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Revista Pentagrama 2016-2

Published by Pentagrama Publicações, 2016-11-30 13:25:49

Description: Como uma tempestade impetuosa, o espírito impulsiona cada homem a um despertar gnóstico profundo.

Keywords: tempestade,espirito,gnosis,rosacruz,despertar

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2016 número 2PentagramaLectorium RosicrucianumComo uma tempestade impetuosa, oespírito impulsiona cada homem aum despertar gnóstico profundo

balizas para uma viagem terrestre e cósmica os contornos do mundo da alma para alunos e amigos – Lectorium Rosicrucianumperspectiva: assim como é no alto, é embaixo – o milagre do cotidiano pentagrama – base da consciência da almapentagrama

.Ano 38 2016 número 2 pentagrama Uma sépala, uma corola e um espinho Em uma trivial manhã de verão – Uma tacinha de orvalho – uma abelhinha ou duas – Uma rajada de vento – um sussurro na ramagem – E sou uma rosa! Emily Dickinson O espanto e a curiosidade são, ao mesmo tempo, bênção e maldição. Nenhum animal se pergunta por que está vivo, nem o que está fazendo aqui embaixo. O homem, por sua vez, vive buscando e não para de procurar. E, quanto mais cava, mais ele domina seu mundo e a matéria. Mas, será que ele domina as profundezas de seu espírito tanto quanto seu mundo exterior? Apesar de tudo, a busca interior é prodigiosa. Quando nos observamos com sutileza, percebemos aspectos terríveis de nós mesmos, ao lado de matizes cintilantes de amor e bondade. Para perscrutar as profundezas do ser é preciso uma curiosidade determinada e um anseio verdadeiro. Qual é a causa de uma vida consciente? Seria a fome, a vontade de comer? Seria a necessidade de preservar nosso clã, nossa família, nosso círculo? Ou poderia ser a busca por emoções, afetos e por tudo o que nos tornou inteligentes e complexos? Ou será algo totalmente diferente? Uma brisa fresca, uma gota de orvalho ao amanhecer ou algo indizível, que não conseguimos definir... e que nos fez sentir o impulso de colecionar rosas, em serviço à humanidade? Será que vocês também colecionaram um buquê de ações reais e aprenderam a verdade do provérbio que diz, assim como na canção de Gilbert Bécaud: “O importante é a rosa!”?CapaAmeaça de tempestade de primavera© Les fenêtres ouvertes 1

Conteúdo4 A árvore e a serpente J. van Rijckenborgh8 A sabedoria de Waitaha Pesquisa relatada por Winfried Altmann16 O poder do verbo em Atenas Observações de um visitante19 Acrescentar traços luminosos Crônica20 O barquinho de papel J. Anker Larsen30 O Triângulo flamejante34 Uma vida inteira em defesa da Gnosis Entrevista com Timothy Freke41 O Centro Ensaio54 Conferências em Harvard Resenha do livro de Italo Calvino58 A língua esquecida61 O dragão Símbolo63 O mestre do dragão tríplice de Bressanone2 conteúdo

imagens do mundoAquele que, mediante os mistérios da transfiguração, se vê confrontado pela primeira vez com a glória e amajestade do novo campo de vida – a radiação magnética da sexta região cósmica – vivencia essa experiênciacomo se fosse uma tempestade magnética e imagina que sua dissolução e seu fim estão próximos.É hora de manter a paz interior! Mantenha sua atenção focada no átomo centelha do Espírito!Então, certamente, você vai fazer descobertas maravilhosas. Tão maravilhosas que se sentirá invadido por imensagratidão e assim vai poder confirmar, das profundezas de seu ser, a mensagem imutável da Escola Espiritual:“Irmão, irmã! Em tudo e por tudo prestem atenção ao átomo original! Ele é a chave de sua verdadeira vida! Eleé o mistério dos mistérios, o começo e o fim de todo o novo vir-a-ser”.Albert Bierstadt. Nas proximidades das montanhas de Sierra Nevada, Califórnia, 1868 3

A árvore e a serpente 4 IAnháorvuodre e a serpente

Em todos os tempos, na simbo-logia sagrada, o duplo sistemanervoso do homem foi comparadoa uma árvore. Seguindo o exem-plo oriental, a Bíblia fala de umafigueira. Esse símbolo é muitológico, pois, quando comparamos otronco da árvore à coluna do fogoespiritual espinal que se eleva doplexo sacro, o santuário da cabeçaequivale à copa ou coroa, e osdoze pares de nervos cranianos,que descem e se espalham pelocorpo todo, aos galhos que a elaestão ligados. 5

Quando falamos da árvore da J. VAN RIJCKENBORGH vida, trata-se evidentemente da atividade original pura e A árvore e a serpente ideal desse sistema vital. E, quando falamos da árvore doconhecimento do bem e do mal é parafocar a atenção na atividade perturbadae contaminada desse sistema. Assim, asduas árvores do paraíso mítico são colo-cadas diante de nós e em nós: a árvoreda vida e também a do conhecimentodo bem e do mal. O homem alterou eperverteu o funcionamento da figueirasagrada, e a Bíblia nos desvela isso demodo muito claro, mediante esse mitoparticularmente tão bem escolhido. Pres-tem atenção à serpente: ela vive na figuei-ra, suspensa em seus galhos! A serpente éa alma, a consciência que vive no fluidoespinal. A razão pela qual essa imagem foiescolhida é muito clara, pois o sistemacérebro-espinal, por sua forma orgâ-nica, pode de fato ser comparado a umaserpente. Quando Jesus, o Senhor, diz aseus discípulos “Tornai-vos sábios comoas serpentes!”, ele refere-se à ligação ori-ginal, pura e sagrada, que existia entre ofogo espinal e a vida celeste quando estaestava estreitamente ligada à sabedoriadivina. Mas a serpente da origem, a dosmistérios sublimes, degenerou até já nãoser senão um vil réptil sibilante, que seretorce no seio da matéria e intoxica comseu veneno toda a criação. 6

O pensamento lúcido de Jan van Rijckenborgh e seu grande amorpela humanidade levaram-no a fundar, com Catharose de Petri,uma escola moderna de transformação da consciência: o LectoriumRosicrucianum. A ideia inicial era que preencher as lacunasconcernentes aos conhecimentos situados no plano profundo daexistência constituiria um fermento para atenuar o sofrimento do mundo.Compreendereis, assim, por que a Bíblia cerebrais, devem ser extintos segundo adiz “Tornai-vos sábios como as serpen- natureza! A cabeça da antiga e vil serpen-tes!”, ao mesmo tempo em que esse te, a cabeça sétupla do monstro, deve seranimal pode também ser visto como o esmagada a fim de que a Ioga divina, aque há de mais repugnante. Sabedoria divina, possa tomar seu lugar eÉ também nesse sentido que falamos do a Vontade divina, como grande sacerdote,dragão de sete cabeças, surgido da pro- possa reinar no sistema cérebro-espinal efundeza das águas, e da hidra de múlti- conduzir à transfiguração.plas cabeças. De fato, a serpente espinal As sete novas luzes são então acesas, e étem sete cabeças, que correspondem às como se o aluno as segurasse em sua mãosete cavidades cerebrais orgânicas estrei- direita. Os doze pares de nervos crania-tamente religadas a toda a extensão do nos, transformados em ramos da árvoresistema espinal. da vida, são impulsionados para a novaAs sete luzes, que brilham nas cavidades vida. O fluido vital recriador penetra nocerebrais, são as sete cabeças da serpente interior dos três santuários. Do plexo sa-ou do dragão, os sete olhos de que fala cro jorra a água viva pelas oito portas doum conto, e também as sete passagens lugar santo até o mar de cristal, que daíque levam a Shamballa. em diante não poderá ser quebrado porAssim, a intervenção divina que visa nada e por ninguém.restaurar a saúde desvela-se a nós como Então, os trinta e três aspectos da Vontadeem uma cena de teatro. Percebemos aqui e da Ioga, os trinta e três segmentos doo grande e sublime trabalho da Frater- sistema cérebro-espinal, endireitam-senidade Universal, com suas tentativas de como uma serpente plena de sabedoria.elevar e transfigurar o homem decaído e E esse réptil, que outrora exprimia umasua personalidade danificada. A árvore da palavra de morte, de agora em diantevida, a figueira humana original, sempre falará a linguagem da beleza, da sabedo-viva, deve ser endireitada, e nós devemos ria e do amor. O filho do Todo-Um, oretornar ao paraíso dentro de nós mes- mestre-construtor divino, torna-se o filhomos. Compreendemos a tarefa voluntária unigênito nascido de Deus, o filho dasdos “Filhos da Vontade e da Ioga” assim serpentes e dos leões. A árvore da vida écomo sua manifestação sétupla. Os sete novamente erigida como um pilar, umaaspectos da Vontade e da Ioga, ardendo coluna-mestra no templo de Deus.como candelabros nas sete cavidades 7

ILHA DE PÁSCOA, CENTRO DOS MISTÉRIOS DO OCEANO PACÍFICO A sabedoria de Waitaha INão existe no mundo ilha mais solitária do que a Ilha de Páscoa. Exceto uma ilhotainabitada, situada a cerca de quatrocentos quilômetros, a ilha mais próxima encontra-se adois mil quilômetros a oeste; a América do Sul, o continente mais próximo, encontra-sea três mil e setecentos quilômetros. A maioria das ilhas do grande arquipélago ao qualpertence a Ilha de Páscoa, a Polinésia, situada entre a Austrália e o continente sul-america-no, encontra-se a quatro mil quilômetros. Nos cerca de sete mil quilômetros em direçãoà Nova Zelândia existe apenas o oceano. As dimensões da Ilha de Páscoa são de aproxima-damente vinte e quatro quilômetros de comprimento por no máximo dez quilômetrosde largura. Podemos falar, com todo o direito, que se trata de um grão de poeira triangu-lar no meio do oceano. Sua descoberta, em 1722, pelo navegador holandês Jacob Rogge-veen, possibilitou que ela se tornasse conhecida na Europa.A ocupação de um lugar perdido assim, longe de tudo, não foi casual, ao contrário, foiplanejada e guiada por uma intenção superior, que nos é contada no Cântico de Waitaha.As tradições dos habitantes originais da Nova Zelândia foram mantidas secretas duranteséculos, porém há alguns anos tornaram-se públicas. Segundo essas tradições, diversospovos de diversas raças foram conduzidos a esse lugar da Terra de maneira coordenadapor uma força superior. A ilha tornou-se um centro – precisamente um foco dos mis-térios, como é relatado – para todos os territórios do oceano Pacífico. Conta-se que HotuMatua, heroína do povo maori da Polinésia, e Kiwa, o navegador do Uru Kehu, vieramdo leste – portanto, da América do Sul – e percorreram os oito mil quilômetros que osseparavam a fim de se encontrarem nesse lugar solitário. Aqui devemos ver algo bemdiferente do que apenas o destino de duas pessoas, do mesmo modo como, mais tarde,seu neto Maui partiu em busca da Nova Zelândia impelido não pela sede de descobertas,mas por uma missão interior.Houve ainda um terceiro povo que se formou na Ilha de Páscoa: os “Homens de Pedra”,descritos como pertencentes a uma terceira raça, a terceira delas. Isso sugere que esseshomens, em suas grandes peregrinações para muito além das regiões habitadas, foramintencionalmente conduzidos para a Ilha de Páscoa. Por mais de mil anos, essa ilha bas-tante “carregada” espiritualmente, situada em pleno Oceano Pacífico, serviu de ponto departida e de centro de mistérios. 8 A sabedoria de Waitaha

Para Paul Gauguin, era evidente que os maoris do Taiti eram homens ainda muito próximos de suas origens. Nesses rostos, desenhados a carvão (Taiti, 1889), ele soube fixar em uma única imagem a originalidade étnica e a espiritualidade do povo maori. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, E.U.A .9

Reconstituir a cronologiaA história de mais de setenta gerações relatada no Cântico de Waitaha, bem como amenção de uma enorme erupção vulcânica acontecida há 1700 anos na Tamatea, ilhaao Norte da Nova Zelândia, permite-nos estabelecer uma nova cronologia.Vindo da Ilha de Páscoa, por volta do início de nossa era cristã, Maui, o neto de Matua Essas estátuas foram erguidas na Ilhae Kiwa, instalou-se na Nova Zelândia. Entre os séculos 3 e 4, a Nova Zelândia abriu-se de Páscoa que, segundo a Doutrinapara o exterior exportando, entre outras coisas, batatas e pounamu, pedra verde consi- Secreta, emergiu das águas. Elasderada sagrada, um tipo de jade. Essas pedras verdes, extraídas por seu poder curativo, apresentam grande similitude com asespalharam-se por todo o arquipélago polinésio, e estão lá por trinta e sete gerações, que foram descobertas na Mongóliaportanto aproximadamente desde os séculos 12 ou 13 de nossa era. (cf. página à direita) cuja origem éAs invasões belicosas que os maoris polinésios empreenderam na Ilha de Páscoa e igualmente desconhecida. A Ilha deNova Zelândia condenaram à morte os “povos antigos”. Isso foi feito sem que os ma- Páscoa e a Pirâmide de Gizé estãooris fizessem o “reconhecimento do terreno”: em outras palavras, sem terem assimila- exatamente em pontos opostos nado os conhecimentos próprios dos autóctones da ilha. esfera terrestre – o que representaA história da Ilha de Páscoa poderia também ser reconstituída de acordo com as con- mais um enigma.cepções das tradições ancestrais. O Cântico deWaitaha diz que as primeiras colonizaçõesda ilha aconteceram simultaneamente. Hotu Maua e seu povo vieram da Polinésia;Kiwa chegou por volta do início de nossa era; pouco depois foi a vez do terceiro povo,provavelmente provindo da Ásia.No decorrer do século 14 os polinésios levaram a brutalidade, as lutas e os conflitos àNova Zelândia e à ilha. Não tiveram nenhuma consideração pela cultura nativa. Final-mente, no século 17, a antiga cultura da ilha de Páscoa afundou.10 A sabedoria de Waitaha

Peças encontradas na Ilha de Páscoa testemunham que não foi tão simplesmente umatribo local que ali desenvolveu uma cultura, mas que existiu sim uma civilizaçãoaltamente desenvolvida. As gigantescas estátuas ali levantadas não são encontradas emnenhuma outra parte.É difícil imaginar como homens que não possuíam utensílios de ferro conseguiramesculpir, transportar e levantar estátuas de até 12 metros de altura e de mais de 90toneladas. Numa pedreira encontra-se um monumento inacabado de tamanho de 21metros! Também foi descoberto um sistema de sinais próprios dessa cultura, que fazi-am parte de escrituras raras ainda não decifradas, a exemplo daquela de Mohenjo-Daro,a civilização do vale do rio Indo, com a qual se assemelha.O CÂNTICO DA CRIAÇÃOO Cântico de Waitaha contém apenas algumas vagas indicações a respeito da origem asiáticados “Homens de Pedra” que vieram das “mais altas montanhas, o teto do mundo”. Segundo aDoutrina Secreta, a Ilha de Páscoa conheceu a primeira civilização da terceira raça, da qual faziamparte os lemurianos. A ilha submergiu com tudo o que restava da Lemúria, porém, mais tarde,uma súbita erupção vulcânica fez reemergir um pequeno vestígio dos tempos arcaicos, com seuvulcão e suas estátuas intactas, como testemunho da existência anterior da Lemúria. Alguns afir-mam que certas tribos aborígenes da Austrália são os últimos descendentes dessa raça.O Cântico da criação“Das profundezas do vazio fez-se ouvir poderoso ruído.”No princípio, o universo foi chamado à vida por Mata Ngaro, o deus dos deuses, pai e mãe dosque ainda não haviam nascido, o criador do todo.E todos os nascidos das estrelas eram irmãos e irmãs, membros de uma só família.E livre era seu espírito.E os membros da raça humana viajavam para o mundo da Luz, nas marés do início dos tempos.E eles caíram no mundo da obscuridade onde o mal, os filhos de Tane, os fez seguir os caminhosde dor e de tristeza.“E eles novamente se voltaram para a Luz e se acharam em pé no círculo da paz.”Assim começa o Cântico de Waitaha – As histórias de uma nação (The song of Waitaha, Thehistories of a Nation). Durante séculos, essas narrativas foram transmitidas oralmente pelosanciãos de Waitaha. Em 1994, elas foram publicadas pela primeira vez, em Christchurch, na NovaZelândia, após a autorização dos anciãos, ocorrida em 1988.Os arqueólogos da Nova Zelândia fizeram inúmeras descobertas sobre um povo que não conheciaarmas e que concebia seus próprios procedimentos comerciais, assim como o meio de transportede pedras por toda a extensão do país. Essa comunidade pacífica é o tema do Cântico de Wai-taha que a chama de “A Nação”.“Na Luz está a vida e a compaixão,na escuridão, só existem trevas.Na Luz, o sonho não conhece fronteiras,na escuridão, o sonho é deformado, não consegue encontrar seu inícioe teme seu fim.” 11

O esplendor do arco-íris De tudo quanto foi realizado pelos waitaha, nada era desprovido deAs esculturas de pedra são impressio- significado. No entanto, o simbo-nantes e guardam notáveis semelhanças lismo de seus desenhos rupestres,com as estátuas esculpidas na Mongólia, onde podemos ver barcos, serpentesuma vez que são igualmente altas, isoladas e homens dançando, é ainda emna paisagem, e sem pernas. No Cântico grande parte incompreendido. Essesde Waitaha há alguns indícios, ainda que desenhos foram descobertos hávagos, da origem asiática dos “Homens dois séculos, nas grutas de Hazel-de Pedra” (Lu Takapo), cujos possíveis burn-Blacklers, no distrito de Timaru,criadores teriam chegado à Ilha de Páscoa na Nova Zelândia.guiados por Rongueroa. Isso porquevieram das “montanhas mais altas, o teto “Na Luz está a vida e a compaixão,do mundo”, as quais não poderiam ser os na escuridão, só existem trevas.Andes, pois Kiwa viera de lá, e o cântico Na Luz, o sonho não conhece fronteiras,insiste repetidas vezes sobre o fato de que na escuridão, o sonho é deformado,a procedência dos três povos correspon- não consegue encontrar seu iníciodia a três origens e correntes totalmente e teme seu fim.”diferentes.A memória coletiva da civilização da Ilhade Páscoa fala de várias catástrofes, nasquais o fogo desempenhou um papel.Essas catástrofes podem ter sido causa-das pelas erupções vulcânicas ou porque“choveu fogo do céu”. É também men-cionada uma grande inundação e umaenorme onda vinda do mar, traços dasquais foram detectados por arqueólogos.Contudo, a narrativa diz: “O esplendordo arco-íris reafirma a certeza de que agrande inundação jamais voltará e que aterra já não submergirá nas grandes águas.No arco-íris são vistas as cores de todosos habitantes de todas as regiões; o sonhorealizou-se: a promessa de paz; e, vistoque o fogo ainda deve vir para purificare curar, nada é dito a respeito do grandefogo.”Essa passagem do texto é o testemunhoda recordação das grandes submersõese calamidades que provocaram a quedade civilizações ainda desconhecidas, quesão bem anteriores a essas narrativas dosantigos e até de seus ancestrais. Será que o“centro dos mistérios” da Ilha de Páscoaremontaria a tempos ainda mais antigos?Teria a origem ocorrido em um passado 12 A sabedoria de Waitaha

ainda mais longínquo? Teria o conhecimento original da humanidade sido depositadonesse local, passando pelo “centro dos mistérios” do deserto de Gobi no interior daMongólia? Será que as informações a respeito das grandes inundações e da aparição doarco-íris também proviriam desse conhecimento?O maxilar inferior e o maxilar superiorAs tradições dos waitaha e de outros povos antigos não mencionam nada de concre-to relativo aos ensinamentos dos mistérios, das iniciações ou dos cultos. Contudo, épossível discernir claramente dois níveis de conhecimento e de sabedoria: as históriassagradas do “maxilar superior” e da voz do “maxilar inferior”.O que compete ao maxilar superior é estritamente secreto, e somente é conhecido porum pequeno número de eleitos reconhecidos como “os mansos” – pessoas que erampreparadas desde o nascimento. “O poder do maxilar superior” jamais foi confiado aquem vive apenas para si, sem pensar nos outros. Ele jamais vem para aqueles que são“possuídos pela cólera e que causam sofrimento”. Somente têm acesso a esse conheci-mento as pessoas possuidoras de uma consciência fora do comum e longamente educadase providas de grandes dons espirituais. Essas pessoas têm ligação direta com os “ances-trais do mundo” e participam de algo como um saber original, cuja autenticidaderessoa na tradição verbal, fielmente retransmitida sem interrupção.A voz do “maxilar inferior”, ao contrário, não está ligada à lei do silêncio. Suashistórias “chamam jovens e velhos para junto do fogo, onde vivenciam mundos maisreais do que aquele que podem tocar, mais perceptíveis do que aquele que podem vercom os olhos, mais belos do aquele que até então foram capazes de observar”. Cadauma dessas histórias é como uma semente que, não importa onde germine, será sem-pre reconhecida por aqueles que a ouvem e que revelarão seu profundo significado. Apaz mútua, a harmonia com a natureza, um grande conhecimento dos processos vitaise das energias dos campos etéricos caracterizam essa antiquíssima cultura do Ocea-“Somos todos filhos de Tane Mahuta, todos originários da terra vermelha, em que tomou forma Máscara Maoria primeira mulher. No entanto, embora os filhos se mantivessem retos e benevolentes sob a luzdo sol, outros se curvavam na escuridão, alimentados pela ira e a dor. Os filhos da paz são comoos ramos nutridos pela Terra-mãe: eles buscam a Luz e se estiram sempre mais para o alto, assimcomo o fazem as árvores da floresta. Os filhos da escuridão crescem como plantas mutiladas:seu espírito se confunde com as raízes e os galhos; frustrados, atacam a si próprios. Sua raiva ali-menta-se de crescer sem projetos, de mover-se em todos os sentidos, para se fechar, entravar-see fazer o mal. A escuridão se esqueceu da beleza da árvore que se mantém ereta. Enquanto elesmarcharem sob o rufar de tambores, os filhos de Tu Ma Tauenga serão como filhos encerradosnum espírito incompleto e deformado, aprisionados no corpo, convencidos de que destruir é umaforça, buscando refúgio no sofrimento de outrem.”Então, segue-se a narrativa da chegada dos guerreiros maoris, que foram rápidos em conquistar anação, porque seus habitantes não ofereceram nenhuma resistência.Em seguida, vem o final do Cântico de Waitaha:“E partimos em paz. Não houve batalhas, nada além de nossos mortos, nossos jovens, os velhos,as mulheres, os homens, todo mundo. E as famílias perceberam que o círculo se rompeu. Houveum tempo em que fomos numerosos como os grãos de areia da praia, e agora não somos maisdo que apenas alguns poucos.”13

14 A sabedoria de Waitaha

A denominação comum de Waitaha estendia-se entre três povos diferentes. Os moriori ou maeroero,medindo 1.80m de altura, conhecidos como tocadores de flauta de madeira cumaru. Os urukehu depele clara, denominados “passeadores estelares”, navegadores que sabiam ler as estrelas a fim de seorientarem. Os kiritea, ou “povos da pedra”, originários da Ásia, que trouxeram consigo as pedrasde jade. Esses três povos ocuparam as inúmeras ilhas do Pacífico Sul desde 400-450 a.C.Sua civilização soçobrou no decorrer do século 17 sob os golpes dos invasores maoris.no Pacífico. De maneira geral, seu ambiente era “puro”, as energias espirituais e sutisquase não encontravam obstáculos. Isso também é válido para a Nova Zelândia, onde,por exemplo, podemos notar nas plantas e nas flores um colorido extraordinariamentevivo. Não havia ali mamíferos superiores, e a presença humana surgiu bem mais tardeque em outros lugares.Qualidades notáveis Fontes Traduzido, condensado e retrabalhadoOs habitantes originais, que nos deram a conhecer o Cântico de Waitaha, viviam em com base em três artigos de Winfriedharmonia com o meio ambiente. Eram afáveis, inclinados à harmonia e evitavam tanto Altmann, publicados em Das Goethea-quanto possível o conflito, a cólera e a irritabilidade que, aliás, eram punidos. Eram num,1997-1998.bastante tolerantes; contudo, expulsavam os violentos de sua comunidade. Assim que Nesta série de artigos, a autora resumeameaças e conflitos foram introduzidos em sua região pelos conquistadores estrangei- a obra Song of Waitaha, The Historiesros, como os maoris, soou a hora do declínio da cultura pacífica. Esta não pôde coexis- of a Nation, Being the Teachings of...tir com a presença de invasores de mentalidade brutal e irrefreada. (um coletivo de autores), Barry BrailsfordAlém das qualidades já mencionadas, os habitantes originais das ilhas do Pacífico editor, Ngatapuwae Trust, Christchurch,tiveram de desenvolver extraordinária coragem e perseverança. Os rapazes e as moças 1994, edição ilustrada. Os fragmentos doscom essas qualidades eram selecionados para viagens marítimas. Em suas idas e vindas cânticos que aparecem em nosso artigo sãopelas imensidões oceânicas, da Ilha de Páscoa para a Nova Zelândia e América do Sul, extraídos daqueles que foram publicadosem canoas feitas de troncos de árvores, eles não tinham qualquer outro auxílio além das na obra de Winfried Altmann.estrelas do firmamento.Retorno pacifico da cultura da Ilha de Páscoa?Nas últimas décadas, muitas almas da nova geração, principalmente na América, intro-duziram na Europa e em outras partes do mundo um novo e surpreendente movimen-to. Essas almas, portadoras de valores como paz, amor e um relacionamento totalmentenovo com a natureza, podem conduzir-nos a uma nova consciência quanto ao nossomeio ambiente. Será possível que antigos impulsos da civilização da Ilha de Páscoa setornem viventes numa forma adaptada à nossa época? Será que poderemos assistir àeclosão de uma nova civilização na qual os valores de paz e conhecimentos concer-nentes às forças vitais sejam de novo ensinados e praticados intensamente por mil anos?Rochedo na praia de Christchurch, Nova Zelândia 15

O poder do verbo em AtenasImpressionado pelos ação na qual você um dia já se para o crescimento da com-antigos edifícios gregos perdeu. Uma vez, um instante, preensão, da consciência e detão imponentes, um e isso volta como um milagre, tudo o que era necessário paraser humano só pode um reencontro ou uma mão que nós pudéssemos nos tornarcontemplar a si mesmo estendida. verdadeiros seres humanos.e nada mais. O que me Nesse sentido, olhem só algunstornei? Como foi que O caminho da vida exemplos tirados da herança daisso aconteceu? Uma Essa necessidade que você Grécia.viagem a Atenas significa sente de dar um sentido lógico Os mitos gregos sobre a gêneseo mesmo que descobrir o aos acontecimentos e gestos do mundo, dos deuses e dosmundo inteiro dentro de é sinal de um espírito sadio. E homens são narrativas ondesi mesmo. E isso passando esse desejo de ter uma meta estão ocultos vários ensinamen-da fascinação à com- na vida não é estranho: muitas tos sobre o encaminhamentopreensão, pois os mitos, pessoas sentem essa neces- do ser humano e a estrutura deas esculturas e os templos sidade. Mas, na maior parte sua psique. Essas narrativas nossituam o ser humano em do tempo, somos empurrados desafiam e sintonizam profun-uma perspectiva mais pela própria vida para deter- damente com nossos questi-ampla e lhe oferecem minada direção. É por isso onamentos sobre a razão deum vasto horizonte para que acontece – ou não – um nossa presença aqui embaixo. Écontemplar. encaminhamento pessoal. interessante observar que mui- Algumas pessoas são cheias de tos adolescentes, mesmo agora,Talvez você tenha uma vivência entusiasmo e usam bastante de repente demonstram grandedo sagrado para além do sua vontade própria. Apesar interesse por esses mitos. Astempo e do espaço, uma de tudo, elas às vezes encon- pequenas estátuas brancas,experiência intensa que nunca tram obstáculos e estradas muito simples, da antiquíssimavai conseguir esquecer, algo fechadas. E não importa que a civilização das Cíclades, têmque traz uma nostalgia só gente diga “Tá bom, isso acon- os braços cruzados e o rostode pensar nisso. É como se teceu assim” ou que a gente voltado para o alto. Para quem?fosse um espaço luminoso se volte contra a dificuldade de Para onde? Para uma divindadeem sua vida, que nunca mais compreender o que aconteceu. ou para o vasto Universo e suasvai abandoná-lo. É impossível Parece que cada indivíduo, estrelas?dizer o que é isso e você não para encontrar seu lugar, tem Parece que elas estão pedin-consegue falar a respeito disso de seguir um caminho pessoal, do ajuda para encontrar umacom ninguém. Para você é um caminho de vida com baseuma vivência sagrada, um em encontros e possibilidades À esquerda: as Ilhas Cíclades situ-mistério. Logo que você ficou oferecidas para seu processo am-se em círculo à volta da Ilha deadulto, isso acabou ficando em de desenvolvimento espiritual. Delos. O tipo de ídolo, tal como estásegundo plano. Apesar disso, aqui representado, levou milêniosàs vezes você ainda deseja Buscar o fio da meada para ser produzido. Seu significadoreviver essa experiência profun- Conforme o fio dos séculos foi religioso está relacionado ao cultoda de querer ser um novo ser se desenrolando, muita gente da divindade Mãe da Anatólia, que éinvadido pela grandeza e pelo trabalhou, se esforçou, se mais antiga aindasagrado que existe nessa cri- inspirou, ensinou e contribuiu À direita: o templo grego de Hefa- ístos em Atenas data do século 5 a.C.16 IRnehpoourdtagem

reportagemorientação, um direcionamento Descobrir possibilidades cavernas e de tudo o que elas semente, e que representaem seu caminho de realização. É num lugar como esse que representam, para chegarmos uma oportunidade mais amplaAs esculturas que se chamam se encontra precisamente o à luz viva, onde não há som- de evolução. Em Corinto, osKouroï (rapazes) e Kouraï templo de Delfos, cujo frontão bra. Afinal, os seres humanos homens precisam seguir seu(moças) são estátuas grandes, traz a seguinte inscrição: precisam trabalhar em si próprio caminho em meio acinzeladas magnificamente “Conhece-te a ti mesmo!” Na mesmos, descobrir o mundo ensaios e erros. Assim como osem pedra mármore, com um Grécia encontramos grandes em seu foro íntimo! coríntios, também recebemossorriso misterioso, trabalhado pensadores: Sócrates, que No Areópago, a colina da repetidamente esta mensa-sutilmente, como se ligado a queria despertar a criança que alta corte de justiça da antiga gem: “Assim restam a fé, auma lembrança, um profundo existe nos homens e torná-los Atenas, Paulo, o mensageiro esperança e o amor, mas omovimento da alma. consciente daquilo que os ha- do Deus desconhecido, fala maior é o amor”. Quem busca bita e que deseja ser conduzi- de Jesus Cristo, a força da recebe os dons do Espírito do à maturidade; Platão, que Alma-Espírito que está oculta e se torna, assim um Novo nos convida a sair de nossas no ser humano como uma Homem. 17

Ao lado: um kouros. No tempo da aristocracia (650-600), os kouroï representavam o ideal da virilidadee também da riqueza dos doadores. O povo lhesatribuía forças mágicasAbaixo: aos pés da Acrópole, o velho teatro deHerodes AtticusComo é longo o caminho no Quando a rosa desperta em muitas vezes as ondas ficavammar da vida! seu coração, o ser humano cinzentas, ameaçadoras e pe-Como é magnífico o processo encontra uma nova bússola. rigosas e o navio sofria avariasde desenvolvimento da cons- Na força da flor, ele tenta e podia até se perder no mar –ciência, mas como é longo o seguir suas instruções. Etapa no mar da vida.caminho...! Os rosa-cruzes do por etapa, ele vai seguindo Sem dúvida você está no bomséculo 17, em sua profissão a luz que brilha a seus pés. caminho, mas será que temde fé, Confessio Fraternita- São inúmeros os que seguem força e habilidade suficientestis, falavam sobre um “guia a indicação do Ensinamento para terminar o trabalho noeternamente inalterável que Universal e a força da Escola decorrer de sua vida tão curta?ultrapassará todas as tribu- Espiritual, que os envolvem e Talvez você precisasse de umalações e tomará o lugar da os auxiliam, oferecendo-lhes próxima existência para conti-perdição e das trevas”. Que um fio condutor. nuar a trabalhar...! Mas os atosguia é esse? Quem seria ele verdadeiros de vitória sobre sisenão a força da rosa, que Manter o rumo mesmo, de transformação, desustenta a Fraternidade? Não Desse mar azul que reflete os tomada de consciência jamaisé verdade que é a força crística raios do sol partiam os navios irão se perder! Todos serãoque impulsiona nosso universo gregos para a descoberta do beneficiados com a sua pleni-interior? mundo, para fazer trocas, tude. Pense sobre isso: “UmaDentro de nós pode nascer a compras e vendas. Às vezes, verdade colocada à disposiçãoborboleta real. Podemos seguir eles ainda nem conheciam a dos seres humanos, por meioconscientemente o caminho rota. Então, o capitão dava de seres humanos”: aí está oe responder ao Espírito de o curso a ser seguido e as significado do trabalho em co-Deus – portanto, podemos nos estrelas eram seu guia. O mum, principalmente na Escolatornar os executores de seu capitão tinha que confiar na Espiritual. Na Ágora de AtenasConselho. competência, boa-vontade e descobrimos também o temploPaulo diz aos efésios (habitan- experiência de sua tripulação ainda intacto de Hefaístos, otes da fronteira): “É um dom e também na robustez e na deus do fogo, expressão dade Deus. Não vem de vós. Não qualidade de seu navio. Mas beleza.vem de vossas obras.” Essaspalavras parecem contradizer anecessidade de nosso engaja-mento pessoal, mas indicam,na verdade, que devemostomar como referência valoresmuito diferentes, que somentepodem ser bem compreen-didos por uma guinada daalma. Em sua época, Lao Tsédisse: “Aquele que conhece asi mesmo é iluminado. Aqueleque conquista a si mesmo étodo-poderoso.”189 Reportagem

crônicaAcrescentar traços luminososNo século16 pensávamos que existia uma relação mis- um a oportunidade de cultivar o melhor de si mesmo.Todosteriosa entre os metais e as estrelas. O brilho do ouro devem encontrar a oportunidade de se inspirarem mutua-devia ter um parentesco com o céu. Em seu livro As pala- mente a fim de crescer e também oferecer aos outros o espaçovras e as coisas, Michel Foucault fala das crenças segundo para fazerem o mesmo. Frans Timmermans expressa suaas quais a Providência enterraria filões de ouro e de compreensão com o grande número de pessoas que anseiamprata no solo, e então os faria aumentar lentamente de por mais unidade, liberdade e fraternidade. Ele ressalta a fra-volume, tal como as plantas que crescem e os animais ternidade para que fortaleça a comunidade humana, mesmoque se reproduzem.Víamos também uma relação entre quando as primeiras reações a esse objetivo possam ser dotudo o que era útil para os homens e as veias brilhantes tipo: “isso é impraticável, inviável, utópico, olhe ao seu redor,de metais que cresciam escondidas na obscuridade da é sobre-humano”.terra. Evidentemente, é necessario que cada vez mais o único desejo de nosso ser, de nossa pequena pessoa, seja, literalmente,Àprimeira vista, essa concepção do século 16 pode alcançar uma fraternidade, uma sociedade na qual possamos parecer estranha, mas, olhando mais de perto, ela viver sem inimizade. Se as pessoas do século 16 pudessem demonstra perspicácia e sabedoria. Porque, quando dar uma olhada em nossa época, elas diriam, provavelmente,aplicada às pessoas que ardorosamente buscam o divino, ela que a Providência tem tanta capacidade de fazer previsãoserve para todos e para todas as épocas: por efeito de uma que, assim como o ouro das minas, todos os links que tecemprofunda transformação proveniente da pérola de ouro – que nossa rede web mundial “www” devem ter uma utilidade. Asestá presente em cada um de nós – nascem novos desejos, possibilidades atuais para criar uma fraternidade são evidente-novas exigências, uma necessidade. Dessa forma, há cada vez mente grandiosas, pois é possível nos conectarmos ao mundomais ouro circulando nas veias. Se esse aumento do ouro “do todo! Na trama de todas essas linhas, de todas essas ligaçõesbaixo” pudesse fazer seu trabalho, isso suscitaria um maravi- www, podemos depositar gotas de ouro que brilharão ao sollhoso brilho estelar “do alto”. O resultado seria desenvol- – mesmo se isso exigir atos heróicos ou sobre-humanos! As-vimento e crescimento debaixo da terra, nela e acima, para sim, poderemos tecer uma teia de ouro e deixar por lá traçosalém dela. luminosos.Esta época traz possibilidadesmagníficas para consolidarmos umafraternidadeO homem sabe que o ouro é precioso. Com a ajuda de asas deouro, você pode voar entre a terra e o céu.Graças a fios de ouro, você pode tecer uma teia em torno daterra. Calçando sapatos de ouro, você deixa traços luminosospor onde passa.Em seu texto “Fraternidade – em defesa de mais união”(dezembro de 2015), o vice-presidente da comissão européiaFrans Timmermans nos pede para renovar os laços antigos eestabeler novas alianças. Não como um objetivo em si, mascomo um meio de fortalecer a comunidade e de dar a cada19

O barquinho de papelJ. Anker Larsen (1874-1957)* tornou-se célebre pela publicação de seu livro A pedra dos sábios.Sua observação rigorosa da vida real ultrapassava tudo o que a Igreja, o esoterismo e a místicapropunham. O barquinho de papel é um de seus primeiros textos (1908). Nele já se revela suapercepção lúcida, que apaga as fronteiras entre este mundo e sua metade desconhecida. 20 IOnhboaurqduinho de papel

A J. ANKER LARSENcasa era magnífica, o jardim bem cuidado, e era o mais lindo dia de outubro, mas oengenheiro Borglum não estava prestando a menor atenção. Uma de suas crises tinhaacabado de acontecer novamente: às vezes ele nem conseguia mais suportar ver o quequer que seja – nem sequer as mínimas coisas que lhe pertenciam. Essa era a razão pelaqual ele não tinha ido ao escritório naquela manhã.Ele levantou os olhos em direção ao céu. As folhas das árvores caíam lentamente. Todooutono era a mesma história!Esses ataques de “já não aguento mais” que faziam que tudo saltasse pelos seus olhosestavam se repetindo cada vez mais frequentemente. Como os cabelos ralos em suacabeça e as folhas que caíam das árvores, tudo o que antes o interessava agora o estavaabandonando. O mundo parecia vazio, triste e feio: exatamente como ele.E ele nem tinha cinquenta anos! Com sua saúde de ferro, ele corria o risco de viverpelo menos uns vinte ou trinta a mais. Já havia conhecido de tudo em sua vida: po-breza, trabalho pesado, viagens, luxo e todos os prazeres possíveis e imagináveis. Naverdade, para ele já não havia mais nada de novo sob o sol e mais nada que ele tivesseo prazer de reviver. Se pelo menos ele sofresse de uma ou outra dessas doenças queexigem maiores cuidados... Ele não conseguia sequer imaginar o que pudesse vir emseu auxílio para fazer passar o tempo. Dormir? Sim, podia ser. Mas ninguém pode fazerisso o tempo todo.No ano anterior, ele havia feito uma viagem ao Congo com sua mulher. Ela queria sabercomo era lá. Ele, por sua vez, bem que preferiria ser picado por uma mosca tsé-tsé, masnão tinha nem uma sequer por aquelas bandas. E o Congo, ele já tinha visitado tantasvezes que tanto fazia partirem juntos nessa viagem até lá ou ficarem em casa: dava nomesmo.Antigamente, viajar tinha sido sua vida e sua paixão. Aquela época tinha sido bemagitada. Talvez ele tivesse dedicado tempo demais e muito ardor àquelas viagens emsua juventude! Ah! Se pelo menos ele ainda pudesse viver alguma coisa nova, qualquercoisa...!Ele voltou para casa sem sequer olhar para sua bela mobília e suas preciosas obras dearte penduradas na parede.Pensando em todas as vezes que tinha exibido esses tesouros para seus convidados bo-quiabertos, sentiu que já estava realmente cansado de si mesmo.Decidiu, então, ir até o quarto das crianças. Ali, pelo menos, ele não encontraria nada“daquilo tudo que um homem precisa possuir”, como se diz.Mas, quando chegou lá, começou a dar pontapés cheios de raiva nos brinquedosmecânicos espalhados pelo chão. Todo trabalho ao qual ele já não queria dar a mínimaatenção parecia estar ali representado: o que estava espalhado pelo chão era todo o seutrabalho de engenheiro, realizado em todas as partes do mundo.Ele se deixou cair em um sofá e entregou-se ao seu humor negro. Tudo – tudo o que 21

ele havia realizado no decorrer de anos e anos – começava a visitar sua memória. E isso A únicaacontecia justo na hora que ele estava para pegar no sono. Estirou o corpo, pronto para coisa durávelsuportar esse suplício que já conhecia há tanto tempo. Então, foram surgindo algumas de tudo o queimagens: um túnel na Pérsia, uma rede ferroviária no Sião, algumas pontes na China, ele haviatrabalhos de eletricidade na Suécia. produzidoE, no meio de tudo isso, de tempos em tempos ia surgindo uma coisa branca, que ele era umnão conseguia distinguir com clareza. Mais uma vez ia repassando toda a série, de A a barquinhoZ, para acabar de novo naquela coisa branca que ele não conseguia identificar. de papel eIsso começou a despertar seu interesse e ele prometeu a si mesmo que iria prestar ele precisavaatenção logo que visse reaparecer a coisa branca. subir aTalvez fosse uma espécie de saco de papel com um pó sonífero dentro... As imagens de bordotudo o que ele havia feito eram como marteladas dentro de sua cabeça. Depois, elas iamse transformando em uma massa disforme de rodas de todos os tamanhos, que ficavamgravitando em torno dele: rodinhas, rodas grandes, na terra e na água, e, de quando emquando, sempre aquela coisa branca.Pouco a pouco, as rodas foram ficando cada vez menores e a coisa branca cada vezmaior.De repente, todas as rodas mergulharam como por encanto no fundo do mar. Mas acoisa branca já estava preparada para navegar e continuava lá, diante de seus olhos,flutuando sobre as ondas.Subitamente ele compreendeu o que era a única coisa indestrutível que ele havia pro-duzido até aquele momento: um barquinho de papel!E agora, como todo o resto havia ido embora, ele tinha de subir a bordo desse barco.No castelo de proa deslizava um pedaço de papel.– Parece que conheço isso, disse para si mesmo. E em seguida escutou:– Claro que você me conhece. Eu sou o homem.– Que homem?– O homem que estava a bordo. Eu naufraguei e até me afoguei por sua causa.– É verdade! Agora estou me lembrando muito bem de você – disse Borglum. Estoufeliz de ver que você não morreu. Então, você é o capitão?– Sou eu mesmo. Você subiu a bordo porque já está pensando em um destino bempreciso?– Sim, disse Borglum. Quero ir embora – partir!– Bom, então vamos zarpar – respondeu o homem.– Mas você conhece a rota?– Claro! A maior parte da viagem acontece no meio-fio.– Na sarjeta? Você poderia me conceder sua amável atenção para perceber que eu per-tenço à ordem dos cavaleiros?– Ótimo! O meio-fio vai somente ter uma aparência melhor – observou o homem. Masagora não podemos nos dar ao luxo de ficar conversando muito, pois precisamos tercuidado para não bater contra algum obstáculo.– Contra o quê, por exemplo?– Contra todas as rodas, pequenas e grandes. Se batermos uma vez só contra qualqueruma delas, nunca mais poderemos partir de novo.– Só para constar: esse é um belo navio, disse Borglum. Sei que fui eu mesmo que oconstruí, mas não consigo perceber o que o torna tão excelente.– Ah, é muito simples – disse o homem. É porque ele não serve para nada!Borglum começou a rir com gosto. Estava tão contente que se sentiu leve e aliviado,como se a força de atração da Terra tivesse sido abolida.- Quando eu voltar para casa, vou contar para todo mundo – disse ele. Vou contar àspessoas que o mistério do Universo foi resolvido e que eles já não precisam se preo-cupar com isso.22 O barquinho de papel

Ele continuou a rir, feliz. O homem olhou para ele e disse:– Estou vendo que é muito bom rir sem motivo.– Não estou rindo por nada. Estou rindo porque você está me fazendo cócegas! Comoo que você está me fazendo cócegas?– Com isto! – disse o homem, enquanto lhe estendia uma peninha branca.Borglum examinou a pena que servia de remo.– Tenho a impressão de que conheço essa pena. Ela é feita de quê?– De tudo o que você se esqueceu.– E você me diz isso só agora? - comentou Borglum. É incrível como ela é branca esuave. Posso ficar segurando mais um pouco?– Sim, mas só se você também aceitar segurar o timão. Fique de olho na pena e vá diri-gindo o barco com precisão na direção que ela for mostrando para você. Fique atento!Durante todo o tempo que estivermos navegando no meio-fio, precisamos nos espre-mer entre as rodas grandes e pequenas!– Mas, meu Deus! Por que será que todas essas rodas acabaram caindo no meio-fio? –perguntou Borglum.– Por causa da utilidade delas. Tudo o que é útil acaba no meio-fio. Se não fosse assim,iria faltar lugar para todas as coisas úteis que os outros fazem.– É claro. Está bem. Vou segurar o timão.– E eu vou cuidar do motor.– Motor? Onde é que ele fica?– Dentro de você! Parece que você ficou muito bobo esses anos todos. Você se esqueceumesmo de que o barco só pode navegar se você mexer os dedos?– Foi mal. Acho que envelheci antes da hora.– Pois é. Você caiu no meio-fio com todas as outras coisas úteis. Agora, precisa encon-trar o caminho certo de novo.– E como é que vamos fazer?– Vamos dizer que é só sair em busca de águas mais profundas. Cara, você não está nemprestando atenção nas paisagens à sua volta!– É, não mesmo. Não é isso o que me interessa, diz Borglum. Já sei tudo isso de cor.Tudo é igual, em toda parte, como sempre foi. Mas adoro velocidade: gosto muito!– É. É quase a única coisa que sobrou de você. Mas o que vai acontecer quando vocêficar velho e lento?– Ah, já pensei nisso. Para dizer a verdade, eu já poderia muito bem me deitar e morrer.O homem lançou um olhar furtivo em sua direção e sorriu:– Por que você está rindo de mim, olhando de canto? – perguntou Borglum.– Ah, não me atrevo a dizer agora. Mas logo que nossa viagem terminar você vai perce-ber. Aonde você quer ir?– Partir! Ir embora!– Ah sim. É uma escolha inteligente, de verdade.– É o único lugar para onde eu nunca fui! - disse Borglum.O homem sorriu novamente.Borglum, que estava começando a se interessar pela paisagem, falou logo em seguida:– Vamos ancorar aqui por um tempo. Nunca vi um lugar tão bonito!– Bom, então vamos parar, mas de repente vai ser o fim da viagem.– Ah, então é aqui que fica “Partir”?– Não! Vai ser só na próxima parada. Agora a viagem vai continuar na Terra.– Mas onde é que estamos? Como se chama este lugar maravilhoso?– Pensei que você soubesse. É aqui. Veja!– Sim, disse Borglum, estou lembrando agora. Estou reconhecendo! Realmente é aqui.Veja, aquela árvore é o salgueiro e olha só a piscina onde a gente ficava fazendo os bar-quinhos navegarem. 23

Ele olhou para o alto, através dos galhos do salgueiro. É primavera! Quando ele haviaembarcado era outono. Normal: tinha sido uma longa viagem. Seus olhos se encheramde lágrimas. Ele exclamou:– Não acredito que esse salgueiro ainda existe! Pensei que ele tivesse desaparecido faztempo!O homem continuou rindo.– Por que você está rindo de mim? – perguntou Borglum.– Ah, logo você vai ficar sabendo, quando você partir.– Mas como é que eu vou fazer para partir? Aqui não tem trilho de trem, e ninguémvai chegar e me obrigar a construir um.– Você ainda está pensando nisso, como fazia antigamente?Borglum levantou os olhos para o salgueiro. Um galhinho se inclinou e acenou paraele.De repente ele foi tomado por uma crise de riso muito louca e respondeu:– Antigamente, eu pegava o carro para dar partida.E antes mesmo que percebesse o que estava fazendo, ele foi quebrando o galho e co-locando entre as pernas. Depois, olhando para o homem com um ar de surpresa, lhedisse:– Meu Deus! Parece que ele está vivo!– Claro – respondeu o homem. É como você sentia antigamente!– Isso mesmo, como antigamente! – disse Borglum rindo muito. Mas, espere! Desdeaquela época muitas rodas rodaram no meio-fio e eu preciso reaprender muitas coisas.Você pode me dizer se esse animal está realmente vivo ou é um simples fruto da minhaimaginação?– Não quero dizer nada, pois, se eu me atrevesse a dizer, ele morreria.– Se ele pode morrer é sinal de que está vivo!O homem começou a rir novamente e explicou o porquê:– Sim, a gente sabe disso! Quando você encontrar uma lógica, vai ter certeza de suamissão. É divertido, não?– Pode-se dizer que, na maior parte do tempo, ficamos tentando verificar se a lógica seconfirma na prática.– Então tente nesse caso, disse o homem. Veja se você pode montar nele.Na mesma hora o cavalo começou a trotar.– Ei, animal! – gritou Borglum. Você está voando na direção do Céu!– É natural, disse o homem. Afinal, ele é uma parte da árvore e ela cresce em direção aoCéu. Agora, preste atenção para não sentir vertigem!– Sentir vertigem, eu? Sempre voei durante a vida toda, meu amigo!O cavalo ia galopando, levando Borglum lá para o alto, rumo ao Céu. Borglum sen-tiu-se tomado por profunda inspiração.Era como se, em uma bela manhã, ele tivesse saído bem cedinho, e, aspirando o ar, aprimeira golfada tivesse tirado dele todo cansaço.E isso durou bastante! Cada vez que respirava, a golfada de ar era maior que a anteriore ele começou a refletir: “Que incrível! Claro, sempre tem alguma coisa que vem antesdo primeiro alento, mas o que eu não consigo entender é que, na prática...”– Oh, desculpe!Surpreso e emocionado, ele desviou um pouco. Diante dele, debaixo do salgueiro, láestava uma jovem tão bela, que ele imaginou que era feita todinha daquilo que, desde aorigem do mundo, concede às mulheres sua beleza.Ele ficou lá, parado, contemplando a jovem, sem conseguir pronunciar uma palavrasequer. Nada mais existia! Ele havia “partido”!– Você estava ocupado em debater consigo mesmo – disse ela.– É... Era justamente... justamente alguma coisa a respeito da minha respiração... um 24 O barquinho de papel

J. Anker Larsenfrescor... Eu não estava conseguindo compreender como isso pode durar tanto!– Isso é porque, aqui, tudo se cria ou ressurge – disse ela.– Tudo se cria ou ressurge?– Isso mesmo. Aqui é a eterna ressurreição – respondeu ela.– Você usa umas palavras tão antigas! Você está dizendo que aqui a gente está sempredesperto, mesmo quando está dormindo?– É. É uma maneira de dizer.– Mas, onde é que nós estamos, de verdade?– No Céu – respondeu ela, simplesmente.– Como?Ela o encarou com tranquilidade, sem responder. Lá de cima, ele continuou:– Por favor, senhorita, não me queira mal, mas sou um homem educado e instruído.Tenho comigo minha concepção moderna do Universo e posso lhe assegurar que nãoexiste, em nosso Cosmo, nenhum lugar para o Paraíso.– É claro! Afinal ele está dentro de nós – respondeu ela.– Acho que é uma linguagem um pouco ultrapassada. Você poderia dizer isso de ummodo mais adequado? No entanto tenho de admitir que esse frescor, essa doçura, essebem-estar, essa felicidade... se realmente existe um Paraíso, ele deveria ser exatamenteassim. É! E realmente é tudo isso que estou sentindo dentro de mim. Mas o que eu nãoconsigo realmente compreender é como isso entrou em mim.– Toda vez que nasce uma criança, Deus cria novamente o Céu e a Terra – diz a jovem.– Você está pensando... – começou a dizer Borglum.Mas a jovem continuou, tranquilamente:– Para cada criança, a Terra realmente se recria como nova. Nenhum pé jamais a pisouantes que o pequeno tenha começado a andar. O Céu é azul, a Terra é verde, mas ela25

fica feia e cinzenta e o Céu fica vazio a partir do momento em que o próprio homemfica cinzento, feio e vazio.Borglum estava seguindo a trama de seu próprio processo de pensamento e por issonão percebia bem o que ela estava dizendo.– Espere aí – disse ele, cortando a palavra. Agora mesmo você queria me falar de Deus.Antes de chegar a esse tema, já quero deixar claro que não acredito nisso.– Não, você não é alguém que acredita, mas agora está sendo.– É. Isso também é uma verdade incontestável – disse Borglum. Sou.– E são as próprias palavras de Deus que estão passando através de seus lábios.– Ah, minha cara senhorita! Sou engenheiro civil.Mas a jovem ainda não havia terminado:– Deus diz: “Eu Sou’’. Foram essas palavras que criaram o mundo. Todo homem que diz“Eu sou” está confirmando, necessariamente, a existência de Deus.– É! Éu sou – repetiu Borglum. É claro que eu sou. Mas o que eu sou, de fato?A jovem lhe estendeu um espelho e Borglum ficou olhando para ele. Foi quando viuum menininho de sete anos montado em um ramo de salgueiro, como se fosse seucavalo de madeira.– Esse sou eu?– Sim! É como você era, quando morreu.– Peraí! Não precisa exagerar! – protestou Borglum. É a idade que eu tinha quando fuià escola pela primeira vez.– Isso mesmo – disse ela. Foi aí que você pegou a doença.– Mas eu nunca fiquei doente! Posso perguntar de que é que eu morri, de acordo coma sua teoria?– Seus professores o envenenaram.– É. Pode ser que aí exista alguma verdade – disse Borglum. Mas, acho que até crescibastante, mais para magro, e nem me importava com eles.– Quando você estiver um pouco mais acostumado com essa luz daqui, você vai poderobservar tudo isso no espelho – disse ela.Por um momento, ele fixou sua atenção naquilo que se apresentava a ele.– Sim. Agora estou vendo, realmente! – gritou. Um metro e oitenta de altura! Mas qua-se que inteiramente oco, vazio! Não quero mais ver isso. Nem pensar!Ele ficou olhando alguns instantes para o salgueiro e a piscina.– Como é bom aqui! – exclamou. É um lugar realmente... abençoado!Seu olhar deslizou até ela e ele ficou maravilhado novamente, ao ver como uma criaturapodia ser tão bela. No entanto, era uma mulher madura, adulta. Ele disse para si mesmoo quanto gostaria de crescer, ficar adulto, grande e bonito como ela. Talvez um dia elaainda se apaixonasse por ele!– Quando eu for grande, você acha que você...Ele se calou e fixou o olhar no salgueiro e na piscina. O que ele podia oferecer para elaera tão insignificante! E, além disso, ele não podia realmente imaginar que ela pudesseescolhê-lo apenas por ele ser ele mesmo.– Parece que o Reino do Céu é tão pequeno! – disse ele.– O que nós poderemos fazer aqui se você não fez nada para que ele crescesse?“Nós”?... Quer dizer que... Então, certamente deve haver mais pessoas envolvidas –pensou ele. Com certeza era uma grande empreitada.– Você trabalha aqui? – perguntou ele.– É. Pode ser. É um jeito de se ver isso – respondeu ela, sorrindo.– Você trabalha como...Ele começou a pensar: como digitadora, contadora... Não. Ela tinha um perfil diferente.Ele a mediu dos pés à cabeça com o olhar e finalmente disse:– Como… um anjo? 26 O barquinho de papel

– Se você acha que é assim... – respondeu ela, sempre sorrindo. Todo homem– Sim. Essa é a minha opinião – disse ele, decidido. E ficou ali, desejando ardentemente que diz “Euter alguma coisa gigantesca para lhe oferecer. Seu olhar triste transportou-se para o sou” estásalgueiro e para a piscina, e ele sentiu-se bem deprimido. confirmando,– Meu parque, na Terra, é bem maior! – disse ele, finalmente. necessaria-– Enfeitado com belas árvores? – indagou ela. mente, a– É! Pode ser. Quer dizer, não sei mais muito bem... Para mim que o vejo todos os dias, existênciaele é um pouco monótono, mas sempre vêm visitantes que parecem ficar encantados! de DeusAlém disso, há a nossa equipe que, de tempos em tempos... Meu Deus! Que droga! Eume esqueci completamente de tudo o que eu tinha de fazer! Hoje de manhã eu nãoestava de bom humor, mas agora estou me sentindo em plena forma e pode ser quealguma mensagem muito importante esteja me esperando! Por favor, me desculpe!Ele montou em seu cavalo apressadamente e lá se foi para baixo, a todo galope.– Que diabos! É muito importante! Preciso chegar a tempo no escritório! – gritava ele.No instante em que ele pronunciou a palavra “escritório”, o cavalo morreu ali mesmoe Borglum caiu pesadamente no chão.Lá estava o homem do barco, inclinado sobre ele:– Você se machucou?– Minha anca direita está doendo muito! O cavalo morreu e me arrastou na queda –lamentou-se Borglum.Ele levantou-se com dificuldade e se pôs a mancar, dando alguns passos enquanto ohomem tentava perguntar:– Será que o animal está mesmo morto ou...?– Não! É claro que ele está morto – exclamou irritado Borglum – ele nunca esteve vivode verdade!– É, mas se ele tinha a possibilidade de morrer é porque ele devia estar vivo. Não élógico? – observou o homem.– Ah, me poupe dos seus comentários de sofista! - disse Borglum. Estou com pressa.Preciso ir ao meu escritório.– Então vamos embarcar – propôs o homem.– Em um barquinho de papel? Nesse caso, pode ter certeza que vamos afundar!– Não há outra solução. Se você tem mesmo de ir até seu escritório, precisa pegar oúnico meio de transporte disponível.– Eu tenho de ir até meu escritório! – disse Borglum, subindo a bordo.Era visível que o papel estava se encharcando de água.– Mais rápido! – gritava Borglum. A todo vapor!– Estamos navegando o mais rápido possível – respondeu o homem. Mas não podemoscorrer o risco de fazer o motor explodir.– E aí? O que pode acontecer?– Aí o coração vai parar de bater e vamos naufragar. E aqui, nestas águas de verdade, éprofundo demais!Borglum apalpou seu coração: ele estava batendo tanto que parecia a ponto de explodir.– Estou com febre! – gemeu ele. Sem dúvida é por causa de meus pés, que estão conge-lando. A água está chegando aos meus joelhos. Ou talvez seja porque, logo que caí, meuquadril ficou realmente dolorido!A água continuava a subir, a subir... Finalmente, o barco estava cheio até a borda.– Vamos afundar! – urrou Borglum.– Mas agora chegamos ao meio-fio – disse o homem.– Graças a Deus tomei pé novamente! – respondeu Borglum.Ele escapou a toda velocidade. De tempos em tempos ele esbarrava em uma roda e logobatia o quadril direito. Caiu mais uma vez... e despertou!Olhou espantado à sua volta. Seu quadril direito estava doendo muito. Levantou-se e27

começou a apalpar onde estava doendo. Estava deitado em uma peça de trilho de umtrem em miniatura...– Olha só essa bagunça! – grunhiu ele.– Ei, papai! Você acordou?Era Paulinho, seu filho, que tinha acabado de entrar.– É. Acho que cochilei um pouquinho – disse Borglum.Subitamente fascinado, ele fixou o olhar à sua frente. No chão, havia alguma coisabranca. Ele pôs a mão na cabeça e perguntou, com cautela, como quem não quer nada:– Paulinho… diga-me uma coisa, filho: esse negócio branco aí, o que você acha que é?– Isto? É um chapéu de três pontas, como o do palhaço Pierrô.– Ah, é isso mesmo! - disse Borglum, aliviado. Teve uma hora que eu achei que era umbarquinho de papel.– Também pode ser. É só dobrar mais uma vez. Se eu desdobrar de novo, ele volta a serum chapéu de três pontas, como o do Pierrô. E se eu dobrar na diagonal é um chapéude duas pontas, como o de Napoleão.Borglum ficou tentando refletir.– Você não brinca com tudo isso? - perguntou ele, apontando para os brinquedos me-cânicos que forravam o chão.– Claro! Sempre – disse Paulinho. Mas, quando fico cansado, ponho o chapéu na cabeçapara brincar.– E então seu cansaço desaparece?– É.– Posso tentar colocar o chapéu?– O chapéu de três pontas, como Pierrô ou o de duas, como Napoleão?– O chapéu de três pontas, como Pierrô, o palhaço.Paulinho o coloca na cabeça de seu pai e morre de rir. Borglum teve de rir também eaproveitou para dizer:– É muito legal a gente rir sem motivo!Então, carregou Paulinho e o colocou no colo.– Por que você está me olhando desse jeito? – o menino perguntou. Borglum nãorespondeu. Ele estava olhando dentro dos olhos de seu filho e se indagava onde eletinha visto aqueles mesmos olhos, pouco tempo atrás.De repente, ele percebeu que fora em seu sonho que ele havia visto aquele olhar – osolhos de quem ainda não tinha aprendido a contar.– Agora estou vendo que você estava dormindo mesmo, papai: seus olhos estão mo-lhados! Isso é o que acontece sempre quando a gente acorda.– É isso mesmo – disse Borglum. É verdade. Meus olhos estão molhados.Agora ele lembrava-se bem de que havia olhos parecidos com esses: eram os do anjono Reino do Céu.Então, ele falou baixinho:– O anjo tinha razão: está dentro de nós!Lançou um olhar furtivo para Paulinho, que estava olhando pela janela.– É um carvalho, aquela árvore lá embaixo? – perguntou o menino.– Não. É um salgueiro. Desculpe, estou enganado! É mesmo um belo carvalho, mas eleé tão bonito e está tão vivo que qualquer um diria que é um salgueiro.Dando mais uma olhada em seu filho, Borglum compreendeu, então, que esse carvalhoera um salgueiro para ele.– Sonhador! – ele disse para si mesmo. É verdade. Cada vez que uma criança nasce,renascem também o Céu e a Terra. E, voltando-se para o filho:– Paulinho, meu querido! O Céu faz o azul brilhar nos seus olhos e a Terra é verde aoseu redor, em toda parte. Que um não deixe que eu me esqueça do outro! 28 O barquinho de papel

imagens do mundoA partir do momento em que, em nossa vida de buscadores, nos elevamos às alturas do nível de vidado Espírito, a Luz e a Força da alma ganham muito mais potência. É nesse momento que elas se tornamdinâmicas e podem atuar efetivamente na Terra. A influência eletromagnética dessa Luz chega tão longe queas tempestades astrais se acalmam. Assim, a Luz pode penetrar e irradiar – e essa é a única maneira pela quala paz pode se instaurar. A partir daí, só pode haver um efeito: a glorificação do Uno, do Espírito da Vida.Uma tempestade luminosa resplandece no planalto de Gizé, Egito © 2011, ProcyonA 29

O Triângulo FlamejanteA sombra escura dos seus esguios pinheiros podem sugerir ocontrário, mas a região serrana densamente arborizada do sul daAlemanha, conhecida como Floresta Negra, tem há séculos umaatmosfera particularmente espiritual, especialmente em torno doeixo Tübingen-Calw.Ao longo dos últimos rosa-cruz construído no início do século quinhentos anos, pessoas 20 segundo as indicações de Rudolf Stei- profundamente inspira- ner. Este relatava que, em épocas antigas, das, assim como aqueles à ali existira um templo solar. Steiner ins- sua volta, divulgaram sua pirou-se no estilo arquitetônico dessedoutrina religiosa nessa região, em lin- pequeno templo na construção do centroguagem falada e escrita. Referimo-nos, Goetheanum, sede mundial do movimen-em primeiro lugar, a personalidades to antroposófico. Nos anos 20 do últimocomo Johan Arndt, Tobias Hess e Johan século, Albert Schweizer, nascido na Alsá-Valentin Andreae, que deram corpo à per- cia, construiu sua casa em Königsfeld. Ali,sonagem mítico-simbólica de Christian a 800 metros de altitude, nas profundezasRosenkreuz. E, embora o grande médi- da Floresta Negra, encontrou o repouso eco Paracelso tenha afirmado que a cura a inspiração necessários para escrever suasatravés da água viva emanada da fonte obras de caráter profundamente huma-gnóstica fosse incomparável, ele elogiou no e filosófico, enquanto viajava entrea fonte de Bad Liebenzell, conhecida por Königsfeld e o centro hospitalar Albertsua ação curativa. Schweizer Hospital, fundado por ele na cidade de Lambaréné, Gabão, no conti-No século 19, na mesma região, viveu Jo- nente africano, para pesquisas de doençashan Michael Hahn, um homem ilumina- tropicais.do, seguidor dos passos de Jacob Boehme,o qual teve uma multidão de seguidores Atualmente, em Calw, encontra-se umaté mesmo em regiões mais distantes. centro de conferências rosa-cruz com oFoi nas cidades de Calw e Tübingen que, nome de Christian Rosenkreuz. Recen-durante a primeira metade do século 20, temente uma comemoração de grandeHerman Hesse, originário da primeira envergadura aconteceu ali, na presençadelas, viveu e trabalhou. de centenas de pessoas, para celebrar osDo lado ocidental, indo em direção 400 anos do empreendimento da aven-ao rio Reno, nas florestas próximas a tura espiritual vitoriosa da FraternidadeMalsch, encontra-se um pequeno templo Rosa-Cruz. 30 O Triângulo Flamejante

Em lugares de difícil acesso da Floresta de pedra de três metros de altura situa- Triângulo de pedra próximo aoNegra e também na região das cadeias de do no interior de um círculo de árvores rio Kinzig, Baden-Würtemberg,montanhas de Vogesen, ou Vosges, encon- antigas e grandes fragmentos de pedra. Alemanhatram-se menires e notáveis construções Essa estrutura é parte de um complexo dede granito e arenito recobertas de musgo construções de pedra, em parte formadae de raízes de árvores. pela natureza, chamada de HeidenkircheNão muito longe do vale do rio Kinzig, (igreja pagã), e que foi possivelmentesobre um planalto montanhoso a 800 utilizado como santuário espiritual pelosmetros de altitude, vemos um triângulo celtas, na Antiguidade. 31

Cerca de vinte a trinta metros dali,escalando enormes colossos de grani-to, deparamo-nos com uma gigantescaformação rochosa em forma de arca, comcerca de vinte metros de comprimento,por seis metros de altura. Os visitantes,surpresos, se perguntam como umaenorme pedra como essa foi colocada emum local tão alto (supondo que isso sejaobra humana).Vem à mente, em contem-plação, o que disse Karl von Eckartshau-sen a respeito da arca a qual o povo judeutinha pelo que havia de mais sagrado: “Aarca da aliança era o maior de todos osmistérios: a ligação reestabelecida entreo homem e Deus”.Teriam os nossosancestrais celtas percebido um símbolosemelhante nessa arca de pedra?Continuemos essa viagem associativa que Pequeno templo rosa-cruzele sugere. Para podermos penetrar no escondido na floresta“maior de todos os mistérios - a ligaçãoreestabelecida entre o homem e Deus”, orientou nossos pensamentos ao triân- Acima: capela na Floresta emvamos voltar a escalar em pensamento gulo ígneo dos mistérios. Em sua obra Malsch, Baden-Würtemberg,esse impressionante triângulo de pedra. OVerboVivente, Catharose de Petri diz que Alemanha“Vemos no triângulo cósmico as repre- esse triângulo é formado “por uma linhasentações do Pai, do Filho e do Espírito radiações astrais, ligando o fígado, o baçoSanto”, escreveu J. van Rijckenborgh, e o santuário do coração.” Ela explicaconsiderando-o como a figura geométri- ainda que “é preciso que esse triânguloca nas condições de Aquário: bondade, seja fortemente vivificado no aluno, istoverdade e justiça. Para ele, o triângulo é é, que radiações astrais de valor sutilo símbolo da perfeita triunidade e “3”, sejam atraídas para o coração, a fim deo número da perfeição, da harmonia que, do alto do triângulo, possa elevar-seabsoluta. uma nova força que preencha por in-Em sua obra sobre a Fama Fraternitatis , J. teiro o santuário da cabeça”. Assim quevan Rijckenborgh escreveu: “O aluno que o triângulo ígneo brilha nesse santuário,perscruta o céu na vigília noturna de sua ocorre o desenvolvimento da alma. Então,vida, aí buscando descobrir a luz de Deus, o triângulo microcósmico em nosso sis-vê as chamas de fogo se precipitarem e tema é tocado pelo triângulo divino. Istotocar sua vida. A trindade, o triângulo conduz – conforme a Fama Fraternitatis – aígneo de seu ser microcósmico, é ataca-da pelo triângulo divino”. E então restasaber se, uma vez tocado, ele irá seguiressa Luz e como ele ou ela o fará.Volte-mos agora a pensar na Floresta Negra eseu imponente triângulo de pedra que 32 O Triângulo Flamejante

a partir dos quais o homem deverá viver e ser. Esses sete elementos primordiais eram denominados as sete harmonias pelos antigos. O candidato aos mistérios gnósticos deve poder reagir de maneira plena a essas sete harmonias. Deve pos- suí-las por completo e conduzi-las às sete cavidades cerebrais, as câmaras do tesouro de seu estado de vida.” Antes de deixarmos a Floresta Negra, voltemos a Calw. A antiga capela ro- sa-cruz apresenta o símbolo que formou as duas chaves postas uma em cima da outra. Quando, com a chave de baixo nos fechamos “em baixo”, a outra abre “em cima”. É precisamente isso que Catharose de Petri descreve no capítulo 3 da obra O Verbo Vivente:“Pedra Sétupla” próximo a Yach, no vale do rio “Sempre com mais ênfase sois levados,Kinzig de modo categórico, a libertar vosso próprio corpo astral da esfera astral daum conflito entre o fogo da bondade, da natureza da morte. Em nome de Deus,verdade e da justiça, e as sete flamas que sois capacitados a elevar a alma-espíritoprovêm do triângulo. ao éter ígneo elétrico, o quinto éter (...) de forma que a alma-espírito despertaCom essas sete flamas no pensamen- tenha a possibilidade de nele respirar,to, afastamo-nos agora do triângulo e viver e trabalhar.” E ela conclui dizendo:da arca de pedra, para seguirmos pelas “Que, assim, novos impulsos tambémmontanhas e vales de Kinzigtal, onde possam surgir de vosso coração, em con-se encontra mais um surpreendente sequência de vossa orientação gnóstica emonumento de pedra. Ali, próximo à de vossa receptividade sensível às abun-cidade de Yach, também sobre uma base dantes forças e radiações. Que possaiselevada, existe uma “pedra sétupla” de recebê-las, qual novo alento (...) deseis metros de altura formada por sete modo harmonioso à natureza, essência eformidáveis pedras de tamanhos dife- vibração da luz da alma-espírito do cam-rentes empilhadas umas sobre as outras. po da ressurreição. Possa a transformaçãoSim, “empilhadas”, pois está excluída a do homem exterior em homem interiorhipótese de que a natureza o tenha feito em breve tornar-se ‘perfeita’.”por acidente. Incrível o que os nossos an-cestrais celtas conseguiram realizar! Estarocha sétupla nos remete, naturalmente,a outro fragmento do texto da senhoraDe Petri : “Há sete correntes de luz divi-na de natureza diferente, portanto tam-bém existem sete elementos primordiais, 33

entrevistaUma vida inteiraem defesa da GnosisEle vem empurrando vigorosamente em nossa direção uma valise de rodi-nhas cheia de obras sobre a Gnosis e a prática de uma atitude gnóstica. Eleé Timothy Freke – esse homem cheio de sorrisos que estamos esperandosair da sala de esteiras de bagagens. O número da revista Pentagramaque combinamos ter em mãos para que ele nos reconhecesse nem eranecessário: nosso hóspede reconheceu intuitivamente seus interlocutores.Estamos no aeroporto de Schiphol (Holanda) para entrevistar o autor, internacio- ENTREVISTA PINGUE-nalmente conhecido, que escreveu inúmeros livros sobre a Gnosis, principalmente PONGUE COM TIMOTHYa obra intitulada Os mistérios de Jesus, que está entre os dez títulos mais vendidos nos FREKE, AUTOR DE OSEstados Unidos e na Inglaterra. Esse inglês de Glastonbury, cheio de vigor, está MISTÉRIOS DE JESUSvisitando a Holanda para um final de semana de seminários com conferênciase oficinas sobre a Gnosis. É esse tipo de seminário, onde a Gnosis é pesquisadaativamente, que ele anima em várias partes do mundo. O despertar da consciênciaé, acima de tudo, uma fonte de amor e só tende a se ampliar quando o comunica-mos”. É isso que ele nos diz em primeiro lugar, enquanto aperta nossas mãos vigo-rosamente. Palavras que traduzem muito bem sua missão: “Re-ligar o ser humano àcorrente do Amor Infinito”.Mal tivemos tempo de tomar um cafezinho e já estamos dialogando com esseser jovial e radiante. No começo, ele parecia ser uma personalidade hiperativa ecarismática, que se preocupa com a essência da vida desde a manhã até a noite eque demonstra em sua própria vida tudo o que é falado em seus livros. Apesar daagitação e do barulho incessante que nos envolve, ele consegue facilmente captar aatenção de seus dois interlocutores com sua voz sonora e clara, cujo timbre ele vaimodulando cada vez que muda de assunto. Claro, ele está acostumado a gerenciarcontatos com um grande número de pessoas ao mesmo tempo. Eis o retrato de umapersonalidade marcante, animada pelo Fogo e que, ao mesmo tempo, está sempreatualizada quanto à Gnosis e ao coração deste mundo.34 Entrevista Timothy Freke

T imothy Freke e Peter Gandy ficaram famosos no mundo todo logo depois da pu- blicação, em 1999, de seu livro Os mistérios de Jesus – OJesus original era um deus pagão? Os autoresafirmam, nesse livro, que a personalidadeque a Bíblia transmite jamais existiu e queJesus é um mito, uma história criada combase em fragmentos para ligar novamentea tradição judaica veterotestamentário (atradição do Antigo Testamento) e todos osmitos existentes sobre os filhos de Deus.Eles destacam que a história de Jesus e atradição Pagã de Osíris e Dionísio apre-sentam sérias semelhanças.Vamos tomar alguns exemplos: Osíris-Di-onísio é um deus encarnado. Ele ficou noventre de uma virgem durante sete meses.Ele nasceu no dia 25 de dezembro, napresença de três pastores. Seu primeiromilagre consistiu em transformar água emvinho em uma festa de casamento.Eles igualmente se esforçam para instigarseus leitores a realizarem a “viagem dodespertar”. Eles perguntam: “A Gnosisseria simplesmente mais uma de tantasteorias malucas?”“De modo algum!” – afirmam eles.“Além disso, ela não é uma teoria: é umavivência, é uma sabedoria interior”. Eeles escrevem: “Os gnósticos não ficamtentando nos convencer de que a vidanão passa de um sonho. Eles recorrem aideias filosóficas para nos chacoalhar, a fimde que nós mesmos possamos vivenciara experiência da verdadeira natureza darealidade.”O livro Os mistérios de Jesus forma umatrilogia com Jesus e com A Deusa perdida e oJesus que ri – atraiu a atenção de centenas demilhares de leitores.T. Freke, que conquis-Estela da vitória sumério-acadiana, do rei acadianoNaram-Sin, cerca de 2220-2184 a. C., em calcáriode 2,60m de altura, que se encontra no Museu doLouvre, em Paris. 35

tou sólida reputação como pesquisador, que a religião hindu é a religião eter- fiz, sobre as fontes do cristia-teve recentemente seu reconhecimento na porque diz respeito a todos os seres nismo: “Qual foi realmente aaumentado ao receber um grau honorário humanos e os envolve. Mesmo não me mensagem cristã original?”em Filosofia. considerando hinduísta, me senti confor-Ele está trabalhando provisoriamente só. tado em minha busca e reconheci que o Para você é importante oSeu braço direito, Peter Gandy, precisou universo é cheio de Amor. fato de vocês serem co-au-se retirar por circunstâncias familiares Comecei a viver conscientemente as expe-preocupantes. Juntos, esses dois pesqui- riências do despertar e da iluminação. tores?sadores já publicaram quarenta livros Olhando de mais perto, parece que essassobre diversas tradições espirituais, que experiências realmente começaram quan- “Nós nos conhecemos desde osforam editados em quinze línguas. A obra do eu tinha doze anos, mas só pude consi- 10 anos e descobrimos a vidaHermética merece menção especial por sua derá-las como tal muito mais tarde. Sou juntos. Muitas vezes brincamosapresentação excepcionalmente clara e verdadeiramente feliz por ter vivenciado que estamos conversando háacessível da essência da sabedoria de Her- desde a juventude diferentes estágios de quase cinquenta anos e que essemes Trismegisto. consciência.Também é importante dizer diálogo é sempre apaixonante! que Peter Gandy, meu co-autor e amigo Peter é como um irmão espi-Como Timothy encontrou o caminho de uma vida inteira, começou sua jornada ritual e mais ainda: agora eleda Gnosis? de busca com base no mesmo sentimento é meu vizinho. Pode-se dizer de vazio existencial. que temos a mesma opinião“Na minha infância, eu sentia falta Seu pai estava muito envolvido (100 %!) sobre muitos assuntos, o quede alguma coisa que não conseguia com a Igreja da Inglaterra e pode-se dizer torna nossa colaboração umaencontrar aqui. Então, fui buscar lá fora, e que ele foi educado como um cristão fun- coisa maravilhosa. Confio nosfoi no Oriente, junto aos hinduístas, que damentalista, o que o atormentava. Isso pontos de vista dele e vice-ver-conheci um aquietamento graças às pala- foi um impulso para que ele começasse a sa. Quando redijo sozinho umvras de Swami Vivekananda, que afirma fazer pesquisas, assim como eu também livro sobre o despertar, ele é o primeiro a enriquecer o texto e também a corrigi-lo. GostamosRENASCIMENTO Aqueles que nascem assim não podem continuarAquele que é renascido fala com o Pai do Todo que é Luz e a ser eles mesmos.Vida. Somente poderemos vivenciar essa visão superior quando Eles pertencem aos deuses e são filhos de Aton, o Deus Único.cessarmos de falar a respeito dela, pois esse conhecimento é um Eles contém tudo e todos.silêncio profundo calmo dos sentidos. Eles atendem a tudo e a todos.Aquele que conhece a beleza da Bondade Original não percebe Eles não são feitos de matéria.nada além dela. Eles são o Espírito Absoluto.Ele não tenta escutar mais nada. ---Ele não consegue efetuar o menor movimento. O renascimento não é uma teoria que possamos tentar aprender.Ele se esquece de todas as sensações corporais e Mas quando Aton quiser, vamos recordar interiormente.continua imóvel, enquanto o esplendor da Bondade Um ser humano somente pode aprender a conhecer Atonpermite que seu espírito se banhe na Luz, quando conseguir dominar suas paixões e deixar o Destinoe que sua alma saia de seu corpo fazer o que quiser com seu corpo,tornando-o Um com o Ser Eterno. que não passa de uma concha material que pertence à NaturezaNa verdade, um ser humano somente não pode se tornar Deus e não a ele.enquanto imaginar ser um corpo. Ele não deveria aprender a corrigir sua vida pela magia nemPara se tornar divino, ele precisa ser transformado se opondo com força ao seu destino,pelo esplendor da Bondade Original.A matriz do renascimento é a sabedoria. mas ele deveria deixar a Necessidade seguir seu curso.A concepção é o silêncio.A semente é a Bondade. Trecho extraído de: The Hermetica: The Lost Wisdom of the Pharaohs (Hermética – A Sabedoria perdida dos faraós), de Timothy Freke & Peter Gandy, Ed. Tarcher, 1999. 36 Entrevista Timothy Freke

muito de nossa pesquisa em comum dessa Como situar o fato de que, no decor- Timothyestranha empreitada que chamamos de vida” Freke: rer de uma viagem de exploração “O corpo éPara você, tudo parece girar em torno a boate da rumo ao mistério, a Ciência pode ser alma”do amor e da união. uma importante fonte de inspiração?Realmente, pois esse é o essencial parao qual a Gnosis conduz o ser humano. Realmene, ela é. Com ajuda de algumasÉ precisamente graças a ela que estamos competências, principalmente da Físicaprontos para abandonar nosso estado Quântica, do Tao, da meditação, da mito-fragmentado e nos elevar até a união com logia grega, de Walt Whitman, de Carlo Todo, que é o próprio Amor em si. Jung e Albert Einstein, tento me aprofun-Muitos compreendem isso, mas é preciso dar nesse mistério e testá-lo com outros.ir ainda mais longe. Mais uma vez é paradoxal, pois o maisEm inúmeras tradições espirituais o que elevado saber é que não sabemos nada!chamamos “despertar” é a maneira de Na realidade, é isso: ainda somos real-acabar com o estado de divisão. mente ignorantes a respeito do funciona-Mas penso que o problema está no fato mento da vida. A Ciência sabe bem poucode que gostaríamos de vivenciar a união e o mesmo acontece com as religiões!quando ainda não temos consciência de Quem disser o contrário é um grandeestarmos no estado de divisão! mentiroso! Muitos físicos que ganharamVamos pegar a personalidade “Tim”: to- o Prêmio Nobel afirmam que podemosdas as minhas carências e preferências supor uma infinidade de coisas, quenão desapareceram de verdade depois que algumas leis naturais parecem estar muitodespertei; mesmo nos meus momentos bem estabelecidas, mas que precisamosde grande iluminação, eu sempre conti- continuar abertos para outras eventuali-nuava detestando arroz-doce!” dades. Não me façam dizer que é preciso suprimir as religiões e optar pelas ciênci-Será que o mistério se resume no as lógicas, pois já vimos muito bem que isso não resolve nada.paradoxo da vida? A realidade é mais cheia de sutilezas: ciência e religião podem muito bem se“Não está longe disso. Já não devemos completar!”pensar `isto ou aquilo´, mas `tanto istocomo aquilo´. Sempre há duas possibi- Parece que você tem uma afinidadelidades, pois o fato é que tanto a vidaquanto a natureza são paradoxais. eletiva por Einstein.Em um dos meus livros, chamo essamaneira de pensar de ´paralógica`. “É bem isso! Eu respeito Einstein comoMinha vivência do mistério não é vaga homem de ciência de grande profundi-nem sobrenatural: ela parece uma dade e, ao mesmo tempo, como homemabertura para o instante, para o maravi- espiritual da mais elevada estatura.lhoso que existe em todas as coisas Sempre o estou citando. Escutem o quee também para possibilidades, opções. ele diz a respeito das pretensas heresias daÉ viver o presente sem se deixar levar por história gnóstica:ele, nem começar a rejeitar o passado ou ´Os gênios religiosos de todos os temposa se abster a pensar no futuro. É também se distinguem por esse tipo de religiosi-manter sua esperança, não se forçando a dade sem dogmas nem deus pessoal quecultivar o pensamento positivo sempre, se amolda às aparências humanas – damas abraçando também os sentimentos mesma forma que não pode haver igrejasnegativos reservando um lugar para eles.” que fundamentam sobre isso seus ensina- mentos religiosos. 37

Assim, entre os hereges de todas as AS PESSOAS ACREDITAM NO QUE ELAS QUEREMépocas, encontramos seres humanos im- “Nesta cidade de Amesterdã, as pessoas acreditam, acima de tudo, no comércio.pregnados dessa forma superior de reli- O clero perdeu seu poder, tanto que pouco a pouco todo tipo de convicções e degiosidade e que, em muitos casos, foram ensinamentos estão aqui representados: há calvinistas, jesuítas, protestantes, meno-vistos por seus contemporâneos como nitas, judeus, rosa-cruzes também, provavelmente, diferentes movimentos neo-batis-ateus, mas muitas vezes como santos. Sob tas e ateus. [...]esse ponto de vista, personagens como Estou em Amsterdã (1666). Soube que todas as pessoas são iguais nas provínciasDemócrito, Francisco de Assis e Espinoza livres da Holanda. Os habitantes não são listados com base em suas crenças, classeestão muito próximos.´ ou origem étnica. Os cristão discutem com os judeus, os do alto da escala social fa-Sou apaixonado tanto pelo físico dina- lam com os que estão embaixo, e há mulheres que escrevem livros e outras que têmmarquês Niels Bohr quanto por Einstein. lojas em pé de igualdade com os homens. A igualdade entre as pessoas é, portanto,Ele escolheu como brasão pessoal um maior do que em muitos outros lugares. Ao mesmo tempo, ouvi dizer que estasímbolo espiritual da antiga China: o jovem república está ocupada em estabelecer balcões de comércio e a conquistardiagrama yin-yang. É seu modo de dar várias regiões no mundo inteiro, criando assim colônias onde ela possa exercer seuà essência da existência uma unidade poder. Aparentemente, os holandeses são déspotas que amam a igualdade, como sefundamental que se manifesta como um fossem conquistadores humildes. Isso parece ser paradoxal. Seria preciso eu ir até ascomposto de oposições complementares. províncias para perceber tudo isso por mim mesmo. Sempre fui atraído por parado-Encontramos a mesma figura na célebrevisão das ´coincidências dos opostos`, a xos. É como se o ser humano tivesse escondido seus segredos.”união dos contrários do pensador Nico-lau de Cusa. De acordo com essa visão Trecho extraído de Sobre a existência do amor Torben Guldberg. [Um narrador secular não vai conseguirdas coisas, Niels Bohr acrescentou ao seubrasão a divisa: ´Os opostos são comple- descansar antes de ter compreendido a natureza do amor. Para fazer isso, ele inicia uma pesquisa mágicamentares`.” que o conduz principalmente à Amsterdã do empo de Rembrandt.]Quem é o “Jesus que ri” de sua obraque leva o mesmo título? garmos como indivíduos separados, que ter medo de um sonho. somente podemos ser vulneráveis, em Resumindo: nossa vida se“Esse Jesus que ri encarna um estado um imenso universo cego. Ora, a partir tornou cheia de sentido, dedo despertar no qual tomamos cons- do momento em que despertamos, nos significado.”ciência de que a vida é boa e a morte é encontramos em um estado de pronoia,certa. Chamamos isso de pronoia, ou seja: e, evidentemente, já não temos nada a Centenas de pessoas reuní-a confiança razoável de que a vida está das pela Gnosis e voltadasdo nosso lado e de que o mundo inteiro temer da existência como não temos para elaestá procurando nos ajudar.Na verdade, pronoia é um termo novopara ´foi confiante`.O conceito de fé está tão desgastado pelareligião tradicional que ficou pratica-mente inutilizável.A fé ficou reduzida a uma adesão cegaa dogmas irracionais. Mas a pronoia nadatem a ver com esse sentido. O conceitode pronoia, profundamente enraizado emnós, é uma confiança na bondade funda-mental da existência: uma confiança quetoma posse de nós logo que despertamospara a unidade. Enquanto nos enxer- 38 Entrevista Timothy Freke

O tempo está pressionando: quarenta cultura de debater e de mútua escuta foipessoas interessadas na Gnosis estão espe- necessária para que todos sobrevivessem.rando Timothy Freke em uma comuna Talvez graças a Erasmo e suas concepçõesperto de Utrecht. Nós o levamos ao local de tolerância e de liberdade que sedo encontro. No carro, é Timothy que, de propagaram em latim por toda a Europa.repente, começa a fazer perguntas. Ou também graças a Dirck Volckertszo-“Como é uma conferência gnóstica dos on Coornhert, que está na origem derosa-cruzes? nossa nação e batalhou incessantementeQuantas pessoas vêm assistir a ela?” em favor liberdade religiosa, às vezesNossa resposta: com sucesso. E, depois, Amsterdã tem aEm todas as partes do mundo os ro- característica de sempre ter sido um lugarsa-cruzes se reúnem em conferências e acolhedor para os refugiados religiososparticipam geralmente de cinco serviços respeitaves, como Jan Amos Comenius, daem um templo, que é um local consagra- República Tcheca”.do. Nesse ponto não estávamos seguros quan-O número de pessoas varia de acordo to à nossa resposta. Seria preciso, talvez,com os locais e pode chegar a seiscentos que uma pessoa de fora respondesse pore cinquenta.” nós. Talvez o autor dinamarquês TorbenTimothy não desiste de fazer perguntas: Guldberg, que descreve com precisão o“Tanta gente reunida por causa da Gno- caráter do povo holandês, em seu roman-sis? É incrícel! Fantástico! Não vi nada ce Sobre a existência do amor.igual em nenhum lugar!” Outra pergunta: Timothy Freke nos deixa, mas, com um“A Holanda parece ser um solo fértil, que gesto elegante, dedica aos leitores daalimenta e sustenta a Gnosis. Como isso revista Pentagrama algumas de suas obrasaconteceu?” A pergunta nos surpreendeubastante, mas dizemos: “Pode ser porque – com um “Big Love! TIM”faz séculos que lutamos contra as águas.Por essa razão, os holandeses sempre pre-cisaram se unir, discutir, deliberar. Uma Albert Einstein: “A razão intuitiva é um dom sagrado e o pensa- mento racional, um servo fiel. Na sociedade que fundamos, honramos o servo e nos esquece- mos do dom“. 39

redaçãoImigrante em Londres © Bernadette Szvabo, Reuters O centro 40

O centroNossa impotência para observar a unidade, para conhecê-laou vivenciá-la deve-se a uma lei segundo a qual não podemoster consciência senão graças ao jogo de diferenças, de opo-sições ou de distinções. Como podemos então nos aproximarda consciência? Neste artigo, vamos partir em busca do cír-culo e de seu centro, do ser e do único. Há em nós uma Ideiadivina que pensa e nos pede que sejamos perfeitos como ela.S egundo Hermes, figura dos mistérios gregos e egípcios, “Deus é um círculo no qual o centro está em toda parte e a circunferên- cia em nenhum lugar”. Com essas palavras, uma imagem nos é transmitida e, imediatamente, captada. O círculo e seu centro existem, e ao mesmo tempo não existem. A oportunidade defazermos uma imagem de Deus não nos é dada e, no entanto, isso per-manece um desafio para nós. Essa figura do círculo e de seu centro perdeum pouco de seu caráter misterioso se substituímos a noção de Deus pelade unidade, uma unidade que está em todo lugar e em parte alguma. Senão consideramos a unidade uma noção quantitativa, como uma adiçãode partes, mas o fundamento original do qual tudo proveio e no qual tudoestá contido, torna-se mais fácil admitir que ela não pode ser nem encon-trada nem conhecida como tal.Nossa impotência em perceber a unidade, em conhecê-la ou vivenciá-la, édeterminada por uma lei: somente pode entrar em nosso campo de cons-ciência o que se apresenta como diferença, oposição ou distinção. Da reali-dade somente sabemos que ela é composta de partes inter-relacionadas. Seeu quiser que o círculo e seu centro ganhem vida, é preciso que o pontocentral que eu mesmo ocupo seja liberado e dê seu lugar à perspectiva docírculo único. É desse modo que procedemos para reconstituir um quebra--cabeças. Não começamos tentando ajustar diversas porções como centrosseparados. Começamos pela unidade em si mesma, tomando como basea imagem inteira que aparece na capa da caixa. Em outras palavras: paraconhecer a unidade, preciso ser “um” eu-mesmo, o que é absolutamentediferente de representar ou experimentar a unidade. Como diz Hermes, “Se nãovos tornais iguais a Deus (o Único), não podeis fazer uma ideia de Deus.Porque somente os semelhantes podem se conhecer”.41

O meio como espaço não será reduzida a um tema; ela não pode Vivek Vilâsinî, “Inclua-me fora II” ser observada, pois é sempre ela que é o (tríptico), 2011-2014, impressãoO meio não é o centro; ele é o espaço no observador. Para compreender ou apreen- digital sobre telainterior do qual inúmeros centros apare- der esse observador, fazemos dele o quecem e desaparecem. Assim diríamos, por será observado. Ora, nossa visão não pode Talvez a dúvida da própria dú-exemplo, ao falar de uma reunião, que ver a si mesma! É por isso que, a seguir, vida, você diria. Mas Descarteshá um mundo na assembleia, ou seja, tentaremos nos aproximar da noção de não pensava assim radical-no meio em que nos encontramos. Cada consciência pelo viés do que ela não é, mente. Ele não encontrou seuinterlocutor e os múltiplos assuntos de para, assim, aprender a conhecer nossa último ponto fixo na dúvidaconversação podem momentaneamente ignorância. nem em quem duvidava, masconstituir o centro. Acreditar que temos uma consciência, que num “eu” que duvida. DaíEles se encontram por toda parte e em nossa realidade seria um mundo exterior a conclusão: “Duvido, por-parte alguma, num meio que é um espaço e que possuiríamos um “eu” autônomo tanto penso, portanto sou”.aberto onde se produzem as trocas. diante de si mesmo, é uma noção baseada Tal posicionamento sugereO que está no exterior é como o que está em um mal-entendido e demonstra que que o homem se encontra nono interior: o espaço onde se desenrolam ainda não ultrapassamos o estado da interior de uma realidade ob-todas as interações é um modelo para consciência objetivista, que toma qualquer jetiva, mas ao mesmo temponossa consciência. Esta é igualmente um coisa por objeto.campo onde os pensamentos e as expe- Portanto, nossa vivência da realidaderiências se apresentam, interagem e depois não é justa. A consciência objetivista e aliberam novamente o espaço. A consciên- consciência global originam-se de or-cia é o centro aberto onde alternadamente dens fundamentalmente diferentes, denossas ideias, pensamentos e experiências qualidades de ser diferentes. Cada umaformam centros temporários moldados dessas duas ordens tem sua própria rea-pelo eu-forma. Shankara diz: “Apenas uma lidade. A tríplice afirmação “Não possuocoisa jamais nos deixa: a consciência em nem consciência, nem ‘eu’, nem reali-nosso interior. Somente ela é o fator cons- dade” demonstra que meu próprio sertante presente em todas as experiências. está dividido e apenas posso observar aEssa consciência é o Ser real e absoluto”. divisão. Como unidade, a consciência éÉ a isso que chamamos o “Um”. Para o olho no interior do qual a triplicidadesituar corretamente esse assunto que é a acima se manifesta; ela representa a fonteconsciência, é essencial distinguí-la dos única acima de todas as distinções; ela éconteúdos de nossa vida consciente, de a visão que engloba todas as visões. Porsuas “mil coisas” que são nossas imagi- isso, a “autoconsciência” que é realmentenações, reflexões, sensações. Ao afirmar “autoconsciência” é tão essencial, pois ela“Eu sou consciência”, Hermes não quer permite que distingamos entre a auto-dizer que se identifica com seu conteúdo consciência e a consciência objetivista,– tal distinção não é aceitável na filosofia que diferenciemos entre “quem sou eu” eocidental. “o que eu sou”.E. Husserl, por exemplo, insistia primeirono fato de que a consciência é sempre a Uno e individidoconsciência de algo, portanto de um con-teúdo. Mais tarde, quando ele retoma esse Quem sou eu? Essa foi a pergunta que, noassunto, verifica que todos os fenômenos século 17, de maneira tão explícita e talveztêm sua fonte em uma única consciência, pela primeira vez, foi feita por René Des-mas ninguém compartilhou de suas ideias. cartes. Em busca de um ponto fixo em umA noção de consciência é assimilada em mundo em constante mudança (consciên-nosso mundo de imaginações, raciocínios, cia), ele submeteu toda a sua realidadeimpressões etc., e para estudá-la escolhe- a uma dúvida radical; ou assim pensou.mos um assunto. Contudo, a consciência Como estou em dúvida, o que resta então? 42 O centro

Todo ser humano e inúmeros ob- jetos podem simultanea- mente consti- tuir o centro. Eles se en- contram ao mesmo tempo em toda par- te e em lugar nenhum, “no meio” – o meio aberto das interaçõesindependente, separada do objeto de sua manifesta como unidade em seus atributos tempo. No entanto, não conhe-observação, de seu sentir, de seu conhecer. que são o pensar e a compreensão, razão cemos nossa realidade comoEsse posicionamento dá ao eu a impressão pela qual o espírito e a matéria são unos “ser” objetivo, mas comode ser o ponto fixo, o centro. O eu toma e indivisíveis. O drama, no que se refere “realidade de consciência”.a si mesmo como observador no lugar à análise cartesiana, é que a consciência Portanto, nossa realidade estáda consciência. Espinoza, contemporâneo unitária ou autoconsciência vê-se substi- submetida à natureza de nossade Descartes, estava profundamente em tuída pela consciência objetivista. É um consciência, que não sabedesacordo com esse ponto de vista, espe- mal-entendido muito difícil de dissipar, apreender as coisas senão me-cialmente quanto a Deus, que ele descreve devido ao fato de que nossa realidade sen- diante oposição, diferença, re-como substância única ao mesmo tempo sorial e espaço-temporal parece comprovar latividade de uns com relaçãoindivisível e presente em nossa consciência a justeza dessa objetivação. De fato, pelo aos outros – procedimentose no mundo, portanto assim no interior menos aparentemente, todas as coisas ocu- indispensáveis para distinguircomo no exterior. Essa substância divina se pam um lugar no espaço e se sucedem no e conhecer. Como resultado, 43

para tal consciência, nada pode existir por ciência dessa realidade”. Ramana Maharshi estado em que estamos, nãosi mesmo, independente de tudo. diz: “Quem toma consciência ´daquilo pode ser senão uma árvore-Distinguindo entre o interior e o exterior, que é` não é uma consciência isolada. do-desconhecimento, umaDescartes foi levado a alojar a consciên- ´Aquilo que-é` é a consciência, é o que árvore de distinções e opo-cia em apenas um dos dois: ou seja, no sou e é uma referência à unidade superior sições. A unidade “eu – não-interior, no eu. Assim, o mundo se torna de ´eu – não-eu`, de ´interior-exterior`.” -eu” foi quebrada, dividida,um mundo exterior a mim, separado de Nossa consciência do mundo cria uma deslocada numa dualidade namim, reservado às formas, aos objetos, à armadilha: acreditamos que a realidade qual não prevaleceu senão ummatéria; ao passo que o Espírito pertence a que está fora de nós é a mesma para todos, dos dois: o eu. A consciênciamim. A unidade da consciência é rompida independentemente da consciência que universal foi reduzida, nodiante da representação, da apreensão de cada um tenha dessa realidade. Ou, em homem, a uma consciência-tais objetos. Seus diversos conteúdos são outras palavras: pensamos que o fato de eu eu, e o centro aberto, a umseparados da própria consciência em que estar ali ou não nada muda na realidade. único ponto central: eu, meu.surgem. É assim que colocamos fora de Essa atitude despreocupada de “pouco Assim, pela identificação comnós os conteúdos que são o mundo, os importa que eu aí esteja ou não” não me os pensamentos, sentimen-outros e Deus. serve somente de desculpa para não me tos, experiências, emoções,Sejamos claros, não pleiteamos a defesa engajar, mas ela rouba a meu entendimen- paixões, a realidade da cons-dessas ideias comumente difundidas de to a importância do fato de que eu mudo, ciência fluida foi recobertaque “tudo é subjetivo”, ou de que “o obje- tanto em relação a mim mesmo como por uma camada congelada,tivo não existe”, pois elas apenas reforçam em relação ao mundo em que vivo. Isso fixa, porém a única possívela ilusão da separação, da dualidade.Toda não é dito como nobre conclusão teórica, para um “eu” que sabia per-consciência que se traduz por “existe” mas como uma realidade, como um fator tencer ao mundo das formas,coloca em destaque tanto a subjetividade operante no mundo. Com efeito, quando a cada uma das quais damosquanto a objetividade, o pensamento e o a consciência muda e se renova, todos os um nome particular e, assimentendimento, o interior e o exterior. No seus conteúdos se metamorfoseiam simul- fazendo, validamos a ilusão deentanto, essa afirmação já é um passo adi- taneamente. Eu, o outro, o mundo, Deus... que nele tudo estaria separadoante uma vez que, ao dar nomes aos dois Eles se tornam outros e novos! É que a e independente. No entanto,polos opostos, sugerimos que eles são dois consciência não é um objeto do qual tudo está incluído no Únicoe separados. podemos nos apropriar, mas uma essência e é penetrado por ele. LemosOra, em sua essência, o interior e o ex- viva e onipresente que todos possuímos; no Evangelho de Filipe: 9b: “Aterior, o eu e o não-eu etc., não são duas sua renovação é fonte de inspiração para verdade fez nascer as pala-justaposições, mas são um.Trata-se aí de cada um de nós. Ser consciente é observar, vras no mundo, porque nãoum fato que nossa consciência objetivista é conhecer. Na ausência de pensamento é possível ensinar a verdadenão pode absolutamente compreender. E objetivista, a consciência é imediata, dire- sem palavras; 9c: A verdade ése tentarmos fazê-lo, tentemos com estas ta. Nela, as polaridades opostas ainda não uma, mas ao mesmo tempo épalavras de Chuang Tsé: “É com base em estão separadas, elas coexistem no espaço múltipla para nos levar, medi-seu estado dividido que as pessoas partem intermediário, no centro, em um ponto ante essa multiplicidade, a umem busca de uma completude”. zero. Este também não tem dimensão, único nome. 8a: Os nomesA consciência não se detém diante do não pode ser objetivado nem percebido. A dados às coisas deste mundomundo exterior. Não: ela é o centro, o cír- dualidade observador/observado somente contêm uma grande ilusão,culo no interior do qual surge a realidade. vem a seguir, quando o pensamento ob- pois desviam os pensamentosE a realidade e eu não formamos uma jetivista se separa da consciência unitária. do que é a imutável realidadedualidade! O conjunto é uma unidade, A consciência em si mesma, vista como para o que não é. Assim, quemimagem ao mesmo tempo do interior e do intermédio, é muito próxima, muito ouve o nome ‘Deus’ não captaexterior. presente para ser percebida. O olho pode o que é imperecível, mas o ver tudo, menos a si mesmo, uma vez que que é perecível. 8b:Todas asNo centro ou na duplicidade “olhar para um objeto” subentende estar palavras ouvidas no mundo separado dele. A árvore do paraíso que se são enganadoras”. Em resumo,Não se trata de imaginar de um lado “a encontra no centro (no intermédio), no ao nomearmos todas as coisas,realidade” etc., e de outro, “a minha cons- perdemos o Nome único. 44 O centro

O horizonte ou o contexto sentações de mim que se alternam. O que Quem se chamamos “eu” é uma unidade quantita- examinaPara Ramana Maharshi, “O ‘eu’2 é tudo. tiva, pois na realidade é uma coleção, uma comoPara seguir o caminho verdadeiro e deixar soma de eus. Já o Eu do Único-Todo é uma consciênciatudo para trás também devemos examinar qualidade: é a própria unidade em si. A ideia chega ào que o eu é, verdadeiramente. Para fazer segundo a qual não podemos estruturar a conclusãoisso, precisamos buscar a Fonte de onde o realidade de um “eu”, seja ele qual for, é de queeu procede.” expressa por S. Kierkegaard: “Seria pos- compreendeNo interior do círculo de nossa consciên- sível imaginar algo mais medonho que a muitoscia tudo é relativo e correlato; portanto, dissolução de seu ser em uma pluralidade, estratos,nada existe por si, de maneira indepen- que você se tornasse verdadeiramente muito níveisdente.Tudo se faz conhecer como inter- muitos indivíduos, como esses infelizes de atividaderelacionado. É que a realidade e a verdade que eram possuídos por demônios, e que e desão conceitos relativos. Se possuo mil assim você perdesse o que há de mais realidadeeuros, sou relativamente pobre em com- sagrado no homem, a força de coesão daparação com quem possui muito mais; ao personalidade?”mesmo tempo, sou rico se comparado a Não é fato que nossa vida consciente for-quem nada possui. Portanto não sou rico ma uma unidade, um tipo de ordem emou pobre, mas rico e pobre. Isso depende que nos reconhecemos, na qual podemosdo que é comparado, do que relaciona- dar um lugar para cada coisa no interiormos. Para um químico, a água significa de determinado conjunto unitário? Se nãoalgo diferente do que para alguém se- fosse assim, ficaríamos perdidos, no caos!dento, um pescador ou um náufrago. A Na verdade, seríamos o próprio caos. Éágua, portanto, é e não é o que ela é.Toda absolutamente necessário distinguir entre,definição que significa água depende do de um lado, o EU – a Consciência unitáriacontexto em que a consideramos. (que é consciente da unidade de ser que cha-O mesmo ocorre com os conceitos que mamos também de “Centro” no interiortemos do mundo, de Deus ou de nosso do qual todos os polos opostos são Um) e,próximo: eles são retirados do campo de outro lado, a autoimagem que temos derelacional em que aparecem. nós mesmos. Essa autoimagem nós a em-Para ser o que são, eles devem encontrar prestamos das quatro dimensões cardeaisum lugar no interior de nosso horizonte – de orientação: a cruz da consciência.seria mais justo dizer: no interior de nosso Do centro ou do cruzamento dessa cruz,passado.Todas as nossas representações são onde aparentemente me encontro comocentros relacionais mutáveis que transitam observador, os quatro braços indicamnum campo integral que chamamos de várias direções. Minha orientação pode,“meio”. portanto, se dirigir seja para o interiorAssim como tenho uma imagem relacional (meus pensamentos, experiências, senti-e, portanto, relativa do outro, do mundo, de mentos, fantasias, conhecimentos), sejaDeus, também tenho de mim-mesmo: a para o exterior (o outro, o mundo), sejaautoimagem. Esta poderia parecer inde- para baixo (minhas origens, meu carma,pendente, porém não existe eu sem não-eu. minha hereditariedade, o tema astroló-Na dualidade “eu – não-eu”, as polari- gico do meu nascimento), seja para o altodades têm uma origem comum. Isso é (Deus, o Outro, a centelha no coração defacilmente verificável quando mergulho meu ser, minhas perspectivas de futuro eno interior de uma cultura diferente da meus ideais).minha: meu ambiente relacional é modi- Por mais diversas que sejam, essas quatroficado e, ao mesmo tempo, a imagem que orientações representadas por uma cruztenho de mim mesmo também se modi- única representam uma única e mesmafica. Esta se compõe de numerosas repre- 45

Garota observando capas de livros da Mercury. Livraria Powellsconsciência – minha consciência – e, por- do meio, é um eixo vertical plantado no mesmo, renuncio ao únicotanto, a qualidade que lhe é própria. Para centro comum a todos os polos opos- que sou no mais profundo dea consciência objetivista, que é intrinse- tos. Nesse centro está o círculo, o meio, meu ser. O não-compromissocamente dividida, essas direções surgem o Eu Sou. Enquanto os múltiplos eus se torna-se impossível para mim,como realidades diferentes que remetem encontram como centros extraviados e ao contrário do que ele é paraobjetivamente a um lugar. provisórios, em alguma parte no interior quem detém um conheci-No entanto, assim como EU não tem plu- do círculo, a energia do desejo purificado mento objetivo emprestadoral, a Consciência não pode ser plural. Daí abre o próprio círculo e libera a perspec- de outros – filósofos, mestresa pergunta: Serei Um como consciência? tiva da primeira pessoa: Eu. Este, como ou correntes espirituais. JáPorque, assim como diz Mikhail Naimy: princípio da unidade de consciência, é não posso continuar a colocar“Conforme for vossa Consciência, assim uma consciência onipresente: presente Deus, o Único ou o Outro,será vosso eu. Conforme for vosso eu, em toda parte e em tudo. O único eixo acima de mim, quer dizer,assim será vosso mundo. Se vosso eu for vertical que está no Centro é a árvore que no exterior. Já não posso meuno, vosso mundo será uno; se vosso eu se encontra no paraíso, a escada onde o Eu contentar com afirmações taisfor múltiplo, vosso mundo será múltiplo. Sou se apresenta em diferentes níveis de como “Deus é amor”, porqueEntão, estareis em perpétua guerra con- unidade. imediatamente surge paravosco e com todas as criaturas”. Do ponto de vista qualitativo, há, de fato, mim a pergunta: E eu, eu sou muitos níveis de unidade. Se acontece de amor? E se me refiro à cen-A energia e a inspiração se abrir uma “visão a partir do alto”, que telha divina no coração, isso coloca e vê tudo sob uma única luz, esta também se torna uma orienta-Quando a consciência está plena de desejo me mostra que, quando me identifico ção para o exterior, como parae vazia de conteúdo, surge, então, a di- com uma imagem de Deus ou de mim me manter à distância do quemensão vertical. O intermédio, ou espaço 46 O centro

sou verdadeiramente. intensos, resta ainda sempre a unidade Nietzsche: “Tudo que nosA consciência objetivista me diz o que sou do ser, a centelha divina em seu domínio anima no interior de nossa– ou, em outras palavras, o que tenho – ao inalienável, para oferecer uma paz que psique pode ser visto comopasso que a autoconsciência única e vazia não é deste mundo”. uma ‘vontade de poder’.”.me abre ao que eu sou. O Único, a centelha divina de nosso ver- Às vezes são os instintos queQuando estou integrado ao eixo central do dadeiro Ser, não é tocado pelas numerosas ocupam as posições maisCentro, ocorre uma renovação de cons- agitações da vida pessoal. A identificação elevadas, às vezes as emoçõesciência, a da unificação. Devido ao fato com nossos conteúdos de consciência ou sentimentos, os quais sãode que minha realidade se tornou perfei- não aniquila a própria Consciência, a que substituídos pelos raciocínios.tamente semelhante à minha vida cons- está impregnada de uma única luz, a da Quantas vezes “eu quero” ouciente, tudo o que colocava no exterior, centelha divina. “eu penso” lutam com “euno interior, acima ou abaixo de mim se re- Que o Único esteja em princípio presente sinto” ou “eu desejo”? Nãonova simultaneamente nas quatro direções. em toda criação, em todos os conteúdos somos uma peça única, nemÉ um sério avançar em direção da perspec- de consciência, não significa, no entanto, livres-pensadores, nem mes-tiva da primeira pessoa de Hermes: “Sou que ele tenha sido completado. É assim mo um Eu. Esse jogo de for-consciência”. É um auto re-conhecimento que o único é tão transcendente como ças é dominado pela angústiado qual Inayat Khan diz: “O Ego2 é a imanente: transcendente como fonte e o desejo, que determinamúnica coisa que vive e ele é o sinal da vida sublime de toda realidade e de todos os em certos contextos nossoseterna”. A bipolaridade conhecedor- níveis de consciência; imanente por seu pensamentos, nossos precon--conhecido proveniente do saber é dis- desejo de se elevar na criação, ou dito ceitos e consensos.solvida no Um. de outra forma, de encarnar seu aspecto O medo e a inveja dividem transcendental. Assim, a criação toma nossa consciência entre, deImanente e transcendente cada vez mais consciência de Ser, o Único um lado, o que achamos consegue se fazer conhecer consciente- agradável, justo e que experi-O fato de que a autoconsciência seja o fio mente. Quando Deus está suficientemente mentamos como eu, e, de ou-condutor de nosso tema pode facilmente desperto em nós para que possamos dis- tro lado, o que não nos con-causar um mal-entendido. Atualmente, tinguir de um lado o nível de consciência forta e achamos desagradávelchegamos a este clichê: já não ter como no qual os múltiplos eu fazem seu jogo e ou falso, considerando-oobjetivo viver aqui e agora. Quem se exa- de outro o Único no interior do qual do “não-eu” e estranho a nossamina como consciência deve concluir que esta jogo em questão ocorre, essa faculdade própria consciência.é composta de vários estratos ou níveis de de discernimento testemunha da presença Mas, quando o Único pre-atividade e de realidade. A sabedoria sufi interior e da atividade do Único. Mestre cisar se manifestar em nossaexplica isso dizendo que: “Deus dorme Eckhart o exprime nestes termos: “O que consciência, um novo estratona pedra, sonha na planta e desperta no o homem ama deve ser compreendido se juntará aos quatro prece-ser humano”, ou seja, no quarto nível. Na desta maneira: ame ele uma pedra, ele dentes. Ele deverá ser bemconsciência humana há, portanto, um é essa pedra; ame ele um homem, ele é mais significativo pois, dopivô: Deus, o criador, agindo de baixo, e esse homem; ame ele Deus... – não ouso contrário, continuaremos aDeus, o Único, influenciando do alto, aí prosseguir, pois se disser então que ele é nos identificar com os outrosse reencontram. É o nascimento do Único Deus, vós ireis me apedrejar”. quatro.como autoconsciência, o nascimento do No entanto, o quinto nívelSer que é anterior a toda criação, con- Pré-julgamentos e consensos não é uma adição; ele estáforme expresso no Livro dos Provérbios perpendicularmente plantado(8:22): “O senhor me possuía no início Tudo o que surge em determinado nível nos quatro outros, como umade sua obra, antes de suas obras mais da psique humana está buscando tão estrela de Jacó, como umantigas”. A diferença de consciência entre somente sua própria completude. Ne- eixo vertical e uma árvore doo eu que pertence ao mundo do Deus cri- nhum nível pode ultrapassar a si mesmo paraíso.ador imanente e do Eu Sou do Deus único para compreender uma realidade mais É muito importante desco-e transcendente se encontra descrita nesta elevada, uma unidade superior. As lutas brir que temos a tendênciacitação de C. G. Jung: “Quando a inqui- que numerosos eus travam entre si estão de nos identificar somenteetude e o tormento se tornam muito baseadas no egocentrismo. Conforme diz 47

com conteúdos de nossa consciência que esta última uma sensação. Se a razão não semos Deus fundamentadosachamos agradáveis e justos, quando tudo pudesse nos perturbar, nos emocionar, mundo visível: poderíamoso que surge em nós mesmos, suscitado significaria que ela seria independente do dizer que ele não faz parte. Apor situações ou pessoas exteriores, é que nos anima e, eventualmente, estaria relação entre Deus e o todo énossa consciência, é parte integrante da em oposição a nossa alma. Ora, é necessá- semelhante à relação entre avida dela. rio que ela seja parte integrante de nossa visão e o visível”.Quando aceito ser responsável por tudo psique, e é como representante do Único O que quer dizer que Deusde que tomo consciência, já não atribuo que ela pode se fazer valer com mais está em relação ao todo comonada às outras pessoas. Nem ao acaso, força que as outras disposições psíquicas. a consciência em relação aao carma, ao destino, a Deus, ao tema seus conteúdos. A consciên-astrológico ou ao genoma... E mesmo Aberta e luminosa cia, em si mesma, é a luz;que o mundo exterior lance pensamen- o rolo do filme representatos, emoções e sentimentos, poluindo Tomar distância em relação ao fluxo da minhas imagens fixas, meuassim minha consciência e provocando a consciência automática das evidências em passado que se tornou odivisão interior, de nada me serve apontar que todos os estratos de nossa própria conteúdo durável de minhao dedo para o exterior. Rejeitar ou recusar psique exigem seu lugar é a condição consciência e que determinaé de fato inútil, pois não posso deixar o para conseguir reconhecer que essa rea- as imagens que vejo diante deque não me deixa! lidade deslocada substituiu a consciência mim na tela. O autoconheci-Por mais estranho que isso possa parecer, original, aberta e luminosa que eu sou na mento é um caminho que vaiadmitir todas as imagens e experiências, realidade. do exterior para o interior, dafazê-las suas para que uma única e mesma Como consciência objetivista, sou o tela para o rolo e de lá para aluz de consciência as penetre – a da aten- espectador de um filme projetado numa fonte de luz que está presenteção plena de amor – permite neutralizá- tela colocada diante de mim, exterior a em todas as imagens, embora-las e integrá-las. Então fica evidente que mim. Sei que me identifico com certas completamente independentea consciência é mais forte que todos os imagens e pessoas ou, ao contrário, que delas.seus conteúdos! O que é qualificado de a elas me oponho. Trata-se mais de um A qualidade dessa luz da“mau” ou “mal” como conteúdo psíqui- automatismo, de um comportamento consciência é medida pelaco obtém sua força de sua distância com natural, que de uma escolha consciente. qualidade de nossos desejos.relação a mim. E é isso que permite que Por natureza, fazemos todo tipo de dis- Nós a buscamos nos livrosele me enfrente e me aprisione. Por outro criminações. Só poderemos mudar isso de sabedoria, nos seminárioslado, quando esse mal é ativamente ad- quando tomarmos consciência, e isso e encontros religiosos, nasmitido em uma luz de consciência única, geralmente acontece bem depois. entrevistas, nas sessões detodo o conteúdo da psique é integrado. Será que finalmente vou compreender ioga ou de meditação. Assim,O amor unifica e uma consciência unifi- que, aos olhos do espectador que eu sou o Único, presente em nossocada é fundamentalmente mais forte que há uma única luz incolor que inunda to- desejo, busca por si mesmo!qualquer conteúdo. das as cenas representadas no filme, todas Na realidade, minha buscaQuando a vida da consciência se coloca as imagens projetadas desde o início até consiste em ser buscado, poissob o olhar da razão, a Unidade pode o fim? Segundo Nicolau de Cusa: “Deus por que e onde deveria euvelar do Alto. Aí está o quinto estrato, que poderia ser comparado à percepção da pesquisar, se essa luz já nãovai se juntando aos quatro primeiros. cor em nosso mundo; ela só é possível estivesse presente em mimA razão suprime literalmente os polos graças ao sentido da visão, ao centro da como um guia?opostos “eu – mundo exterior” e os visão; esse centro não tem cor própria, do Vivendo no exterior de mimintegra em uma unidade superior. O Um contrário impregnaria o objeto de nossa mesmo, nos textos ou mo-não se exprime no mental, que é precisa- visão. Assim, poderíamos dizer que a vimentos que falam a mim,mente o nível dos opostos, mas na razão visão não pertence ao mundo da cor, uma cedo ou tarde se imporá amesma. Segundo Espinoza, as sensações vez que o dispositivo que permite ver é mim a questão da identidadeou os problemas que semeiam a divisão desprovido dela. Por essa razão, se a con- do observador e de tudo onão podem ser moderados senão pela sideramos com base no mundo da cor, que é observado. Quem é ele,razão – se é que podemos considerar a visão nos surge mais como ‘nada’ que esse ser que sabe que eu sei? ‘algo’. O mesmo ocorreria se considerás- 48 O centro


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