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Fábula do (fim e do) começo do mundo

Published by medusaebook, 2021-02-12 14:03:48

Description: Editora Medusa
Edição: Ricardo Corona e Eliana Borges
Projeto gráfico: Eliana Borges
Revisão: Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra

Keywords: diana araujo pereira,editora medusa

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101 agora as submetia. As pessoas “não normais” tinham a pele do cor- po curtida pela dor e já tinham criado muitos anticor- pos. As últimas décadas também não foram fáceis para elas... afinal, nunca tinham vivido nenhuma facilidade. Mas estavam cômodas, de certa forma, e certamente muito mais serenas do que as pessoas “normais” que simplesmente não sabiam como agir ou como pensar... não sabiam, enfim, como viver em um mundo virado do avesso. Por isso Alicia as sentia anestesiadas, prostradas, inertes. Com o passar dos anos, vendo e ouvindo mui- tas pessoas diferentes, Alicia pouco a pouco começou a compreender que este grande mosaico humano era, na verdade, bastante simples: Havia aquelas pessoas que aprendiam a sofrer e as outras que não tinham ideia de como fazer isso, de como viver o luto da perda, a dor da frustração, o sofrimento e a angústia da incerteza. Por isso, ao levantar as escolas comunitárias, es- sas pessoas mais experientes e mais resistentes tinham um grande protagonismo. Elas eram, de fato, as mais procuradas para círculos de aprendizado, rodas de con- versa, minicursos, e o que mais inventassem para trazer a comunidade para aquele espaço de intercâmbio e re- flexão. Suas falas eram ouvidas e respeitadas. Essas pes- soas, que foram tão renegadas, agora tinham muito o que ensinar ao mundo sobre resistir e sobreviver.

102 Não foi nada fácil convencer Nathalie a ir à ci- dade para participar, como mestra, das aulas da escola comunitária. Nathalie, que havia sofrido todas as possí- veis e imagináveis violências, desde ser espancada a ser ultrajada, não queria correr o risco de se misturar com esta gente branca, como ela dizia. - Essa gente branca está doente de si mesma... se envenenaram com suas certezas e hoje estão sofrendo muito. Não seria bom poder ser a sua mestra? Aquela dose de picardia, somada à angústia de tantos anos de isolamento, convenceram Nathalie a cor- rer o risco. - É impossível dizer não pra você, garota! E se não der certo, volto pro meu barraco, onde tenho um teto de estrelas sobre a cabeça e só recebo as visitas que eu quero. Para Alicia, era uma pequena vitória que teria que se completar com o convencimento das pessoas da cidade a perceberem o valor de Nathalie. “Acho que isso vai ser ainda mais difícil”, pensou Alicia. Nathalie, que parecia ouvir os pensamentos de Alicia, disse: - Você acha mesmo que aqueles velhotes precon- ceituosos vão querer me ouvir? Menina, em que mundo

103 você se criou? Nunca ouviu falar de racismo, de homo- fobia? As pessoas “normais” odeiam quem é diferente delas. No fundo talvez morram de inveja porque sabem que não podem roubar a nossa liberdade. - Talvez esse seja o momento certo para inverter o jogo. Ao invés de falarem, essas pessoas precisam co- meçar a ouvir. Não se preocupe, vamos cuidar disso! Embora demonstrasse total convicção, Alicia não tinha a menor ideia do que aconteceria e de como con- venceria a todos que a diferença é a maior riqueza da humanidade. - Esse mundo está muito chato. Precisamos des- carregar caminhões de alegria na vida delas. E você é a pessoa mais alegre que eu conheci, depois da minha Ana. É disso que precisamos, da tua alegria! Depois de muitas gargalhadas, apertaram as mãos, selando um pacto de ajuda mútua. No fundo, Na- thalie queria muito que desse certo, queria finalmente poder caminhar de cabeça erguida, de braços dados com quem ela escolhesse, carregando junto o orgulho de ter conseguido sustentar sua escolha de vida, em meio a to- das as violências. E assim foi em cada novo lugar onde aportavam. Quando terminavam de estender suas barracas em al- gum acampamento improvisado, se dividiam em pe- quenos grupos e saíam para percorrer os arredores da cidade. Mas Alicia sempre preferia estar sozinha nestes momentos. Desde criança ela sabia que os seus melho-

104 res achados aconteciam quando ela se submergia no mistério da sua própria solidão. Uma experiência parecida, embora muito dife- rente, ocorreu quando, em uma de suas andanças, se encontrou com uma índia benzedeira que atendia no fi- nal de um bairro muito empobrecido, na verdade uma favela como tantas outras que havia conhecido. Sentada em um banquinho de madeira, aquela mulher – meio indígena, meio cabocla – atendia as crianças da vizinhan- ça, com um ramo de arruda nas mãos. Não havia uma só criança da comunidade que não tivesse passado por ela. Nas profundas marcas que carregava no rosto, havia uma enormidade de experiên- cias acumuladas e de práticas bem sucedidas. - Essas crianças não morrem porque temos a Deia. Se não fosse por ela, metade já tava no céu dando tchauzinho pra nós aqui na terra disse uma das matro- nas que acompanharam Alicia e a apresentaram a Deia. Bastante desconfiadas no início, as mulheres se juntaram rapidamente, assim que a notícia de que ha- via uma mocinha estranha na comunidade correra por todos os lados. Já tinham passado por tantas coisas, por tantas pressões e pseudo apoios governamentais, que a primeira atitude era, certamente, a desconfiança.

105 Alicia teve que voltar pelo menos três dias segui- dos, conversar muito e longamente, para que compreen- dessem que não se tratava de nenhuma missionária re- ligiosa, jornalista, polícia ou política. Não conseguiam encaixá-la em nenhuma caixinha conhecida. E foi justamente quando a viram conversar com tanto carinho e respeito com a Deia, que começaram a entender que aquela mocinha era realmente diferente... embora estranha, era sensível e parecia sincera nas in- tenções que expressava. Alicia sempre começava estas aproximações con- tando a sua própria história. Com a maior sinceridade possível, procurava mostrar para eles quem ela era, de onde vinha e quais as intenções que a moviam. - A única coisa que eu quero de vocês é que me ajudem. E que me permitam ajudar vocês no que eu pu- der. Foi o que aprendemos com a Ana. Ou nos juntamos, ou morremos. Naqueles ambientes de extrema precariedade, todos conheciam bem esta premissa: ou nos ajudamos ou desaparecemos. E esse era o gancho que permitia iniciar o diálogo. Uma solidariedade de quem conhecia a dor e a vulnerabilidade, mas que havia encontrado meios de sobreviver e de se erguer sobre elas. Nesses bairros, todas as famílias haviam perdido um irmão, uma filha, uma neta, um sobrinho... caídos nas intermináveis batalhas contra as desigualdades que imperam em qualquer lugar do planeta. E todas as famí-

106 lias tiveram que aprender a viver o luto sem desmoronar. - Resistência é nossa palavra principal. Aqui a luta é todo dia. Deia, nessa comunidade, era uma espécie de lí- der espiritual e benzedeira. Era quem iluminava as dis- cussões e, quando havia conflitos internos, colocava os envolvidos para conversar até se entenderem, como ela dizia. Uma das instituições que ruíra nas últimas déca- das era a igreja. Depois de ter crescido ao ponto de in- filtrar-se em todas as instâncias do poder público, de ter chegado a forjar a moral que conduzia as vidas pessoais e coletivas, de inclusive determinar rumos políticos e econômicos, a igreja ruíra feito uma bolha de sabão que, depois de crescer demais, explode em pequenas gotas. Da igreja de décadas atrás restavam poucas co- munidades. E, na sua ausência, cresceram as pequenas lideranças locais: benzedeiras, xamãs, curandeiros. Nos bairros periféricos, a vida espiritual fundia várias tradi- ções, incorporava deuses e deusas dos mais distantes rincões. Estas comunidades também encontravam na vida coletiva, no intercâmbio e na ajuda mútua as princi- pais lições para a sobrevivência. Deia falava baixinho e parecia ter mais anos que

107 estrelas no céu. Era paciente e capaz de escutar todos os tipos de desabafo e lamentações. Estava sempre sentada no seu banquinho, debaixo da mangueira que, no verão, alimentava a comunidade. Mas também era capaz de se levantar e impor a sua autoridade sempre que se fizesse necessário. Uma cena, especialmente, marcaria Alicia e lhe serviria para compreender a elasticidade, a maleabilida- de das atitudes daquela mulher. Depois de assistir a uma discussão entre um casal durante quarenta minutos, sem se alterar ou dizer uma só palavra, Deia se levantou, foi até a casa dos dois, pegou seus três filhos pequenos e os levou para a sua própria casa. Olhou seriamente para os dois e determinou: - Briguem o quanto quiserem. Quando termina- rem, seus filhos estarão esperando por vocês lá em casa. Não temos comida para tantas bocas, então é melhor se apressarem. Algumas horas depois, o homem deixava a casa e ia embora. A mulher, temerosa, mas aliviada, retornava para buscar os filhos: - E agora Deia, como vou alimentar os filhos so- zinha? - Do mesmo jeito que tua mãe te alimentou, e tua avó e tua bisavó... do jeito que sempre fizemos. Você é forte e não está sozinha. Alicia compreendeu a fortaleza da solidariedade ao ver aquela mulher oferecer uma ajuda que não sabia

108 de onde viria; ao vê-la convicta de que a encontrariam juntas. Aquela comunidade, como tantas outras por onde havia passado, sobrevivia na resistência dos pe- quenos nós que se juntavam para formar uma grande rede. Essa rede lhes servia para a pesca de alimentos, para a cura das enfermidades, para o abrigo do frio. Uma rede formada por mãos calejadas, que juntas e entrecru- zadas criavam caminhos e ligações entre os nós. Levar Deia para ser mestra na escola comunitária era uma das suas maiores vitórias. Para convencê-la, e à comunidade, Alicia procurou mostrar que havia uma intrínseca relação entre a escola e a horta. Ambas eram parte daquela cidade e deveriam ser compartilhadas. Não era mais importante alimentar o corpo do que o es- pírito. - Vocês tem todo o direito de usufruir da horta e da escola. E também tem o dever de colaborar para que as verduras cresçam frescas e saudáveis. Na esco- la também estamos plantando sementes... sementes de solidariedade e de companheirismo. E vocês são os que melhor conhecem isso. Eles precisam aprender com vo- cês o que significa segurar nas mãos umas das outras para formar uma rede que resiste a tudo, que resiste às maiores tempestades.

109 E assim cada componente do grupo dos recons- trutores encontrava os mestres e as mestras que viriam a compor o primeiro círculo da escola comunitária. A estrutura que criaram, para desenvolver este projeto, era esta: círculos de aprendizagem que se divi- diam em camadas sobrepostas, como em uma cebola. Não estavam desconectados entre si, mas tinham auto- nomia. Em cada cidade, os círculos se organizavam por temáticas e eram compostos segundo os mestres encon- trados. Na cidade de Nathalie, por exemplo, criou-se o círculo de aprendizagem da alegria. Neste círculo, Na- thalie e Sofia compunham as lideranças. Sofia era uma adolescente de 14 anos com uma predisposição inata para a alegria e para A cooperação que facilmente geram sinergia. Além de tocar vários ins- trumentos aprendidos de forma autônoma, Sofia canta- va e compunha versos em qualquer ritmo. Era uma exu- berância criativa em forma de gente. Junto com Nathalie criaram um círculo de apren- dizado que gerava faíscas cognitivas... seus participantes quase pegavam fogo, literalmente. As suas gargalhadas perfumavam o ambiente ao redor, inalando vida por onde passavam. Já Deia deu início a outro círculo de aprendiza- gem voltado para o diálogo como forma de resolução de conflitos e de cura. Para compor este círculo, Alicia jun-

110 tou Deia, Pedro e Francisco. Pedro era um advogado aposentado e cansado dos inumeráveis litígios nos quais tinha participado ao longo de sua vida profissional. Ele recordava o querido Cesar, com quem aprendera tanto sobre a justiça, ou sua falta. Ambos eram advogados cansados desta forma do direito que na verdade só serve para dividir o dinheiro e não traz nenhuma cura. Pedro, divorciado e solitário, car- regava um profundo arrependimento por ter perdido tan- to tempo acreditando em procedimentos que não uniam as famílias, mas, ao contrário, as separavam. Advogado da vara de família, sua prática era separar famílias. Nesta etapa de sua vida, sonhava em poder vol- tar no tempo e reverter muitos daqueles processos. Quando Alicia lhe propôs juntar-se àquele estranho gru- po, pensou que não tinha nada a perder e decidiu aceitar o desafio. Já Francisco era um jovem indígena, trazido de uma pequena aldeia próxima. Ele acabara de ser iniciado como xamã e estava muito empolgado com aquela pro- posta estranha, mas curiosa, de ensinar aos brancos um pouco do que havia aprendido com os seus mais velhos. Assim, os círculos eram formados a partir da pes- quisa que o grupo de reconstrutores fazia. Cada um tra- zia uma peça e quando as juntavam, saiam círculos de aprendizagem particulares, peculiares a cada cidade. Colocá-los em prática era sempre difícil durante as primeiras semanas. Em todas as cidades, repetia-se a

111 mesma rotina, com poucas variações: Na primeira sema- na, havia uma pessoa, duas ou três, em cada círculo. Nas semanas seguintes iam se ampliando as participações, até que, quando se davam conta, tinham que encontrar lugares mais amplos e, em alguns casos, até dividirem- -se em mais círculos, para que todos e todas pudessem participar. Para toda esta diversidade de objetivos e inten- ções, de valores e linguagens envolvidos nos círculos, a única premissa, para todos, era a ética da cooperação, do afeto e da solidariedade para a sobrevivência e a re- construção da cidade. E o método era o diálogo. Todos tinham direito à palavra e a partilhar suas experiências da maneira como a aprenderam. É verdade que havia várias pequenas comunidades, que iam conhecendo ao longo do cami- nho, mas nenhuma tão organizada como a sua. Nós tive- mos a Ana, eles não, Alicia pensava. Ana, além de liderar o grupo dos quarenta com uma tamanha energia motivadora e uma natural alegria lúcida, também contava com uma grande capacidade re- flexiva. Ela tinha uma ideia, experimentava, anotava os dados, e então a descartava ou aprimorava. Em uma conversa aleatória, na qual falavam so-

112 bre tudo isso, um professor fizera um curioso comentá- rio sobre Ana: “Ela era uma cientista, e das boas”. Alicia ria sempre que pensava em Ana como cien- tista. Certamente, para ambas, Ana estaria mais para uma bruxa. Mas o certo é que, nesse momento, os títulos não valiam mais nada. Se nas décadas anteriores ser bru- xa ou cientista definiria a maneira como suas práticas se- riam avaliadas e julgadas, atualmente esta (ou qualquer outra classificação) não era nada relevante. Para os sobreviventes, a única coisa que impor- tava era a realidade mais simples: sobreviver. E cada um deles e delas havia encontrado um caminho próprio e autônomo. Na escola, sem hierarquias ou rótulos, alguns en- sinavam a desenhar, outros ensinavam matemática ou geografia, mas a maioria ensinava a existir sem medo. E era essa a habilidade mais apreciada. Para fazer contas havia os computadores, assim como para desenhar. Mas muitas daquelas pessoas, para sobreviver, tiveram que se fechar como pequenas ostras encapsuladas. Para abrir-se a conversas, passeios ao ar livre, e outras ações do gênero, era necessário reapren- der os caminhos da confiança e da comunicação. Mas não aquela comunicação de jornais ou redes sociais. Não. A comunicação de uma complexidade hu- mana com outras humanidades igualmente complexas. Aquela conversa que busca chegar ao diálogo, ao encon-

113 tro sincero e honesto com o outro à tua frente. Alicia sempre recordava uma imagem que fincou raízes na sua memória, tirada de um dos muitos livros que havia lido ao longo da sua vida: dialogar é como en- trar em uma dança. O corpo do outro, sua presença, al- tera o seu próprio corpo, assim como tudo o que você fizer, também gerará alterações nos movimentos de am- bos. Dialogar e dançar juntos requer confiança, malea- bilidade mas, principalmente, o desejo sincero de uma atuação bela e prazerosa em meio à diversidade infinita de ritmos, corpos e estilos. Um dos principais lemas dos reconstrutores era “nem iguais nem diferentes, humanos”. E o que estava por trás desta frase, que lhes servia como motivação, era a vontade, o desejo de encontrar seres que dialoguem, cantem, dancem, existam compartilhando vida e coo- perando para que todos, sem exceção, iluminem a sua melhor parte, ao tempo que aprendam a cuidar de sua parte pior. Alicia vinha lendo os cadernos que Ana lhe deixa- ra como herança. Mas, ao contrário do que pedira Ana, Alicia decidiu lê-los na sua sequência cronológica. Eram doze cadernos preenchidos à mão. Eram o seu diário de cabeceira, mas principalmente eram o registro das expe-

114 riências de Ana. Ali anotava, minuciosamente, todos os dados que conseguia obter nos procedimentos que experimen- tava, desde a fase preparatória, que consistia em obser- var seu estado de espírito, seu funcionamento psíquico e também fisiológico, além dos sonhos da noite prévia ao experimento. Depois vinha a segunda fase: a experiência em si, as ações, sua sequência, objetivos e o que esperava que acontecesse. Por fim, a terceira fase, conclusiva, onde anotava as observações que pudesse obter de si mesma (emo- ções, pensamentos, ideias, imagens, tremores, calores, vertigem, etc.) e das repercussões no ambiente. O ob- jetivo principal era observar quais as ressonâncias ou os efeitos das ações praticadas. E, por fim, os sonhos da- quela noite certamente seriam significativos. Com o tempo, Ana passou a incorporar, na cate- goria de muito relevantes, as sensações ou fatos aleató- rios, como o aparecimento de insetos, plantas, pessoas, etc. Com estes elementos, ela compunha um mapa do território (ela mesma e o seu ambiente próximo), acionado por suas energias, ou por outras energias com as quais ela decidisse trabalhar. Alicia já conhecia praticamente tudo o que esta- va registrado naqueles cadernos. Eram, de fato, as téc- nicas que Ana ensinava ao grupo e com as quais Alicia

115 convivera desde a primeira infância. Mas, aquela leitura não deixava de surpreendê-la porque a quantidade de dados anotados, de detalhes observados, era enorme. Nada escapava à atenção de Ana. Tudo a afetava. Como os demais membros do grupo, Alicia não podia imaginar esse cenário privado, esse fundo refle- xivo que acompanhava cada uma das técnicas de Ana. Para eles, as técnicas funcionavam e isso bastava. Mas não para Ana. Pelas suas anotações, ficava claro que ela tinha um profundo senso investigativo sobre tudo o que implementava. Em diversos momentos, Ana anotava inclusive a experiência coletiva de uso de algumas das técnicas. A partir daí, as aprimorava: retirava ou acrescentava deta- lhes para o seu funcionamento coletivo. Para Alicia, quando criança, Ana era uma maga que, de vez em quando, recebia das estrelas uma nova técnica para ajudar as pessoas. Com o tempo, a convi- vência e a maturidade, entendeu que havia estudo, ob- servação e reflexão... mas não podia imaginar quanto esforço e trabalho de análise (e autoanálise) cada uma daquelas técnicas desenvolvidas haviam demandado de Ana. Talvez ela realmente fosse uma mistura de bruxa e cientista, porque a ideia inicial sempre lhe vinha das estrelas, com quem Ana fazia questão de conversar du- rante horas e horas a cada noite.

116 Foram os dois últimos cadernos que realmente surpreenderam Alicia. Neles, Ana começara experimen- tações diferentes das anteriores. Já não se tratava da condensação ou do direcionamento desta ou daquela energia, mas de algo mais profundo. “Essa noite a conversa me deixou intrigada. A es- trela mais bela me perguntou se eu me lembrava de mim mesma. Claro que sim, respondi, e soltei uma gargalha- da. E foi nesse momento que me vi criança, bem peque- na, com cinco ou seis anos. Alguém me perguntava o que eu queria ser quando crescesse. E eu respondia: quero viver várias vidas numa só. Um arrepio intenso me per- correu todo o corpo. Fiquei paralisada. Esperei que ela me dissesse algo mais, mas a estrela ficou muda. Entendi que agora eu começava uma nova jornada”. Naquela noite, Ana sonhara com uma cena intri- gante. Ela se via diante de um espelho. Pelo seu rosto passavam muitos outros rostos, de homens e mulheres, de cores e culturas diferentes. Passavam como imagens evanescentes. O seu rosto era como um rio por onde fluíam muitos outros rostos. Por trás de suas costas, ela ouvia a pergunta: “Você se lembra de todas as pessoas que estão em você?” Ana acordou assustada, no meio da noite. Tomou um pouco de água e voltou a dormir, depois de anotar

117 tudo o que pôde sobre essa experiência. No dia seguinte, ela abriu um novo capítulo no caderno: “Nova jornada – conhece-te a ti mesma”. E, a partir deste dia, se submergiu totalmente nesta nova aventura. Quantas pessoas ela carregava em si? Quantas memórias a compunham? De quantas vozes estava feito o seu corpo? Quantos sorrisos e quantas lá- grimas as várias versões de si haviam produzido? Quais habilidades inatas lhe haviam sido fornecidas como he- rança? Quantas imperfeições ainda lhe faziam tropeçar? Estas eram apenas algumas das muitas perguntas que Alicia lia no caderno. Em total, eram quase dez pági- nas de perguntas. Vendo as datas, Alicia lembrou que aquela foi uma época realmente diferente. Ana estava mais calada, mais introvertida do que de costume. E quando lhe per- guntavam sobre essa nova atitude, Ana respondia que estava ficando velha e tinha pressa. - Pressa de quê? Perguntou certo dia Lourenço, que junto com Alicia sempre a acompanhavam. - Pressa de dar o maior e último passo. Todos riram, mas ficaram intrigados. Depois do profundo silêncio que se seguiu, ninguém mais tocou no assunto. Agora Alicia entendia do que se tratava. Ana ti- nha pressa de entender o novo desafio, apesar da idade avançada. Ela sabia que não tinha mais muito tempo, mas

118 queria avançar o máximo possível para deixar este novo caminho minimamente aberto, como parte do seu lega- do. Ela sabia que era um legado incompleto, uma he- rança constituída de quase dez páginas de perguntas. A pressa era de tentar responder pelo menos algumas delas antes de morrer. Alicia pensou que seria muito bom compartilhar com Lourenço estas páginas, enquanto as lia, mas o jo- vem estava longe demais neste momento. Depois do falecimento de Ana, os quarenta se di- vidiram em quatro grupos. Alicia liderava um deles, Lou- renço outro, o terceiro era liderado por Pedro, o poe- ta-oráculo que havia desenvolvido uma relação muito especial com as palavras e o quarto grupo era liderado por uma das professoras. Este último grupo se decidira por permanecer no mesmo local, enquanto os outros se espalharam pelo mundo. Alicia teve que se despedir dos seus pais, que se- guiram com Lourenço rumo à Argentina. Como se organizaram? Seguindo as instruções finais deixadas por Ana. Na noite do seu enterro toda a comunidade se submergiu em um profundo silêncio. E todos, sem exceção, esta noite, perguntaram às estrelas pelo destino que deveriam tomar. Em suas instruções, Ana deixara claro que, aque- les que não pudessem escutar nenhuma resposta, que acreditassem no sonho que teriam durante a noite. “As estrelas falam em voz alta, mas para quem ainda está

119 meio surdo, elas cantam nos sonhos”, explicara Ana. No dia seguinte, cada um fez os seus exercícios de meditação matinal e pôde, enfim, tomar a sua decisão. Curiosamente, quando se encontraram no pátio comunal, perceberam que naturalmente se dividiam em quatro grupos. E cada grupo, ao comparar suas decisões, encon- trava um forte elo entre os caminhos escolhidos. Uma semana depois, restavam apenas os cinco componentes do quarto grupo, que haviam decidido ficar. - Nós somos a base, diziam eles. Quando precisa- rem recarregar as baterias, voltem para nós. Assim, o grupo de Alicia desceu a serra e, em di- reção ao norte, começou o seu percurso de reconstru- ção. O grupo de Lourenço se dirigira ao sul e, neste caso, chegar à Argentina era uma questão de tempo, enquan- to o grupo de Pedro se orientava à região mais imediata, nos pés da serra. Partiram apreensivos, todos e todas, mas con- vencidos de que tomavam o caminho que precisavam tomar. Eram reconstrutores, afinal. Precisavam, também eles, testar o que haviam aprendido. E, principalmente, precisavam aprender muitas coisas mais... quem sabe até a conversar com as estrelas.

120 Alicia começou a observar ainda mais os seus so- nhos, as coincidências, os bichinhos, suas próprias sen- sações corporais e tudo o mais que lhe parecesse sig- nificativo. Agora, seguindo o caminho aberto por Ana, ela precisaria ir além do território aparente, da paisagem energética com a qual aprendera a lidar desde muito pe- quena. Alicia sabia que estava em suas mãos dar conti- nuidade às pesquisas, e para isso precisava aprofundar no caminho inverso, em direção ao seu próprio centro ou, quem sabe, aos vários, múltiplos centros que a com- punham. Com a finalização da leitura dos últimos cader- nos, Alicia entendeu que Ana não tivera tempo de criar técnicas, como as que havia desenvolvido para o mane- jo das energias, das suas próprias e da natureza. O que havia nos dois últimos cadernos – e isso era precioso – eram apenas impressões, sensações, sonhos e intuições. Eram um ponto de partida, mas que demandaria muita prática e estudo para a composição de técnicas, segundo o método tão rigorosamente seguido por Ana. Estar diante desta conclusão deixava Alicia divi- dida entre a euforia, o entusiasmo do desafio de, quem sabe, igualar-se a Ana nas suas melhores qualidades, e, por outro lado, o temor de decepcionar-se. Ou quem sabe ainda pior, de decepcionar a memória de Ana, por não ser capaz de dar um mergulho tão profundo.

121 Depois de umas semanas mais introvertidas e atí- picas, e depois de conversar muito sobre tudo isso com André, seu companheiro, Alicia teve um sonho muito significativo: havia uma mulher no fundo de um poço apertado e escuro. Não havia espaço nem para ficar sen- tada. Ela tinha muito medo, fome e frio. E chorava, com os olhos escondidos entre as mãos, o pranto mais des- consolado e triste que Alicia jamais presenciara. Na manhã seguinte, Alicia despertou em prantos, com a sensação de que tinha um enorme e fundo buraco no peito. Seu companheiro a observava assustado, pois ja- mais havia visto nada parecido. Ela era – como em geral todo o grupo – uma pessoa muito tranquila, muito se- rena. Alicia, diante do espanto de André, tinha ainda mais vontade de chorar. Depois de algum tempo, final- mente conseguiu contar o sonho. E, para sua maior sur- presa, se deu conta de que aquela mulher no poço era ela mesma. Neste dia, Alicia anotou no seu próprio ca- derno: “Nova jornada – conhece-te a ti mesma”. Aquela mulher, que chorava incessantemente, passou a acompanhá-la. A sua dor reaparecia em algu- mas situações, como por exemplo quando conversava

122 com determinadas pessoas, ou quando lia certas frases em livros; ou ainda quando se encontrava com determi- nadas notícias nos jornais. Alicia passou a colecionar estes fragmentos, es- tes fios de informação, como ela os chamava, e a eles dedicou um caderno inteiro, cujo título era “A mulher no poço”. Cada pequeno detalhe que reacendia aquela dor de um buraco aberto no peito, aquela sensação de des- consolo e desesperança tão fortes, era registrado. Paralelamente, Alicia teve que aprender a cuidar ainda mais da sua emoção. Ela não podia anular aque- la dor – porque era justamente esta dor a chave para conseguir mais informações sobre a mulher – mas, por outro lado, não podia deixar-se afundar no poço, junto com ela. Pouco a pouco, Alicia compreendeu que precisa- va mediar a conexão. Ela precisava se conectar e se des- conectar daquela mulher que, cada vez ficava mais claro, habitava em algum lugar dela mesma. Alicia não podia afastá-la, mas também não podia se transformar nela. Com esta experiência Alicia começou a desenvol- ver a sua primeira técnica: a automediação, que consis- tia em um tremendo refinamento da auto-observação à qual já estava tão acostumada. Passados alguns meses, Alicia releu as páginas do caderno dedicado ao projeto da mulher no poço e

123 começou a marcar o que havia em comum e o que ha- via de diferente. Com isso, criou um mapeamento, uma cartografia de linhas de diversas cores, que lhe foram permitindo visualizar as recorrências, os gatilhos e as sincronicidades. Este exercício permitiu que ela agora pudesse reconhecer, na dor de outras pessoas, aquela mesma dor que a acompanhava. Neste processo, Alicia comprovou a suspeita inicial de que aquela mulher no poço era ela mesma. Mas, principalmente, compreendeu que agora tinha em mãos, com uma lucidez que jamais havia tido, todos os instrumentos mentais e emocionais para atuar neste novo âmbito da reconstrução. Seguindo este longo processo de desenvolvimen- to e posterior aprimoramento da técnica de automedia- ção, Alicia tinha conseguido fazer com que aquela mu- lher – ela mesma – saísse do poço de sua memória mais profunda, de suas experiências mais arraigadas. Agora tinha consciência sobre o caminho para que outras pes- soas, ainda presas em seus próprios poços-processos, pudessem finalmente prescindir desta dor dilacerante ligada ao abandono e à injustiça. Libertar-se da dor da vítima foi a segunda técnica ela- borada, depois de quatro anos de experiências arquivadas.

124 A estas alturas, Alicia já contava com um pouco mais de dez anos de trabalho de campo. No dia da re- construção da horta comunal, na cidade onde atualmen- te estavam acampados, vestira-se com o macacão laran- ja de reconstrutora, com botas e luvas para o trabalho prévio de limpeza do terreno abandonado há mais de uma década. Olhava-se no espelho e via, ao mesmo tempo, a Alicia de todos os dias, com seus cabelos encaracolados na altura do pescoço, mas também via um homem com barba e bigode espessos, de pele muito queimada. Essa era a personalidade escolhida por Alicia, para acompa- nhá-la no seu trabalho do dia: um trabalhador braçal, mecânico de carros e caminhões. Era ele quem lhe emprestaria a força e a argúcia necessárias para aquele trabalho de reconstrução. Com ele, concentrados na limpeza do terreno, passou uma manhã e uma tarde recolhendo lixo, separando os que poderiam ser reciclados, triturando os demais; arran- cando pisos antigos e corroídos, derrubando muros des- necessários e paredes inutilizadas, revolvendo o chão com pás e enxadas, para finalmente deixar surgir a terra com sua frescura e aroma de fertilidade. Alicia se olhava orgulhosa. Só ela sabia o gran- de esforço, a intensa pesquisa, o laborioso estudo que a trouxera a esse ponto: a estruturação de sua terceira técnica, que consistia em vestir-se, simultaneamente, por dentro e por fora, com as ferramentas necessárias

125 para uma determinada tarefa. Depois que aprendera a automediar-se, ou seja, a aprofundar a conexão/desconexão com suas persona- lidades extras, chegava a este novo método. Não foi um caminho fácil, mas agora se sentia se- gura para não só expor as técnicas, como também para ensiná-las. Procurando sintetizar o seu processo, Alicia ano- tava no seu último caderno: primeiro automediar-se para descobrir quais são as suas personalidades extras; segundo, automediar-se para dialogar com cada uma delas e terceiro, automediar-se para vestir-se para a ta- refa do dia. Neste dia, vestida interna e externamente com seu companheiro, aquela personalidade com grandes habilidades manuais e muita força para ajustes e conser- tos, Alicia conseguiu trabalhar intensamente. - Hoje você me surpreendeu muito... eu não tinha ideia que você conseguia derrubar uma parede ou arrancar pisos com tanta força... uma façanha e tanto!, dizia André, ao chegarem em casa, entre risos e carícias. A partir de então, não teve mais dúvidas sobre o sucesso da experiência, pois durante todo o dia Alicia era ela mesma e a outra personalidade, conjuntamente. - Essa experiência de hoje me mostrou que a téc- nica é mais efetiva do que eu podia imaginar, confessou Alicia, ruborescendo. Ela pode ser mais que um incre- mento de ideias, de sensibilidades e de pontos de vista

126 diferentes, como eu imaginava. Trazer uma personalidade extra para habitá-la em determinadas circunstâncias não tinha consequên- cias apenas mentais e sentimentais, como ela vinha tes- tando há alguns anos. Também alterava a sua própria condição física, fisiológica. - Então que tal a gente testar outra personalida- de ainda mais sexy essa noite? Divertia-se André, provo- cando Alicia. Ela não podia estar mais contente. Olhando para trás e procurando dialogar com a Ana que a acompanha- va, Alicia via o quanto tinha avançado na busca e apri- moramento de técnicas que fossem efetivas, úteis, para a maior quantidade possível de pessoas. - Que tal eu começar essa nova pesquisa logo de- pois de uma boa ducha de água fria? Respondeu Alicia, com um sorrisinho maroto. A estas alturas, com a enorme mortalidade das últimas décadas, com a desestruturação do mundo, em todos os sentidos, ser reconstrutora era a sua grande motivação e alegria. No dia seguinte, com a tarefa da horta realizada, Alicia se dirigiu à escola pública e comunicou que ensina- ria a sua própria técnica de auto-reconstrução.

127 - A auto-reconstrução se baseia em três movi- mentos que partem do mesmo ponto: automediação. Essa é a chave para todo o desenvolvimento posterior. Assim começava Alicia suas primeiras incursões na escola, como professora-aprendiz, aprendetriz, como diziam entre si, de forma divertida. Havia pouco mais de trinta pessoas na sala e, para surpresa de Alicia, várias se conectaram muito fa- cilmente com a lógica que ela procurava desenvolver. E não apenas isso, também comentavam experiências próximas, semelhantes, o que rendeu um diálogo rico e profundo. Conversavam animadamente em roda, quando um homem de meia idade se levantou e saiu porta afora, deixando constar a sua impaciência ou insatisfação. An- dré percebeu e levantou-se rapidamente, conseguindo alcançá-lo na saída do casarão onde estavam reunidos. - Ei, rapaz, o que houve? Por que saiu assim, sem continuar a conversa? - Eu não entendo nada disso. Nem sei por que vim, não acredito nessas maluquices que vocês estão pregando. Para mim, parece uma nova igreja e eu tô fora! - Mas por que você não disse isso tudo lá dentro? Aposto que Alicia ia gostar muito de ouvir tuas razões. - Ninguém gosta de ser contrariado. No fundo, as pessoas só querem ouvir aquilo que já sabem, que já acreditam. Ninguém quer ser questionado.

128 - Ah, agora entendo por que você saiu dessa ma- neira... por que não quer ser questionado ou contraria- do. - Não inverte a coisa, eu estava falando deles... um bando de gente confirmando as mesmas ideias, o que eu podia fazer? - Você podia ter se arriscado. Poderia até ser con- trariado ou contrariar alguém. Mas sem se arriscar, você nunca vai saber. O que posso te garantir é que as pessoas naquela sala me pareciam bem tranquilas e dispostas a dialogar. - Dialogar? Desde quando as pessoas conseguem dialogar? Todo mundo só quer ser ouvido, ninguém quer ouvir argumentos diferentes dos seus. - Foi por isso que você abandonou a sala? Por que não quer ouvir argumentos diferentes desses, nos quais você acredita? Você estaria disposto a se abrir para dialogar? O homem fez um muxoxo e saiu batendo forte os pés, em sinal de desagrado. André sorriu diante desta cena tão familiar, e retornou ao grupo. Dois dias depois, o homem voltou a aparecer na porta do casarão. Parecia apreensivo, como se quisesse falar com alguém antes de entrar na sala. Estava real- mente constrangido. O primeiro a chegar foi Arnaldo, um rapaz mui- to simpático, mecânico experiente, acostumado a lidar com todo tipo de gente. Reconheceu-o e se aproximou.

129 - Vi que você saiu outro dia, parecia não estar gostando da conversa. Mas que bom que voltou. O pes- soal vai gostar de revê-lo. Vale a pena ficar, o pessoal é bacana, te escutam de verdade, sabe? Eu sempre tive medo de falar algumas coisas que aconteciam comigo, pensava que me chamariam de doido. Mas não, eles acham graça, se divertem com minhas histórias. Eu es- tou gostando disso. E quando não concordo com alguma coisa que dizem, falo mesmo, na lata. E o legal é que me escutam do mesmo jeito, com respeito, sabe? Essa é a parte que eu mais gosto. Ontem ficamos até tarde discu- tindo essa ideia de auto-reconstrução. Para mim, é como falar de consertar um carro. Faço estas relações e todo mundo fica rindo até se acabar... - Você acha que se eu entrar vão me receber bem? - Claro que sim... experimenta! Esse foi o começo de uma intensa relação. O gru- po manteve-se junto por meses seguidos, quase um ano. Alicia alterou a técnica, em função do que ouvia, dos diá- logos, dos argumentos, aprimorando-a de maneira ainda mais abarcadora. “Ana certamente gostaria desta dinâmica”, pen- sava Alicia sempre que deixava o grupo, depois das lon- gas e intensas conversas. É claro que muitas vezes as emoções se exaltavam e os tensionamentos se tornavam conflitos. Mas o que estava claro para todos, e essa era a

130 principal ênfase colocada por Alicia e André, é que não se tratava de uma disputa ou competição. O objetivo da- queles encontros era a construção coletiva de técnicas que pudessem ajudar a todas as pessoas. Alicia se dispu- nha a dar o pontapé inicial, como ela dizia, mas a autoria das elaborações sempre seria de todo o grupo. - Aqui ninguém é dono de nada. As ideias são livres e nós também. Esse negócio de verdade só atra- palha a nossa vontade de pensar mais e melhor. Man- teremos nossos encontros até sentirmos que não pre- cisamos mais debater e pensar juntos. Aí será hora de ir para o mundo, divulgando e ampliando ainda mais as ideias. Quanto mais gente envolvida, mais sofisticadas elas ficarão. João, aquele que havia abandonado o grupo mas logo depois retornado, era um dos mais assíduos. Um líder nato, pensava Alicia consigo mesma. Alguém que tinha independência e autonomia de pensamento, mas que nunca tivera a oportunidade de frequentar uma convivência que lhe permitisse explorar suas qualidades. Quando percebeu que naquele grupo poderia realmen- te se abrir e dizer o que pensava, sentiu-se envolvido e comprometido com o processo. Concordavam e discordavam quantas vezes fos- sem necessárias. Para que a dinâmica do diálogo fun- cionasse, não havia tempo predeterminado. E também não havia a necessidade da entrega de um “produto”, de uma “mercadoria”. Era o próprio processo que lhes

131 interessava, muito mais do que o seu resultado. Os círculos de diálogo, rodas de conversa, cursos de aprendedores, ou como quer que se autodenomi- nassem, era uma dinâmica aberta, adaptável aos temas, pessoas e lugares onde se reuniam. Os coletivos se for- mavam por afinidade e seguiam uma dinâmica estabele- cida pelos seus próprios componentes. - Aqui não tem certo ou errado. Nos juntamos para experimentar, para ganhar experiência, para ser cientistas do cotidiano... diziam os reconstrutores, pro- curando brincar com as palavras. A única base sobre a qual todos os coletivos se organizavam - uma pedra de toque ou uma cláusula pé- trea - era a afirmação do diálogo aberto e honesto. - Para o diálogo, cada pessoa precisa usar a boca e os ouvidos. Falar e escutar com respeito. Não temos prêmios nem condecorações. Não disputamos nem competimos. Vem quem quer e se junta ao grupo que achar melhor, sempre com autonomia e independência. Mas também com respeito e muita responsabilidade em relação a tudo o que disser. Instaurada a escola a partir do primeiro círculo, começavam a se formar outros. Todos os dias, às sete horas da manhã, aqueles e aquelas que quisessem

132 aprender ou ensinar algo, se apresentavam publicamen- te. Tinham dez minutos para apresentarem suas propos- tas. Em seguida, se separavam em grupos de interesse e cada grupo buscava um local que lhe parecesse ade- quado. Raramente ficavam no espaço da própria escola. Este era utilizado apenas como ponto de encontro. Dali se instalavam nas praças, nas antigas igrejas abandona- das, no terraço de edifícios ou qualquer outro lugar. Depois de tantos anos de isolamento, de confi- namento, poder estar juntos, em grupos de afinidade, e poder se instalar nos espaços públicos e abertos, era um luxo que não desprezavam. É claro que nem todos os sobreviventes participavam de todas as ações. Sempre havia quem desconfiasse e preferisse manter-se isolado. Mas, mesmo estes mais resistentes não deixa- vam de interagir com as atividades artísticas. Os reconstrutores dividiam seu trabalho entre técnicas e práticas que alimentassem o corpo e o espíri- to. E a arte era o eixo central, a mediação entre os dois âmbitos. Levar as pessoas a dançar, cantar, ler poemas, fa- zer teatro, ou seja, a atuarem em público com qualquer linguagem que acendesse a imaginação e a criatividade, e que movimentasse o corpo, compunha uma das tare- fas medulares do grupo. Como movimentar energias sem dinamizar seu

133 próprio corpo e, com ele, as ideias e os sentimentos? Era impensável para eles. A vida que os reconstrutores procuravam afirmar era a vida como experiência, como experimentação dos recursos quase esquecidos implan- tados pela natureza na sua melhor tecnologia: o corpo e seu acionar complexo, emaranhado de sentimentos e pensamentos. A escola que eles propunham se organizava por afinidade. Mas não apenas temáticas ou de conteúdo. Os grupos passaram a se organizar também por lingua- gem. Grupos que elaboravam conhecimentos diversos, segundo diferentes códigos, interagiam e com o tempo foram se tornando mais amplos e criativos. O espaço da escola tornou-se o ponto de encon- tro para as afinidades sobre o que pensar e construir, e sobre de que modo pensar e construir. Porém, havia um valor inegociável para todos aqueles que sobreviveram ao esgotamento do velho mundo: a ética do agir e do conviver para a solidariedade e a sinergia entre as pes- soas, e também entre pessoas e demais seres do mundo. Sempre que chegavam a uma nova cidade, pre- viamente à escola e à horta, como tentativa de aproxi- mação ao novo contexto, as primeiras ações do grupo de Alicia consistiam em mapear a cultura do lugar (seus

134 pontos fortes), para em seguida construir um grande fes- tival, chamado de “Festival da Utopia”, no qual procura- vam que interagissem os mestres e artistas sobreviven- tes daquele lugar. Antes de levantarem a horta comunal e de orga- nizarem a escola, propunham esta ação para quebrar o gelo, como diziam. O Festival lhes servia a vários propó- sitos: permitia que o grupo tivesse uma desculpa para se movimentar pelas ruas da cidade e seus arredores, apresentando-se como organizadores. Assim, atraiam pessoas naturalmente interessadas em arte mas, prin- cipalmente, aproveitavam para fazer uma criteriosa ob- servação das práticas e dos saberes dos seus moradores. “Infiltrados, espiões da utopia”, era como se re- conheciam entre risadas. No fundo, o que lhes interessa- va era a vida simples e cotidiana de cada lugar. O Festival da Utopia era o festival do cotidiano, das coisas simples, normalmente pouco valorizadas. Quando esquecemos do corpo também esquecemos de olhar o pôr do sol, de observar o vento lambendo as árvores, de sentir a caída da noite, entre tantos outros processos do corpo do mundo. - Eu nunca vou me esquecer a primeira vez que vi um passarinho quebrando a casca do ovo para sair. Eu tinha uns cinco ou seis anos, acho... e foi a coisa mais impressionante que vi na minha vida. Aquele biquinho tão frágil sendo capaz de romper a barreira para se jogar no mundo... que lição de coragem!

135 Alicia e seus companheiros iam proseando com as pessoas que abriam as portas de sua casa, procuran- do levá-las a recordar pequenas belezas que tivessem presenciado ou experimentado. Estas memórias serviam como um fiozinho delicado mas potente, por onde puxar o desejo, a vontade de viver novas sensações prazero- sas e alegres... era como encontrar um pequeno gancho para começar a falar em beleza e prazer, e não em dor. O Festival brincava com essa utopia, a da reco- nexão com o próprio corpo, mas também com a florada da casa da frente, com o barulhinho das cigarras no final da tarde, com os formatos engraçados de nuvens no céu daquele dia, com o vermelho intenso da terra da pra- cinha do bairro e um longo etcétera que compunha o corpo do mundo. É claro que a arte era fundamental. Arte é feita de linguagens que se movimentam em corpos, palavras, sons, perfumes... arte é mediação de si mesmo (o que você sente, o que você pensa?), mediação entre pessoas e também mediação entre pessoas e os demais seres do mundo. Arte é mediação de vida. E também mediação da vida com a morte. Muitos Festivais da Utopia, realizados em diver- sos lugares diferentes, serviam também para que o cho- ro preso na alma saltasse para fora do peito. Para que a dor calada em algum canto do estômago ou do rim pulasse para fora, transformada em poesia. O luto e o pranto vividos juntos aliviavam um peso

136 enorme que, há décadas, vinha encurvando as costas e os olhares. Em mais de uma ocasião, a cantora começava uma canção que era acompanhada mais de soluços do que de palmas... era o alívio do pranto engasgado que permitia a entrega da dor tão comprimida. Arte aceita a dor e a transforma, aceita o luto pela morte e devolve vida. - Arte é tipo uma hemodiálise coletiva. Nestes dias de festa, a dor e a alegria se mistura- vam em gargalhadas e lamentos. Valia tudo e nada esta- va proibido. No começo, embora muito surpresos, assustados e curiosos, pouco a pouco os habitantes se juntavam para ver o que era esse tão alardeado Festival. O grupo dos reconstrutores procurava sempre in- cluir o máximo de informações que pudessem encontrar, para que todos interagissem durante os dias de festa. E interagir era a palavra-chave. Não participar, mas intera- gir. Qual a diferença? Perguntavam sempre. - A diferença é que o Festival da Utopia é feito por vocês, por esta cidade. Vocês interagem uns com os outros, e então temos o Festival. Não somos nós que o construímos para vocês participarem. Nosso desejo, nosso objetivo, é que sejam dias de interação. E assim conseguiam que uma grande parte da população se envolvesse. Sempre havia quem gostasse de cozinhar, de costurar, de cantar, de atuar, de bordar, de dançar...

137 Os reconstrutores, nesse caso, eram apenas os mediadores que acionavam a cultura local. O importante era que todos se divertissem, que brincassem, que ris- sem ou que chorassem. De fato as emoções acabavam se alternando e, no final destes dias, as almas se sentiam lavadas e a atmosfera se tornava mais leve. O riso cura a alma, mas às vezes ele precisa vir depois de muito choro, já dizia Ana. O riso trazia junto a espontaneidade, essa liberdadezinha pequena e promís- cua, mas tão necessária. Os Festivais da Utopia, para acontecer, precisa- vam que todos interagissem: mestres e artistas, mas não só eles, todos, em geral, e especialmente aqueles e aquelas que diziam (ou pensavam, mas nem tinham coragem de dizer) que não sabiam fazer nada. Por isso, em lugar de um palco central para as atrações, o Festival construía vários pequenos palcos, espaços, corredores, onde aconteciam as coisas mais variadas. A intenção era, claramente, que não houvesse o artista e o público, mas, em seu lugar, muitos espaços transformados em um grande jogo coletivo. Um enorme labirinto de ruas e praças, preenchido por passos, movi- mento, vida. Quem quisesse dançar, encontraria música e es- paço para isso. Quem quisesse jogar xadrez, também en- contraria um parceiro. Sem um comando central, todos eram convidados a interagir por afinidade, por afeto, por puro gosto.

138 O caso mais divertido, para Alicia, foi o Festival da Utopia de uma das pequenas cidades pelas quais pas- saram. Uma cidadezinha do interior que, há dois anos, contava com setenta e nove sobreviventes. Neste lugar, tiveram que acrescentar o espaço das redes para quem quisesse desfrutar da tranquilidade do seu balanço ao ar livre. Para esta comunidade, o movimento das redes se balançando na brisa era tudo o que precisavam para se reencontrar com sua alegria ou tristeza. Em cada cidade surgia algo novo. E, assim, cada Festival era único, da mesma forma que cada comunida- de espontaneamente encontrava a sua identidade. A arte sempre vinha acompanhada de práticas simples, como as brincadeiras da infância, andar descal- ços na grama, acariciar os pets da vizinhança ou acomo- dar-se numa rede confortável. Curiosamente, nenhuma comunidade elegia as avançadas tecnologias como ponto central. Em seu lu- gar, o que aflorava era a memória de atividades, danças, cantos e comidas tradicionais, e até mesmo ancestrais. Muitos começavam filmando e fotografando in- cessantemente, mas depois de algum tempo já guarda- vam seus celulares e se metiam nas brincadeiras. Este não era um jogo de olhar, mas de se incluir, de se mistu- rar. Lá pelo meio da tarde ninguém mais se lembrava de celulares ou câmeras. O resultado era sempre uma reconexão entre as

139 pessoas, tão distanciadas entre si nas últimas décadas. As poucas crianças que havia sentiam que isso era liberdade, e certamente sabiam aproveitar. Passado o Festival, que podia durar de um dia a uma semana, os reconstrutores começavam a segunda etapa do trabalho, que consistia em construir a horta co- munal e a escola comunitária. Na cidade atual, com maior quantidade de habi- tantes e mais abastada, os reconstrutores escolheram começar pela escola e não pela horta. Nos primeiros dias apareceram dois ou três gatos pingados curiosos. Um mês depois já eram dezenas de pessoas oferecendo cursos e também se inscrevendo como alu- nos. Em três meses, reuniam-se por volta de oitocentas pessoas. Com a instauração da renda mínima - finalmente aprovada pelos políticos depois de muita peleja, de mui- tos conflitos - abriu-se a brecha do estudo, da escuta, do silêncio e do diálogo. Abriu-se a porta para que entrasse um ar necessário e urgente. Ar para respirar e para es- pantar os putrefatos odores mortos. A maior escola da cidade era uma verdadeira usi- na de ideias, onde aconteciam as mais diversas intera- ções. Mas aquele lugar era apenas o ponto de encontro

140 e de partida. Dali os grupos auto-organizados seguiam para onde lhes parecesse melhor, nas primeiras horas da manhã. A partir daí a escola ficava vazia, deserta, mas as ruas, praças, estacionamentos, coberturas, etc. estavam cheias de grupos, os mais diversos. Discutiam, pensavam, refletiam, criavam, ponde- ravam... interagiam. Sobretudo dialogavam. É claro que em certas ocasiões se apresentavam conflitos. Esse era o único momento no qual os reconstrutores interferiam, embora nunca para tomarem partido, ou para bater o martelo a favor de um lado ou de outro. Não! Os reconstrutores sabiam bem que as re- lações são muito mais complexas do que os argumentos exaltados em um conflito são capazes de demonstrar. Seu papel era, então, o da pura e simples – mas ao mesmo tempo sumamente eficaz – escuta. Se havia conflitos, sentavam-se todos no chão, em círculo, e co- meçavam a mediação. Todos tinham a palavra, mas também todos ti- nham ouvidos. Como dizia Ana, uma boca e dois ouvidos. Assim, procurando distribuir as energias mobili- zadas no conflito, eles conseguiam que as contradições se materializassem em argumentos que, pouco a pouco, tornavam visíveis para todos os participantes do círculo os diferentes pontos de vista e, principalmente, os afetos relacionados. O que os reconstrutores faziam era muito sim-

141 ples: ajudavam as emoções a se tornarem ideias; ajuda- vam os afetos a se tornarem compreensíveis. Como Ana costumava dizer, se todos afetam e se sentem afetados, todos se mobilizam e se comprometem. Anos mais tarde, Alicia complementaria com uma afirmação que causava espanto inicialmente, mas que pouco a pouco ia se mostrando valiosa: “Não temos medo do conflito. Conflito é oportunidade.” - Oportunidade de que, Alicia? Se toda a história da humanidade é cheia de guerras e chegamos a este estado atual do mundo... guerras e conflitos nunca nos ajudaram em nada. - Guerra é um conflito que atingiu seu ponto má- ximo de violência, respondia Alicia. Para não chegarmos às guerras, os conflitos deveriam ter sido tratados ante- riormente. Conflito não é a mesma coisa que guerra. Da mesma forma que dor de cabeça não é a mesma coisa que morte. Há graus variados de gravidade no conflito, assim como os sintomas podem variar muito. Se deixar- mos a dor de cabeça sem cuidado, aí sim o corpo poderá chegar à morte. - Você está falando de conciliação? Sempre al- guém sai perdendo em conciliações e nunca é o lado mais forte. Conciliação só é bom para quem tem dinhei- ro para pagar o advogado mais caro. A corda sempre ar- rebenta do lado mais fraco. - A conciliação com lógica de guerra é um fracas- so. Nessa lógica, o lado mais fraco continua mais fraco e

142 sempre sai perdendo. Só a força e a violência ganham... Argumentos precisos e cortantes sempre prece- diam os primeiros círculos de mediação. Argumentos coerentes com a mentalidade, com o modo de ser ins- taurado há tantos séculos. - Vocês têm razão, começava Alicia. A nossa his- tória, como humanidade, nos mostra que nunca conse- guimos realmente dialogar. Ganha quem grita mais alto, ganha a violência, ganha quem tem mais dinheiro e mais condições de manipular. Mas seria possível existir de ou- tro jeito? A partir daí começava uma enxurrada de falas, mais ou menos exaltadas, através das quais muitos sé- culos de disputa acirrada e de enfrentamentos violentos mostravam-se presentes. Os reconstrutores escutavam por horas seguidas, até que todos pudessem colocar suas apreciações e co- mentários. Até que todos pudessem expressar a dor por tantas e diversas violências sofridas e acumuladas. Então vinha o segundo momento, o de elevar o nível das ideias, de se aprofundar na reflexão daquilo que realmente desejamos ou aspiramos, motivados pela coragem, pela ousadia, pela possibilidade de viver de outra maneira. Apenas no terceiro momento é que retornavam para a questão em si, para o início do processo que ha- via desatado todo o conflito. Retornavam ao ponto ini- cial concreto, agora já com a capacidade de revê-lo e de

143 compreendê-lo como oportunidade. Às vezes surgiam conflitos por razões banais, como a escolha da cadeira preferida por um ou por ou- tro; outras vezes, por razões mais sérias, desatadas, nor- malmente, por preconceitos diversos que, quase sem querer, pulavam para fora em falas ou atitudes mais ou menos conscientes. Racismo, sexismo, xenofobia... uma enorme variedade de preconceitos que nos habitam e, quando menos se espera, saltam de nós como bichinhos que precisam sair à luz e retornar ao mundo. - Preconceito é o vírus mais mortal para a hu- manidade. Ele está sempre encubado, guardadinho em algum lugar do seu corpo. De repente, na primeira oportunidade, ele pula para fora e plá... já está você aí menosprezando, subestimando alguém. A única guerra justificada é aquela que podemos guerrear cada um com seus próprios vírus de preconceito. Guerras auto-media- das! Depois de dias ou semanas, dependendo do grau do conflito e da quantidade de pessoas envolvidas, che- gava-se ao quarto momento, quando todos já se sentis- sem prontos para se reconectarem. Reconectar era um verbo que acionava a ação fundamental para o encerramento dos processos de me- diação de conflitos. E cada círculo poderia utilizar os ins- trumentos e as linguagens que fossem mais adequadas e coerentes com as pessoas envolvidas. Algumas vezes, o retorno ao diálogo, agora sim

144 aberto e reflexivo, era suficiente para o amadurecimen- to do grupo e a sua consequente reconexão. Porém, quando o que havia sido mobilizado era mais fundo e doloroso, a reconexão exigia arte, com suas linguagens e sensibilidade, para poder acontecer. Uma peça de teatro escrita a muitas mãos e en- cenada por todos os envolvidos era um processo recor- rente. Mas havia casos diversos como, por exemplo, um grupo que confeccionou uma grande colcha composta por diversos retalhos de cor e tamanhos variados. Ou ou- tro grupo que decidiu construir, uma orquestra de vários instrumentos, para que a diversidade se transformasse em uma bela melodia. Ou ainda outro grupo que decidiu cozinhar um grande prato composto pelo alimento que cada um pudesse trazer de sua casa, para então oferecê- -lo como almoço comunitário. O fato é que ninguém saia igual deste processo. Anos de experiência demonstravam que a reconexão fortalecia cada um individualmente, mas sobretudo for- talecia o grupo. A usina de ideias envolvia tensões e con- flitos, mas gerava sinergia e resiliência. Na cidade atual, maior do que as outras pelas quais haviam passado, os reconstrutores permaneceram quase quatro anos. Entenderam que, se por um lado

145 eles estavam mais habilidosos, por outro mais pessoas produziam, necessariamente, mais conflitos. De qualquer maneira, não tinham uma fórmula ou tempo pré-estabelecido. Tudo dependia da dinâmica do trabalho. Era ela quem definia o tempo que levaria para transformar um grupo de pessoas isoladas em uma comunidade. Quando finalmente se despediram da cidade, deixaram-na transformada. Havia flores nas casas, nas praças, nas ruas. Havia uma horta que germinava a vida dos que a cuidavam e uma escola que distribuía muitos conhecimentos. Várias outras iniciativas foram se abrindo para a convivência e a saúde dos moradores daquele lugar, de forma totalmente independente e autônoma. Os re- construtores entenderam, então, que era hora de partir. A vida circulava como fluxo criativo, com alegria. Assim, seguiram o seu percurso até chegarem a uma nova cidade. Ao adentrá-la, se encontraram com uma reação inusitada. Pela primeira vez não havia a cos- tumeira apatia e indiferença que acompanhava as pri- meiras semanas de chegada. Talvez porque já corressem as notícias de suas ações e práticas, encontraram pessoas ainda mais fecha- das, dispostas a não ceder à tentação dos intrusos. Os reconstrutores tiveram ainda mais dificulda- des e, com isso, aprenderam uma nova faceta da com- plexidade humana: muitas vezes é mais cômodo manter-

146 -se quieto e fechado, embora se esteja triste ou infeliz. E por quê? Pelo simples medo da mudança. O desconhecido é assustador, embora possa ser magnífico, dizia Ana. Alicia não tinha compreendido essa frase até esse momento. Para ela, em quem a curiosidade fora cultiva- da como um valor precioso, o desconhecido era sempre encantador... mesmo quando fosse, por vezes, doloroso. E arriscar-se, permitir-se ser afetada e afetar os outros, era o próprio sinônimo de vida. Nesta cidade taciturna, tiveram a experiência de uma resistência diferenciada. Ali, a amargura estava ins- talada e, curiosamente, era muito bem cultivada. Despertar os seus habitantes para a compreen- são de que é possível, e saudável, arriscar-se e ampliar os contornos daquilo que nos dá segurança, não foi uma tarefa nada fácil. Mas, para os reconstrutores, quanto maior a di- ficuldade, maior o desafio, maior a aventura. Nesta ci- dade aprenderam várias novas lições sobre a condição humana, sobre como nos relacionamos com o medo, de nós mesmos e dos outros. No entanto, acima de tudo, aprenderam muito sobre eles próprios. Tiveram que se automediar constantemente, para que o conflito se tornasse, de fato, oportunidade. A muralha da inércia coletiva lhes demandava muito mais ânimo e energia. A dinâmica de trabalho teve que ser alterada,

147 pois não conseguiam mobilizar pessoas para o Festival da Utopia, que sempre dava início ao processo. Naquele lugar, entenderam que chegar ao Festival era, por si só, um desafio. Decidiram começar, então, pela horta comu- nal e, em paralelo, pelo cultivo de flores e frutas em es- paços diversos da cidade. Investiram no mais concreto de suas técnicas para, pouco a pouco, alcançar o sonho e a imaginação, tão fortemente trancafiadas em cofres de solidão au- toimposta. Alterar a paisagem visual da cidade para, de- vagar, alcançar os ânimos e as sensibilidades. Para chegar ao Festival, levaram três anos e meio de laborioso e consistente investimento nas pequenas praças, nos terrenos baldios e nos espaços abertos. A cada primavera, despontavam mais flores e também alguns sorrisos. De quando em quando, alguma vizinha lhes acenava ou lhes trazia um pão quentinho, saído do forno. A vizinhança aos poucos se aproximava e come- çava a abrir-lhes as portas de suas casas. Afinal, aqueles estranhos que estavam acampados ali há três anos, sem pedir nada em troca, estavam mudando a cidade, e para melhor. Com o tempo, os seus moradores foram se tor- nando menos antipáticos, mais acessíveis, menos teme- rosos. Aquela pequena trupe, afinal, não lhes causava nenhum dano tão grave. Depois de quase oito anos ancorados naquela

148 cidade, finalmente puderam desprender-se. Alguns ha- viam envelhecido, sentiam-se cansados e, por isso, de- cidiram retornar à base, à sua cidadezinha embrionária. Em total, trinta anos haviam se passado e, em uníssono, os e as integrantes dos quatro grupos de re- construtores, espalhados pelo mundo, sentiram que era hora de se reencontrarem. Em um setembro quente e perfumado, todos os reconstrutores, finalmente reunidos, celebraram o final de um ciclo, no mesmo quintal onde Ana estava enterrada. Sua casa havia sido derrubada para dar lugar a um pátio muito mais amplo. Ali, os membros do quar- to grupo, aqueles que ficaram, construíram uma grande horta dedicada ao cultivo medicinal e, com isso, garan- tiam a sua subsistência, além de fornecerem medica- mentos naturais para várias cidades. Tinham se especializado no cultivo e fabricação de fitoterápicos; sua ação reconstrutora se irradiava para muito além dos limites da pequena cidade. Um dos outros grupos, aquele liderado por Lou- renço, atravessara as fronteiras e nesses trinta anos ha- via alcançado mais dois países. Tinham se especializa- do em outra vertente da reconstrução e agora traziam consigo uma enorme quantidade de dados. Deixando-se

149 guiar pela intuição, entenderam que a conexão que po- deriam – ou gostariam – de estabelecer com as pessoas que encontrassem, se daria pelo cultivo da memória. Por onde passavam construíam acervos sur- preendentes, a partir de tudo aquilo que os sobreviven- tes guardavam. Tantas informações permitiu-lhes criar a “Enciclopédia da Esperança” como um acervo vivo, re- pleto de dados materiais e imateriais oriundos de expe- riências e imaginários não computados. Eram nada mais e nada menos que conhecimentos adquiridos mediante fórmulas, práticas e estratégias gestadas justamente du- rante as décadas de hecatombe e medo. A Enciclopédia da Esperança era um grande ca- tálogo, no qual haviam depositado os infinitos diálogos e observações que puderam recolher durante a sua ca- minhada. Nela ressoavam as vozes de diversos grupos que generosamente haviam compartilhado suas práticas e procedimentos de sobrevivência. Tais práticas e proce- dimentos eram, de fato, um apanhado de tradições an- cestrais com inovações e renovações que vieram se so- mando para atender as necessidades que se impunham. Um grande acervo com valor extraordinário, que poderia alimentar diversos coletivos pelo mundo, desde que tivessem clareza da necessidade de adaptações a seus contextos específicos. Uma reserva de possibilida- des, de vida, de esperança, construída de forma colabo- rativa, por aqueles e aquelas que compreenderam que a sobrevivência é fruto de redes solidárias e sinérgicas

150 entre seres de diversas humanidades, entre vidas em in- finitos formatos. Este acervo não era um ponto final, muito pelo contrário. Era uma nova sabedoria que se erguia entre os escombros das velhas religiões e da velha ciência, composta por ativações de muitas complexidades. Espe- rança ativa, criativa e necessária para a cura de pessoas e comunidades. O projeto deste grupo, depois de trinta anos escutando, aprendendo e arquivando, era transformar todos aqueles conhecimentos em acervo aberto, dispo- nibilizado para quem quisesse acessá-los. Já tinham ini- ciado a tradução a várias línguas e dado início ao estudo da tecnologia mais apropriada para este fim. Retornavam exultantes por poder compartilhar todo o seu longo e frutífero trabalho. O grupo que havia permanecido nos arredores se especializara em outro tipo de ação reconstrutora. Juntamente com os que fizeram a opção de per- manecer na cidadezinha do alto da serra, trabalharam na construção de uma rede que envolvia vários peque- nos produtores de todo o entorno, e se dedicaram a criar circuitos de reciprocidade entre eles. Quem tinha conseguido manter animais (vaca,


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