-tituição e política na atualidade. Porto Alegre: s.n., 2010.QUEIROZ, Marisse Costa de. O Direito como sistema autopoiético:contribuições para a sociologia jurídica. Seqüencia, Florianópolis:Fundação Boiteux, n. 46, jul. 2003.ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista aoconstrutivismo sistêmico. In ______; SCHWARTZ, Germano; CLAM,Jean. Introdução à teoria do sistema autopoietico do Direito. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 9-48.ROCHA, Leonel Severo. Observações sobre a observação luhmannia-na. In: ROCHA, Leonel Severo; KING, Michael; SCHWARTZ, Ger-mano. A verdade sobre a autopoiese no Direito. Porto Alegre: Livrariado Advogado, 2009.(RE) PENSANDO dIREITO 157
PAULO ROBERTO RAMOS ALVESSCHWARTZ. Germano. A fase pré-autopoiética do sistemismo luh-manniano. In: ROCHA, Leonel Severo; ______; CLAM, Jean. Introdu-ção à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livrariado Advogado, 2005. p. 49-85.TEUBNER, Gunther. As duas faces de Janus: pluralismo jurídico nasociedade pós-moderna. In: ______. Direito, sistema e policontextura-lidade. Piracicaba: Unimep, 2005a.______. El derecho como sistema autopoiético de la sociedad global.Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2005b.______. O Direito como sistema autopoiético. Lisboa: FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1989. Recebido em: 23/8/2010 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011 Aprovado em: 5/10/2010158
Os Novos Meios de“Ser Família” no Brasile a Mediação Familiar1 Fabiana Marion Spengler2ResumoO presente artigo se propõe a abordar a mediação como uma prática mais adequada qualitativae quantitativamente no tratamento de conflitos familistas. Considerada como uma arte, a análiseda mediação terá como fio condutor o restabelecimento da comunicação entre as partes, sem aimposição de regras, auxiliando-as a chegar a um reconhecimento recíproco que produza uma novapercepção do conflito. Como possui uma cadência temporal própria, a mediação pode organizar asrelações familiares, auxiliando os conflitantes a tratarem os seus problemas com autonomia, redu-zindo a dependência de um terceiro (juiz), possibilitando o entendimento mútuo e o consenso.Palavras-chave: Conflito. Jurisdição. Mediação. Direito de família. Consenso.1 O presente texto foi elaborado a partir de pesquisa realizada junto ao projeto intitu- lado “Mediação de conflitos para uma justiça rápida e eficaz” financiado pelo CNPq (Edital Universal 2009 – processo 470795/2009-3) e pela Fapergs (Edital Recém- Doutor 3/2009, processo 0901814) coordenado pela autora.2 Doutora em Direito pelo programa de Pós-Graduação stricto sensu da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos – RS, mestre em Desenvolvimento Regional, com concentração na área Político Institucional da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc – RS, docente dos cursos de Graduação e Pós-Graduação lato e stricto sensu (Mestrado e Doutorado) da última instituição, coordenadora do Grupo de Estudos “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos” vinculado ao CNPq, coordenadora do projeto de pesquisa “Mediação de conflitos para uma justiça rápida e eficaz” finan- ciado pelo CNPq (Edital Universal 2009 – processo 470795/2009-3) e pela Fapergs (Edital Recém-Doutor 3/2009, processo 0901814), coordenadora e mediadora judicial junto ao projeto de extensão “A crise da jurisdição e a cultura da paz: a mediação como meio democrático, autônomo e consensuado de tratar conflitos”, advogada.(RE) PENSANDO dIREITO • Editora Unijuí • ano 1 • n. 1 • jan./jun. • 2011 • p. 159-184
The new ways of “being family” in Brazil and the Family MediationAbstractThis article looks at mediation as the most appropriate qualitative and quantitative practice for theresolution of conflicts within families. It is consider to be an art, and the mediation has, as itsobjective, the re-establishment of communication between the participants, without the impositionof rules, thereby helping to reach a reciprocal recognition that can produce a new perception of theconflict. The mediation takes time, and can help organize family relationships, helping the participantsresolve their problems with autonomy, thereby reducing the dependence on a third person (judge),and making it possible for mutual understanding and consensus.Keywords: Conflict. Jurisdiction. Mediation. Family law. Consensus.
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIAR A família é, com certeza, uma das instituições que mais alte-rações sofreu na era moderna, passando por diversas fases, desdeos aspectos religiosos pelos quais era permeada, na reprodução deum modelo de discriminação da mulher, no estereótipo do homemmachista e dominador (chefe do casal), circulando pela desigualdadede tratamento entre filhos biológicos e adotivos e pela paternidadeirresponsável. Fomentada pela evolução social, essa visão estreita dafamília começou a ganhar abertura e foi, gradativamente, alcançandooutros contornos.3 Tais alterações do núcleo e dos costumes familiares ocorre-ram principalmente em razão de uma “crise familiar” Nesse sentido,objetiva-se discutir a desinstitucionalização/desconstrução do modelofamiliar a partir das crises pelas quais passam as instituições moder-nas, sem contudo ter a pretensão de analisar demoradamente cadauma delas e centrando a discussão na família e no tratamento4 de3 É por isso que, na concepção de Maria Berenice Dias, atualmente não podemos mais falar de um Direito “de” família e sim de um Direito “das” famílias, tal é a pluralidade e a diversidade de relações por elas abarcadas e as formas pelas quais são constitu- ídas. Nesse sentido ver: Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo: RT, 2007.4 Aqui, utilizar-se-á a expressão “tratamento” em vez de “resolução” de conflitos, jus- tamente por entender que os conflitos sociais não são “solucionados” pelo Judiciário no sentido de resolvê-los, suprimi-los, elucidá-los ou esclarecê-los. Isto porque “a supressão dos conflitos é relativamente rara. Assim como relativamente rara é a ple- na resolução dos conflitos, isto é, a eliminação das causas, das tensões, dos contrastes que os originaram (quase por definição, um conflito social não pode ser “resolvido”).” (Bobbio, Norberto; Pasquino, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução de Car- mem C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini. 12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. p. 228). Por conseguinte, a expressão “tratamento” torna-se mais adequada enquanto ato ou efeito de tratar ou medida terapêutica de discutir o conflito buscando uma resposta satisfativa. Sobre o assunto ver também Bolzan de Morais, José Luis; Spengler, Fabiana Marion. Media- ção e arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.(RE) PENSANDO dIREITO 161
FABIANA MARION SPENGLER seus conflitos. Analisar a desconstrução5 que o modelo familiar vem sofrendo com o passar do tempo é importante quando o que se pre- tende debater é o modo mediante o qual os conflitos familiares estão sendo tratados. Nesse sentido o que se verifica é que a família mudou e essa é uma realidade absoluta, no entanto a jurisdição ainda decide os conflitos familiares com a utilização de velhas “molduras”, ou seja, a família mudou, mas a concepção processual de seus conflitos, base- ada em ritos inflexíveis e em legislações muitas vezes inadequadas, continua a mesma. Isso posto, a proposta é abordar a mediação como uma prática mais adequada qualitativa e quantitativamente no tratamento de conflitos familistas. Definida como uma arte, “a arte de compartir”,6 sua análise terá como fio condutor o restabelecimento da comunicação entre as partes, sem a imposição de regras, auxiliando-as a chegar a um reconhecimento recíproco que produza uma nova percepção do conflito. Possuidora de uma cadência temporal própria, colocando-se “entre” as partes e agindo como instrumento de justiça social, a mediação pode organizar as relações familiares, auxiliando os con- flitantes a tratarem os seus problemas com autonomia, reduzindo a dependência de um terceiro (juiz), possibilitando o entendimento mútuo e o consenso. Sem abordar a teoria do conflito e as demais práticas de ADR (Alternative Dispute Resolution) por uma questão de limitação de espaço, o presente texto propõe pensar a mediação familiar não ape- 5 Sobre a construção e a desconstrução de modelos familiares é importante a leitura de Grunspun, Haim. Mediação familiar. O mediador e a separação de casais com filhos. São Paulo: LTr, 2000, especialmente p. 65-86. 6 Warat, Luiz Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fun- dação Boiteux, 2004. p. 40.162 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIARnas como meio de acesso à justiça, aproximando o cidadão comume “desafogando” o poder Judiciário. Pretende-se “discutir mediaçãofamiliar” enquanto meio de tratamento de conflitos não só quanti-tativamente, mas qualitativamente mais eficaz, proporcionando àspartes a reapropriação do problema, responsabilizando-se por suasescolhas e jurisconstruindo7 os caminhos possíveis. Assim, sendo essa a proposta de discussão, é importante queprimeiramente se mencione a noção exata do que se pretende ao dis-cutir a crise familista e as dificuldades atuais de tratar os conflitosdela advindos.A Desinstitucionalização do ModeloFamiliar e os Novos Meios de “Ser Família” Na verdade, para falar de desinstitucionalização do modelofamiliar é preciso iniciar delimitando os contornos da palavra crisepara, a partir dela, entabular as discussões propostas. Desse modo,Jean André Arnaud observa que, ao falar em “crise”, é possível come-çar exatamente da mesma maneira em Filosofia ou História dasCiências, Medicina, Psiquiatria ou Economia. Consequentemente,existe um conjunto de traços comuns a toda crise, desde que se situea análise a um nível profundo, ou seja, das estruturas reais do fenô-meno estudado. “Com efeito, a crise aparece então como um momentono qual se inicia o jogo do par de oposição continuidade/ruptura”.87 O termo “jurisconstrução” é um neologismo jurídico criado por José Luis Bolzan de Morais. Vide Bolzan de Morais, José Luis; Spengler, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.8 Arnaud, Jean André. O Direito traído pela filosofia. Tradução de Wanda de Lemos Capeller e Luciano Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 171.(RE) PENSANDO dIREITO 163
FABIANA MARION SPENGLER Ao discorrer sobre continuidade/ruptura, porém, é necessário supor uma “intervenção bastante forte para criar um risco de rup- tura no seio de um estado de coisas, de uma ‘ordem’ até então não contestada... ou pelo menos não colocada em questão”. Diante de tal situação é suficiente dizer que “estamos em crise”: convém, além disso, precisar “em que medida a crise se revela ameaçadora numa intervenção determinada, que continuidade se encontra em perigo, de qual ordem ela é passível de arruinar a estabilidade”.9 Com relação à crise da família brasileira, a ruptura ocorreu (e continua ocorrendo) em virtude de sua reestruturação, na nova distribuição de papéis, na valorização da igualdade entre os cônjuges, na impossibilidade de discriminação quanto aos filhos, nas novas maneiras de constituir e ser família (família monoparental, unipes- soal, matrimonial, unida estavelmente, homoafetiva, família pluripa- rental...) e na valorização do afeto independentemente da existência de diversidade sexual nas relações. Desse modo, a família hoje é vista como “um istituto storicamente e socialmente condizionato: le sue funzioni e la sua struttura mutano nelle diverse società, evolvo di pari passo com le trasformazioni economiche, sociali, culturali, e sono profondamente condizionate dal fattore religioso”.10 Assim, as crises e consequentes influências econômicas, cultu- rais e sociais que foram experimentadas pela sociedade, pelo Estado e pelo Direito também foram fatores importantes na (des)construção do atual modelo familista. Por conseguinte, a proposta é discutir a família como uma ins- tituição que, como as outras, sofre influências sociais, culturais e econômicas, passando por crises que invariavelmente redundam na 9 Arnaud, 1991, p. 172. 10 Ferrando, Gilda. Manuale di diritto di famiglia. Roma-Bari: Laterza, 2005. p. 3.164 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIARsua transformação. Pode-se dar início mencionando que no século19, a família até então extensa aos poucos começa a se desagregar,perdendo, gradativamente, o sentimento de solidariedade, ao mesmotempo, o espaço familiar se transforma, e o fundamento da famíliaperde seu caráter institucional. Desse modo, segundo Arnaud, o queresta da família é percebido como lugar da “tirania”, ela passa a servista “como estrutura de opressão”, que foi retomado pelas “femi-nistas às quais se deve um certo número de melhorias ulteriores dasituação da mulher casada no seio da célula familiar”. Posteriormenteesse mesmo discurso foi feito pelos defensores dos direitos da criançae do adolescente e do idoso com grande sucesso.11 Agora estamos diante de uma profunda mutação da família. Osdemógrafos e os sociólogos observaram que o vínculo afetivo se sobre-pôs à concepção da família como espaço econômico. Assim, a mutaçãofamiliar demanda: sua evolução, sua natureza dupla (o que significaser, ao mesmo tempo, fenômeno de direito e fenômeno de costumes),bem como os problemas que suas diversas funções, econômica, sociale afetiva colocam. Desse modo, a família se tornou tão importante na produção denormas de regulamentação social que, hoje, se fala, juntamente comuma política legislativa da família, de políticas públicas de famíliaou simplesmente de uma política da família. O que absolutamentenão implica, como observa um especialista, que “o que se poderiachamar de privatização da família ou de sua desinstitucionalização,[...] signifique [...] uma autonomização da estrutura familiar em rela-ção à intervenção pública. A partir daí pode-se demonstrar que uma11 Arnaud, André-Jean. O Direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do Direito e do Estado. Tradução de Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 86.(RE) PENSANDO dIREITO 165
FABIANA MARION SPENGLER política familiar deve ser concebida como uma vontade política de promoção e de proteção bem afastada de “uma submissão pragmática e sem linha diretora às urgências do momento”.12 Nesse contexto Luiz Edson Fachin salienta a desinstituciona- lização do modelo familiar ao analisar várias fotografias minuciosa- mente descritas. Mostra as principais mudanças do núcleo familiar com o passar do tempo apontando para a falência de determinados dogmas até então predominantes. Ressalta a existência de “uma certa liberdade de escolha e a valorização do sentimento de eleição afetiva”, de modo que o modelo clássico começa a ruir. Paulatinamente nasce a “família moderna, com a progressiva eliminação da hierarquia, emer- gindo uma restrita liberdade de escolha; o casamento fica dissociado da legitimidade dos filhos. Começam a dominar as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação. Proclama-se a concepção eudemo- nista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento”.13 Desse modo, aspira-se à felicidade.14 A desinstitucionalização do modelo familiar até então vigente determina inovações na interpretação e aplicação do texto legal que já não podem ocorrer de forma cartesiana. Essas necessidades vão além da legislação até então posta, novos questionamentos se impõem e a certeza e segurança se dissolvem com o tempo. 12 Arnaud, 1999, p. 87- 88. 13 Fachin, Luiz Edson. A desinstitucionalização do modelo familiar: possibilidades e paradoxos sob o neoliberalismo. In: Mello, Celso de Albuquerque (Coord.). Anuário direito e globalização – a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 207-219. 14 A evolução do Direito de Família segue, neste sentido, uma evolução social que, recuperando a singularidade da experiência humana, faz da liberdade a verdadeira protagonista da diversificação das estruturas familiares (Zambrano, Virgínia. Con- flitos familiares e técnicas de desincentivação da “litigation”. A mediação familiar na experiência européia. In: Spengler, Fabiana Marion; Rosa, Alexandre Morais da. Mediação e justiça restaurativa: alternativas à uma jurisdição em crise. (No prelo)).166 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIAR Especificamente sobre tempo, segurança e certeza, FrançoisOst trabalha os laços familiares ressaltando que “a família foi ainstituição que, por excelência, resistia ao tempo: a base estável dapertença, fundada na natureza, que garantia a impossibilidade daaliança e a perenidade do parentesco”. Desse modo, a resistênciatemporal se dava por meio da articulação da diferença entre os sexose as gerações, de modo que os papéis e lugares eram distribuídosoferecendo a cada pessoa “um tempo estabilizado que podia signifi-car segurança e desenvolvimento”. A evolução, contudo, libertou afamília das amarras religiosas e tornou-a contratual, baseada nasvontades livres e iguais dos seus protagonistas. Desse modo a famí-lia deixou de desafiar o tempo para se expor a ele, como todo o resto.Por conseguinte, “chamada a construir o tempo – o tempo negociávelda aliança, e o tempo incondicional da parentalidade e, em caso dedivórcio ou separação, os tempos da ‘antiga’ e da ‘nova’ família – naincerteza das referências”.15 Assim, a família deixou de ser a instituição encarregada deassegurar a prole legítima e a transmissão do patrimônio, aquela quegarantia a distribuição dos papéis e de lugares para se transformarnuma rede de relações afetivas, sentimentais e de solidariedade, naqual se aposta na construção de laços de afeto baseados nas identida-des pessoais de cada um dos seus componentes e na interação entreseus membros. Desse modo, teríamos um mundo no qual as relaçõesfamiliares seriam escolhidas, a paternidade afetiva se sobreporia àpaternidade registral e à paternidade biológica. Esse novo modelopropõe que o rompimento da sociedade conjugal ocorresse quando oafeto, o companheirismo e os objetivos comuns já não existissem.15 Ost, François. O tempo do Direito. Tradução de Maria Fernanda Oliveira. Edusc, 1999. p. 384.(RE) PENSANDO dIREITO 167
FABIANA MARION SPENGLER A ruptura ocorre diante do fato de que a sociedade precisa de ficções que possam dizer “quem é quem relativamente a quem”, poupando os indivíduos da “tarefa delicada de ter de se fundarem a si mesmos”.16 É como se a ruptura, “referindo o indivíduo a um corpo colectivo socialmente instituído, lhe conferisse uma identidade mais forte e mais estável, fonte de reconhecimento e de estatuto: algo dife- rente da dependência instável das trajectórias de vida individuais submetidas à sedução, mas também à ameaça do olhar do outro”.17 Segundo Ost, no entanto, é preciso questionar se a definição do elo familiar fica, então, remetida à vontade dos indivíduos, sen- do tudo permitido. O mesmo autor responde: às vezes, parece que sim, quando se examinam certos pedidos dirigidos aos tribunais. Por exemplo, o dos avós desejosos de adotar o neto, expondo-o assim a tornar-se irmão de sua mãe. Poderemos, contudo, censurar as vonta- des, sem dúvida bem intencionadas, de transgredir as diferenças de idade, haja vista a lei ter renunciado a dizer a priori o sentido dessas relações? E que pensar dos pedidos, muito numerosos, dos padrastos e madrastas que desejam proceder à adoção plena do filho do seu côn- juge, o que tem como consequência cortar qualquer vínculo jurídico com o outro progenitor da criança, bem como com a sua linhagem: ter-se-á o direito de pôr assim um termo a toda uma parte da história pessoal da criança?18 16 Exemplificando essa necessidade de absorver papéis e condutas postos e impostos socialmente Simone de Beauvoir explica a submissão do sexo feminino ao masculi- no como um caminho nefasto e passivo, alienado, perdido, no qual a mulher, para não precisar fundar-se a si mesma, aceita o papel que lhe é imposto pelo homem, evitando, assim “a angústia e a tensão da existência autenticamente assumida” (Beauvoir, Simone de. O segundo sexo. 1. fatos e mitos. Tradução de Sérgio Millet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [198?]). 17 Ost, François. O tempo do Direito. Tradução de Maria Fernanda Oliveira. Edusc, 1999. p. 386. 18 Ost, op. cit., p. 389.168 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIAR Por conseguinte fica como proposta do referido autor a possi-bilidade da “emergência de duas figuras de compromisso originais: ainvenção de um tempo conjugal mais permanente, apesar e além daseparação, e a instalação de um tempo parental mais aberto, flexível eplural, devido à recomposição familiar que terá ocorrido com frequência. Noprimeiro caso, o tempo conjugal mais permanente, ainda que sepa-rados os cônjuges, pode ser traduzido por um novo modelo parentalque garanta à criança a responsabilização de ambos os genitores emsua criação e educação (poderíamos aqui fazer referência à guardacompartilhada).19 Desse modo teríamos um “casal parental” que pode“sobreviver ao casal conjugal”, acreditando que é possível divorciar-se do cônjuge, mas não dos filhos. “Inversamente, tornar o tempoparental aberto e plural significa inventar as figuras da “pluriparen-tabilidade”, correspondente às novas constelações familiares entre asquais a criança circula doravante”.20 Consequentemente, a desinstitucionalização da família a expõeao tempo, de modo que novos “tempos” precisam ser criados. O núcleofamiliar restrito e fechado em si mesmo, que anteriormente não sofrianenhuma ou quase nenhuma influência do Estado, agora vem substi-tuído por um novo modelo que absorve as transformações cotidianas.Assim, a família atual se apresenta “sequestrada e exposta” ao tempo,consequentemente precisa de novos “tempos” conjugais e parentaispara que possa oferecer respostas a questões prementes.19 Nesse sentido ver Spengler, Fabiana Marion; Spengler Neto, Theobaldo. Guarda compartilhada e o novo Código Civil Brasileiro. In: Spengler, Fabiana Marion; Spen- gler Neto, Theobaldo. Inovações em Direito e Processo de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.20 Ost, op. cit., p. 390-391.(RE) PENSANDO dIREITO 169
FABIANA MARION SPENGLER A Falência das Formas Tradicionais de Tratar os Conflitos Familistas e as Alternativas21 A discussão quanto à possibilidade de oferecer respostas aos atuais conflitos familiares geradores de novas formas de constituir e de ser família pode ser remetida ao poder Judiciário. A sociedade democrática atual permanece inerte enquanto suas contendas são decididas pelo juiz. Da mesma forma, como o cidadão de outrora espe- rava pelo Leviatã para que este fizesse a guerra em busca da paz, resolvesse os litígios e trouxesse segurança ao encerrar a luta de todos contra todos, atualmente vemos o tratamento e a regulação dos litígios serem transferidos ao Judiciário, esquecidos de que o conflito é um mecanismo complexo que deriva da multiplicidade dos fatores, que nem sempre estão definidos na sua regulamentação; portanto, não é só normatividade e decisão. Assim, unidos pelos conflitos, os litigantes esperam por um terceiro que os solucione. Espera-se pelo Judiciário para que decida sobre quem tem mais direitos, mais razão ou quem é o vencedor da contenda. Trata-se de uma transferência de prerrogativas não democrática que, ao criar “muros normativos”, engessa a solução da lide em prol da segurança, ignorando que a reinvenção cotidiana e a abertura de novos caminhos são inerentes a uma decisão demo- crática. 21 É importante referir que a palavra “alternativas” não pretende dar a ideia de uma “justiça alternativa” – nos moldes do direito alternativo – e sim de uma “alternativa” para a jurisdição, sinônimo de outra estratégia/possibilidade/opção para tratar a complexidade conflitiva atual. Essa outra alternativa/estratégia/possibilidade/opção não pretende suplantar as práticas de jurisdição tradicionais, propondo a coexistên- cia de ambas e trabalhando com a ideia de uma outra cultura (consensuada e mais democrática) de tratamento dos conflitos. Sobre o assunto: Bolzan de Morais, José Luis; Spengler, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição! 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.170 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIAR É por isso que precisam ser pensados mecanismos alternativosde tratamento dos conflitos, tais como a mediação, enquanto locusdemocrático que possua uma nova ideia de jurisdição, mais demo-crática, que trabalhe com a concepção de autorregulamentação dosconflitos por parte do sistema social, numa perspectiva democrática,redefinindo, de forma radical, o modelo de terceiro (que decide) e aforma de decisão, reconhecendo, ainda que de forma indireta, o papelnão exclusivo e pouco democrático da jurisdição. Justamente por isso a mediação surge como espaço democráticode decisão, uma vez que trabalha com a figura do mediador que, aoinvés de se posicionar em local superior às partes, põe-se no meiodelas, partilhando de um espaço comum e participativo, voltado paraa construção do consenso (e não como uma instância não estatal de“construção/imposição” de decisões), num pertencer comum, que pos-sa trabalhar com a ideia de uma nova democracia. Nesse contexto, a mediação é considerada atualmente umamaneira “ecológica de resolução dos conflitos sociais e jurídicos, umaforma na qual o intuito de satisfação do desejo substitui a aplica-ção coercitiva e terceirizada de uma sanção legal.22” Trabalha coma lógica na qual um “terceiro neutro tenta, através da organizaçãode trocas entre as partes, permitir a estas confrontar seus pontos devista e procurar, com sua ajuda, uma solução para o conflito que osopõe.23” O acordo final vertido da mediação “resolve o problema comuma solução mutuamente aceitável e será estruturado de modo amanter a continuidade das relações das pessoas envolvidas no con-22 Warat, Luis Alberto (Org). Em nome do acordo: a mediação no Direito. Florianópolis: Almed, 1998. p. 5.23 Bonafè-Schmitt, Jean Pierre. La Mediation: une justice douce. Paris: Syros, 1992. p. 16-17.(RE) PENSANDO dIREITO 171
FABIANA MARION SPENGLER flito.24” Diz-se dela que é uma forma consensuada de tratamento do litígio, uma vez que o terceiro mediador25 tem “um poder de deci- são limitado ou não autoritário, e que ajuda as partes envolvidas a chegarem voluntariamente a um acordo, mutuamente aceitável com relação às questões em disputa.26” Por isso, não se pode perder de vista a importância desta prática em uma sociedade cada vez mais complexa, plural e multifacetada, produtora de demandas que a cada dia se superam qualitativa e quantitativamente. Atualmente “a mediação é um salto qualitativo para supe- rar a condição jurídica da modernidade, que vem baseada no litígio e possuindo como escopo objetivo idealizado e fictício como é o de descobrir a verdade, que não é outra coisa que a implementação da cientificidade como argumento persuasivo.” Essa verdade27 deve ser “descoberta por um juiz que pode chegar a pensar a si mesmo como potestade de um semideus” na tentativa de “descoberta da verdade 24 Haynes, John M.; Marodin, Marilene. Fundamentos da Mediação Familiar. Tradu- ção de Eni Assunpção e Fabrizio Almeida Marodin. Porto Alegre: Artmed, 1996. p. 11. 25 Luis Alberto Warat afirma que a função do mediador é “provocar-te estimular-te, para te ajudar a chegar no lugar onde possas reconhecer algo que já estava ali (ou em ti)”. Esse é o papel do mestre, e também o papel do mediador (Warat, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 13). 26 Moore, Christipher W. O processo de mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 28. 27 A verdade formal que emerge do processo, das provas e da capacidade das partes de produzi-las, retrata um sistema tradicional de solução de conflitos que necessita de socorro. Na jurisdição tradicional, o Estado-juiz enquanto definidor dos direitos das partes, detentor do poder de estabelecer o melhor direito, decorre e depende que o litígio siga até o seu final. As partes, em regra, “ganham” e/ou “perdem”; o julgador decide quem tem o melhor direito e assim define. Ao contrário na mediação, as partes constituem, com o auxílio dos mediadores, um mecanismo capaz de gerir seus próprios conflitos (Bolzan de Morais, José Luiz; Spengler, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição! 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008).172 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIARque é só imaginária”.28 A ciência e o pensamento linear cartesianotêm como pressuposto evitar a dúvida, apontando o certo, o verdadei-ro, o indubitável. Desse modo, as verdades científicas impossibilitama indagação e o risco. A procura da verdade, nos termos da ciência mecanicista, é, porsi mesma, violenta. Traduz-se numa forma de manipulação do mundoe dos outros. Ninguém pode predizer o real, ninguém sabe o que vaiacontecer; por isso, as verdades como momentos predizíveis do saberda ciência são uma ficção, mito destinado a satisfazer nossa criançainsatisfeita e os lugares-comuns de medo, com as quais pretendemosdotar “de sentido o sentido da existência”.29 É por isso que a mediação não é uma ciência e sim uma arte eque o mediador não pode se preocupar em intervir no conflito ofere-cendo às partes liberdade para tratá-lo. A mediação, porém, suscitaum paradoxo composto pelo fato de dizer ao juiz que não desenvolvao papel que disseram ser o seu, isto é, deixar de decidir e adjudicarpara conciliar e mediar. Consequentemente, o que se pede é que paci-fique sem decidir, quando o seu papel é tradicionalmente o de decidirsem, necessariamente, pacificar. Nestes termos, se comparada a decisão judicial à composiçãoconsensuada entre as partes, percebe-se que a primeira tem por baseuma linguagem terceira normativamente regulada. Ao contrário, amediação desmancha a lide, decompõe-na nos seus conteúdos con-flituosos, avizinhando os conflitantes que, portanto, perdem as suas28 Warat, Luis Alberto (Org). Em nome do acordo: a mediação no direito. Florianópolis: Almed, 1998. p. 11.29 Warat, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 117-118.(RE) PENSANDO dIREITO 173
FABIANA MARION SPENGLER identidades construídas antagonicamente. A mediação pretende aju- dar as partes a desdramatizar seus conflitos, para que se transfor- mem em algo de bom à sua vitalidade interior. Contextualmente, enquanto em juízo tudo se movimenta em torno do magistrado (autoridade que tem poder de decidir e de dizer quem ganha e quem perde o processo), na mediação os conflitantes tomam em suas mãos a condução do litígio e o seu tratamento. A figura do mediador não possui papel central; via de regra, seu papel é secundário, seu poder de decisão é limitado ou não oficial; ele não pode unilateralmente obrigar as partes a resolverem a contenda ou impor decisão. Deve mediar as partes ou reconciliar os interesses conflitivos, conduzindo que elas concluam com o seu impulso a melhor solução.30 É nessa linha que a mediação como ética da alteridade31 reivin- dica a recuperação do respeito e do reconhecimento da integridade e da totalidade dos espaços de privacidade do outro, repudiando o mínimo de movimento invasor e dominador. A mudança de lentes ao olhar para os conflitos traz uma nova concepção deles. As divergên- cias passam a ser vistas como oportunidades alquímicas, as energias antagônicas como complementares, e o direito como solidariedade. As velhas lentes que fragmentavam, classificavam e geravam distâncias, 30 Bolzan de Morais, José Luis; Spengler, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 31 Sobre alteridade Warat escreve que “falar de alteridade é dizer muito mais coisas que fazer referência a um procedimento cooperativo, solidário, de mútua autocom- posição. Estamos falando de uma possibilidade de transformar o conflito e de nos transformarmos no conflito, tudo graças à possibilidade assistida de poder nos olhar a partir do olhar do outro, e colocarmo-nos no ligar do outro para entendê-lo a nós mesmos... Enfim, é a alteridade, a outridade como possibilidade de transformação do conflito, produzindo, no mesmo, a diferença com o outro... nesse sentido, também se fala em outridade ou alteridade: a revalorização do outro do conflito em detrimento do excessivo privilégio outorgando aos modos de dizer do direito, no litígio” (Warat, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 62).174 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIARvão para a lixeira. Começamos a entender que cada homem não éuma mônada isolada, que não são fragmentos sem conexão. Cadaum é interdependente e produto forçado das interações. A sociedadeé unicamente produto da complexidade desses vínculos.32 Justamente por isso a mediação é, essencialmente, um procedi-mento democrático, porque rompe, dissolve os marcos de referência dacerteza determinados pelo conjunto normativo, postos e expostos deforma hierarquizada. É democrática quanto ao fundamento da relaçãode um com o outro, é uma aposta na diferença entre o tratamento dosconflitos de maneira tradicional (Estado produtor de regulação e dejurisdição, único meio de resposta) para uma alternativa partilhada econvencionada que tenha por base um direito inclusivo, que possa tra-balhar com uma matriz autônoma, cidadã e democrática, que seja umsalto qualitativo ao ultrapassar a dimensão de resolução adversária dedisputas jurídicas modernas, baseadas no litígio e apoiadas na cientifi-cidade que determina o descobrimento da verdade. A mediação, comoespaço de reencontro, utiliza a arte do compartir para tratar conflitose para oferecer uma proposta inovadora de pensar o lugar do Direitona cultura complexa, multifacetada e emergente do terceiro milênio.A Mediação Familiar Como Meio de Restabelecera Comunicação e Humanizar as Relações de Afeto Justamente por sofrer de modo direto a evolução social, e porrefletir essa evolução em seu contexto conflitivo, a família atual preci-sa de desdobrada atenção ao tratar os litígios advindos do elo conjugal/parental, especialmente aqueles decorrentes do seu rompimento.32 Warat, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 55.(RE) PENSANDO dIREITO 175
FABIANA MARION SPENGLER A mediação familiar poderá ser uma alternativa mais vanta- josa, mais próxima e menos dolorosa de tratamento desses conflitos, justamente porque é um procedimento interdisciplinar que pretende conferir aos seus envolvidos autonomização e responsabilização por suas próprias decisões, convidando à reflexão e ampliando escolhas e alternativas.33 É não adversarial, pois pretende desconstruir impas- ses que impedem a comunicação,34 transformando um contexto de confronto em contexto colaborativo. É um procedimento confiden- cial e voluntário no qual o mediador, terceiro imparcial, facilita e promove a comunicação entre os conflitantes. Consequentemente, o acordo pode ser um dos desfechos possíveis, mas ainda que ele não ocorra, se o diálogo amistoso foi restabelecido, a mediação poderá ser considerada exitosa. Nesse mesmo sentido, observa-se que a mediação familiar é um procedimento “imperfeito que emprega uma terceira pessoa imperfei- ta para ajudar pessoas imperfeitas a concluir um acordo imperfeito em um mundo imperfeito”.35 Especificamente no âmbito familista a mediação é o processo que, por meio do uso de técnicas de facilitação, aplicadas por um terceiro interventor numa disputa, estabelece o contexto do conflito 33 “La mediazione è uno strumento flessibile, che aiuta la famiglia a mettere in gioco le capacità di soluzione del disaccordo piutosto che lavorare sull’aument del disagio; si attua tra genitori e figli, tra marito e moglie, nella gestione di attività della fami- glia o nel dare risposta a problemi di vario genere: il cambiamento di residenza, la malattia dei nonni, la scelta degli studi, una decisione importante come comprare una casa, imbiancare l’appartamento, progettare le vacanze” (Giommi, Roberta. La mediazione nei conflitti familiari. Affrontare e risolvere i conflitti all’interno della famiglia, nella separazione e nel divorzio. Firenze: Giunti, 2006. p. 65). 34 Sobre o tema é importante a leitura de Rosenberg, Marshall B. Comunicação não- violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução Mário Vilela. São Paulo: Agora, 2006. 35 Marlow, Lenard. Mediación familiar – una práctica en busca de una teoria – una nueva visión del derecho. Barcelona: Granica, 1999. p. 31.176 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIARexistente, identifica necessidades e interesses, mediante recursosadvindos da Psicologia e da Assistência Social, produzindo decisõesconsensuais, posteriormente traduzidas em um acordo levado ou nãoà homologação. Justamente porque aplica os conhecimentos e os serviços deáreas próximas porém diferentes (Direito, Psicologia e Serviço Social)a mediação familista é considerada uma prática transdisciplinar quese utiliza do trabalho de um mediador e de um ou mais comediadores,que formam uma equipe multidisciplinar com várias competênciasque se complementam entre si, oferecendo às partes uma assistênciaintegral. O papel da transdisciplinaridade é justamente constituirum conhecimento em rede que permita a integração de diferentesparadigmas para atender necessidades diversas.36 Por conseguinte, enquanto instrumento de difusão e aprimo-ramento da prática e do pensamento interdisciplinar, a mediaçãoempresta ao fenômeno jurídico – e aqui leia-se Direito familista – anecessária visão da complexidade inerente ao ser humano. Tal se dáporque a mediação inter/transdisciplinar apela ao ser profissionalda área de Ciências Humanas, requerendo o exercício da empatia econtribuindo para a formação e prática de um novo paradigma quevá além da cultura do litígio.37 Nos procedimentos de mediação familiar algumas definiçõesse apresentaram após o desenvolvimento dos trabalhos: a) em casosde separação e divórcio o procedimento é feito com o casal, mas podeestender-se a todo o grupo familiar; b) o caminho para chegar ao acordo36 Muszkat, Malvina E. et al. Mediação transdisciplinar. Uma metodologia de trabalho em situações de conflito de gênero. São Paulo: Summus, 2008. p. 48-49.37 Goeninga, Giselle Câmara. Mediação interdisciplinar: um novo paradigma. In: Revista Brasileira de Direito de Família, v. 8, n. 40, p. 152-170, fev./mar. 2007.(RE) PENSANDO dIREITO 177
FABIANA MARION SPENGLER depende da habilidade do mediador e da disposição real de cada parte em mudar conceitos e atitudes próprias, evitando a conduta litigiosa; c) o mediador deve contar com o auxílio de um supervisor ou um come- diador, de preferência com qualificação profissional diferente da sua própria; d) o mediador trabalha com a relação familiar, com a relação do casal; e) os dois negociadores são pais e/ou duas pessoas que cons- truíram uma vida em comum, uma sociedade conjugal ou familiar; f) o consenso ajuda a reorganizar a vida comum do casal, em prol dos filhos, bem como a vida familiar no caso de contendas entre pais e filhos.38 O recurso à mediação familiar, entretanto, não intervém unica- mente em caso de divórcio ou de separação; a medida familiar recobre tudo o que diz respeito à família: as relações do casal, sim, mas tam- bém e tanto quanto as relações entre pais e filhos (qualquer que seja sua idade), nas relações entre irmãos e irmãs (por exemplo, em caso de sucessão, etc.), bem como todo o ambiente familiar. Da mesma forma, cumpre observar que nem todos os casos que envolvem o âmbito familiar são mediáveis. Existem limites para a utilização da prática mediativa. Existem, por exemplo, casos que envolvem violência conjugal que podem ser ou não objetos de medi- ção. Se temos um caso de violência doméstica física ou psíquica, tal- vez tenhamos uma mulher tão atemorizada que não consiga expor suas opiniões ou cuidar de seus interesses. Nesses casos a mediação pode não ser o melhor caminho.39 38 La mediazione è utile ogni volta Che in famiglia um problema tiene Le persone in uma situazione di stallo e quando non ci sono sufficienti risorse per prendere una deci- sione...un altro settore importante della mediazione è quello dell’aiuto alle famiglie che si ricompongono dopo la separazione: in questo caso si devono elaborare nuove regole fmiliari e risolvere i problemi delle convivenze complesse”. (Giommi, Roberta. La mediazione nei conflitti familiari. Affrontare e risolvere i conflitti all’interno della famiglia, nella separazione e nel divorzio. Firenze: Giunti, 2006. p. 65-66). 39 César-Ferreira, Verônica A. da Motta. Família separação e mediação uma visão psicojurídica. 2. ed. São Paulo: Método, 2007. p. 168.178 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIAR Tratando-se de um procedimento essencialmente voluntário,toda mediação que é imposta também se traduz em um procedimentopouco democrático, que não atingirá seus objetivos principais: resta-belecer a comunicação e o diálogo objetivando chegar ao acordo.40 Nesses casos, o que se pode propor como ética particular aomediador familiar? a) primeiramente uma ética do tempo. A justezae a prudência, neste domínio, consistem em prever o tempo que énecessário: nem muito pouco, pois trata-se de respeitar as matu-rações necessárias; nem demais, pois trata-se de não transformaras mediações em assistências passivas intermináveis; b) uma éti-ca também de espaço. O mediador não tem de tomar partido, eledeve guardar suas distâncias para continuar a ver claramente. Nãoé neutralidade fria, mas é necessidade de evitar o sentimentalismo.O mediador deve estabelecer um terceiro espaço, ser ele mesmo esteespaço intermediário. Convém também que o mediador estabeleça umcampo claro, no qual ele faça estritamente a mediação e que não sejaoutra coisa além de um mediador: um advogado, por exemplo, ou umpsicoterapeuta; c) enfim, uma ética da relação, na qual a mediaçãofamiliar seja primeiramente prevenção, que, como para a saúde, hajalevantamentos de saúde familiar mediante os quais se possa apelara um mediador com quem a família dialogaria pacificamente, antesmesmo que se declarasse um problema.4140 Esse é o posicionamento da maioria dos estudiosos do processo de mediação: ela somente será eficaz se for um procedimento voluntário, cuja escolha por aderir ou não pertence aos conflitantes, no entanto o projeto de lei (nº 4.827-b, DE 1998) que atualmente tramita prevê no seu artigo 34 a obrigatoriedade da mediação inciden- tal no processo de conhecimento, fazendo algumas ressalvas. Tal obrigatoriedade é motivo de muita polêmica. Sobre o tema é importante a leitura de Pinho, Humberto Dalla Bernardina. Teoria Geral da Mediação à Luz do Projeto de Lei e do Direito Comparado. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008.41 Six, Jean François. Dinâmica da mediação. Tradução de Giselle Groeninga de Almeida, Águida Arruda Barbosa e Eliana Riberti Nazareth. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 71-72.(RE) PENSANDO dIREITO 179
FABIANA MARION SPENGLER A mediação familiar brasileira (assim como aquela realizada em outras áreas do Direito) vem se desenvolvendo em sessões conjun- tas ou individuais (privadas) das quais participam todos os envolvidos no conflito e pretende: a) auxiliar a detectar as áreas geradoras da contenda; b) avaliar os motivos ocultos da mesma; c) direcionar para novas diretrizes de composição; d) impor restrições nas áreas em con- flito, para que ele não tome proporções inadequadas; e) demonstrar total imparcialidade do mediador, como pessoa a serviço de todos os envolvidos; f) finalizar com a redação de um acordo, se conseguido, pelos disputantes.42 Nota-se que no decorrer do processo de mediação vão sendo atribuídas aos conflitos diferentes significações. Assim sendo, ao terem esta percepção as partes, que acabam por se aceitarem como autores do problema, conseguem facilmente traçar a solução/forma de tratamento mais vantajosa. Atualmente aqueles que trabalham com a mediação reconhe- cem inúmeras vantagens nesse instituto, dentre elas: é um procedi- mento voluntário e sigiloso, trazendo certa tranquilidade às partes, especialmente nas disputas que determinam privacidade; as partes envolvidas, geralmente, rateiam os custos e honorários, custos estes que, normalmente, são muito inferiores aos casos que passam por um julgamento, além da menor burocracia, e, principalmente, reduz em muito o sentimento de ansiedade que os envolvidos experimentam. A mediação familiar pode ser, muitas vezes, a única forma de gestão democrática dos conflitos. Além disso, ela pretende, nas exatas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira,43 que o Judiciário deixe de ser 42 Conforme Cachapuz, Rozane da Rosa. Mediação nos conflitos e Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2009. p. 49. 43 Pereira, Rodrigo da Cunha. A culpa no desenlace conjugal. In: Leite, Eduardo Oli- veira; Wambier, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Repertório de Doutrina sobre Direito de Família. São Paulo: RT, 2009. p. 326-327. V. 4.180 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
OS NOVOS MEIOS DE “SER FAMÍLIA” NO BRASIL E A MEDIAÇÃO FAMILIAR o lugar onde as partes depositam os seus restos. O resto do amor e de uma conjugalidade que deixa sempre a sensação de que alguém foi enganado, traído. Como a paixão arrefeceu e o amor obscureceu, o “meu bem” transforma-se em “meus bens”. E aí um longo e tene- broso processo judicial irá dizer quem é o culpado da separação. Enquanto isso, não se separam. O conflito, aliás, é uma forma de não se separarem, pois enquanto dura o litígio a relação continua. Já que não podem se relacionar pelo amor, relacionam-se pela relação prazerosa da dor. Não se pode esquecer que acessar à Justiça é um direito docidadão, mas, mais do que isso, mais do que ser ouvido pelos tri-bunais, ele tem direito a uma prestação jurisdicional tão ou maisqualitativa do que quantitativa e isso só se dará quando a comple-xa sociedade atual sobrepujar o modelo conflitivo e substituí-lo porum modelo que possa “jurisconstruir” o tratamento dos conflitos. Amediação pode ser esse salto de qualidade!ReferênciasARNAUD, André-Jean. O Direito entre modernidade e globalização:lições de filosofia do Direito e do Estado. Tradução de Patrice CharlesWuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.______. O Direito traído pela filosofia. Tradução de Wanda de LemosCapeller e Luciano Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,1991.BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 1. fatos e mitos. Traduçãode Sérgio Millet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [198?].(RE) PENSANDO dIREITO 181
FABIANA MARION SPENGLER BOBBIO, Norberto; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução de Carmem C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini. 12. ed. Brasília: Univer- sidade de Brasília, 2004. BOLZAN DE MORAIS, José Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. BONAFÈ-SCHMITT, Jean Pierre. La Mediation: une justice douce. Paris: Syros, 1992. CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Mediação nos conflitos e Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2009. CÉSAR-FERREIRA, Verônica A. da Motta. Família separação e mediação uma visão psicojurídica. 2. ed. São Paulo: Método, 2007. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo: RT, 2007. FACHIN, Luiz Edson. A desinstitucionalização do modelo familiar: possibilidades e paradoxos sob o neoliberalismo. In: MELLO, Celso de Albuquerque (Coord.). Anuário direito e globalização – a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 207-219. FERRANDO, Gilda. Manuale di diritto di famiglia. Roma-Bari: Laterza, 2005. GIOMMI, Roberta. La mediazione nei conflitti familiari. Affrontare e risolvere i conflitti all’interno della famiglia, nella separazione e nel divorzio. Firenze: Giunti, 2006. GOENINGA, Giselle Câmara. Mediação interdisciplinar: um novo paradigma. In: Revista Brasileira de Direito de Família, v. 8, n. 40, fev./mar. 2007.182 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
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Do Isolamento à Abertura:uma opção pela lucidez Patrícia Maino Wartha1ResumoO presente artigo pretende analisar a atividade jurisdicional de resolução de conflitos e de realizaçãodos direitos fundamentais no ordenamento brasileiro e a crise com a qual se depara, propondo umresgate à participação social e principalmente à preocupação com o “social” propriamente dito,haja vista que, apesar de o individualismo representar uma ideologia advinda desde o berço dascivilizações,2 na atualidade, era denominada pós-moderna, a essência individualista parece estarainda mais aguçada, o que deve indubitavelmente ser revisto, uma vez que o futuro pressupõeprosperidade e não retrocesso.Palavras-chave: Individualismo. Coletividade. Crise. Jurisdição. Processo.1 Advogada, coordenadora do núcleo de práticas jurídicas do Centro de Ensindo Supe- rior Cenecista de Farroupilha e mestranda em Direito Público pela Unisinos. E-mail: [email protected]; [email protected] Controvérsias à parte, como o caso de Norbert Elias que discorda de inicialmente ter- se indivíduos isolados como átomos na sociedade, sendo a sociedade algo posterior ao indivíduo, sendo que para o estudioso: “Todo indivíduo nasce num grupo de pessoas que já existiam antes dele. E não é só: todo indivíduo constitui-se de tal maneira, por natureza, que precisa de outras pessoas que existam antes dele para poder crescer”. In: Elias, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. p. 26-27. Outros numerosos doutrinadores asseveram que o indivíduo desde sua ori- gem emanava o caráter individualista, e que esse viés progrediu. Dumont explica que o avanço do individualismo teve início no século 13, por meio da emancipação da categoria denominada política e do nascimento da instituição denominada Estado. Trata ainda da emancipação da categoria econômica, a partir do século 17, que também significa, no que diz respeito à religião, à política, à Igreja e ao Estado, um progresso do individualismo. É importante destacar ainda, nesse contexto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão adotada pela Assembleia Constituinte no verão de 1789, que marca o triunfo do indivíduo, como afirma Louis Dumont In: Dumont, Louis. O individualismo: uma pers- pectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 36, 109.(RE) PENSANDO dIREITO • Editora Unijuí • ano 1 • n. 1 • jan./jun. • 2011 • p. 185-216
The Opening of Isolation: an option for clarityAbstractThis article aims to analyze the jurisdictional activity of conflict resolution and realization of funda-mental rights in the land of Brazil and the crisis which faces, offering a ransom to social participationand especially the concern with “social” itself, considering that, despite individualism represent anideology arising out from the cradle of civilizations, in actuality, it was called post-modern, individua-listic essence seems to be even more acute, which should undoubtedly be revised once the futureprosperity and assumes no setback.Keywords: Individualism. Community. Crisis. Jurisdiction. Procedure.
DO ISOLAMENTO À ABERTURA O viés individualista está presente em todas as esferas, emtodas as relações, e em se tratando de crises enfrentadas na atualida-de, na alusão ao caso brasileiro, e até em proporções globais, quanto àjurisdição e processo, constata-se que esse individualismo insistenteé suficientemente maléfico para ser considerado um dos causadoresdas complexidades nessa seara. Ao se tornar empecilho ao processo como locus de participaçãopopular, cria-se o conflito que vem a se transformar em crise, porvezes de proporções incalculáveis. Ao intitular o presente artigo de “Do isolamento à abertura:uma opção pela lucidez”, propõe-se a substituição do caráter indivi-dualista cunhado no isolamento pela adoção do viés coletivo, partindodo processo como locus de participação popular segundo a princi-piologia constitucional. Pretende-se, portanto, tratar de um futurorelacionado à visibilidade e concomitantemente à prosperidade e nãoao retrocesso, sendo necessário, para tanto, a superação do caráterindividualista, no sentido egoísta do termo, e optar pela coletividade,pela participação popular e pelos direitos a ela inerentes. Nesse liame, inicialmente para se projetar o futuro é inevitáveldiagnosticar a crise enfrentada pela jurisdição e processo, transitan-do pelo passado e avaliando o presente, tratando de conceitos que aeste estudo são primordiais: individualismo e participação popular,retratados sob a perspectiva de superação da cegueira ideológica e aopção pela lucidez. Em busca do(s) agente(s) causador(es) da crise pela qual passaa atividade jurisdicional de resolução de conflitos e de realização dosdireitos fundamentais, tenciona-se abandonar a cegueira, incutidano viés individualista, e adotar a visibilidade sob uma perspectivacoletiva, constitucional, participativa e global, às vistas da concreti-zação de direitos sociofundamentais.(RE) PENSANDO dIREITO 187
PATRÍCIA MAINO WARTHA Jurisdição e processo: complexidades na instrumentalização do Estado Democrático de Direito Tendo como principais instrumentos do Estado Democrático de Direito a jurisdição e o processo, essenciais para a manutenção da estabilidade social e das instituições, mostra-se importante iden- tificar seus problemas e compreender as origens e os efeitos de sua crise. Os principais problemas enfrentados nesse cenário são a judi- cialização da política, a explosão da litigiosidade e o esvaziamento do espaço público e da democracia, originado das crises da moder- nidade. O individualismo que resulta no paradigma hermenêutico liberal-individualista-normativista3 talvez seja o maior gerador dos problemas. Um dos principais fenômenos observados hoje no seio da juris- dição é a judicialização da política apontada por Garapon, fato que fez com que o centro de gravidade das lutas políticas da democracia fosse transferido para o Judiciário.4 O fenômeno, observável nos países desenvolvidos e também no Brasil, é ocasionado por três causas inter-relacionadas: 1) a autono- mização e o individualismo provocados pelo Estado-providência; 2) a crescente demanda de Estado, por meio da pressão pelos direitos 3 Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 17. 4 Garapon, Antonie. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de Carvalho. 2. ed Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 48.188 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
DO ISOLAMENTO À ABERTURAde 2.ª e 3.ª gerações, e 3) a ineficácia estatal, principalmente, pelaomissão dos seus poderes Legislativo e Executivo em tornar efetivosos direitos.5 Primeiramente e principalmente, o individualismo radical,seguido da irresponsabilidade social e da crescente demanda pordireitos, que também podem ser consequências do primeiro, fizeramcom que as lutas políticas fossem transferidas para o Judiciário,6fenômeno denominado judicialização da política. Algumas características da jurisdição, tais como neutralida-de, imparcialidade e coercibilidade, são verdadeiros abrigos para osdesafortunados da moderna sociedade;7 o que intencionalmente seriauma instância de exceção (ou negativa) torna-se a regra, passando atutelar a tudo e a todos. Segundo Garapon, os efeitos deste fenômeno são funestos, omais grave deles o aprofundamento do esvaziamento do espaço públi-co e da democracia, iniciado pelas crises da modernidade.8 Quanto à ineficácia do Estado brasileiro, pode-se afirmar,em linhas gerais, que é, em boa medida, derivada dos equívocosdas políticas públicas na realização da justiça social. Ancoradas emuma estratégia de caráter redistributivo e assistencial, estas políti-cas erigiram imensos aparatos burocráticos gratuitos sob uma base5 Santos, Boaventura de Souza. Reinventar a Democracia, Lisboa. Ed. Gradiva, 1997. p. 18.6 Garapon, Antonie. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de Carvalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 48.7 Garapon, Antonie. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de Carvalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 44.8 Garapon, Antonie. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de Carvalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 49.(RE) PENSANDO dIREITO 189
PATRÍCIA MAINO WARTHA político-estatal ainda clientelista e oligárquica, cujas promessas de justiça social desaguaram no mais puro assistencialismo populista e paternalista.9 Em não realizando as “promessas da modernidade”, como refe- re Streck, o Estado intitula-se o maior gerador de conflitos judiciais – a chamada explosão da litigiosidade.10 Parece que nossa realidade é mera encenação, uma vez que aparentemente estamos inseridos em um Estado Democrático de direito, no entanto a sociedade comporta- se como se fizesse parte de um Estado liberal e as crises são reflexo de um Estado social que nunca existiu.11 A ineficiência estatal na concretização de direitos sociais faz do Estado um dos principais geradores de conflitos judiciais. A jurisdição atua por meio do Direito Processual. Em vista disso deve se questionar se essa estrutura, sistemática e/ou funcio- nalidade processual é capaz de tratar dos problemas complexos da modernidade. E ainda, se está apto a tratar de tais problemas de forma compatível com a complexidade que apresentam e mais do que isso, se essa forma viabiliza ao processo a participação popular, fator indissociável do Estado Democrático de Direito. Entre “crises 9 Fausto, Boris. História do Brasil. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1997. p. 526-527; Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do direito, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 61-63. 10 Streck. Lenio Luiz. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado. Anuário, n. 95, 2008. 11 Bolzan de Morais, José Luis. Saldanha, Jânia Maria Lopes. Espindola, Angela Araujo da Silveira. Jurisdição constitucional e participação cidadã. Por um processo formal e substancialmente vinculado aos princípios político-constitucionais. In: Machado, Felipe Daniel Amorin; Cattoni de Oliveira, Marcelo (Org.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Hori- zonte: Del Rey, 2009.190 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
DO ISOLAMENTO À ABERTURAda justiça e do processo”, estão a morosidade, a inefetividade, o dis-tanciamento da cidadania. A jurisdição deve concretizar e dotar osvalores constitucionais de significado, devendo atuar por meio deum “processo jurisdicional formal e substancialmente vinculado aosprincípios político-constitucionais”.12 O que se observa é que a estrutura representa o principal obs-táculo para a construção de um processo civil coletivo.Aponta com total propriedade Baptista da Silva13 que o Direito e ajurisdição modernos têm cumprido satisfatoriamente suas funções,haja vista que atendem aos interesses modernos para os quais foramcriados. A crise situa-se no plano estrutural e está relacionada com oanacronismo entre este Direito e sua respectiva jurisdição para com arealidade contemporânea, conforme adiante será abordado. Ou seja,somente com a superação do paradigma racionalista, da estrutura, oDireito Processual Civil deixará de ser visto como mero procedimen-to, ou um instrumento. Destarte, é imprescindível tratar do paradigma liberal-in-dividualista-normativista que persiste no seio de nossa cultura, eprincipalmente da necessidade de sua superação.12 Bolzan de Morais, José Luis. Saldanha, Jânia Maria Lopes. Espindola, Angela Araujo da Silveira. Jurisdição constitucional e participação cidadã. Por um proces- so formal e substancialmente vinculado aos princípios político-constitucionais. In: Machado, Felipe Daniel Amorin; Cattoni de Oliveira, Marcelo (Org.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 118.13 Baptista da Silva, Ovídio Araújo, em palestra ministrada em aula da professora Jânia Maria Lopes Saldanha, disciplina Jurisdição e Processo.(RE) PENSANDO dIREITO 191
PATRÍCIA MAINO WARTHA Do Isolamento à Abertura: o processo como lócus de participação popular Como não poderia deixar de ser, o perfil do processo contem- porâneo é individualista, uma vez que representa a marca do pensa- mento ocidental, possui cariz iluminista e é reflexo das matrizes do pensamento de Guilherme de Ockan, no século 14.14 Superar a cegueira ideológica15 e optar pela lucidez é o que se pretende que ocorra na jurisdição e no processo, no sentido de esque- cer visões individuais, egocêntricas, e garantir a abertura processual como lócus de participação popular. Os dois grandes movimentos espirituais que marcaram a derrocada do mundo medieval e o surgimento da modernidade – o Renascimento e seu mais significativo produto cultural, o humanismo – justificaram o individualismo. Individualismo, atomismo e secularismo, para Louis Dumont, são palavras que caracterizam a sociedade moderna.16 Consoante os ensinamentos de Ovídio Araújo Baptista da Sil- va, “a trilogia indivíduo, liberalismo e democracia são os pilares da cultura da modernidade”.17 14 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 78-79. 15 Denominação brilhante de Saramago (in: Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; e Saramago, José. Ensaio sobre a lucidez. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.), trazida pela professora doutora Jânia Maria Lopes Saldanha para o seminário intitulado “O futuro possível” Ponto 1. Jurisdição e constitucionalização do processo: a superação da cegueira ideológica e a opção pela lucidez, na disciplina Jurisdição e Processo no Programa de Pós- Graduação stricto sensu de Direito da Unisinos. 16 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 73. 17 Baptista da Silva, Ovídio Araújo. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 6.192 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
DO ISOLAMENTO À ABERTURA A sociedade contemporânea apresenta-se extremamente com-plexa, pluralista e principalmente individualista, na qual os objetivospessoais se sobrepõem aos coletivos, trazendo ao sistema um confron-to entre direitos tidos por fundamentais, como é o caso de direitos deordem individual e coletiva, e embora se saiba que essa dicotomia18não se revela tão aparente, o fato é que o caráter subjetivo conflitacom o social, por vezes sob o manto de direitos fundamentais arguidosem ambas as esferas,19 e sob essa perspectiva deve-se encontrar umequilíbrio que tenha recepção constitucional. Assevera Louis Dumont que o individualismo ocidental teveorigem no início da era cristã, persistindo até os dias atuais.20 Charles Taylor21 explica que, na modernidade, a “individuali-dade e o bem”, ou a “identidade e a moralidade”, são “entrelaçados”,isso porque o individualismo sugere que somente é moral o que eleconsidera moral, ou, somente é bom algo que ele próprio consideraser bom. Ainda, o mesmo autor, conceitua agente humano, no Oci-dente moderno, priorizando os “sentidos de interioridade, liberdade,individualidade e de estar mergulhado na natureza”,22 traços quese encaixam perfeitamente com o individualismo presente na faseinicial do liberalismo.18 Nessa, em tese, superação dicotômica, há de se ressaltar que atualmente se fala em direitos difusos, denominados direitos de terceira geração, que surgiram no contexto do Estado Democrático de Direito, no âmbito de uma sociedade hipercomplexa. Ultrapas- sam a visão individualista, superando a dicotomia entre o público e o privado. Ora, no mundo pós-moderno não existe mais espaço para os mitos das verdades absolutas.19 Observe-se confronto semelhante no que diz respeito ao direito à privacidade e ao princípio da publicidade. Apesar de ambos serem considerados fundamentais, tensio- nam quando a publicidade é restringida em virtude da privacidade, e a privacidade na medida em que é “invadida” pela publicização da notícia.20 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.21 Taylor, Charles. As Fontes do Self. A construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997. p. 15.22 Taylor, Charles. As Fontes do Self. A construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997. p. 9.(RE) PENSANDO dIREITO 193
PATRÍCIA MAINO WARTHA Apesar de se acreditar fazer parte de uma sociedade dita pós- moderna,23 têm-se ainda presentes conceitos individualistas que permanecem enraizados, não apenas na seara processual, mas em quase todas as relações e contextos. Sob essa perspectiva, para que se compreenda o processo como lócus de participação popular, é preciso partir do estudo das origens do individualismo para que se possa compreender por que é tão forte essa cultura individualista24 e de que forma limitá-la. 23 Muitos atribuem a denominação de pós-moderna, ultra-moderna e hipermoderna ao contexto atual de evolução, ou seja, à atualidade. Pós-modernidade é a condição sociocultural e estética do capitalismo contemporâneo, também denominado pós- industrial ou financeiro. O uso do termo se tornou corrente, embora haja contro- vérsias quanto ao seu significado e pertinência. Tais controvérsias possivelmente resultem da dificuldade de se examinarem processos em curso com suficiente dis- tanciamento e, principalmente, de se perceber com clareza os limites ou os sinais de ruptura nesses processos. Consoante um dos pioneiros no emprego do termo, o francês Jean-François Lyotard, a “condição pós-moderna” caracteriza-se pelo fim das metanarrativas. Os grandes esquemas explicativos teriam caído em descrédito e não haveria mais “garantias”, posto que mesmo a “ciência” já não poderia ser considerada a fonte da verdade. Para o crítico marxista norte-americano Fredric Jameson, a pós-modernidade é a “lógica cultural do capitalismo tardio”, corres- pondente à terceira fase do capitalismo, conforme o esquema proposto por Ernest Mandel. Outros autores preferem evitar o termo. Zygmunt Bauman, um dos prin- cipais popularizadores do termo pós-modernidade no sentido de forma póstuma da modernidade, atualmente prefere usar a expressão “modernidade líquida” – uma realidade ambígua, multiforme, na qual, como na clássica expressão marxiana, tudo o que é sólido se desmancha no ar. 24 Bobbio explica que o próprio Direito Civil é particular (no tempo e no espaço), enquanto o Natural é universal e imutável. Sob essa perspectiva é elementar o estudo das origens do individualismo. In: Bobbio, Norberto. O Positivismo jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 19.194 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
DO ISOLAMENTO À ABERTURAIndividualismo e sua(s) origem(ns) Na concepção de alguns estudiosos25 o individualismo semprese fez presente em toda a parte e em todo o lugar.26 Segundo LouisDumont, “Mais freqüentemente, sem dúvida, e de acordo com a tra-dição, considera-se que as raízes dessa idéia estão em nossa herançaclássica e judaico-cristã, em proporções variadas. Para alguns clas-sistas, a descoberta na Grécia do ‘discurso coerente’ é obra de homensque se viam como indivíduos”.27 A tese de Dumont explica que vestí-gios do individualismo moderno estiveram presentes nos primeiroscristãos, mas não representa o mesmo individualismo, pelo contrário,25 Muitos estudiosos asseguram que o indivíduo desde sua origem emanava o caráter individualista. Hobbes, a seu tempo, já trazia a noção de que os indivíduos em sua essência e natureza eram individualistas, determinados pela soberania de seu “eu”, somente aceitando pactuar com a sociedade, fazendo parte dela, para se perpetuar em seu movimento, que seria o seu ideal de felicidade. In: Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e Civil. São Paulo: Martin Claret Ed., 2008. Dumont também comunga desse pensamento e complementa salientando o avanço do individualismo, que teve início no século 13, por meio da emancipação da categoria denominada política e do nascimento da instituição denominada Esta- do. Trata ainda da emancipação da categoria econômica, a partir do século 17, que também significa, no que diz respeito à religião, à política, à Igreja e ao Estado, um progresso do individualismo. É importante destacar ainda, nesse contexto, a Decla- ração dos Direitos do Homem e do Cidadão adotada pela Assembleia Constituinte no verão de 1789, que marca o triunfo do indivíduo, como afirma Louis Dumont In: Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 36, 109. Por sua vez, Bauman afirma que “a apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade moderna”. In: Bauman, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 39. Diferentemente pensa Norbert Elias, que discorda de inicial- mente ter-se indivíduos isolados como átomos na sociedade, sendo a sociedade algo posterior ao indivíduo. Para este estudioso: “Todo indivíduo nasce num grupo de pessoas que já existiam antes dele. E não é só: todo indivíduo constitui-se de tal maneira, por natureza, que precisa de outras pessoas que existam antes dele para poder crescer”. In: Elias, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. p. 26-27.26 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 36.27 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 36.(RE) PENSANDO dIREITO 195
PATRÍCIA MAINO WARTHA estão separados por radicais diferenças. Afirma que “a religião foi o fermento essencial, primeiro, na generalização da forma e, em segui- da, na sua evolução”.28 Bauman destaca que “a apresentação dos membros como indi- víduos é a marca registrada da sociedade moderna”. Nesse liame tem-se a modernidade como a era em que a vida social passa a ter como centro a ideia da existência do indivíduo e do individualismo, demarcados por uma crescente autonomia em relação à vida comu- nitária e social.29 Na tarefa de analisar o progresso do individualismo, há de se ter em mente as suas diversas “fases”. “O pedigree do individualismo moderno é, por assim dizer, duplo: uma origem ou aceitação de uma certa espécie, e uma lenta transformação numa outra espécie”.30 Thomas Hobbes, a seu tempo, já trazia esse conflito, explicando que o indivíduo em sua essência, natureza, opta pelo individualismo, pela soberania de seu “eu”, no entanto, para perpetuar em seu movi- 28 No mesmo sentido, conforme leitura de Louis Dumont, Tomás de Aquino afirma que: “ao nível da religião, da fé e da graça, cada homem é um todo vivo, um indiví- duo privado em relação direta com o seu criador e modelo, ele é, pelo contrário, ao nível das instituições terrenas, um membro da comunidade, uma parte integrante do corpo social. Se, por um lado, a pessoa basta-se a si mesma, o fato baseia-se nos valores últimos revelados, tem raízes na intimidade da pessoa com Deus, ao invés de suas relações terrenas”. In: Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 36, 75. 29 Bauman, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 39. Nesse sentido, é relevante destacar novamente os ensinamentos de Bauman, porém em obra distinta, quando diferencia pensamentos, razão e interesses indivi- duais e sociais: “O que parece absurdo e desprezível para a razão individual poderá ser claramente ‘lógico’ quando visto segundo uma perspectiva mais ampla, objetiva e vantajosa da sociedade”. In: Bauman, Zygmunt. Por uma Sociologia crítica: um ensaio sobre senso comum e emancipação. Tradução de Antônio Amaro Cirurgião. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. p. 64. 30 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 36.196 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
DO ISOLAMENTO À ABERTURAmento, que seria o seu ideal de felicidade, ele aceita pactuar, fazerparte do contrato “social”, abdicando para tanto da plenitude de sualiberdade, harmonizando-se, ou melhor, sujeitando-se aos demaisseres que formam a coletividade.31 Quanto à função e à forma comose dá essa adesão ao contrato social,32 explica Louis Dumont: “Em31 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret Ed., 2008. E exposição feita pelo professor doutor Wladimir Barreto Lisboa em aula ministrada no PPG de Direito da Unisinos em 13 de abril de 2009.32 A ideia de sociedade civil, por sua vez, nos remete para o início da modernidade, séculos 16 e 17, momento em que os teóricos Thomas Hobbes e John Locke contrapuseram a sociedade civil à sociedade natural, eis que a primeira era sinônimo de sociedade polí- tica, ou seja, como sendo o próprio Estado. Locke a respeito do homem e seu estado de natureza refere que: (...)”não possui, no entanto, liberdade para destruir a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão quando isto seja exigido por algum uso mais nobre do que a simples conservação. O estado de natureza tem uma lei de natureza a governá-lo e que a todos submete; a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que apenas a consultam que, sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses (...)”. In: Locke, John. Two treatises of civil government. Trad. Cid Knipell Moreira. London: Everyman’s Library, 1966. p. 117-241. Por sua vez, Hobbes vê o contrato como um direito natural de manutenção da própria vida e diante do temor a uma morte violenta. In: Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e Civil. São Paulo: Martin Claret Ed., 2008. Cap. 13 e 14. Tal posição não é unânime entre os grandes estudiosos: a partir da concepção de Bobbio, a sociedade civil é entendida como a esfera das relações entre indivíduos, entre grupos, entre classes sociais, que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as instituições estatais. Por isso, afirma Bobbio que a sociedade civil (espaço das relações de poder de fato) e o Estado (espaço das relações de poder legítimo) possuem um contínuo relacionamento entre ambos. In: Bobbio, Norberto. O conceito de sociedade civil. Tradução Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982. Campilongo, por sua vez, observa que apesar de se compreender o conceito de sociedade civil separado do conceito de Esta- do, tal antagonismo não mais se apresenta, referindo que “enquanto no século XIX, na perspectiva do liberalismo clássico, havia uma nítida separação entre o Estado e a sociedade civil, no século XX esta linha divisória deixou de ser tão nítida”. In: Campilongo, Celso Fernandes. Representação política. São Paulo: Editora Ática, 1988. p. 46. Também não se poderia deixar de mencionar Jean Jacques Rousseau, primeiro grande teórico da valorização do indivíduo e do intimismo, já no século 18, concebe o estado de natureza como a vivência isolada do indivíduo, vivendo em um estado de felicidade, o qual somente vem a ser interrompido a partir da necessidade do outro em dividir, quando surge a propriedade privada, cuja consequência é o estado de sociedade. Para o estudioso, o termo “sociedade civil” tem sentido de “sociedade civilizada”, pois “o primeiro que, após haver cercado um terreno e passou a dizer isto é meu e achou os outros tão ingênuos que acreditaram, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. In: Rousseau, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. São Paulo: Martin Claret Ed., 2008.(RE) PENSANDO dIREITO 197
PATRÍCIA MAINO WARTHA primeiro lugar, só se pode passar do indivíduo ao grupo por um ‘con- trato’, ou seja, uma transação consciente, um desígnio artificial. Será, em seguida, uma questão de ‘força’, porque a força é a única coisa que os indivíduos podem trazer para essa transação: o oposto da força seria a hierarquia, idéia de ordem social, princípio de autoridade, e, isso, os indivíduos contratantes terão que reproduzir sinteticamen- te, de um modo mais ou menos inconsciente, a partir da conjugação de suas forças ou vontades”.33 De todo modo o mais alarmante é o descaso com o social. “Com o predomínio do individualismo contra o holismo, o social nesse sentido foi substituído pelo jurídico, o político e, mais tarde, o econômico”.34 O individualismo faz com que seja rejeitada qualquer afirmação de humanidade que não advenha de sua própria interioridade.35 Em con- trapartida, a sociedade liberal julga-se igualitária ao passo que recorre às leis de trocas mercantis e à identidade natural de interesses.36 Embora os liberais pregassem maior autonomia individual jus- tificando serem eles os titulares do poder,37 o que de fato é verdadeiro, atribuíram a esse processo um viés extremamente individualista ao 33 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 101. 34 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 91. 35 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 94. 36 Dumont, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 92. 37 Gilberto Bercovici ao longo de sua obra argumenta com muita propriedade que a nação é a titular soberana do poder, e tudo deveria se remeter a ela, concretizan- do seus anseios. Bercovici, Gilberto. Soberania e constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2008.198 Ano 1 • n. 1 • Jan./Jun. • 2011
DO ISOLAMENTO À ABERTURAinvés de social, o que resultou em profundos conflitos, haja vistaque destinatária e titular do poder é a coletividade e não indivíduosisolados. Como observado, o individualismo, possuindo origens simultâ-neas às dos indivíduos, progrediu também junto do homem, chegandoa evoluir talvez mais do que ele próprio. Daí se explica o caráterindividualista do processo e de toda a sociedade que acaba sendobanalizada na medida em que perde a característica de “social”. Aesse processo cabe denominar de “cegueira”.Da Cegueira à Lucidez Sob umaPerspectiva Constitucional e Participativa O conflito sociedade versus indivíduo assombrava a Consti-tuição desde sua origem, à medida que pretendia resolver questõesfundamentais da sociedade civil e, concomitantemente, garantir aliberdade individual.38 O confronto entre interesses e principalmente entre direitossempre traz complexidades, e talvez a maior problemática seja o cho-que entre o individual e o coletivo. Isso se dá, em parte, pelo fato de a nação brasileira encontrar-sesob os domínios do individualismo, em que os ideais de modernidade,o Welfare State,39 o Estado de Bem-Estar Social, não foram concreti-38 Tribe, Laurence; Dorf, Michael. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte, Edi- tora Del Rey Ltda., 2007. p. 1.39 Cf. Morais, José Luiz Bolzan de, em As crises do estado contemporâneo América Latina: cidadania, desenvolvimento e estado. In: Ventura, D. de F. de Lima (Org.). Porto Alegre: Livr. Adv., 1996. p. 88. Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social “adjudica a idéia de uma comunidade solidária onde ao poder público cabe a tarefa de produzir a incorpora- ção dos grupos sociais aos benefícios da sociedade contemporânea”, vindo em contraponto ao modelo de Estado Liberal, onde o Estado representa apenas o papel de garantidor da paz social, onde a sociedade é composta de “indivíduos livres e iguais”. O Estado passou a intervir na organização da vida econômica a fim de estabelecer um equilíbrio entre(RE) PENSANDO dIREITO 199
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