51 A questão fundamental é que não aceitavam a derrota da vida, mas ao contrário, se mantinham fiéis ao seu legado, fiéis a cada bocado de vida que lhes restasse. Com os últimos ataques de pragas e doenças, muitos – a grande maioria – entenderam que na capital estariam mais protegidos e com acesso aos sistemas de saúde. Fizeram, portanto, o movimento contrário ao de Ana. Ela tentou alertar a um ou a outro, mas não lhe de- ram ouvidos. Os que iam embora deixavam suas casas aban- donadas e alguma comida que, a estas alturas, era muito bem-vinda. Funcionavam como uma reserva de precau- ção para os que ficaram. Nenhum deles jamais voltou e, com a paulatina falta de notícias, foram sendo dados por mortos. Ana e Cesar, um dos advogados aposentados, apaixonado pelas orquídeas que cultivava junto às árvo- res frutíferas do seu pomar, eram os responsáveis pelas verduras e frutas que alimentavam o grupo. Com a es- cassez, no entanto, começaram a ter que ser criativos, e a ter que encontrar mais alimentos antes inadvertidos. Depois de alguns encontros e já se sentindo mais íntimos, Ana confessou a Cesar como tinha feito para preservar a sua plantação e, para o assombro de ambos, Cesar também confessou que, ao não ter o que fazer para proteger suas orquídeas, tinha fechado os olhos e se imaginado cobrindo-as com seu próprio corpo, en- quanto se resguardava do perigo, dentro de casa.
52 - Era como se meus braços tivessem se esticado até as árvores e eu tivesse conseguido abraçá-las, ele lhe contou, ruborescendo em seguida. Ambos se olharam e perceberam que algo ex- traordinário havia acontecido e que isso certamente os unia. Quanto aos outros, o que os mantinha unidos era a simples e básica necessidade de sobrevivência. E to- dos entendiam, ainda que não o explicitassem, que esta necessidade não era apenas de alimento, mas de afeto, sorrisos, diálogo, abraços, enfim, de convivência. Seus encontros aos domingos eram regados de muita música e poesia, e sempre havia os que animavam o baile. Alicia, a pequena do grupo, encantava a todos. Sem sabê-lo, ela mesma se tornara uma peça fundamen- tal para a sobrevivência daquela pequena comunidade, e não apenas de seus pais. Quando se encontravam, celebravam o fato de novamente estarem juntos. E, durante a semana, cole- cionavam fatos e percepções para trocarem no domin- go. Assim, o grupo se manteve estável ao longo dos anos seguintes. Mantiveram-se unidos e, com o tempo, foram aprendendo a dialogar e a lidar com os conflitos variados que surgiam. No começo, se autodenominavam “os sobrevi- ventes”. Muitos anos depois, entenderam que estavam iniciando outra fase, e agora seriam “os reconstrutores”. Neste momento, dois dos quarenta haviam falecido de
53 morte natural, com avançada idade. E a pequena Alicia já era uma mulher adulta. Doze anos haviam se passado, e durante esse tempo dedicaram-se a aprender mais uns com os outros e abdicaram das notícias, cada vez mais catastróficas que, raramente, chegavam do mundo abaixo. Os sistemas de comunicação colapsaram depois da guerra informática, como ficou conhecida. Os algorit- mos manipulados de tantas maneiras eram como preda- dores em busca de carne fresca. Quem ainda tinha algum juízo, dizia Ana, rompia com esse sistema, com essa rede infectada e infecciosa, para se relacionar com outra rede, a que brilhava do lado de fora da janela. Ana escolhera, há muitos anos, essa rede formada por árvores, pela sua horta e pomar, pelo cume da montanha que a observava, de longe. - Essa é a minha rede. Esses são os seres com quem eu quero me comunicar, dizia Ana, soltando uma gargalhada. A virtualidade era uma armadilha fascinante, ela pensava. Em várias das tertúlias dominicais do grupo o assunto retornava. A grande maioria destes sobreviven- tes escolhera o isolamento digital. Aqueles que ainda se mantinham conectados tinham extremo cuidado com o
54 seu uso. Controlavam tempo de acesso e, principalmen- te, controlavam as repercussões que lhes causava. Em uma das tardes ensolaradas de dezembro, quando já havia suficiente cumplicidade entre todos, Pa- trícia, uma das professoras do grupo, fez uma confissão impactante. - Quando eu estava no auge das minhas crises de ansiedade ou de angústia, eu digitava meu nome com- pleto no google. Só quando apareciam meus dados e mi- nha foto, eu tinha certeza de que realmente existia. Fiz isso inúmeras vezes: consultar o google, uma plataforma digital, para verificar se de fato eu existia. Em algum mo- mento, compreendi que isso era uma aberração. Como a internet poderia ser mais real do que meu corpo, meus sentimentos, meus pensamentos? Como redes sociais poderiam afirmar a minha vida mais do que meus pul- mões que respiram, que meu coração que bate? No dia que eu consegui chegar a esta conclusão, senti uma eu- foria tão grande que peguei meu computador e celular, joguei no chão e não parei de bater neles com a enxada até que ficassem em mil pedacinhos. A confissão causou certo constrangimento. Al- guns reagiram com um sorrisinho nervoso, outros abai- xaram os olhos... todos, sem exceção, se mantiveram em silêncio por incontáveis minutos. - Eu existo de verdade, olhem só para mim, gritou a mascotinha do grupo, enquanto rodopiava encima da mesa da sala. Alicia, a estas alturas, era uma criança cria-
55 da fora do ambiente digital, embora de vez em quando acessasse as redes na companhia de um dos pais. Aquela cena descontraiu a tensão que havia se instalado no ambiente, e Ana foi quem tomou a palavra: - Sempre senti que a internet era um bicho gran- de que ficava me olhando encurralado no canto, à es- preita. Eu não precisava de computador ou celular para viver na virtualidade. Minhas noites de sonhos delirantes eram um mundo virtual muito mais interessante do que as redes sociais. Mas em algum momento também me deixei levar pela onda e mergulhei nesse oceano digi- tal. Quando suas águas começaram a ficar muito turvas, muito contaminadas, decidi sair. - Aos poucos eu consegui entender que o mundo virtual é um território propício ao desejo, mas que a ex- periência do corpo que respira, que se cansa, que sente dor, que esquenta ou esfria, que goza e se alimenta, é muito mais preciosa, continuou Patrícia. Devagar fui en- tendendo que a experiência é vida, muito mais vida que o mero desejo. Aí passei a me concentrar no meu corpo, no meu entorno. E aí a Ana chegou para me ajudar ainda mais no meu processo de reencantamento da vida. - Adoro esse jeito de resumir tudo que a Patrícia tem: o que encanta a vida é a experiência. O encanta- mento da vida é experimentá-la, finalizou Arminda. Todos sorriram, até que Alicia tomou o protago- nismo novamente, levando um tombo de cima da mesa, o que obrigou ao encerramento repentino daquela lon-
56 ga conversa. Entre as caras de preocupação e os gritos de dor de Alicia, pairava um clima de circunspecção que acompanhou a todos os presentes no retorno às suas casas. Doze anos depois, os quarenta companheiros (apesar do falecimento de dois de seus membros, uma moça e um rapaz, ambos mochileiros, se juntaram ao grupo, e ali permaneceram) já conseguiam realizar algu- mas proezas aperfeiçoadas por Ana, de forma autônoma e intuitiva. Era ela quem os capacitava no manejo das ener- gias, através de exercícios que inventava. Com Ana aprenderam a capturar a energia dos raios solares ou da água das chuvas para fertilizar seus canteiros e hortas, ou ainda para protegerem suas casas e até mesmo os seus próprios corpos, quando alguma nova ameaça se aproximava, como naquele momento de uma terrível chuva de granizo que devastou quase todos os telhados da cidade. Aqueles que não puderam se proteger, e per- deram seus bens, se reorganizaram em mutirões com o grupo. No começo não foi nada fácil. Apesar de que, com o tempo, foram ganhando confiança uns nos ou- tros, confiar continuava sendo um enorme desafio.
57 Confiar, principalmente, em seus próprios talentos e habilidades ainda pouco iluminadas, pouco advertidas. Mesmo Cesar, que já havia vivido a experiência efetiva de surpreender-se com um poder que nunca imaginaria ter, não conseguia entendê-lo desta maneira, no início. Foram necessárias muitas conversas, muito diá- logo, para que ele próprio fosse se dando conta da ex- periência com as mãos, com a energia, com a intenção e a vontade, o medo e a necessidade... e fosse juntando tudo isso de forma a perceber que não havia sido aleató- rio, mas um processo acionado por ele mesmo. E Ana pôde perceber, também, que cada pes- soa precisa adquirir esta confiança, primeiramente em si mesma, para só então estendê-la aos demais. E, para isso, era necessário falar da emoção, do que se sentia, por pior que fosse... tratar com respeito qualquer emo- ção que se sentisse. Tratar com admiração a coragem de se expor, de se mostrar para o grupo. - Confiança é um bichinho abstrato que preci- samos aprender a enxergar. Não é como as baratas ou moscas, bichinhos que afastamos. Também há bichinhos feitos de ideias e sentimentos. Alguns deles queremos atrair para nos ajudarem. Por isso gostamos tanto dos cachorros e queremos que eles nos acompanhem, por- que eles conhecem a confiança. Queremos os cachorros, mas queremos, mais ainda, a confiança que vem junto com eles. Arminda, uma das donas de casa que compunha
58 o grupo, vivia cercada de oito cachorros e três gatos, e por isso conhecia muito bem a confiança expressada por Ana. Apesar de ter perdido o marido e os três filhos, ao longo da última década, pelas mais diversas razões, entre acidentes e doenças, mantinha-se de pé, erguida sobre o amor e a confiança que construíra com os seus amigos bichos, como elas os chamava. Nunca se referia aos animais de outra maneira. Apesar de que cada um tinha nome e sobrenome, e ela poderia ficar horas descrevendo a personalidade de cada um dos cães e gatos com quem convivia, quando ti- nha que se referir a eles no plural, utilizava esta fórmula: amigos bichos. Por isso não lhe foi difícil entender os argumen- tos de Ana, que também falava dos seus bichinhos. E de fato foi Arminda quem conseguiu materializar para o grupo as intenções de Ana, pois tinha no mínimo uma história para cada argumento. Arminda sabia o que era confiança, pois convivia com ela há muito tempo. De alguma forma, Arminda e Ana tinham em comum uma grande capacidade reflexiva e observadora. Mas, para Arminda, eram as relações en- tre os cães e os gatos que formavam o seu laboratório. E, claro, entre estes e ela mesma, seu marido e filhos. Quando ainda mantinha toda a família humana unida, no auge da vida familiar feliz, como ela dizia, che- garam a ter em casa seis cães, cinco gatos, dois papagaios e um hamster. Além do marido e os três filhos. Conseguir
59 que todos convivessem bem, fazendo com que a alegria se sobressaísse aos inevitáveis conflitos, tinha sido o seu laboratório experimental. Nesta época, desenvolvera as suas habilidades mediadoras e, acima de tudo, as diver- sas e variáveis nuances da confiança. - Confiança não é um bloco duro, não. Confiar é que nem esticar massa. Todo dia você precisa repuxar um pouco mais de um lado e do outro. E precisa deixar descansar para crescer. Vi uma gatinha linda, toda ma- lhadinha de preto e branco, ser quase devorada, ferida de morte, por uma das cadelas em quem ela mais con- fiava. A danada da Priscila, uma vira-lata muito nervosi- nha, cansou da brincadeira com a Pretinha e meteu-lhe os dentes. Eu fiquei tão triste, quase morri junto com a gatinha, de tanta tristeza. Mas logo depois a Priscila não parava de me lamber, me olhava com aquele olhi- nho de pedir perdão, até eu entender que ela tinha sido ela mesma... que tinha apenas seguido seu instinto e seu temperamento. Aí passei a cuidar mais dessa relação en- tre os amigos bichos. Podem ser amigos, claro que sim, mas a confiança tem que vir sempre com uma pitada de desconfiança. Igual a gente coloca uma pitada de sal na massa do bolo, junto com o açúcar. Arminda contava suas histórias, suas experiên- cias vividas, experimentadas, e com isso tornava muito mais didático o que Ana pensava. Era como se traduzisse seus pensamentos. A cada domingo, Arminda contava os acontecimentos da semana entre seus amigos bichos. E,
60 pouco a pouco, os outros do grupo entenderam que esta era uma boa dinâmica, uma boa maneira de pensar em coletivo. Em algum momento, Cesar passou a observar suas orquídeas de outro modo. E começou a ver que, entre elas e as árvores, também havia uma relação muito clara de confiança, uma relação de cooperação silenciosa e dis- creta, mas efetiva. Quando se deu conta, estava anotando ideias que lhe vinham à cabeça ao observar suas plantas, para não esquecer de compartilhá-las no domingo. Outro caso curioso acontecia com Luiza, uma das professoras do grupo que havia sido diretora da escola principal durante dezoito anos. Agora aposentada, em algum momento percebeu que poderia procurar, nas suas lembranças, onde estava a confiança, e como ela tinha vivido com ou sem ela. Nunca tinha se casado, nem tido filhos e muito menos animais em casa. Luiza esco- lhera fazer dos livros e dos seus alunos seus companhei- ros de vida. Na verdade, chegou a se apaixonar perdidamente por Luiz, o vizinho que morava do outro lado da cidade, no pé da cachoeira. E inclusive chegaram a ficar noivos, depois de seis anos de namoro. Luiz e Luiza pareciam ter nascido um para o outro, tinham até o mesmo nome... era o que todos diziam. Porém, Luiza percebia detalhes em Luiz que não lhe agradavam muito. Ele gostava de bebida. Todo sába- do era sagrado passar a tarde e a noite no bar com os
61 amigos, bebendo e conversando, depois da partida de futebol. Sua mãe lhe dizia que isso não tinha nada de mais, que melhor ficar com os amigos na pelada e no bar do que com outras mulheres. Que isso é o que fazem os maridos, trabalham duro durante a semana e relaxam no sábado. Mas se no domingo de manhã estão na igreja, acompanhando missa, qual o problema? Luiza tentava acreditar nessas palavras, mas não conseguia. Esforçou-se, realmente, durante os últimos dois anos de namoro, quando Luiz começou com esses hábitos adultos, como ele dizia. Tentou manter a con- fiança no seu olhar, no seu jeito de tocá-la, de beijá-la, de acariciá-la. Mas não conseguiu manter a confiança nas suas palavras, nas conversas que tinham. Então en- tendeu que não seria feliz com este homem, em quem aprendera a confiar no abraço, mas não nas palavras. Terminou a relação, para espanto de todos, e se mudou para a capital, para estudar. Decidiu que confiar nas palavras era mais importante, e se agarrou aos livros. Depois de vários anos fora, terminado seu mestrado em Pedagogia, resolveu voltar para a cidade natal, para cui- dar dos pais, já doentes. Prestou concurso e ali perma- neceu como professora e depois diretora da escola. Quando retornou à cidade, viu que Luiz já estava casado e tinha uma filhinha. E isso, mais do que incomo- dá-la, foi um alivio. Construiu, com os livros, uma relação de proxi-
62 midade e confiança. Mas também com eles aprendera que a confiança não pode ser um bloco duro, como dizia Arminda. Muitas das teorias tão lindamente escritas e defendidas pelos pedagogos, nos livros que aprendera a amar e a defender na universidade, não lhe serviam na prática da sua pequena sala de aula e, depois, na relação com os/as professores/as da escola, e ainda com pais e mães das crianças. Teve que aprender que um grau de desconfiança é necessário para que a realidade tenha uma boa gestão. Por isso, entendeu perfeitamente quando Arminda falou de uma pitada de sal para não desandar o doce do bolo. Ao longo de sua carreira, tivera que desenvolver uma distância segura, como ela concluiu, entre as cer- tezas dos livros e as dúvidas do cotidiano da escola e da cidade. Mas tudo isso ela havia refletido sem se dar con- ta. De forma inadvertida, tinha encontrado seus cami- nhos de interação com a realidade. Apenas agora, já uma sexagenária aposentada, no diálogo estabelecido entre os sobreviventes, se dava conta do seu próprio caminho e das reflexões e posicionamentos que tivera que tomar. - Construímos confiança sem perceber. E apren- demos a desmontar o seu mecanismo, dosando o “sim” e o “não”, apoiando-nos no “talvez” e no “mais ou me- nos”. Acho que essa matéria deveria entrar no currícu- lum pedagógico: construção da confiança crítica. Luiza sabia, cada vez com maior clareza, que era
63 possível viver em discordância com ideias, argumentos e posicionamentos, porém respeitando e, até mesmo, quem sabe, admirando as especificidades de seus cole- gas e estudantes. Afinal, são as especificidades que nos conformam e formam cada processo particular. Definiti- vamente, não somos e nem devemos ser iguais uns aos outros. - Cada um dos meus alunos, e cada um dos meus colegas, tinha sua própria história. Assim como Luiz, cujo pai lhe servia de modelo. E o pai do seu pai, e vai saber onde tudo começou... aprender a discordar com respei- to foi o que me salvou de um casamento que certamen- te seria infeliz. Quem diria, anos depois fui professora das filhas dele e tive uma ótima relação com a família. Cidade pequena... Assim, os domingos foram se tornando, também, momentos de compartilhar as percepções da sema- na, mas não apenas no tocante aos fatos do cotidiano. Quanto mais confiança adquiriam uns nos outros, mais se abriam e passavam a incluir as reflexões, as autoava- liações de suas próprias trajetórias. - É lindo conhecer vocês desse jeito, virados do avesso... sorria Ana, cada vez que um se decidia por se abrir para o grupo, contando suas histórias e o balanço que fazia de sua própria vida. Mas certamente também entre eles entenderam que a confiança precisa vir acompanhada de lucidez, de discernimento. Confiança cega é para tolos, dizia Ana. E
64 completava: - Se eu não posso confiar cegamente nem em mim mesma, quem dirá no outro que está ao lado... por que deveria cobrar do marido, da filha, do cachorro, vi- ver todos os dias do mesmo jeito, se eu mesma não sou assim? Em certa ocasião, ainda nos primeiros anos, se deram conta de que alguns alimentos estocados desapa- reciam, estranhamente. O incômodo maior, que gerou um bom conflito, aconteceu em um período que não pa- rava de chover. Foram treze dias de chuva ininterrupta. As verduras e legumes praticamente se afogaram antes do tempo da colheita, e o grupo teve que lançar mão da reserva de enlatados que mantinha, por precaução. Porém, quando foram buscá-los toparam com a dispensa vazia. Essa dispensa, considerada do grupo, e não individual, ficava justamente em uma das casas abandonadas, bem próxima do centro da pracinha prin- cipal. Era uma casa grande, das mais antigas da cidade. Ela se tornou o depósito de vários utensílios, móveis, roupas e também comida que, quando encontrados, eram considerados de uso coletivo. Foi um grande choque encontrar a dispensa va- zia, quando já se temia pela fome que acompanhou o
65 longo período de chuva. Muitos estavam desconsertados, pensando que não deviam ter confiado, que deviam ter colocado ca- deado e escolhido uma das pessoas como representante para guardar a comida. Curiosamente, quem saiu neste momento para apaziguar os ânimos e tentar conciliar acusações mútuas foi Cesar, o advogado que, durante toda a vida, esteve envolvido em conflitos e pleitos judiciais. - Esta disputa não serve para nada. Vivi a vida inteira entrando e saindo de processos, mais ou menos exaltados. E mesmo quando ganhava, tinha clareza de ter perdido alguma coisa. Por isso me aposentei tão rápi- do, na flor da mocidade, como dizia minha falecida espo- sa. Fiz essa opção, de me aposentar, porque não aguen- tava mais viver essas disputas insanas de quem tem mais razão, de quem tem mais dinheiro para pagar pela ra- zão, de quem tem mais poder para vencer em nome da razão. Eu mesmo cometi muitas injustiças, sempre em nome da verdade. Se continuarmos assim, vamos acabar com o grupo, com a confiança que estamos construindo, em nome dessa tal verdade. - Então o que você sugere, Cesar? Dar a outra face? Fingir que a comida que tínhamos para comparti- lhar no grupo em momentos de perigo como este nunca existiu? Disse, indignada, Mariana, uma das professoras. - Eu não disse isso. Sugiro que todos nós comece- mos, agora, a procurar os mantimentos, pois eram mui-
66 tos e alguma coisa pode ter sobrado. E, quem sabe, a pessoa que os levou não coloca a mão na consciência e se arrepende? Haveria alguma punição? Acho que não... este grupo só existe porque precisa existir, não estamos aqui para punir ninguém e sim para sobreviver. E todos nós sabemos que precisamos uns dos outros. Cada um de nós é uma pecinha e estamos sobrevivendo justa- mente por isso, porque estamos juntos. Todos se olharam, em silêncio, e aceitaram sair em busca do que podia ter restado. Depois de algumas horas, a maior parte dos mantimentos foi encontrada no altar da igreja matriz. Foram levados, em comum acordo, para a mesma dispensa de antes. - E agora, perguntou Ana, colocamos uma chave nesta dispensa e escolhemos um de nós como guarda- dor da comida? Todos novamente se entreolharam e, ainda em silêncio, acenaram que não, com a cabeça. - Não? E por que não? Perguntava Ana, entre irônica e divertida. Foi justamente Mariana quem tomou a palavra para responder: - Se entregarmos a chave na mão de uma pessoa, estaremos dizendo que não confiamos mais no grupo, em nós mesmos... estaremos entregando toda a con- fiança que vinha sendo compartilhada para uma pessoa apenas. Essa foi a política que conhecíamos. Essa foi a política que faliu.
67 - Podemos dar uma segunda chance para quem fez isso... talvez essa pessoa tenha tido alguma razão, complementou Pedro. - Acho que essa pessoa deve estar muito enver- gonhada, afirmou Adélia, uma das irmãs cantoras. Não precisamos saber quem é e nem por que fez isso. Só precisamos que nunca mais se repita porque a confiança tem que ser cultivada. Se um de nós tem fome, que pro- cure ajuda e que não se esconda. Se estiver sofrendo por medo de ter fome, então digo de novo: procure ajuda porque você não está sozinho... estamos aqui todos jun- tos. E todos nós temos um pouco de medo e um pouco de fome. Mas temos que dividir a comida, o medo e a fome, ou não sobreviveremos. Um longo silêncio se abateu sobre todos. Pouco a pouco foram deixando o recinto. Ana, a última a sair, apagou as luzes e deixou a dispensa aberta, como tinha sido deliberado. Nunca souberam quem havia pegado os mantimentos. Mas isso não importava mais. O episódio do desaparecimento dos mantimen- tos, fez com que o grupo entendesse que tinha duas vulnerabilidades: a primeira, em relação à comida; e a segunda, em relação à confiança. De alguma maneira, tanto comida quanto confiança eram a base de sua so-
brevivência. Nas semanas seguintes, todos se perguntavam se ainda seria possível manter a boa relação de amizade e solidariedade que tinham começado a construir, e que agora estava sob suspeita. Ana pensou que, para a primeira questão, a co- mida, seria necessário encontrar novas fontes de alimen- tação, caso houvesse períodos de chuvas, de granizo, de novas infestações de insetos, e um longo etcétera que poderia se abater sobre eles, e para os quais nem ela, nem ninguém, poderia ter algum tipo de ingerência. Para lidar com ambas as questões - alimentos e confiança - decidiu propor ao grupo uma espécie de jogo. Assim, além dos diálogos, das poesias e das dan- ças que acompanhavam o almoço coletivo do domingo, Ana propôs ao grupo que todos procurassem elaborar suas melhores habilidades, para que pudessem ampliar ainda mais a convivência. - Na prática, temos que pensar o seguinte: po- dem vir ainda muitos desastres, muitas doenças, e aque- las latas vão acabar em algum momento, ou vão perder a validade. O que faremos? Brigar porque alguém comeu duas latas que não devia ter comido? Não... temos que entender que nossa segurança não está nestas latas. Te- mos que desenvolver a habilidade de nos adaptar a qual- quer circunstância. - Dançar a música que a vida resolver tocar para
69 nós, completou Vera, a mãe de Alicia. Se vier tango, dan- çamos tango; se vier, samba, dançamos samba... mas não passaremos fome. Todos riram, embora se sentissem apreensivos. Começaram a entender do que se tratava quando Ana prosseguiu: - Já faz algum tempo que estamos juntos e que conversamos. Todos nós sobrevivemos até aqui porque em algum momento entendemos que não adianta brigar com o rumo da vida, não adianta lutar contra as ondas no mar em tempestade. Ou seguimos as ondas, ou nos afogamos. Todos nós entendemos que há um ritmo e que podemos dançar nesse novo ritmo, mesmo que ele nos assuste, mesmo que ele nos dê medo. Proponho o seguinte jogo: 1. Enterramos todas as latas, para esque- cermos que elas existem, para nos libertar desta falsa segurança; 2. Vamos todos aprender a encontrar alimen- tos onde antes só víamos mato; 3. No próximo domingo, cada um de nós terá que apresentar algum resultado para o desafio posto: inventar novos alimentos. - E se eu não conseguir encontrar nada? Pergun- tou Valentina, uma das donas de casa do grupo. - Talvez você não consiga encontrar nenhum ali- mento, mas quem sabe se dispondo a procurar, a inven- tar algo diferente para o grupo, você não encontra outra coisa útil? Quem sabe não encontra alguma ferramenta perdida, ou sabe-se lá o quê. A questão principal não é o que temos que encontrar, mas nos colocarmos dispo-
70 níveis para o encontro; estar abertos e atentos, em bus- ca de algo que favoreça o grupo. A questão é colocar o grupo, nossa sobrevivência conjunta, como prioridade, e buscar mais elementos que nos ajudem. - Esta seria uma boa definição de ética, afirmou Cesar, com um sorriso largo. Carine, a mochileira, uma das mais recentes inte- grantes do grupo, foi a primeira em se mostrar animada com o desafio. Se levantou imediatamente e disse que começaria a sua busca neste exato momento. Todos riram porque já estava anoitecendo, mas não disseram nada para não desanimar a moça. O que não sabiam eles é que Carine já trazia uma habilidade, que havia herdado de sua mãe, e esta de sua avó, que era a habilidade do sonho. O que eles nem desconfiavam é que ela e seu amigo tinham chegado a esta comunida- de justamente porque Carine vinha buscando um lugar diferente, com o qual tinha sonhado. Era o que ela pe- dia todas as noites, antes de dormir: que seus sonhos a guiassem, a levassem a encontrar um porto seguro onde pudesse ancorar e se fortalecer. Carine vinha de uma família acomodada, classe média alta. Embora ainda fosse muito jovem, tinha viaja-
71 do o mundo de férias com a família, ou em intercâmbios da escola. Falava fluentemente várias línguas e tinha um grande conhecimento de muitas áreas, pois durante os seus vinte e quatro anos tinha lido de tudo que apare- cia na sua frente, desde física quântica à filosofia e arte. Mas, sua maior fonte de inspiração eram os seus sonhos. Neste universo paralelo, nesta outra dimensão virtual, era onde encontrava as melhores perguntas e as respos- tas mais instigantes. Com a crise ambiental, social, política e certa- mente econômica da última década, sua família tinha perdido tudo. Depois do suicídio do pai, sua mãe tinha decidido se isolar em uma pequena chácara da família, que lhes havia sobrado, e ali queria recomeçar a vida. Carine a seguiu, junto com seus dois irmãos mais novos e o que havia restado de uma família muito amiga. Esta pequena comunidade, formada por sua mãe e a amiga, e os filhos de ambas, permaneceu em segurança, pois fo- ram desenvolvendo, entre eles, um cotidiano colaborati- vo, mais ou menos parecido ao que Carine tinha conhe- cido no grupo de Ana. Mas, depois de dois anos vivendo naquele isolamento, seus sonhos a chamavam a partir. Por mais que se sentisse bem onde estavam, pois tinham muita natureza ao redor (e podiam se autossus- tentar com as hortas e os animais que havia), seus so- nhos não a deixavam tranquila. Ela tinha que partir, ela precisava participar de algo que não conseguia entender, mas que a chamava para ir mais longe. Curiosamente,
72 um dos filhos da amiga de sua mãe, da sua idade, vinha tendo as mesmas ideias e inquietações. À sua maneira, Lourenço sabia que tinha que andar mais mundo. Então, depois de várias conversas, conseguiram convencer a todos de sua partida. Os sonhos foram os argumentos principais, pois a mãe de Carine aprendera a respeitá-los acima de tudo. Era a herança mais valiosa de sua família, como ela mesma dizia. Carine e Lourenço partiram em uma manhã de domingo ensolarado, levando apenas uma mochila cada um. Três dias depois, após muita caminhada e caronas diversas, chegavam àquela pequena cidade, no alto da serra. Quando viu o pico da montanha, da janela da cozi- nha de Ana, Carine entendeu que tinha chegado ao seu destino. Aquela era a imagem que vinha acompanhando suas noites nos últimos meses. Lourenço era alguns meses mais velho que Ca- rine. Estava a ponto de se formar em Biologia quando a crise sanitária piorou e todos se isolaram na chácara da família de Carine. Estranha e curiosamente, seu pai se suicidou dois dias depois do pai de Carine. Ambos eram importadores e comerciantes, tinham mais ou menos a mesma idade e aspirações. Viviam para cuidar dos seus negócios, sempre atentos à vitalidade do mercado e à
73 bolsa de valores. Porém, em relação às suas famílias, conviviam pouco e conversavam menos ainda. Sua mãe e a mãe de Carine eram amigas de lon- guíssima data. Tinham estudado juntas desde a infância. Passaram a adolescência nos mesmos clubes e festinhas de bairro. Separaram-se um pouco na época da faculda- de, quando uma foi estudar Letras e a outra Psicologia. Mas voltaram a se encontrar e a conviver quando che- gou a maternidade. Às vezes brincavam que eram irmãs gêmeas de úteros separados porque as histórias de am- bas se tocavam e se confundiam. Sem se darem conta, tinham se casado na mesma época, com maridos muito parecidos um com o outro; ti- nham sido mães pela primeira vez no mesmo ano, com poucos meses de diferença. E agora voltavam a reunir-se depois da tragédia do suicídio e das catástrofes finan- ceiras a que se viram jogadas. Uniram-se novamente, e nesta união encontraram forças para recomeçar longe de tudo, fortalecendo-se mutuamente e no cuidado dos filhos. Quando Lourenço acordava, as duas já estavam de pé, tomando seu café na cozinha, dedicadas a fazer pão para os pequenos, como elas se referiam aos filhos. Ele não conseguia entender bem, mas a verdade era que nunca tinha visto a sua mãe tão feliz como naqueles dois últimos anos. Nunca a tinha visto tão sorridente e com o rosto tão iluminado. Como era possível? Quando a vida parecia certa, estava errada? E agora que estava de pon-
74 ta cabeça, ela estava melhor do que antes? Lourenço não entendia esta mudança de sua mãe, mas ficava muito aliviado que fosse assim. Na verdade, tinha se dedicado a estudar biologia justamente porque queria muito entender a vida. Apesar de todas as turbulências em todos os âmbitos, e também na universidade, onde por conta das sistemáticas pandemias tinham grandes períodos sem aulas presenciais, e durante a guerra informática, sem aula alguma... ainda assim, faltava pouco para encerrar este ciclo e hoje já era quase um biólogo formado. No entanto, a grande pergunta (o que é a vida?), continuava sem resposta. Tudo o que havia estudado não a respondia, pois vida não era, definitivamente, um dado meramente biológico e talvez nem apenas um dado meramente social. Sua mãe vinha a confirmar as suas suspeitas. Agora, quando a vida social e também biológica desmoronava, ruía, ela parecia florescer. Nunca tinha visto a sua mãe tão viva quanto ago- ra, quando ela mesma ordenhava a vaca e recolhia os ovos pela manhã, para durante a tarde limpar e cozinhar. Era outra pessoa, certamente muito mais feliz do que antes, quando tinha empregadas para fazer tudo por ela e passava as tardes nos shoppings fazendo compras, ou no salão de beleza. Agora, sem escovas e maquiagens, sua mãe era a mulher mais bonita que tinha conhecido. Talvez também sem o marido que a oprimia, ele pensava. Embora amas-
75 se seu pai, não podia desconhecer que mais do que au- sente, ele às vezes era até mesmo agressivo, tanto com ela quanto com os filhos. Dele, tinha vagas lembranças de uma infância bem distante. Alguns flashes de brinca- deiras na praia ou de alguma viagem de trem. Lembran- ças tão informes e distantes, que pareciam mais de um filme que havia assistido do que de sua própria vida. E essa era a questão para Lourenço: descobrir qual era a vida real. Mais do que biológica, mais do que social... o que era, então, a vida? E como conseguir vivê- -la em sua plenitude? Quando Carine comentou que estava tendo so- nhos recorrentes com pessoas que ela não conhecia, em uma cidade de onde se via o cume de uma montanha, e que precisava deixar a família para encontrar este local, Lourenço sentiu que essa era a sua chance. Um impulso incontrolável fez com que ele não pudesse dormir nas noites seguintes, até tomar a decisão definitiva de que iria embora, junto com Carine. Pesava-lhe a sensação de estar abandonando a sua mãe e os seus irmãos, pois como alguém lhe havia dito, depois da morte do pai, ele agora era o homem da família. Mas, com a revelação de Carine, de sua iminente partida, começou a se perguntar se sua mãe realmente precisava de um “homem da família”, ou se isso era ape- nas mais uma ilusão, mais uma frase feita destas que a gente repete sem entender direito por quê. Sua mãe nunca esteve tão bem, tão segura e se-
76 rena. Talvez a sua ausência não fosse entristecê-la, talvez ela compreendesse que era hora dele se arriscar, dele continuar procurando as respostas que nunca encontra- ra na faculdade. O que era viver, afinal? Lourenço, depois de dois anos vivendo na comu- nidade, havia se especializado em encontrar nascentes de água, ou pequenos poços escondidos na mata. Na verdade, tinha descoberto em si uma habilidade inédita: ele conseguia se comunicar com as águas. Sentia quando vinha chuva, e em que volume chegaria. Sentia quando viria a seca, e quanto tempo duraria. Desde que Ana lhes colocou o desafio de encon- trar alimentos para o grupo, sentiu que despertava nele um instinto estranho, mas interessante. Ele se sentia um caçador, mas não de animais, pois ele mesmo não comia carne alguma há muitos anos. Sentia-se um caçador de fontes de vida, procurando sempre aliar o que havia es- tudado, seu acervo como biólogo, ao que restara de na- tureza naquele lugar. Procurava aguçar ao máximo todos os seus sentidos, e assim caminhava horas seguidas em silêncio, atento ao seu entorno, às plantas e bichos com quem se encontrava. Quando retornava, no final da manhã, tinha sempre a satisfação de ter encontrado algo novo. Eram
77 pequenos detalhes que, com o tempo, foram lhe mos- trando onde estava o seu talento, como dizia Ana para motivá-los. Seu talento era comunicar-se com as águas. Embora ele não pudesse explicar nada disso de forma racional nem para si mesmo, nunca havia se senti- do tão vivo como agora. Depois de alguns anos, Louren- ço finalmente entendeu que estar vivo era estar presen- te. Aguçar todos os sentidos, toda a percepção de seu corpo, mente e emoções... em uma extrema concen- tração no agora, nos detalhes da luz e das sombras, nas mínimas percepções de alterações que antes passariam inadvertidas. Com o passar dos anos, Lourenço chegaria à con- clusão de que vida é presença, e viver é estar integral- mente imerso no diálogo com as nuvens que corriam acima de sua cabeça, ou com os fluidos que serpentea- vam sob os seus pés. Estar vivo era, então, vincular-se e comprometer-se com o que o extrapolava, com as matas exuberantes, os pequenos córregos, os montes e mon- tanhas, vendavais e brisas... vidas em plural, em menor ou maior escala. E finalmente ser parte de tudo isso... como peça de uma enorme rede que pulsa de inúmeras e incontáveis maneiras. Viver com a paisagem, o próprio corpo e o grupo; ser e estar, ao mesmo tempo.
78 Ana se surpreendeu com os caminhos que seu desafio acabou tomando. Sua intenção, naquele mo- mento, era apenas motivar o grupo a agir, pensar e sentir como grupo, ou seja, motivá-los a levar a sério a interde- pendência que os unia. Fazê-los perceber que realmente precisavam uns dos outros; fazê-los finalmente confiar uns nos outros, mas, acima de tudo, confiar em si como peça de um quebra-cabeça que precisa encontrar seu lugar de encaixe. Ela nunca poderia imaginar que este desafio ge- raria tantas consequências tão positivas para o autoco- nhecimento de cada um deles. A confiança mútua aca- bou se tornando, ela mesma, uma das consequências e não o objetivo. Curiosamente, à medida que iam desenvolven- do seus talentos, suas habilidades perceptivas e cogni- tivas, iam entendendo o que os diferenciava e, ao mes- mo tempo, o quanto se complementavam. Ninguém era igual a ninguém; o que o outro desenvolve é o que me falta. Um profundo sentido colaborativo e solidário foi se construindo sem que fosse preciso grandes esforços. À medida que avançavam em suas autopesqui- sas, compreendiam sua singularidade, mas compreen- diam, também, sua imperfeição, suas faltas e falhas. Esta consciência nascente da necessidade de interassisten- cialidade foi fundamental e sentou as bases para que o grupo se tornasse, definitivamente, uma comunidade de vida.
79 O que era apenas um jogo, um desafio fomen- tado por Ana, tornava-se o fio condutor que lhes faria passar do estágio de sobreviventes agrupados ao nível, muito mais amadurecido, de uma comunidade de vida que se une por necessidades básicas, como se proteger e se alimentar, mas avança para necessidades sensíveis, como entender melhor a vida, suas fraquezas e fortale- zas. Juan, por exemplo, um homem de oitenta anos, firme como uma rocha, descobriu que tinha um especial talento para encontrar plantas comestíveis no que ain- da restava da mata. Ele aprendera a conversar com as plantas, depois de uma vida inteira fazendo cálculos de contabilidade. Lourenço e ele ficavam horas conversan- do sobre esta comunicação tão estranha quanto mara- vilhosa, que haviam desenvolvido, um com as águas e o outro com as plantas. Pouco a pouco, o jogo proposto por Ana foi se transformando em exercícios para ativar as percepções sensitivas, corporais, mentais e sentimentais de quem quisesse se envolver. Nesta etapa, cada um compartilha- va o que vinha elaborando, refletindo. Já não havia entre eles temor ou insegurança. Por mais estranho que pare- cesse, tudo ali era compartilhado com extremo respeito. A confiança se construía na medida em que eram verificadas e experimentadas as percepções. E aquela confiança inicial, mais básica, ligada ao cuidado com a convivência, já nem era mais considerada, pois era já
80 muito primária. Agora se vinculavam por descobertas e invenções de si mesmos, e isso era muitíssimo mais valorizado do que as latas de mantimento que jaziam, enterradas no esquecimento. Cada integrante do grupo descobriu em si habi- lidades diversas e inusitadas. Havia quem pressentisse acontecimentos meteorológicos, quem promovesse a cura utilizando pedras, argila, plantas e o que tivesse à mão, quem conseguisse expandir as energias do seu próprio corpo para um alvo externo. E havia, também, quem encantasse a todos com a beleza de suas canções e poesia. Descobriram que juntos eram muito mais for- tes e resilientes, ou seja, muito mais aptos a enfrentar a enorme mudança pela qual o mundo passava. Em várias ocasiões, pessoas chegavam procuran- do abrigo. Passavam ali alguns dias ou até semanas, mas não se adaptavam ao funcionamento do grupo. Às vezes riam dos exercícios energéticos, de suas conversas; ou até mesmo zombavam de suas conquistas, por conside- rarem-nas irrisórias diante da tragédia do mundo. Certa vez, uma dessas pessoas foi embora, de- pois de seis semanas com a comunidade. Deixou apenas um pequeno bilhete, onde se lia: “liberdade ingênua”. Ana passou muito tempo refletindo sobre aquela
81 frase. Esse foi o tema de várias tertúlias do grupo. Até que concluíram que sim, toda liberdade era, de certa forma, ingênua. E assumiram para si essa frase, como um de seus lemas. Seriam livres naquela pequena ilha, cercados pelas nuvens. A ingenuidade dessa liberdade em meio ao caos era a base de sua resiliência. Uma das professoras do grupo, depois de buscar em seus velhos dicionários, havia encontrado, na etimo- logia da palavra ingenuidade, a base para a sua assimila- ção pelo grupo: ingênuo vinha do latim ingenuos – “nas- cido livre e não escravo”. Aquela possível ofensa ganhava, a partir de en- tão, um sentido afetivo e solidário. Os futuros “reconstrutores” se uniam por afini- dade e, principalmente, por necessidade; pela primária e humana necessidade de sobreviver. Tinham consciên- cia de que o mundo, como eles conheciam, já não existia mais. Tinham consciência das doenças e das catástrofes que transformaram o desenho da realidade. Mas, acima de tudo, tinham consciência de que, juntos, se fortale- ciam e até mesmo viviam em paz e eram saudáveis. E isso, nesse momento, era a maior riqueza que podia ha- ver sobre a face da terra. Com o passar dos anos, Alicia ganhava cada vez
82 mais protagonismo na comunidade. Tornara-se o braço di- reito de Ana. Passavam a maior parte do tempo juntas, tro- cando confidências, experiências e muitas risadas. Também juntas desenvolveram técnicas novas e mais ousadas. Alicia pouco a pouco deixava de ser a menininha raquítica e inquieta da infância, para se tornar uma jo- vem cada vez mais segura do seu lugar no mundo, ainda que mantivesse aquele brilhozinho no olhar, cheio de curiosidade e ousadia. Crescera cercada por muitos cuidados, pois toda a comunidade a sentia como uma filha coletiva. Tanto os mais velhos quanto os mais jovens se esmeravam em mimá-la e educá-la como podiam, pois eram, ao mesmo tempo, sua família, sua escola, sua comunidade. Porém, ainda que sob tantos olhares, Alicia sempre encontra- va o momento adequado para escapar e estar sozinha, acompanhada das luzes e das sombras de si mesma e do que restava da cidade. Sem que pudessem entender, Alicia, desde a mais tenra idade, conseguia deixar a todos surpresos e até mesmo angustiados, com seus longos períodos de desaparecimento. Mas, depois de muitas vezes de bus- cas incansáveis e infrutíferas, quando já estavam real- mente preocupados, a menininha surgia do nada, sor- ridente e alegre, como se nada tivesse acontecido. Em algum momento, já por volta dos seus dez anos de ida- de, entenderam que Alicia simplesmente desaparecia e reaparecia, e decidiram se tranquilizar com isso.
83 Por alguma razão que ela mesma não sabia expli- car, Alicia precisava estar sozinha durante algum tempo. Conforme ia crescendo, este tempo também aumentava. No começo, se escondia dentro dos armários, debaixo das camas, em cima das árvores. Seu desaparecimento durava alguns minutos, meia hora... até que ela come- çou a se aventurar, a ousar ir mais longe. Já beirando a adolescência, Alicia podia desaparecer por uma tarde inteira que ninguém mais se preocupava. Quando ela retornava, Ana fazia a mesma piada de sempre: “Apare- ceu a Margarida... oh, não, apareceu a Alicia!”. No final, todos se divertiam com este jeitinho autônomo e aven- tureiro que a caracterizava. E Alicia desfrutava dos mimos, dos cuidados que todo o grupo lhe conferia, mas também desfrutava imen- samente dos seus momentos de solidão. Pouco depois de cumprir seus nove anos de idade encontrou uma pe- quena cova, uma abertura estreita perto da cachoeira, e lá se escondia para escutar os passarinhos cantarem, observar o movimento infinito das luzes do sol nas gotas de água, os pequenos insetos que habitavam a mata e mais uma infinidade de coisas que a paisagem lhe rega- lava. Naquele pequeno esconderijo aprendera a conver- sar com a natureza. É claro que esta conversa foi aprendida a base de erros e acertos, como tudo na vida. Alicia teve que su- portar a dor de algumas ferroadas e até mesmo a picada de uma cobra com a qual ela havia cismado em implicar.
84 Para sua sorte, a cobra não era venenosa, ou o veneno foi curado com os procedimentos de Manuel, um dos sobreviventes que aprendera a praticar a cura utilizando pedras, argila, folhas e o que mais houvesse por perto. Quando sua mãe parecia perder a paciência, Ana interferia: - Você já viu algum espírito mais livre do que o desta menina? Liberdade inclui dor e sofrimento, não só prazer e alegria. Com o tempo ela aprende a dose cer- ta de cada coisa, inclusive a dose certa da sua própria curiosidade. No final, aprontasse o que fosse, Alicia sempre conseguia um colo que a acolhesse e uma carícia que a amparasse. Mas sabia reconhecer quando ultrapassa- va o limite da sua própria segurança, ou da prudência, quando Ana a olhava com extrema seriedade. Nesse mo- mento, Alicia parava o que estivesse fazendo e se sub- mergia em profunda introspecção. Nunca precisaram utilizar os velhos métodos de controle e autoridade que caracterizaram a criação das crianças por tantos séculos, pois Alicia reconhecia a autoridade dos mais velhos, e respeitava todos os seus conselhos e indicações. Muitas vezes, sua mãe teve que recorrer à Ana para convencer a filha a fazer esta ou aquela tarefa, a cumprir este ou aquele comportamento. E Ana, por sua vez, não fazia outra coisa senão olhá-la profundamente, procurando a consciência guardada naquela pequena
85 menina, para confrontá-la com as consequências dos seus atos e atitudes. O método educativo utilizado por Ana era mui- to simples, mas eficaz: consistia em responsabilizar Ali- cia pelos seus desejos ou impulsos. E o fazia de forma amorosa, mas firme. Nestes momentos, não se dirigia à pequena criança à sua frente, mas à consciência que ali estava crescendo e se aprimorando. Alicia aprendia as coisas mais diversas, acompa- nhando o dia a dia da comunidade. Participava de todas as suas ações e dialogava com cada um dos seus mem- bros. Aprendia a destreza do xadrez com Teresa, a va- lorizar o detalhismo dos selos com José, a importância da estética, da beleza, da sensibilidade, com as irmãs cantoras ou com Diego, o poeta do grupo, a observação aguçada das energias com Ana e Manuel, por exemplo, e um longo etcétera que incluía não apenas as pessoas da comunidade, mas os animais e as plantas, ou seja, todos os seres com quem convivia. Sua natureza curiosa fora sempre enormemente encorajada por Ana, pois esta sabia que, com o tempo, uma alma curiosa se transforma em uma alma investiga- tiva. Os processos anteriormente aleatórios ou impulsi- vos se tornariam investigações sensíveis e, com o tempo, gerariam e aprimorariam conhecimentos. Para Ana, educar consistia no cuidadoso trabalho de promover autoconfiança com lucidez, ou seja, a ca- pacidade de discernir entre o limite do veneno e da cura
86 contido em qualquer gesto, pensamento ou emoção. Quando Alicia já contava com dezesseis anos, chegaram os dois jovens mochileiros – Carine e Louren- ço – e ela se deu conta de que em sua enorme rede de afetos e conversas, não havia ninguém próximo a sua idade. A chegada dos jovens a surpreendeu e a levou a uma nova fase. Quase sem se darem conta, os três pas- saram a formar uma tríade de afinidade espontânea e genuína. Logo depois de sua chegada, Carine confessou que havia sonhado com Alicia. E era esse o principal si- nal de que finalmente havia encontrado a comunidade que buscava. Na cena que se repetia, na qual Carine via o pico da montanha pela janela de uma cozinha, Alicia era a silhueta que estava ao seu lado. Embora tivessem um pouquinho de ciúmes, os pais de Alicia entendiam que haviam trazido ao mundo uma filha que nunca fora apenas deles. E, no fundo, se sentiam orgulhosos dela e da vida que tinham construí- do naquele isolamento voluntário. Quando Ana faleceu, anos depois, Alicia natural- mente assumiu a liderança do grupo que, na verdade, já se havia renovado inúmeras vezes. Com Ana ia a geração dos “sobreviventes”, que possibilitou o desenvolvimento
87 dos “reconstrutores”... como a flor de lótus começando a desabrochar para o renascimento. Com Ana iam os mais velhos da comunidade e ficavam os mais jovens. Curiosamente, se mantinham sempre em quarenta pessoas. E curiosamente, também, os que morriam iam com idade avançada, depois de te- rem sido duramente testados nos períodos mais difíceis do último século. Ana, com a lucidez que a definia, poucos meses antes de falecer resolveu dar uma pequena festa. Festa de despedida e de reencontro, como ela a chamou. Nesta festa fez um longo discurso, através do qual compartilhou sua avaliação da vida que tivera. Da infância ao início de suas percepções sensíveis, e destas à criação de técnicas e práticas que viriam a cuidar dela mesma e, posteriormente, daquela pequena comunidade. No final deste percurso, procurou deixar claro que, para os reconstrutores, haveria novos desafios. Já não tanto da sobrevivência, mas da projeção, da expan- são para fora dos limites da cidade. Alguns se entreolharam temerosos e assusta- dos, pois quer queira quer não, ali, no seu isolamento, encontravam segurança, acolhimento e saúde. Fora da comunidade temiam não suportar a pressão das doen- ças, da escassez de alimentos, da hegemonia das mídias, dos pensamentos catastrofistas, pessimistas... enfim, do medo generalizado que percorria as ruas das cidades do mundo como um vento frio e cortante.
88 Outros, porém, se entusiasmaram muito com a ideia. Romper o círculo, arriscar-se na realidade dolo- rosa, levando consigo a força que adquiriram, levando consigo o poder construído por décadas de trabalho ár- duo sobre si mesmos, de atenção permanente sobre sua própria condição física, psíquica, mental. Transbordar es- tes limites seguros, para vários do grupo, soava como o grande desafio, a real meta de suas vidas. Alicia, por outro lado, se surpreendeu com as pa- lavras de Ana, mas ao mesmo tempo compreendeu seu peso e profundidade. A aventura e o risco... e, no meio, o cuidado necessário. É verdade que se sentiu eufórica com a ideia, mas algo dentro dela pedia cautela e prudência redobradas. Nos dias que se seguiram, Alicia e Ana conversaram mui- to, e cada minuto foi aproveitado. Ana finalmente compartilhou com a jovem que a sucederia seus últimos experimentos. Precisava estar segura, antes de transmiti-los, e felizmente teve tempo para testá-los. Nas últimas conversas, entregou à Alicia todos os seus cadernos, pedindo especial atenção para os úl- timos. - Aqui estão as minhas últimas descobertas e os testes que fui fazendo para ver se funcionavam. E fun- cionaram. Deixo para você, Alicia, uma base. Se partir dela, saberá conduzir os quarenta, agora trinta e nove, para a outra etapa. Fiz o anúncio do fim da comunidade,
89 mas não do fim do grupo. Vocês andarão pelo mundo, sempre conectados. E perceberão que são muito mais do que quarenta. Há mais redes do que estas que vemos pelas janelas. Há mais conexões, e para vê-las vocês pre- cisarão afinar muito mais os seus sentidos. Meu tempo aqui está acabando, mas o de vocês está apenas come- çando. Dois dias depois Ana era enterrada sob a árvore mais frondosa do seu quintal. Quando a encontraram, pela manhã, tinha o rosto lívido, marcado por um sorriso sereno. Alicia, criada na dinâmica do autoconhecimento, precisava exercer, mais do que nunca, sua automedia- ção. Estava assustada e entusiasmada ao mesmo tempo. Sabia que agora a liderança estava em suas mãos, e que precisaria dar conta desse papel. Sabia que sentiria mui- to a falta de Ana, mas também sabia que já estava pronta para seguir sem ela. No mesmo dia do enterro de Ana, um jovem no- vato se juntava ao grupo. Os quarenta continuavam seu percurso.
90 II Alicia olhou-se no espelho por intermináveis mi- nutos, até encontrar a vestimenta adequada para o dia que se iniciava. Vestiu seu macacão laranja de reconstru- tora, mas apenas depois de encontrar no seu acervo in- terno a parte de si correspondente à necessidade do dia. Fora de casa encontrou outros do grupo e, jun- tos, começaram o trabalho de construção da horta do bairro. Alicia e mais seis reconstrutores vinham traba- lhando com os moradores que restaram em um dos maiores bairros da cidade. Depois de quase cinco meses conseguiram envolver a maior parte dos sobreviventes daquele local em dois projetos concretos: a construção de uma horta coletiva em um terreno onde antes fun- cionava parte do estacionamento de um dos shoppings, e a reabertura da escola pública que, nos seus melhores dias, contava com mil e duzentos estudantes. Agora este era o número total de moradores do bairro e, entre todos, conseguiram mão de obra e doa- ções para o trabalho coletivo de erguer os dois pilares que, segundo Ana e agora segundo Alicia, sustentam a vida coletiva: o alimento do corpo e o alimento do espí- rito.
91 Dez anos haviam se passado desde que Alicia ini- ciara a nova fase que ampliara o trabalho do grupo para fora dos limites de sua morada na montanha. Dez anos do falecimento de Ana. Dez anos de sua relação amorosa com André. Dez anos, enfim, de profundas alterações, de novos desafios e descobertas. Muitas águas haviam rolado... como diz o ditado popular. Águas internas e externas, alterações de humo- res, suores e lágrimas. Alicia, para conseguir se erguer sobre seus próprios temores e inseguranças, tivera que fazer um árduo trabalho de aprofundamento em si mes- ma, concomitante ao não menos árduo trabalho de co- nexão com o mundo. Sem a possibilidade de saudosismos, aquele era o seu mundo, que conhecia à medida que viajava e tran- sitava de um local a outro. Por ter sido criada em isola- mento, com pouco acesso aos meios digitais, não havia construído uma imagem de mundo ou de realidade pré- via a este momento. Não tinha saudade de uma época anterior normal, como ouvia por onde andava. Ela não via aquele momento histórico e social como uma exceção, ou com estranheza, embora inferis- se algo a partir das conversas, dos diálogos com os mais velhos. Talvez por tudo isso, Alicia estava sempre aberta ao que viesse. Tudo que se apresentasse era bem-vindo, era o seu presente, o tempo que conhecia. Cada passo dado fora da vila onde havia sido criada era uma aventu- ra para a qual se dispunha integralmente.
92 A sua abertura lhe propiciava outra vantagem, somada à ausência de expectativas prévias: Alicia des- conhecia o ritmo infundido pela sociedade urbana, or- ganizada em torno do trabalho e da mais valia. Aliás, algumas dessas ideias, que lhe pareciam engraçadas e sem sentido, vinham de sua mais recente parceria com André, um frustrado estudante de sociologia que, meses antes de chegar à comunidade dos sobreviventes, havia abandonado a universidade, a família, a sua cidade, em busca de algo que fizesse sentido, ou melhor, que desse sentido à sua vida. - Cansei de ler um monte de livros que não me explicam o que de fato estamos vendo e vivendo, dizia ele. Cansei de repetir um monte de verdades que não servem para nada. Quando chegou ao grupo, André trazia uma pe- quena mochila com algumas peças de roupa, mas trazia também uma grande raiva acumulada. Nesta outra mo- chila emocional se misturavam frustrações e ansiedades, angústias e temores diversos que poderiam ser resumi- dos na frase que repetia, uma e outra vez: Preciso sentir a vida, preciso sentir que estou vivo. No início, esta frase não fazia nenhum sentido para Alicia, até que, depois de muitas conversas e de ou- vir sobre a infância violenta que André havia tido, em uma família de subúrbio pautada por tradições autoritá- rias, pôde finalmente construir a ponte da empatia que a levara a experimentar as emoções e até mesmo as sen-
93 sações corporais daquele jovem negro que se mostrava tão perdido de si mesmo e, ao mesmo tempo, tão perse- verante nessa busca. Talvez tenha sido por isso que se apaixonaram, porque Alicia sabia ser vigorosa e forte, ao mesmo tem- po em que havia desenvolvido a profunda habilidade da escuta e da empatia. Sabia estar presente e ausente, sabia construir essa dança da presença que também se ausenta para que outros ocupem a fala, o movimento. Sabia, enfim, dialogar. Para André essa moça tão cheia de vida era algo inédito. E ainda mais surpreendente é que perto dela ele também se sentia mais vivo, mais presente, mais atento. A personalidade forte de Alicia não o intimidava ou frustrava, como acontecia na relação com seu pai, por exemplo. Ou com vários dos seus professores. Não... com Alicia havia espaço para ele. Ela permitia que ele existisse, sem que ela mesma deixasse de ser quem era. Talvez por isso tenham se apaixonado, porque estar juntos era um desafio para os dois: Para Alicia, o desafio consistia em viver um pouco daquela dor acu- mulada no jovem que a observava; para André, o desafio era viver um pouco daquela alegria sem limites ou tra- vas, quase alienada (como ele chegara a pensar), mas que aos poucos lhe parecia mais vital do que qualquer outra coisa. Para estarem juntos, neste aprendizado da dife- rença, Alicia teve que aprender a manejar suas energias
94 de uma nova maneira: teve que aprender a esticar e a reter, a ampliar ou recolher-se a si mesma, sua presença, suas palavras, para que André pudesse caber no diálogo, no abraço, no seu campo vital. Para Alicia, era o desafio da plasticidade. Já para André era o desafio da exposição, pois sua tendência era a de se resguardar em suas dores, em suas memórias entristecidas por tantos anos de falta de trocas reais, de interlocução, de afetos, em todos os âmbitos. Recolher- -se em uma bolha solitária foi, de alguma maneira, sua estratégia de autoproteção. Certamente o que lhe havia permitido sobreviver até aqui. Mas, escondido dentro dele estava sempre laten- te o desejo de se desfazer dessa bolha para enfim poder tocar o mundo. “Às vezes me sinto aprisionado dentro da minha mente”, era outra de suas frases repetidas. Embora acumulando muitas frustrações, se man- tinha viva dentro dele a vontade, o desejo de extrapolar estes limites e finalmente tocar a vida... que ele não sa- bia bem o que era, mas que intuía como sendo um fluxo, uma vitalidade, uma alegria nunca encontrada. Até que conhecera Alicia. Assim como a horta era coletiva, a escola tam- bém deveria ser. Quem tinha algo para ensinar oferecia
95 seus conhecimentos para quem quisesse aprender. Não havia hierarquia nem diferenciação por idade. Nos últi- mos seis anos, itinerando com estes mesmos princípios por várias cidades diferentes, Alicia pôde observar cenas inesquecíveis, como por exemplo a senhora de oitenta e cinco anos ensinando à jovem grávida como ser mãe, a pequena Laila, de cinco anos, ensinando ao marcenei- ro Ricardo como conversar com os seus sonhos ou o jo- vem Tomas que, depois de permanecer sentado duran- te semanas diante do abacateiro dos fundos da escola, aprendera com esta árvore os benefícios medicinais da sua folha, casca e frutos. Depois de anos de isolamento e medos gene- ralizados, as pessoas, embora assustadas e fragilizadas, tinham extrema necessidade de se reconectar. Os sobre- viventes, para merecerem este título e esta condição, tinham conseguido encontrar alguma tática, alguma es- tratégia de autocuidado. Na escola comunitária exerciam um grande pro- tagonismo pessoas da comunidade que vinham de uma longa (longuíssima) história de sobrevivência. Indígenas, quilombolas, travestis acabaram se tornando, frequen- temente, as maiores fontes de inspiração. Cidades em ruína, guerra ininterrupta de in- formações, tecnologias predadoras da natureza e das emoções, sistemas políticos colapsados, escassez de alimentos, poluição generalizada, doenças, vírus, e mais um longo etcétera, marcava um período histórico muito
96 desafiador. Ana sempre dizia que era muito melhor assim, pois com tantas crises e tantas dúvidas, podíamos final- mente nos livrar das certezas horrorosas que nos trouxe- ram até aqui. Como Alicia não conhecera aquele mundo chamado de “normal”, esse era o mundo: um território cheio de aventuras escondidas entre as frestas da mon- tanha, embalado pelas histórias dos mais velhos e ilumi- nado pelas estrelas da noite. Alicia, portanto, não se espantava nem esmorecia diante de uma realidade que, para tantos, era o cenário da tragédia. Em lugar de tragédia, via a oportunidade de criar, construir, inovar. Para isso, precisava ensinar tudo que havia aprendido, que a havia formado e, ao mesmo tempo, aproveitar a maravilhosa oportunidade de co- nhecer outras pessoas (que não aquelas quarenta com as quais havia crescido) e com isso aprender muito mais sobre o mundo. Porém, em uma das primeiras cidades por onde passaram, Alicia ouvira a seguinte frase de um jovem ra- paz: “A vida não vale mais nada. Estamos todos vazios de vida”. Essa frase sim sacudiu a alma de Alicia, fazendo-a entender que não se tratava apenas de uma ruína exter- na, de um colapso social, econômico, político e até mes- mo biológico. Trava-se de um buraco imenso na alma, de um vazio de sentido. A partir deste dia pôde entender a dimensão do
97 trabalho que tinha por diante. Não se tratava apenas de reconstruir cidades, mas de reconstruir pessoas. Muitos daqueles sobreviventes eram cascas quase vazias. Trata- va-se, portanto, de resgatar o fio de vida que sobrevivia em cada pessoa. Indígenas, quilombolas e travestis tinham se tor- nado as pessoas preferidas de Alicia. No começo não entendia bem por que... simplesmente se sentia atraída por algo que elas emanavam, por uma energia que ti- nham em comum, embora fossem tão diferentes. A única coisa que sabia é que esta preferência havia começado em uma tarde muito ensolarada e ex- tremamente quente na qual, depois de muito caminhar, encontrara abrigo com Nathalie, uma travesti negra exu- berante. Alicia estava sedenta e não encontrava o que be- ber em quilômetros. Havia decidido sair para caminhar nos arredores da pequena cidade onde o grupo havia acampado. Deixara-se guiar pelo seu instinto, mas de- pois de algumas horas sentia-se perdida em um campo aberto, sem referências e sem ninguém a quem pedir ajuda. Respirou profundamente e, depois de conseguir se acalmar, abriu os olhos e viu, bem escondido na late-
98 ral da estrada, um casebre, quase uma tenda, onde po- deria ter alguém para lhe ajudar a encontrar o caminho de retorno. Alicia andou mais alguns quilômetros até final- mente chegar ao casebre. Para sua surpresa, de dentro daquele barraco saiu uma mulher exuberante. Mas era uma mulher diferente e Alicia não conseguia entender bem onde estava a diferença... até que se deu conta de que era uma travesti. Já tinha ouvido falar de pessoas que, não satisfeitas com seu sexo biológico, mudavam de vida, mudavam seu corpo. Mas nunca tinha se encon- trado pessoalmente com ninguém que tivera tamanha ousadia. Quando por fim entendeu do que se tratava, não podendo conter-se exclamou: - Admirável! Formidável! Magnífico! Nathalie não pôde conter o riso diante daquela mocinha espantada que a mirava com olhos arregalados e um sorriso de orelha a orelha. - Pelo jeito você nunca tinha visto uma travesti antes, disse em tom condescendente. Este foi o início de um diálogo que durou muitas horas. Tantas que Alicia teve que dormir em sua cabana, pois quando se deram conta já era tarde demais para voltar caminhando. Nesta noite, Alicia teve um sonho muito significa- tivo. Nele, Nathalie lhe dizia: - Não tenha medo, querida... entre pelos meus
99 olhos, entre pela minha boca. No sonho, Alicia se deixava devorar por Nathalie e, pouco a pouco, sentia que mudava de pele, que ela era devorada e ao mesmo tempo também devorava Na- thalie. Era como um estranho ritual antropofágico, no qual as duas se devoravam mutuamente. Este ritual, que parecia demorar uma eternidade, trazia alguma dor, mas também permitia um estranho prazer: a sensação de es- tar flutuando sobre si mesma, sobre a outra pessoa e sobre o mundo. Quanto mais avançavam na devoração, mais Ali- cia se via flutuando sobre aqueles corpos que se devo- ravam. Via-se se erguer como um balão de gás que en- contrava na leveza do voo um prazer extraordinário, ao mesmo tempo em que sentia que com os bocados de carne que comia, também devorava emoções e histórias que vinham acompanhadas de sofrimentos diversos. So- frimentos e muitas alegrias, e ainda um sentido de soli- dariedade que jamais havia experimentado. Alicia despertou emocionada. Lágrimas escor- riam pelos seus olhos com uma mistura de gratidão e cumplicidade por aquela mulher, aquele ser humano que certamente tinha muito a ensiná-la. Ao retornar à cidade, Alicia sabia que aquele en-
100 contro com Nathalie era o primeiro de muitos. Não ape- nas isso, Alicia sabia com uma clareza assustadora, que era nos entornos das cidades, nas suas periferias, nos seus descampados, onde ela tinha que buscar as possi- bilidades de vida para aquele mundo tão esvaziado. O que de fato Alicia encontrara em Nathalie era uma pessoa suficientemente acostumada a sobreviver. Ela não era uma mulher vazia, como tantas que encon- trara em suas andanças. Não! Nathalie não se sustentava sobre um fio de vida, como Tomas. Ela era um corpo repleto de vida. Seus olhos exibiam uma potência e uma força tão grandes, apenas comparáveis a mesma vonta- de de vida que encontrava no seu grupo dos quarenta. Depois de muito pensar, Alicia entendeu o que emanava das pessoas indígenas, trans, negras, e que as aproximava. Estas pessoas, tão diferentes entre si, ema- navam vida, emanavam potência, vontade, desejo de vi- ver, de estar no mundo, de equilibrar-se sobre um chão, sobre a terra, ajustadas em seus corpos. Apesar de suas longas e doloridas trajetórias, sabiam valorizar suas in- contáveis alegrias e conquistas. A diferença entre pessoas “não normais” e pes- soas “normais” era muito clara. As primeiras estavam acostumadas a viver – e não apenas a sobreviver – em um mundo em ruínas, em sistemas colapsados que as subjugaram desde muitos séculos atrás. Já as pessoas “normais”, que tinham o controle da “normalidade”, viam-se prostradas diante da realidade incontrolável que
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