151 galinhas, cabras, etc.) fornecia o que estes animais pro- duziam (leite e ovos, por exemplo). Em troca, recebiam verduras, hortaliças, frutas, fitoterápicos, cerâmicas e utensílios diversos, produzidos de forma artesanal, ou ainda qualquer outra produção que considerassem de interesse. A vida coletiva, urbana, alterada em suas bases estruturais, sobrevivia com a pequena escala, com a si- nergia promovida pelas trocas e intercâmbios entre pe- quenos produtores. Tudo isso começou quando este pequeno gru- po de reconstrutores, ao descer a serra, se deu conta de que havia fome entre os moradores. As pequenas ci- dades pareciam devastadas. Os sobreviventes, poucos, se alimentavam do que encontrassem, desde enlatados com data de validade vencida até plantas comestíveis que nascessem por conta própria, pelas vielas da cidade. À primeira vista, eles não tinham nada para oferecer. Porém, um olhar mais aguçado veria que a dona Maria, da parte baixa, era uma ótima costureira. O seu Gustavo, filho sobrevivente do sapateiro mais antigo da vizinhança, tinha herdado do pai as suas técnicas e habilidades. Ampliando ainda mais este horizonte, viram que, ao redor, as pequenas fazendas (antes grandes e abas- tadas) que conseguiram suportar todas as pandemias e desastres ambientais, tinham algum animal que proveria alimentos e, entre uns e outros, poderiam negociar valo-
152 res de trocas justas para ambos os lados. Começaram pela produção do seu próprio grupo que, ao longo das últimas décadas, vinha sobrevivendo com uma alimentação completamente autogerada, au- tossuficiente, pois além do que produziam haviam des- coberto alimentos onde antes se veria lixo ou apenas mato. Então, este grupo de reconstrutores subia a ser- ra para recolher o pouco excedente do primeiro grupo, para em seguida descer e comercializá-lo. O sucesso foi tão grande que a casa de Ana teve que ceder lugar a uma grande horta, voltada especial- mente para os fitoterápicos. Essa era, também, uma for- ma de homenageá-la. Ao longo do tempo, outras várias hortas foram sendo criadas e, com isso, o intercâmbio de força de trabalho passou a ser muito bem-vindo. Sobreviventes em boas condições de saúde dedicavam alguns meses de suas vidas à preparação da terra e plantio, retornan- do depois para a colheita. Quando iam embora, levavam consigo a sua parte assegurada. Essa lógica comercial foi se estendendo até al- cançar várias pequenas cidades da região. Entre eles não circulava dinheiro, apenas um sistema de troca conside- rado justo por todos os envolvidos. Filhos e netas de artesãos retomavam os instru- mentos e tradições familiares. E houve até quem se es- pecializasse em representar obras teatrais, em encenar
153 textos poéticos, enfim, em fazer arte. Toda criação era considerada, e todos e todas saiam satisfeitos vendo seu talento reconhecido e valorizado. Depois de cinco anos de construção desta malha comercial de produtos e talentos, em pequena escala, decidiram criar a primeira feira agroecológica, em um ensolarado 21 de março. Esta passou a ser a data inau- gural das feiras dos anos seguintes. Com o crescimento do empreendimento, a feira passou a ser realizada três vezes por ano até que, depois de quase quinze anos de existência, passou a ocorrer uma vez por mês, atraindo pequenos e médios produto- res de várias partes do país ou de outras fronteiras. Devido à tamanha expansão, os reconstrutores ti- veram que criar novos mecanismos como, por exemplo, um grupo de tradutores para auxiliar nas negociações. Alicia estava assombrada com tudo o que ouvia. Encantada e surpresa, pois por mais que mantivessem algum contato a distância, ouvir sobre aquelas experiên- cias ao vivo, com riqueza de detalhes, gerava outra re- verberação. Enquanto falavam, ela quase podia ver um fio de eletricidade conectando todos os presentes, sentados em um grande círculo. Era quase palpável a energia que
154 os conectava naqueles dias. Assavam legumes na fogueira, lembravam os velhos tempos e contavam todas as suas experiências dos últimos trinta anos. Se tivesse que sintetizar em um nome, Alicia chamaria aquele momento de Encontro da Palavra, pois com os guarani havia aprendido que pala- vra é pedaço de alma. Palavras são corpos e corpos são palavras, em uma infinita dança de vida compartilhada. Em paralelo, tanto Alicia como André e os demais membros do grupo, sentiram um forte chamado para avaliar e sintetizar tudo o que haviam feito. É claro que autoavaliação era um estágio básico da automediação com a qual vinham trabalhando, porém, repensar todo o seu próprio processo à luz dos últimos intercâmbios no grupo ampliado, iluminava pontos que antes não tinham sido suficientemente observados. Assim, passavam muitas horas discutindo e revi- sitando várias de suas práticas e elaborações, até que finalmente compreenderam que haviam desenvolvido um atuar diferente dos outros e, buscando sintetizá-lo, passaram a chamá-lo de mediação. Tinham se especiali- zado, portanto, em mediar. Todos juntos - os reconstrutores herdeiros do legado de Ana, aquela pequena comunidade que volta- va a se reunir depois de trinta anos de muito trabalho pelo mundo - chegaram a uma importante conclusão: os quatro grupos eram, entre si, complementares, sem que nenhum deles tivesse se proposto a isso de forma
155 consciente. Seguiram apenas os seus instintos, sua intuição, unidos pela clara intenção de reconstruir o mundo a partir dos valores éticos que haviam desenvolvido e aprimorado. Conseguiram fecundar quatro linhas de atuação totalmente vinculadas e complementares entre si, em- bora também autônomas umas em relação às outras: medicina, memória, mercado e mediação. Em cada uma das linhas havia um pouco das ou- tras, ali misturadas. Não eram definitivamente estan- ques; ao contrário, pois na prática se mostraram capazes de se retroalimentarem mutuamente. Depois de algumas semanas de prazerosos e fér- teis intercâmbios, os reconstrutores, novamente reu- nidos, perceberam que agora já tinham condição de integrar as quatro linhas desenvolvidas por eles. Alicia, e todos os outros, sentiram que estavam iniciando uma nova fase. Reunidos noites adentro, o grupo de Alicia deci- dira inventariar as suas práticas e organizá-las de forma compreensível, para que pudessem ser facilmente repli- cadas. Partiam do princípio de que curar, memorizar, alimentar e negociar eram práticas bastante conheci- das. Claro que os grupos inovaram muito, pois consegui- ram transformar velhos modos de fazer, velhas lógicas, em função da reconstrução da realidade com novas perspectivas, partindo de valores diferentes que davam
156 outro entendimento aos âmbitos da cura, do arquivo, da alimentação ou do comércio. Mas a base era simples por já estar incorporada em todas as sociedades viventes, ao longo dos últimos séculos. Mediar, porém, não era um verbo de ação tão clara. Ou ao menos não tão valorizada. Conferir protago- nismo à ação e à perspectiva mediadora era, francamen- te, o novo paradigma, a prática social priorizada pelos reconstrutores. Por isso entenderam que precisavam amadure- cer este verbo – mediar – como uma base que alterava todas as perspectivas velhas. Mediar para curar, para ali- mentar, para negociar. Ou, quem sabe: medicina media- da, alimentos e negociações mediadores. Fosse verbo ou adjetivo, a ideia de mediação cria- va palavras compostas por muitas potências. Tanto acio- nava novas práticas para velhos procedimentos, quanto qualificava características de velhos conceitos. Para eles, mediação era, antes de qualquer coisa, escuta; interconexão pela escuta que promove diálogo. E essa escuta tinha que ir além da embalagem emocio- nal das palavras. Uma das técnicas desenvolvidas para quando ha- via conflitos era essa: “Desembrulhar as palavras”. Sim, porque em uma discussão as palavras ditas são ideias embrulhadas por emoções. Se quem escuta só se atem ao envoltório de rai-
157 va, tristeza, angústia ou ansiedade (essas eram as emo- ções mais comuns) que embala as ideias em disputa, não poderá exercitar jamais a compreensão; não conseguirá realmente escutar para, então, dialogar. Desembrulhar as ideias significava tirar o baru- lho, o ruído, causado pelas emoções alteradas que afe- tam tanto a quem fala como a quem escuta. É preciso, portanto, primeiramente desembrulhar as ideias, para dar passagem ao dialógo. “Atravessar o rio” era outra técnica que havia sido desenvolvida pelo grupo de Alicia. Ela surgira como con- clusão de que não há escuta sem movimento. O corpo e a alma de quem escuta precisam se mexer, se locomover, se movimentar em direção ao lugar onde está a pessoa que fala. Para chegar ao diálogo era necessário levar uma pessoa a se locomover do seu território conhecido, for- mado pelo seu próprio ponto de vista, para se colocar do outro lado do rio, e assim conseguir ver as coisas a partir da outra margem. Esse era o objetivo desta técnica. O diálogo é um movimento de vai e vem entre uma e outra margem do rio. Para que aconteça, as pessoas que dialogam precisam de mudança de perspectiva porque, no fundo, ambas as margens formam o mesmo rio.
158 Em outras palavras, duas margens, duas opiniões e argumentos em disputa, existem em coexistência e, além disso, em codependência. Duas margens depen- dem uma da outra para formar o rio. Atravessar de uma margem a outra do rio tinha algo de tradução, mas na prática significava um processo muito mais complexo do que trocar palavras, ou encon- trar semelhanças e acordos que gerassem consensos, em situações em disputa. Uma experiência concreta funcionava como mo- delo exemplar para o entendimento desta técnica: Em uma das cidades por onde passara, Alicia foi chamada para mediar uma briga familiar. Um casal estava a ponto de se separar e, dos poucos objetos que lhes restavam, um banco havia causado todo o conflito da partilha. Depois de tudo acertado, um pequeno banco de madeira, pintado à mão, era intensamente disputado. A mulher reivindicava o banco como uma herança familiar, pois tinha sido da sua avó, depois de sua mãe, e agora lhe acompanhava. Mas o marido o reivindicava porque era este o banco que o acompanhava (literalmente, que o susten- tava) desde que ele tivera que se reinventar como costu- reiro e artesão. Antes um engenheiro civil, há oito anos desem- pregado, finalmente encontrara no novo ofício uma so- lução para sua sobrevivência, pois além de consertar roupas, descobrira que tinha muita habilidade, e até ta-
159 lento, para o manejo do couro, e de outros tecidos, para criação dos mais diversos artefatos. Nutria por aquele banquinho, portanto, um gran- de afeto, pois lhe recordava seus últimos anos e era, também, seu companheiro de trabalho, já que tinha a altura perfeita para a máquina de costura. A mulher, desconsolada, só conseguia dizer, so- bre o banco, que ele era parte da sua história. À primeira vista, Alicia pensou que o banco se- ria mais útil ao homem. Porém, quando resolveu olhá- -lo mais de perto, viu que, por debaixo, o banco estava completamente escrito e, de fato, continha a história da família daquela mulher. Surpresa, Alicia leu a história da família escrita sob o banco. Depois de ter cruzado essa margem, não podia aceitar a utilidade do banco (embora o argumento fosse válido e viesse acompanhado de afeto) em detrimento da memória ali escrita. Vários dias depois, em reuniões prolongadas por horas a fio, Alicia conseguiu que ambos se escutassem, mas acima de tudo conseguiu que tanto o homem quan- to a mulher escutassem a si próprios. E foi assim que o marido se deu conta de que o que ele queria era, de fato, se manter ligado àquela história familiar, pois a separação lhe deixaria ainda mais órfão nesse mundo. Então a mulher lhe ofereceu outro objeto, a grinalda do seu vestido de noiva, para que ele a levasse como memória da história compartilhada. O ho-
160 mem, por sua vez, entendeu que haveria outros bancos de altura perfeita, e aceitou a troca. Ambos saíram apaziguados e muito mais cons- cientes dos efeitos daquela separação, de um e do outro lado. Para de fato colaborar, Alicia teve que enxergar aquilo que a mulher via no banco, mesmo ela sendo inca- paz de expressar a sua importância em argumentos mais facilmente compreensíveis. Além disso, teve que enxergar além da emoção que embrulhava as palavras do homem, para ajudá-los a entender do que é que ambos realmen- te precisavam, quais eram as necessidades que se escon- diam por debaixo das palavras emocionadas. Essa situação vivenciada, essa prática experimen- tada em diversas ocasiões, dava-lhes a segurança do mé- todo, embora também soubessem que cada caso era um caso, e nunca poderiam se repetir da mesma maneira. O mundo vivia o consenso do presente, da vida que se confirma com o despertar de cada dia. Entre o passado imaginado e o futuro temido, restava a riqueza do presente que, embora frágil, resistia. Nesse mundo, os reconstrutores continuaram seu trabalho, iniciando uma nova etapa. Ao unir as quatro pontas, as quatro linhas de
161 atuação dos grupos, formaram uma cruz. Mas não uma cruz qualquer... formaram a chakana ou cruz andina. - A chakana guarda memória milenar dos povos andinos. É ponte para ir além dos caminhos que percor- remos até aqui. Mas também é conexão entre todos nós, que a compomos, sugeriu Lourenço. Aceito o nome e confiantes no seu potencial, projetaram a Escola de Futuros, com todo o seu acer- vo de conhecimentos e técnicas. Uma escola disposta a disseminar instrumentos mentais e emocionais para que fossem modelados muitos, incontáveis futuros, sempre mais éticos e alegres do que as projeções anteriores. Saíram, então, pelo mundo, uma vez mais, dispos- tos a compartilhar sua trajetória e, com isso, contribuir para a formação de mais grupos, de mais reconstrutores. Para a sua surpresa, viram que por onde anda- vam havia grupos semelhantes, autogovernados de di- versas formas, mas com a mesma intenção: reconstruir a humanidade em si próprios e nos outros, com ética e mediação. Alguns grupos maiores, outros menores como, por exemplo, um grupo de mulheres unidas pela neces- sidade e pela vontade de criar filhos e filhas conhecedo- res do companheirismo e da cooperação; ou o grupo de idosos e idosas que decidiram desfrutar da sua velhice, com antigas e revividas serenatas e bailes noturnos; ou ainda um grande grupo que reunia moradores de um dos maiores bairros da cidade, que se juntavam para ce-
162 lebrar os aniversários do mês em torno de um grande bolo e de muitas risadas. Alguns grupos ainda incipientes, outros bem for- talecidos. Com alguns até aprendiam mais do que en- sinavam. Entre todos, diversos projetos foram erguidos, deixando o plano das ideias para se materializarem em práticas e ações, muitas vezes simples e cotidianas. Ha- via sempre cooperação e solidariedade na base de suas atuações. Mas havia algo no grupo dos quarenta que os di- ferenciava dos demais: a sua capacidade de comunica- ção. Por terem se separado e passado trinta anos traba- lhando independentes uns dos outros, perceberam que tão valioso quanto realizar a autogestão particular, era poderem se reconectar. Em outras palavras, mais valioso do que se autogerirem era se reconectarem como célu- las de um mesmo organismo. Viver a autonomia de suas práticas e procedi- mentos não se opunha a vivê-las coletivamente. Os qua- renta descobriram, primeiramente entre si e depois com todos, que era não só possível como muito desejável, ser independente e dependente ao mesmo tempo. Ter uma identidade própria e, por outro lado, a capacidade de dialogar com as muitas identidades que circulam na realidade. - Chega de oposições! Diziam os quarenta. Nosso destino é ser complementares. Perceberam que conexão e desconexão eram
163 movimentos que cooperavam entre si para um traba- lho que pretendia alcançar a complexidade humana, em seus mais diversos âmbitos. - Automediação coletiva: mediação entre as pon- tas que formam uma estrela, mediação entre as estrelas que formam galáxias, mediação entre as galáxias que formam universos. Alegravam-se pela imagem da tessitura de milha- res de pontos que, justamente por terem sua própria luz, construíam o céu estrelado. Assim, aprenderam que isoladamente valiam muito, mas que quando se juntavam iluminavam muito mais. A partir daí entenderam que trabalhar em rede, como grupos autônomos interdependentes, compunha o formato mais adequado para ações de reconstrução em sentido ampliado e diverso. Se entre quatro grupos, formados por quarenta pessoas, criavam-se tantas possibilidades, o que seria possível fazer quando se relacionassem todos os peque- nos, médios ou grandes grupos que encontravam pelos caminhos? Nesta nova etapa precisavam permanecer uni- dos. Os quarenta, juntos, tinham muita força concentra- da sobre aqueles quatro eixos que, com perseverança e serenidade, haviam estruturado. Juntos percorreram vários continentes, embora alguns deles fossem ficando pelo caminho, depois da longa jornada de vida que os caracterizava. Mas sempre
164 iam sendo substituídos por outras pessoas que se apro- ximavam. De alguma forma, conseguiam manter o nú- mero mágico que os acompanhara desde os seus inícios. Independentemente de quem estivesse à frente dos eixos, o importante é que nunca deixassem de orien- tar as navegações do presente. Com o tempo, começaram a ser convidados para falar para grandes audiências. Era notório o domínio de suas potencialidades e a facilidade com a qual as comu- nicavam. Talvez não revelassem nenhuma grande novida- de, certamente nenhuma verdade absoluta. Porém, a presença dos reconstrutores contagiava a quem se dis- pusesse a escutá-los. Suas palavras entravam com sim- plicidade e frescor em qualquer ambiente. Mais de uma vez foram acusados por doutos se- nhores acadêmicos, assim como por sábios cientistas, de enganarem as pessoas com promessas utópicas e vazias. Sua resposta era sempre a mesma: - Nossa intenção não é revelar verdades ou disse- minar certezas. Não gostamos de verdades porque elas encolhem os caminhos das descobertas e rechaçamos as certezas, porque elas nos paralisam. Nossa intenção é motivar para o movimento, para a dinâmica da vida,
165 com suas dores e alegrias. Aceitamos a utopia, mas não o vazio. Nossa utopia é uma vida coletiva compartilhada por milhões de vidas individuais que se agregam por afi- nidade, por fraternidade, por cooperação. Não demorou muito para que os matemáticos que modelam, as geógrafas que mapeiam, os filósofos que refletem, as sociólogas que analisam, os engenhei- ros que projetam, entre tantas outras disciplinadas ciên- cias, se juntassem ao movimento que tinha como único objetivo valorizar a vida que emergia de cada corpo vi- vente. Como não temiam as emoções, as intervenções dos reconstrutores eram intensas e essa intensidade re- carregava corpos zumbificados, sem energia, que jaziam semimortos por todos os lados. Décadas depois, as fronteiras nacionais finalmen- te se abriram em todos os continentes, abolindo o limi- te físico e territorial antes interposto à circulação e ao fluxo. Neste dia histórico, os quarenta foram convidados para falar para toda a humanidade. O que estava em an- damento era o processo de formação de uma comunida- de planetária. Nos anos seguintes, muitas medidas foram to- madas para alterar rotas comerciais, tráfegos e sistemas constituídos. Além disso, as grandes fortunas foram di- rigidas a fundos coletivos, gerenciados por um círculo mundial composto pelas principais lideranças do mundo. O mercado de trocas, as pequenas e grandes
166 feiras continuavam existindo, como lugares afetivos de intercâmbios variados. Porém, excedentes de qualquer natureza eram igualmente doados para os fundos cole- tivos voltados à coleta e redistribuição de produtos. A fome não era mais necessária em um mundo que apren- dera a compartilhar bens, talentos e afetos. - Essa velha história de que “o homem é o lobo do homem” já era, dizia Alicia em todo e qualquer encontro que participasse. A partir de agora somos, todos nós, o amparo um do outro. Não havia mais igrejas ou partidos políticos. Tudo isso havia ruído junto com a mentalidade piramidal, que colocava um papa, um presidente ou a abstrata econo- mia acima de todas as pessoas, acima da humanidade. A cúpula de líderes do mundo estava constituída por representantes de todos os grupos existentes, não mais pensados em termos nacionais. Os grandes círculos comunitários expandidos e interconectados projetavam seus líderes para a cúpula. Todas as grandes reuniões eram transmitidas ao vivo para todo o planeta e os acordos eram pactuados a partir da máxima tão simples e tão eficaz de que “con- versando a gente se entende”. Conversavam, dialogavam, negociavam, media- vam até que alcançassem os consensos necessários. Tudo era feito oralmente, e as decisões eram comuni- cadas ao vivo. Não havia atas ou outro tipo de escritura. - O que é mais importante, todos nós memoriza-
167 mos. Aquilo que escrevemos desaparece nas folhas de papel empilhadas, dizia uma das lideranças guarani que lá estavam. Não era um sistema representativo como antiga- mente, com votos e propagandas manipuladoras. Com altos salários e privilégios. Formara-se um novo sistema no qual ninguém ganhava mais por ser liderança. A responsabilidade era compartilhada em re- des interconectadas que possibilitavam, e até mesmo fomentavam, o diálogo expandido perpassado pela ex- periência política e estética, espiritual e amorosa, de muitos mundos visíveis e invisíveis conectados entre si. Aliás, aquilo que antigamente chamavam de amor, de forma tão abstrata, agora se transformava em ética coletiva, com bases bem concretas e pragmáti- cas. E em âmbitos mais privados, o amor era celebrado e desfrutado nos encontros ardentes entre corpos que reconheciam sua benevolência e vitalidade. Uma moral ligada à vida, como prazer e intercâmbio, unia-se à ética da cooperação e solidariedade. Ainda que continuasse sendo cantado pelos ar- tistas e pelas poetas, o amor era cada vez mais incorpo- rado como política pública. Amar era encontrar o melhor que uma pessoa ou um coletivo tivesse para oferecer, e vincular ações de cooperação com este melhor que hou- vesse. Benevolência e cooperação, como valores éticos e princípio político, haviam transformado instituições e
168 organismos em todo o planeta. Haviam transformado, principalmente, a maneira individual, e consequente- mente coletiva, de existir, de estar no mundo, de experi- mentar a vida. Em um sistema que priorizava a ética da benevo- lência e da cooperação, toda vida era fundamental, pois cada uma das pessoas e dos seres existentes tinha algo com que colaborar nos pequenos círculos ativados polí- tica e subjetivamente. Foi assim como a vida social foi se reorganizando, progressivamente, sob a forma de círculos comunitários, entrelaçados em redes complexas que vinculavam uns aos outros em maiores ou menores conglomerados re- lacionais. A política – como tal – funcionava pelo diálogo entre os círculos comunitários, sempre em sentido cres- cente: o círculo comunitário do bairro se conectava ao círculo comunitário da cidade, e este ao círculo comuni- tário do estado, em escala ascendente, ultrapassando o nacional e alcançando o novo sistema planetário. Mas, ao mesmo tempo, cada bairro se vincula- va horizontalmente aos círculos comunitários de todos os bairros da cidade, do estado, da nação, do planeta, de forma que se construía uma enorme, gigantesca teia, onde cada nó se conectava com milhões de outros nós, com milhões de outros círculos. Assim, quem estava no círculo mais básico do bairro da zona norte de uma determinada cidade, pode-
169 ria facilmente se conectar com quem estava no círculo do seu bairro do outro lado do planeta. Enfim a tecnologia disponível, arduamente con- quistada, se tornara um bem público efetivo para a construção da rede que comunicava a humanidade. A tecnologia, definitivamente colocada à serviço da vida comunitária, foi determinante para o salto dado por esta humanidade doída, finalmente consciente da sua fragi- lidade. Quando cumpria noventa e três anos, Alicia pôde comprovar que a terra estava novamente fértil; e a hu- manidade unida a todos os seres viventes. O seu último Festival da Utopia foi comemorado nos quatro cantos do planeta. Nesse dia a Terra parou, e não foi por nenhuma guerra ou pandemia. A Terra parou para celebrar a vida, para reafirmar o fluxo e o movimen- to compartilhados, a alegria de mais vinte e quatro horas de alento, potência e criatividade. Esta data consagrava o fim de uma etapa histó- rica e o início de outra, na qual a existência econômica, política, social, cultural e espiritual estavam finalmente interconectadas. A vida se constituía de forma multidi- mensional, como rede de conexões em permanente re- troalimentação e cuidado.
170 Nesse dia, não houve trabalho nem outra prática que não fosse dedicada à celebração planetária da diver- sidade. A identidade planetária abarcava a todas as suas heterogêneas configurações, sem que as diferenças de- saparecessem. Ao contrário, a plena consciência de raí- zes, ancestralidades e trajetórias pessoais era o ponto principal para que as mediações e as automediações pu- dessem ser efetivadas. “Uma ponte só alcança o seu objetivo, de ligar as duas margens de um rio, se estiver bem fincada e for- talecida nas suas bases. Uma ponte que não tem bases seguras despenca rio abaixo”, ouvira Alicia de um xamã, no coração da Amazônia. A ponte que conecta e, ao mesmo tempo, de- marca a diferença, era a imagem da mediação, difundida pelos quatro cantos da Terra. Interação, retroalimentação, interassistencialida- de, sinergia, cooperação eram os sinônimos empregados pelas milhares de línguas que circulavam pelo globo ter- restre. A Torre de Babel era novamente erguida, mas não mais verticalmente. Não havia castigo ou demérito para uma humanidade que encontrava o divino e o sa- grado em seus próprios corpos, e que aprendera a admi- ração e a celebração das diferenças. Com o advento de aplicativos tradutores para toda e qualquer língua do planeta, celebrava-se o encon-
171 tro de culturas afirmativas da diferença e da singularida- de que, ao mesmo tempo, se reencontravam em uma mesma identidade planetária. A Torre de Babel, ressignificada, se construía como símbolo do encontro horizontal e da comunicação mediada. Inúmeros monumentos foram erguidos, nas incontáveis Praças da Paz alocadas nas mais longínquas paragens. Cada um deles diferente do outro, embora movidos pelo desejo comum de celebrar o diálogo entre a pluralidade que finalmente se dispunha a escutar o ou- tro, e a escutar-se a si mesma. O desafio da benevolência e da cooperação era tão sagrado quanto político. Tão estético quanto espiritual. A estas alturas, o mundo se autorrepresentava como um grande mosaico, uma grande colcha de reta- lhos tecida por uma humanidade que finalmente cele- brava a sua diversidade, em lugar de reprimi-la. No final de sua vida, Alicia falava português, espanhol, alemão, guarani e ticuna. E entendia bem o mandarim. O Festival da Utopia, celebrado em todo o plane- ta, instituía a celebração da diferença que nos une; da diferença que nos torna aptos a receber a vida e a pro- pagá-la. Dançando, cantando, meditando, cozinhando ou realizando qualquer outra prática que envolva criativida- de e imaginação, mantemos a vida em fluxo, movimen-
172 tando-se como aventura comunitária, desafio coletivo, irmandade. “Pensando bem, toda a minha vida foi um inin- terrupto Festival da Utopia”, afirmou Alicia no seu último discurso. “Pensando bem, todo trabalho que se faz com alegria é vida materializada. Todo trabalho que se pensa a si mesmo, é arte para a humanidade”.
DIANA ARAUJO PEREIRA é poeta, tradutora, pesquisa- dora e professora da Universidade Federal da Integra- ção Latino-Americana, UNILA. Tem quatro poemários publicados: Otras Palabras/Outras Palavras (RJ, 7Letras, 2008), Horizontes Partidos (New York, Artepoética Press, 2016), La piel de los caminos y otros poemas (Bogotá, colección Doble Fondo, 2017), além de plaquette poética n. VII, Coleção internacional Flor del espinillo: Municipalidad de Curuzú Cuatiá, 2020 e de participação nas Antologias: Cancionero Pluvial del Iguazú (Lima, Casa del Poeta Peruano, 2012), Multilin- gual Anthology (New York, Artepoética Press, 2014) e A poesia cura a palavra (Curitiba, Medusa, 2017). Tem participado de diversos Festivais Internacionais de Poe- sia na Argentina, Cuba, Estados Unidos, Equador e Co- lômbia. Como pesquisadora, tem diversos livros organi- zados e artigos publicados em revistas especializadas. Com o presente livro, estréia como narradora. --
A coleção ficções avulsas se propõe a reunir experiências de escrita do mundo contemporâneo. O gesto é o de colecionar em livro ou publicação de artista, escritas que fazem uso da palavra e/ou da imagem, cujas elaborações são disruptivas, muitas vezes parecendo não pertencer ao campo literário, por ser arte, nem ao da arte, por ser literário. O nome da coleção foi trazido de um poema em prosa do livro crostácea (Medusa, 2011), assim como a imagem de um dos trabalhos (sem título) da instalação biblioteca de resquícios (2013), da poeta e artista visual Joana Corona, pois muito nos dizem para o sentido dessa coleção.
Se fosse capaz, me faria inteira e somente depois dividiria as partes, como quem sabe da completude e se dissipa, porque assim difusa se apresenta à vida. Como quem dis-tribui amores simultâneos. E cria sobre si ficções avulsas, que se desencontram pois que de distintas naturezas se faz e alimentos estranhos absorve para existir. Talvez por isso exista sem o saber, sem se deter. Instintivamente violenta a vida, impulso da iniciação à loucura – uma aprendiz, se considera. À sobre-morte, oferece um uivo sem tom, da cor intrigante que não se decifra – verde-vivo-voraz. Joana Corona
|100 ficções avulsas Fábula do (fim e do) começo do mundo foi composto na fonte Calibri e Eurostile, impresso sobre os papéis avena 80 gramas e supremo 250 gramas para a Editora Medusa, em Curitiba, Paraná, na primavera pandêmica de 2020.
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