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Corpografias

Published by maruziadultra, 2020-06-18 21:15:30

Description: Parte da dissertação-obra "Corpografias: incursão de pele imagem escrita pensamento" (PPGAV/ECA/USP). 2012. [Carta-Prefácio de Peter Pál Pelbart]

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Corpografias incursão em pele imagem escrita pensamento



Corpografias



Maruzia Dultra Corpografias incursão em pele imagem escrita pensamento São Paulo, 2012



Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir Michel Foucault



Um suspeito anônimo é insuspeitável A você, de quem não sei o rosto, exponho recônditos. Neles, conhecerá paragens, tocará em algumas até, amigo improvável. Aliás, quem sabe, em sua escolha por estas páginas, haja algo maior que o compulsório: uma afinidade guardada, uma aproximação desejada; certo afeto, ainda que secreto para si. Eis, pois, por caminhos que também não conheço, nós. Nesse seu agora, estamos em suas mãos: depende de você, nosso encontro. Imagino, neste meu agora, seus contornos, as palpitações que te trouxeram – desejo te adivinhar. Mas é vã qualquer tentativa. Eu, que sempre tive nas cartas a segurança de um leitor conhecido, escolhido, planejado. Melhor dedicar- me ao gosto de seu anonimato – saber que vai saber-me mais do que eu a ti. Esta é nossa condição.

Agradecimentos A Branca de Oliveira, orientadora deste trabalho, pelos atravessamentos todos que compõem este corpo A Silvia Laurentiz, pela confiança de ter iniciado comigo esta pesquisa A Christine Greiner, pelo olhar sensível e atento no Exame de Qualificação A Peter Pál Pelbart, pelos assombramentos em lampejo, e pelas indicações à versão primitiva deste trabalho A Luciana Ohira e Isabela Sanches, pela tenacidade com que ajudaram a erguê-lo A Marilu Beer, pela exultante presença Aos colegas do Atelier Paulista, Monica Palazzo, Heloisa Etelvina, Constança Lucas, Fernanda Moraes, Marcelo Peron e Pedro Perez, pelos despertares, em especial a Monica Berto, Flavia Ferreira, Fernando Saiki, Sergio Bonilha, Ana Guimarães, Katia Silvanny, Bruno Ferreira, Karina Takiguti, Silvia Nastari, Estela Vilela e Paula Zacaro, pelas colaborações

A Maria da Graça Pessoa, pelo zelo constante, dedicando-me carinhosas doses de cafeína À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo consentimento da bolsa de estudos que possibilitou a realização desta pesquisa A Filipe Ferreira e Giuliano Obici, pela agudeza da escuta Aos colegas do Núcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-SP), pelo exercício clínico, em especial a Élida Lima, pelo encontro A Dario Vargas e Diego Ginartes, pela fiel compañía A Patrícia Defilippo, pelos abrigos mínimos e maiores A Tereza Embiruçu, Valentina Cotrim, em especial Maíra Marinho, pelo cuidado obstétrico ao embrião do curso de Mestrado A Camilo Domingues e Hortência Nepomuceno, pelo apoio incondicional A minha querida família, Amana, Emanuel, Joana e Márlon, pelo bálsamo, sutileza também necessária a uma tarefa como esta.



Carta-Prefácio É uma dupla alegria estar presente aqui neste trabalho, já que acompanhei parte de seu trajeto, de suas aflições, de seus interesses, de sua viva inquietação. Você acompanhou muitas das minhas aulas nos últimos semestres, e vi em você uma crescente obsessão em acompanhar o movimento do pensamento, mas não apenas teoricamente, especulativamente. Numa entrevista, Deleuze dizia que numa aula trata-se menos de transmitir qualquer informação ou conhecimento do que colocar em movimento uma matéria, a matéria-pensamento. Não consigo deixar de pensar que essa bela ideia atravessa este trabalho. O que é essa matéria-pensamento posta em movimento? A matéria-pensamento não pode ser algo apenas imaterial ou incorpóreo, é também uma matéria que afeta o corpo, que toca a pele, que dispara eventualmente a escrita ou algum registro expressivo. Há portanto, forçosamente, uma materialidade aí em jogo, uma inscrição, uma corporeidade, que por vezes o próprio pensamento tenta tematizar, mas nem sempre consegue, precisamente por estar ele restrito a esse elemento que é o seu.

Como você não vem da filosofia, mas vem da mais concreta corporeidade, a saber da medicina, dessa disciplina que trata de um corpo com órgãos, funções, hierarquias, me ocorreu, em algum momento, lendo seu trabalho, que você precisou usar um repertório muito engenhoso e insólito para preencher esse abismo, que vai do corpo da medicina ao movimento do pensamento. Precisou montar um dispositivo que passasse pela pele, pelas sensações, pelas imagens, pelo papel, por formas de registro que não deixassem de lado precisamente o movimento, seu rastro, sua respiração, suas hesitações, em suma, que mostrasse como que a encarnação desse pensamento nas mais diversas formas. Mas não se trata apenas de mostrar a encarnação desse pensamento numa matéria, sua corpação, por assim dizer, mas o mais difícil, que já era um desafio desde Zenão até Bergson, a saber, flagrar o pensamento no seu movimento, ou seja, em vias de acontecer, na sua movência. Pois o pensamento não é uma ideia mais uma ideia mais uma ideia, assim como um filme não é um fotograma mais um fotograma mais um fotograma – todo o problema é precisamente a passagem, de uma ideia a outra, de um fotograma a outro. Mas quem, como Bergson, pensa a fundo essa passagem,

entende algo muito mais agudo, que não há passagem de uma ideia a outra, de uma forma a outra, pois tudo é passagem, o pensamento ele mesmo é idêntico ao movimento, daí o título de seu belo livro, O Pensamento e o Movente, onde ele postula que uma ideia, uma forma, é apenas um instantâneo, um recorte, um congelamento desse movimento. Não se trata de reconstituir o movimento a partir de imobilidades, o que é impossível, mas pensar a própria imobilidade, uma ideia, uma forma, como um recorte de um fluxo. Importa, pois, esse fluxo, que não é fácil apreender com nosso pragmatismo que precisa manipular o mundo e congelá-lo em objetos, formas, substâncias, etc... Daí a opção que me parece muito feliz, Maruzia, de tentar apreender o pensamento no seu voo, no seu fluxo, no seu transcurso, na sua passagem... Mas como fazer isso, não é demasiado abstrato? E sua solução, parcial, é cartografar, pesquisar o ato de pesquisar, dar atenção extrema a esse fluxo, com suas paradas, volteios, precipitações, desfalecimentos, pois esse fluxo é tudo menos uma evolução contínua e retilínea, donde a multiplicidade de recursos que você utiliza, os trechos que você pinça dos autores que te afetaram, os pensamentos que eles suscitaram em você, as formas de registro que essa afetação exigiu que você inventasse...

Dou um exemplo: “o mais profundo é a pele”... grande ideia de Valéry... é toda uma concepção que está aí embutida, que Deleuze vai desenvolver, contra a profundidade, contra uma certa concepção do pensamento como a busca do profundo, não, pensamento como deslize na superfície, como exploração desse deslizamento, portanto nem subir nem descer, mas percorrer, atravessar, afetar a epiderme... e você inventa aquela janelinha em papel vegetal*, com essa inscrição... Mas têm as cartas, trocadas com amigos, inclusive com inscrições críticas deles, adorei essa coragem e franqueza, de expor-se ao risco de que o leitor aderisse à crítica formulada por um amigo muito arguto e contundente... Mas têm os diários de bordo, por assim dizer, fragmentos soltos que são o registro de sua perplexidade com tanta coisa – e que frescor há nessa perplexidade, nessa titubeação, como se você não temesse expor sua zonzeira diante de tantas ideias, ou da força dessas ideias, ou da arrebatação provocada por esses ventos conceituais... Os desenhos, a página de metal*, as frases em linha percorrendo várias páginas, as linhas sobrepostas em direções diferentes... Mas há nisso tudo dois traços que me chamam especialmente a atenção. Um deles é o esforço em manter, por assim dizer, o estado de

fluxo, no sentido reverso... Ou seja, aquilo que é da ordem do desfazimento, do apagamento, do desmanchamento, por exemplo, “destexto”, ou “sobreviverá o que se apaga em quem escreveu?” Uma atenção aguda precisamente para essa dimensão em que aquele que pensa, que escreve, que faz, que registra, num certo sentido ele mesmo, no ato mesmo dessas operações, se esvai, desfalece, se retrai, se extingue... Não no sentido de uma morte com m maiúsculo, mas de uma dessubjetivação onde ele perde o controle para que a intensidade daquilo que ele veicula ganhe o proscênio... E é preciso inventar variações gráficas para dar conta disso, pois é uma dessubjetivação, porém que preserva uma intimidade... por exemplo a escrita em alto relevo*, e branco no branco... Ou então esse risco de extinção sempre presente, como diz você, “Quase abortado, mas vivo, afinal, tornando-se”... Mas não se trata do pensamento em geral, em abstrato, mas singular, como você diz, “Há que se ressaltar a caligrafia própria de cada pensamento, pois, como exigir que as palavras sejam encarrilhadas segundo os mesmos ditames, se as ideias não o são?”, “Como um pensamento se mantém ventando no decorrer do tempo?”

[A hipótese que subjaz a isso é que o pensamento não pode acabar-se, não pode tomar-se por acabado, ele é um feixe de virtualidade a desdobrar-se indefinidamente. Nesse sentido a comparação com o ovo é ótima. “Nunca se sabe a existência completa de um embrião antes que ele viva tudo. É como o ovo que se transmuta em forma vivível (...). Assim acontece também com o pensamento, por isso não se alcança a sua ponta. Qualquer inflexão, desvio, e já uma nova rota”. Gosto dessa imagem de uma fita de moebius onde escrever, pensar, devir estão numa relação de continuidade imbricada e reversível.] Outro traço é o da pele... Como se nada disso fosse inofensivo, tudo aqui revira a pele, e você sente um “indesejo” de largar sua derme, e no entanto o faz, como se se entregasse à mais perigosa das aventuras, onde o corpo está implicado inteiramente, como se com ele você cerzisse a escrita, arrancando células – o belo desenho da pele que vira linha que vira escrita, é muito mais radical do que o [filme] Livro de cabeceira, que parece até pueril diante do que você está aí experimentando. Não oferecer a pele como tela, mas desfazê-la, como se desfaz uma tela, para com esse fio mesmo fazer as letras...

E talvez aqui se junte o que assinalei anteriormente, o desmanchamento do pensamento e o do corpo, você fala em “desmemória, em “desescrita”, em “indesejo”... “imagens desistidas”, “linhas de corrosão cotidianas”, em desmoronamentos, em “desexistência”, em despencamentos, “um corpo mais selvagem que o tempo”... E você diz, numa página no Caderno Decurso: “No processo de construção das personagens, cada ator recebeu uma ação. O meu verbo e, com isso, meu objetivo, era: desaparecer.” Há aqui algo curioso, não é desaparecer do mundo, mas aquilo que Foucault assinala no belo texto inédito que eu não conhecia [“O Corpo utópico”]: Ele diz, por um lado, que não escapo ao meu corpo, ele sempre me acompanha. Depois, acrescenta que qualquer utopia é uma luta contra esse corpo. Ao final conclui que o corpo ele mesmo tem a elasticidade, no sentido de que ele vai além dele, assim, o corpo do dançarino é um corpo dilatado, assim como o corpo dos drogados, ou dos possuídos... o mesmo se poderia dizer do corpo do escritor, ou do pensador... com o que ele conclui que o corpo de fato está sempre em outro lugar, está ligado a todos os lugares do mundo – sendo o corpo um ponto zero do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam...

Eu não consigo me furtar à sensação de que isso constitui um fio de seu trabalho inteiro, uma ambição paradoxal, de registrar o movimento, ou melhor, de fazer o movimento, com os elementos que são os seus, mas ao mesmo tempo em nele desaparecer... Algo como um devir-imperceptível – nada de monumentos, nem de tumbas onde tudo pudesse ser guardado e preservado, mas o contrário, como que atingir uma extensão do corpo que abarque o livro, mas nisso, alcançar um estado de leveza, você diz, num sentido duplo: “LEVE a areia do livro!” E você explica: “Foi uma saída risível: nem se afundar, nem estar à margem – carregar os grãos consigo, para fazer o livro. Tempestades do deserto são mortíferas como as tormentas, mas não precisa se afogar. Nem em água, nem em terra. Leve. A leveza de uma gota, de um grão. Deixar o vento levar...” Talvez a pergunta sobre o pensamento é a pergunta sobre o corpo que é a pergunta sobre um possível desaparecimento do corpo em favor de um corpo-livro-pele-imagem, que em última instância seja a pesquisa de uma imagem que possa sentir, com a leveza que daí se requer. Você mesma diz: “A proposta inicial desta pesquisa era realizar um panorama da produção audiovisual no Brasil, através do projeto ‘Vídeo interativo (...)’.

Na tentativa de definir esse tipo de vídeo, esboçou-se a ideia do corpoimagem – espécie de imagem que sente, como a pele. Deste ponto, questões acerca da imagem, do corpo e do pensamento provocaram novas inflexões ao projeto, deslocando o corpus da pesquisa: a pele tomada como imagem, e o pensamento, como corpo resultou, pois, no trabalho aqui apresentado”. Eu concluo dizendo que esse é um trabalho de metamorfose. Não é uma pesquisadora tomando por tarefa debruçar-se sobre um objeto, nem mesmo realizar um projeto, uma obra, uma pesquisa. É colocar-se inteiramente em xeque no ato da pesquisa, expor-se a ela, mas saber que essa pesquisa ela mesma só pode dar-se, na sua radicalidade, caso tenha por matéria- prima precisamente essa existência, a metamorfose dessa existência, a pele dessa vivente que nela se empenha... É nesse risco, entrega, metamorfose, transmutação, dessubjetivação, que foi parido esse objeto-livro-pele-pensamento infindo, que é muito difícil finalizar, concluir, fechar... “Como findar isto que é imenso, sem ter nem começo? A pesquisa de uma vida. Inapreensível como aquele sopro – a chama – a chave. A chave perdida. A chave que sequer existe. algo que é impossível procurar,

encontrar e tampouco, talvez, perder. Por isso não se termina. (...) Viver a duração de outros mundos. Dentre todos os ondes, estar em nenhures. Insituável.” Lembra um pouco Kafka, cuja obra sempre foi objeto de uma tentativa de encontrar-lhe a chave, quando um intérprete propõe o seguinte: a obra dele é a desse mundo cuja chave foi perdida, já não temos uma chave que abriria suas portas, que nos revelaria seu sentido... Por isso é curioso ter a chave aí, no diário de corpo do pensamento, a chave que não abre nada nem fecha nada... Sim, mas ao mesmo tempo, malgrado todas essas partículas privativas in, im, des, até mesmo trans, ou essas lacunas, ou todo esse nomadismo operado com grande obstinação e entrega, há algo mais aqui que não pode ser desconsiderado. Que isso ao mesmo tempo é a construção de um território de existência, ou como diria Guattari, um território existencial. Você construiu com sua inventividade, ousadia, maluquice, obstinação, golpes deliciosos (como essa maneira gráfica de apresentar sua bibliografia, adorei!!), você construiu alguma coisa... não sei como chamá-lo... tantas variações, de tom, de escrita, de arranjo... tem aí uma voz que você conseguiu inscrever num objeto-não-voador-não-identificável, estranho, esquisito,

que se abre, que nos abre, que espanta, que exaspera, que maravilha... enfim, é mesmo um experimento, no sentido forte da palavra, e uma pesquisa que não seja um experimento, inclusive consigo mesmo, mas também com todas as áreas e registros que você atravessa, de que serviria? Peter Pál Pelbart São Paulo, 13 de dezembro de 2012 *Referências à primeira forma de apresentação deste trabalho (livro-objeto), como dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGAV/ ECA/USP), em 2012.

Sumário [1] Corpar Antecedentes. Corpus da pesquisa por vir. Este estudo de corpo. [2] Cadernos de curso Contexto de pesquisa. O livro como território existencial. Pesquisar: uma movência cartográfica. Estudar o corpo. Pesquisa, pergunta e vontade genética. Forças ativas e reativas na Ciência. Ciência e (in) consciência. Marcas mobilizadas. Palpitações no projeto. Ausculta. Gravura-pesquisa. Pesquisa da vida toda, que não tem tamanho. Vultos cotidianos: entre o sonho e a vigília. [3] Um corpo ao pensamento [3.1] Corpo e espaço: onde é o onde do corpo? Heterotopologia. As heterotopias: espaços outros. Conferências radiofônicas de Michel Foucault acerca da utopia. Contextos de publicação.

[3.2] Corpos outros: das utopias às heterotopias do corpo As utopias e seus corpos. Corpo-livro. Mákina, palavra-corpo da lei. [3.2.1] Corpo e acontecimento Corpo dilatado. Efetuação e contra-efetuação. Fissura, operador de acontecimentos. Incisão em superfície, espessura, profundidade. [3.2.2] Corpo fissurado: da fissura aos corpos do pensamento Alargamento e vibração da fissura. Plano de composição e corpos poéticos: os corpos do pensamento. Pensar por sensações. Composto de sensação. Dimensão monumental da obra de arte. Encarnação do acontecimento. Condição limítrofe: o risco do corpo fissurado. Queda-livre versus enfrentamento do caos. [3.2.3] O dançar do corpo de escrita Além da quebradura de cada corpo. Um dançarino da escrita. Palavra poética versus linguagem utilitária. O pêndulo poético. Autopoiése e autoposição da criação. Pré-individualidade do corpo do pensamento.

[3.2.4] Um corpo ao pensamento ou Fabricação de corpos poéticos Corpos fabricados na operação poética. Móbiles no caos. Atribuir um corpo ao pensamento. Corpar: ser e não ser encarnável. O corpo do pensamento como acontecimento. Força motriz dos corpos poéticos. O vir a ser do pensamento. O livro de areia: tornar-se infinitamente. [3.2.5] Dermoteca: escrever, apagar, inventar a pele Corpo no amor. Espaços outros, corpos outros: corpo heterotópico. As heterotopias. Acontecimento: duplicidade do corpo heterotópico. Autoimagem na utopia e na heterotopia: o cadáver, o espelho e o amor. Tocar o corpoimagem. Pele apagada pela utopia, pele inventada pela heterotopia. [4]Textura, uma operação Dispositivo. A questão metodológica: mote conceitual e operador poético. Pesquisa da sensação: texto-imagem e palavra poética. Pesquisa em Artes. Corpografias: zonas de contaminação. Pensar, experimentação filosófica/científica/poética. Desordem do discurso: imaginário em torno dos pensadores. Proposta indisciplinar na

pesquisa: por uma teratologia do saber. Relações entre Ciência, Arte e Filosofia. Recortes do caos: plano de referência, de composição e de imanência. As interferências intrínsecas. Transplanar: o pensamento como heterogênese. As interferências ilocalizáveis. [4.1] Dos experimentos poéticos [4.1.1] Sobre Caderno Decurso Voz dérmica, Corpo sem Órgãos (CsO). Itinerância: as aulas de filosofia. Tatear um corpo de pensamento. Tessitura musical. [4.1.2] Sobre Diário de corpo do pensamento Texto diarístico e o fora-texto. O diário de corpo como categoria. Personas cambiantes: personagens conceituais? Camadas da pele intensiva. Versões a partir de versões. Alfabeto: as horas de Paul Valéry. Hecceidade. Escrita em quadros: páginas-tela. [4.1.3] Cintilações do ENTRE Modos de olhar-tocar a pele. Algo que impele. Janela-espelho- tela. Ler com dedos. Palavra-pele: ser e não ser tocável, o toque como questão.

[5] Conhecer uma pergunta irrespondível Que corpo é esse? [6] Referências Bibliográficas Outras Experimentos poéticos Diário de corpo do pensamento Caderno Decurso





Este livro abarca contradições – aquelas que me trouxeram a este percurso e as que insurgiram dele. (Esse caminho sempre corpo, embora ele seja sempre outro, outro corpo). A ideia era produzir conhecimento e, quando vi, estava eviscerada – fora de mim estando mais nele. Já não há (nunca houve) um dentro e um fora. Quanto mais tento dizer sobre este corpo, ele menos o é. Por isso o pensando quase alto – corpo no corpo no corpo. Talvez coubesse um verbo? Corpar

Antecedentes Demorei em entender que, embora tão distintas, apenas um triz separava as experiências anteriores, realizadas através da Faculdade de Medicina, Faculdade de Comunicação e Escola de Dança, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Que tais estudos continham a mesma questão latente. Esse caminho sempre corpo. Corpo paciente, que toquei: pele com pele: outra temperatura, outra respiração, outra dor; esquadrinhadas em nome das evidências, formolizadas em peças anatômicas, coração-músculo, rosto seccionado, metade superficial, metade profundo, ossos desmontados, envernizados e pendurados; alguma vida interrompida. Tornada coisa. Alguma vida continuada.

Corpo imagem, que imaginei, apesar do acurado treinamento para relatar fatos (anamneses, história da doença, história pregressa; depois, fontes, entrevistas, matérias...). Pois foi inventando roteiro de sensações que conheci outro modo: escrever com imagens. Ações entregues ao vídeo – e a elas, ele. A lente destacando da pele ainda mais imagem; alguma vida a um só tempo recortada e ampliada. Tornada vídeo. Corpo dançante, que acompanhei e, por videografar com seus passos, também me desloquei. Achava que era só o olhar, a câmera, mas meu corpo estava inteiro lá. Vi-me pele. Entre avatares, cabos, telas, suores, lycras, luzes, palco, cortina, plateia, linóleo, pele, figurino, cenário, sinal, fita crepe, cabos, cabos, cabos, pele, curativo, pele, pele; alguma vida. Tornada risco. Corpo do pensamento, este.

Comecei o curso de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA-USP buscando reconhecer um problema: qual seria o objeto desta pesquisa? No trajeto, percebi que o problema é que me perseguia e já fazia tempo – o tempo da vida inteira. Diante do espelho: suspendida. Pela primeira vez estava descolada da carne. – Por que chamavam aquilo (aquele corpo) de Maruzia? (E eu via aquela imagem com os mesmos olhos que avistava nela). Eu objeto e sujeito. Eu coisa Coisa nominada

Mencionar esse encontro é uma pista para compreender sua cisão – corpo imagem corpo. É mostrar a marca mobilizada por esta pesquisa. Nesse jogo especular, já não há como dizer de objetos, nem de sujeitos, muito menos do eu. Aqui não era para ser um caderno, nem diário – isto é um livro. Mas soceuuormátirsaaaa

Corpus da pesquisa por vir A proposta inicial desta pesquisa era realizar um panorama da produção audiovisual no Brasil, através do projeto “Vídeo interativo: possibilidades, limites e reapropriações artísticas”. Na tentativa de definir esse tipo de vídeo, esboçou-se a ideia do corpoimagem – espécie de imagem que sente, como a pele. Deste ponto, questões acerca da imagem, do corpo e do pensamento provocaram novas inflexões ao projeto, deslocando o corpus da pesquisa: a pele tomada como imagem, e o pensamento, como corpo resultou, pois, no trabalho aqui apresentado.

Dizer corpo é já perdê-lo E que tarefa é esta, então? Se não cristalizá-lo é da ordem da impossibilidade, o que faço aqui – insisto? Falar de uma incessante transmutação. Isso ainda é um sim

Este estudo de corpo A proposta intuída e instituída em Corpografias: incursão em pele imagem escrita pensamento é de texturas do pensamento: sua busca como método, seu encontro como corpo e seu reconhecimento como grafia. Assim, esta pesquisa suscita a experiência de auscultar o corpo do pensamento. Uma vez que ele é, simultaneamente, fala, visão e escuta, toma-se o desafio de alçá-lo de maneira tal que esse processo não o aliene. Para tanto, este livro realiza- se sob a forma de diário e de caderno, que cartografam a investigação empreendida. Estas corpografias são camadas que se suplementam, uma vez que podem atuar de forma independente e, quando adensadas, reverberam novas intensidades.

Metamorfosear-me pesquisadora sem corpo? Diante do impasse, a tarefa investida nesta pesquisa foi não apenas falar e estudar sobre corpo: fazê-lo. Por isso o dia a dia de um corpo de pensamento que se pesquisa. Corpo este estranho ser em mim Corpo este estranho ser Corpo este estranho Corpo este Corpo



CADERNOS DE CURSO

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Cadernos de curso Os cadernos tracejados e carregados de um lado a outro, durante o curso de Mestrado, foram reunidos e processados, resultando em Corpografias: incursão em pele imagem escrita pensamento. Suas anotações tiveram como instância primeira o pensar a pesquisa que se fazia sobre o corpo do pensamento. Assim, notas de aula misturadas a ideias incidentais de rua, vozes, encontros, lidos, ouvidos, cotidianos –

tudo foi virando este corpo.

Afinal, qual seria o lugar do corpo do pensamento na investigação que o tem como foco? Qual a fala dele? Quais imagens ele produz? Que sons emite? O que o atravessa? Como? Instigada por essas questões, esta pesquisa apresenta- se como trabalho poético e reflexivo realizado a fim de abarcar, sob certos aspectos e intensidades, a dinâmica de experimentação do pensamento. Tanto os cadernos de curso quanto o livro extrapolam o papel de suporte para a escrita ou mero veículo. Eles reverberam os diversos espaços de ação deste estudo: as aulas na Universidade de São Paulo (USP), dentro do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU); os grupos de pesquisa no Departamento de Artes Plásticas (CAP/ECA/ USP); os cursos de filosofia no Atelier Paulista e a convivência com artistas de lá; além dos encontros no Núcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-SP).

Ao olhá-los a certa distância, é possível perceber a conjunção que criam, da qual emerge o território existencial1 que é este trabalho. Aqui, está cartografado o próprio ato de pesquisar, tornando visíveis as paisagens erguidas pelos encontros os mais diversos deste percurso, que teve a liberdade bibliográfica como combustível de conexões improváveis, e a sala de aula como campo de pesquisa, sua experimentação. Assim, este livro expõe como resultado o trajeto de sua realização; ele registra um modo de conhecer e o torna acessível – nisto reside sua dimensão acadêmica. A natureza desse processo invalidou qualquer tentativa de sumarização prévia e planejamento teórico. A única condição constante foi a de estar passível a novos estímulos, como uma criatura movente capaz de fagocitar tudo que (lhe) toca, fazendo o que é externo, dentro, invaginação desafiadora de distâncias. Mesmo a definição do corpus desta pesquisa adveio dessa forma de agir: ele foi delineado no movimento cotidiano do

1 (GUATTARI, 2012, p. 30, 63, 66)

pesquisar2, chegando-se ao corpo do pensamento. Porém (DELEUZE, 1976, p. 32) Estas Corpografias foram ensejadas pelo estudo de corpo. Esta é sua vontade3 – aquela que precisa ser conhecida para se saber o que o perguntador quer dizer com a pergunta que fez: qual vontade o levou a perguntar. Identificar a pulsão que levou uma pesquisa a ser empreendida ou um conceito a ser criado, então, seria a única forma de profundamente conhecê-los.

2 “Já que não é possível definir seu método (nem no sentido de referência teórica, nem no de procedimento técnico), mas, apenas, sua sensibilidade, podemos nos indagar: que espécie de equipamento leva o cartógrafo, quando sai a campo? (...) um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocupações – este, cada cartógrafo vai definindo e redefinindo para si, constantemente. O critério de avaliação do cartógrafo você já conhece: é o do grau de intimidade que cada um se permite, a cada momento, com o caráter de finito ilimitado que o desejo imprime na condição humana desejante e seus medos. É o do valor que se dá para cada um dos movimentos do desejo. Em outras palavras, o critério do cartógrafo é, fundamentalmente, o grau de abertura para a vida que cada um se permite a cada momento. Seu critério tem como pressuposto seu princípio.” (ROLNIK, 1989) 3 (DELEUZE, 1976, p. 64)

Encontrar o que leva alguém a pesquisar algo. Ler isto, por um lado, foi tranquilizador: estava incluída, como pessoa ligada ao estudo do corpo. Por outro, fiquei intrigada: por que pessoas se ligam ao estudo do corpo? O que elas têm em comum? Que quereres compartilham? Qual a vontade de quem estuda O Corpo? O Corpo?


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