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Published by Paroberto, 2021-01-11 23:04:28

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6 Literatura açoriana: uma paixão Tenho a ilha Cheia de mim55 O pungente trecho de Ilha Grande Fechada. 55 José Francisco Costa. “Regresso”. E da Carne se fez Verbo. Lisboa: Salamandra, 2000, p. 26.

Quando comecei a preparar esta comunicação sobre a Litera- tura Açoriana56 (obrigada, Jói Cletson, pelo convite!), pensei em falar sobre as várias facetas com que a inquietação de amor é manifestada na poesia e na narrativa de ficção, publicadas nesses 20 últimos anos 100 nos Açores.57 Comentaria, primeiro, o pungente trecho de Ilha Grande • Fechada, de Daniel de Sá (1992, p. 174-175), no momento em que o Há flores e frutos no colo das ilhas protagonista João, doído de saudades, mesmo antes de emigrar para a América, pensando no padecimento de uma ausência demorada, despede-se de Diana, a sua cadela. Falaria, depois, sobre o caso, quase sobrenatural, mas muito humano, da Burra Preta com uma lágrima, de Álamo de Oliveira (1995), pelo que eles – os animais – podem esconder/revelar do comportamento pessoal e pelo que o homem por meio da palavra pode, também escondendo/revelando, traçar o mapa psicológico, político, religioso e picaresco de uma sociedade contemporânea. (A alegoria que reveste o romance de Álamo é tão eloquente quanto alguns tratados de história ou geografia humana.) Da sexualidade dos humanos, por um lado, e dos bichos, por outro, representada mais como ato instintivo de conservação da espécie ou de prazer momentâneo, expresso tão bem nas páginas de Álamo de Oliveira, passaria para a manifestação de amor declaradamente assumida pelo narrador autodiegético de Memória da Terra, o que me garantiria argumentos para uma rápida análise de No Crescer dos Dias, poemas do mesmo autor (1996), publicados anos mais tarde, mas criados concomitantemente à escrita do romance, conforme declaração, em 2002, do poeta e romancista açoriano, José Martins Garcia. E assim, do amor e do exílio, do cerco do mar e da ideia de solidão e lamento dos ilhéus, desde Roberto de Mesquita, quedar- 56 Palestra apresentada no Colóquio 260 anos de Herança Açoriana. Comemoração da chegada dos Açorianos no Brasil Meridional. Literatura Açoriana, Mesa Redonda. Universidade Federal de Santa Catarina, 16 de setembro de 2008. Publicada em CD, pelo Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC. 57 Considerar que o texto acima foi escrito, apresentado e publicado em 2008.

me-ía, naturalmente, na diáspora açoriana: dos que ficam (Urbano 101 Bettencourt, Dias de Melo, Fernando Aires), dos que partem (Natália • Corrêa, Onésimo Almeida, Eduíno de Jesus, José Francisco Costa), dos que vão e voltam (Adelaide e Vamberto Freitas, Antero de Quental), Vilca Marlene Merizio dos vivos (Cristóvão de Aguiar) e dos mortos (J. Almeida Pavão, J. Martins Garcia, Emanuel Félix e Vitorino Nemésio), dos que tratam de temáticas de famílias que se pulverizam pelo mundo (João de Melo, com o seu Gente Feliz com Lágrimas) em relações nem sempre monogâmicas (Victor Rui Dores: A Valsa do Silêncio), dos viajantes (Raul Brandão), dos que chegam para conhecer a terra e dela nunca mais se afastam porque lá lhes ficou o coração (Maria Orrico, em Terra de Lídia, Eduardo Bettencourt Pinto, de O Príncipe dos Regressos), dos novos (Tomaz Borba Vieira, Sidónio Bettencourt, Manuel Jorge Lobão) e dos nem tão novos assim (Judite Jorge, Madalena Férin). Enfim, dos que escrevem nos Açores, sobre os Açores e para os Açores, tratando literariamente da açorianidade atlântica. Porque a diáspora aproxima as pessoas pelas palavras tanto quanto pelos liames do coração, não poderia deixar de me referir às

“linhas de azul choradas...”, de José Francisco Costa (2000, p. 61) para, depois, deter-me com mais cuidado nos Afectos de Alma, romance de Judite Jorge que conta, a partir de fatos reais, a vida de uma mulher que partiu da ilha do Pico para os Estados Unidos, no princípio do 102 século XX, e que, nos seus 84 anos de vida, voltou apenas uma vez, • em curto período de férias, para a sua ilha natal.58 Há flores e frutos no colo das ilhas Bem, tecida a espinha dorsal do texto a ser apresentado à tão distinta e seleta audiência, nada mais restava do que retomar os itens já relacionados e, pouco a pouco, ir desfiando os assuntos acima propostos. Mas há que se ajustar o plano. Novos elementos diegéticos apareceram, a pesquisa foi se encaminhando para outras correntes e, assim, surge este novo texto que a si próprio foi se construindo, à semelhança do que já testemunharam J. Martins Garcia59 e Dias de Melo (recentemente falecido), o primeiro em entrevista a Vamberto Freitas (1996), o segundo, na página Preliminar do romance A Montanha Cobria-se de Negro (2008). Para os dois, nem sempre o texto, quer seja uma crônica, artigo, novela ou romance, deixa-se levar pelo que o autor planeja e quer. Porque já me aconteceu, e de novo me está acontecendo, aceito a asserção de que, de certa altura em diante, o livro (romance, ou conto, ou estória ou outro texto qualquer) se vai escrevendo por si mesmo, ou, mais corretamente, vai conduzindo o autor naquilo que escreve. Disse: está acontecendo comigo. E está. Neste momento.60 Para a comunicação que agora escrevo, este dobrar de esquina leva-me em direção a duas obras que anteriormente não haviam sido para cá chamadas: O Homem que era Feito de Rede, de Katherine Vaz e 58 Livro de memórias cuja matéria se fundamenta em cartas trocadas de 1941 a 1976 entre a personagem e a família. 59 Ver de Vamberto Freitas, a entrevista concedida por J. Martins Garcia em Imaginário dos Escritores Açorianos (1992). 60 Dias de Melo, 2008, p. 12.

O Carcereiro da Vila, de Tomaz Borba Vieira. Como diz o autor de Pedras 103 Negras, Dias de Melo, escritor é quem escreve, mas o texto é que se vai • fazendo sozinho. Perdi o rumo, a estrutura inicial do meu texto deu uma guinada e me vi banhada por outras fontes, outras aragens, novas Vilca Marlene Merizio maneiras de beber a ilha, de saciar-me com o que ainda há por dizer. Retomemos, portanto, ao fio antes planejado, agora com a tal quebra de rumo. Vejamos o primeiro item desse nosso sumário virtual: às vésperas da partida para a América, a despedida de Diana depois de o voto do romeiro João estar cumprido. Já no final do livro de Daniel de Sá: Ilha Grande Fechada (1992), João, a personagem central, depois de haver cumprido a sua via crucis como romeiro,61 no Nono Dia, às vésperas do embarque na direção do consentido sonho da América, num gesto de poder que ainda lhe resta, sai com a sua fiel e amorosa Diana, a “despedir-se da terra”. E na terra, para além das batatas, a cadela: não queria que ela sofresse a sua falta depois da partida para os Estados Unidos. João sobrepassa os próprios sentimentos, e o sacho (enxada) torna-se o instrumento da sua agonia, aquele que vai fazer sangrar o seu coração, único jeito de partir sem ficar. Antes, porém, do ato fatal, evidencia envolvente humanização de Diana: Não deixo para trás nada que me faça falta, a não seres tu, Diana. Vais andar por aí ganindo, esfomeada e tonta, pois tens esse mau feitio de não comer a jeito quando não estou. E eu vou ficar por lá apalermado, com saudades duma cadela, louvado seja Deus! Hei-de escrever cartas a perguntar por ti, minha mãe lê-as para ouvires como se fosses gente, tu tens mais tino do que muitos que andam em cima de dois pés. Se calhar o meu cheiro chega ainda na carta, hás-de farejá-la e ficar doida à minha procura, minha mãe diz: ‘Olha Diana, é do teu dono, é do João’, 61 De João Vasconcelos Costa “Romeiros de S. Miguel não têm nada de festa, só sacrifício e penitência.”, em Os romeiros de S. Miguel, segundo eu, excerto de Mastro das Alminhas. Disponível em: http://jvcosta.net/romeiros1.html. Acesso em: ago. 2008. Ver também: http://jvcosta.net/livros.html#3. Acesso em: ago. 2008.

e tu corres a casa toda, esqueces essa tristeza de rabo murcho e começas a sacudi-lo, vais à porta da rua, talvez ladres a chamar por mim, e voltas para dentro com uns olhos cheios de lágrimas que não se veem [...] ou sentas à porta da minha casa, cismando 104 [...] a ganir, a rapar na madeira, vens aqui a terra, entras na • taberna a perguntar por mim, só porque entras, vais ao pasto, Há flores e frutos no colo das ilhas vês as vacas todas mas não me vês a mim [...] ficas sem perceber nada, ainda acabas por te finar de tristeza [...] O resto, Diana, são saudades de fome, de suor, de trabalhar como um negro desde os seis anos [...] Anda aqui, Diana, chega ao pé de mim, cadela dum raio que és a minha perdição. Dá cá um beijo ao teu dono, dá cá, que, se calhar, nunca mais te vejo. Ah! Bicho dum corisco, e eu que não queria te pegar porque eras fêmea [...] Um raio parta a minha cabeça, para que me fui me meter nesta aventura do inferno [...] e agora estou aqui feito tolo, por causa de ti. Não vês, Diana, a gente aprende a rir mas ninguém nos ensina a chorar, e meu pai, algum dia, ainda é capaz de te pôr a ladrar ao telefone [...] – Beija-me, Diana [...] – Tira-me o chapéu, vamos. [...] – Põe-me o chapéu na cabeça, sua velhaca. [...] – Dá cá um aperto de mão. [...] – Morre, Diana. [...]62 E Diana, com a pancada certeira na nuca, dada com a enxada, morreu sem saber que morria. Ao som da ave-maria, João “descobriu a cabeça e rezou, coisa que nunca fizera ao som dos sinos da tarde. Depois, atirou Diana para dentro da cova e fechou a ilha sobre ela”. Estava agora limpo. Poderia ir para a América sem nada que o prendesse a “terrinha”, até mesmo os votos de cruzar toda a ilha a pão e água (“promessa das grandes aflições”) estava cumprido. Os 62 Sá, 1992, p. 172-175. (Sublinhado meu.)

pais, a mulher e os filhos, esses se “amanhariam”. Diana já não mais 105 o chamaria. Não mais haveria saudade. A raiz mais forte e profunda • dos seus sentimentos fora decepada. Partiria com a alma vazia. Vilca Marlene Merizio Segundo item: À Burra Preta, com uma lágrima, ou Promessa ao Divino. Noutra ilha, nova promessa, novo caso de amor e morte premeditada a um animal de estimação por excesso de amor. A promessa, agora, ao Divino Espírito Santo. O animal, uma burra nascida no Pico (p. 23), “de pelo escuro que dava pelo nome insípido de Burra Preta”,63 um quadrúpede tão inteligente que fugia ao estatuto de irracional. Burra Preta era amada por todos quantos a conheciam, desde os donos que a tinham como filha ao cronista narrador que, depois do extermínio do animal, parte em busca da sua biografia, à existência de um estranho amigo, o Poeta, que não resistiu ao seu desaparecimento.64 Essa a metarrealidade. Do que a narrativa contém de real na sua ficcionalidade é a promessa que fez o casal Maúrça, últimos donos da Burra Preta, ao Divino Espírito Santo para que acobertasse o crime: para se libertarem da acusação de proprietários de um animal que não respeitou uma autoridade, haviam mandado Jacinto exterminar a burra uma vez assassina e outra quase, que “tombou, sem um relincho, na cova aberta no cerrado da Relvinha” (p. 19). O casal Maúrça estava decidido: Se o Divino Espírito Santo cobrisse, com o mantão do seu silêncio, a morte da Burra Preta, tirariam uma dominga de coroação e dariam esmolas de carne aos pobres e parentes, ‘função’ aos convidados e ‘brincadeiras’ aos inocentes.65 63 Oliveira, 1995, p. 19. 64 Que “caminhou pelas ondas e lá foi ver, numa viagem sem regresso, como é o mar por dentro”. Com a morte do poeta e o desaparecimento da Burra Preta, “A ilha ficou triste e vazia” (p. 26-27). 65 Oliveira, 1995, p. 19-20.

Cento e trinta e oito páginas adiante, depois de ser narrada toda a epopeia da sensível e justa Burra Preta, mais gente do que bicho, volta a voz de tio Joaquim, confirmada pela pena do narrador: 106 Se isto não for motivo de escândalo, prometi coroar numa • dominga de Espírito Santo, dar esmolas aos pobres da freguesia Há flores e frutos no colo das ilhas e brincadeiras aos inocentes. Que o Senhor Espírito Santo o permita! “Assim seja!”, ditou-me o coração. Era a promessa, o voto necessário que, nas horas de ponta da aflição, mais facilmente aflui à alma do ilhéu, pois é assim a sua história – uma história que, desde sempre, vem a ser feita muito mais com a fé do que com as obras.66 E entre tristezas e alegrias, a festa ao Divino fora comemorada.67 Assim, em 163 páginas, Álamo Oliveira retrata as ilhas atlânticas em todas as suas celebrações sacras e profanas numa “peregrinação interior” pelos Açores dos anos 70 do século passado. Sobre o romance, afirma João de Melo68 que a obra, mesmo não sendo uma epopeia, dignifica-se pela alegoria que capta a “inocência e a fatalidade das ilhas”, revestindo os acontecimentos de um realismo mágico, valendo-se da metáfora como o veículo condutor da história. E termina João de Melo a sua apreciação sobre o livro: “Burra são os homens, as políticas, os padres, os poetas-profetas e os loucos. Temos todos de burra um pouco”. Burra Preta, a “neurótica contestatária” que percebia a dor dos injustiçados, nascera “num pasto sem flores. Sozinha”. Fora concebida como todos os bichos o são,69 conforme a natureza 66 Oliveira, 1995, p. 158. (Sublinhado meu). 67 Diferentemente de um outro cumprimento de votos, dessa vez ao Bom Jesus de São Mateus, se o filho de Sr. Antônio, o segundo dono de BP voltasse “são e salvo” da guerra de ultramar. 68 Na contracapa de Burra Preta com uma lágrima. 69 E aqui uma crítica nada velada: “Era assim que as crianças nasciam nas ilhas (algumas, porventura, ainda nascerão, que a maternidades sendo velhas, são de utilização recente” (p. 32).

predispõe os homens e os bichos. Álamo, na voz do narrador em 107 3a pessoa, explica: • Tudo fora simples demais, tal como os noivos: botões da Vilca Marlene Merizio braguilha fora das casas, saias acima, cuecas abaixo, a vara saída e retesada, a entrada na gruta, o grito e o resto. Só que, desta vez, não houve noivado, nem houve a pergunta do ‘e agora?’ Para eles, ‘burros’, tudo era mais simples. Álamo descreve de uma forma jocosa o ato físico em que os humanos se entrelaçam na entrega capaz de suscitar um novo ser. Busca a hipótese de os namorados estarem sozinhos em casa: a mãe sai, o rapaz percebe a ausência, “se entesa”, “puxa a mão da rapariga para o sítio da braguilha” e ela “cede gostosamente contrafeita”. Agem, depois, sob uma cumplicidade recíproca – técnica primitiva, amedrontada, rápida, mas eficiente. Nascem beijos que caem ao acaso sobre os olhos, o nariz e logo se grudam na boca com as línguas chupadas até a alma. Simultaneamente, as mãos percorrem o corpo como se fossem detectores de minas, agarrando o que podem numa ânsia perdida de intenções. Como por encanto, desalojam-se nervosamente os botões da braguilha, as saias sobem, as cuecas descem e salta a vara sumarenta que, ávida e irrequieta, penetra, qual navalha de ponta e mola, na pequena gruta de carne morna debruada de penugem arisca. E, respirações transtornadas, confundidas, ritmadas, ruidosamente eletrizadas, tombam num ai agudo de consolo infinito. Da estremação final nasce um rio de golfadas impetuosas, portadoras de muitas hipóteses do levedar de barriga. O susto sai, então, de repente, com o seu enorme pesadelo e, a duo, faz-se a pergunta fatídica que acompanha o descer das saias, o levantar das cuecas e o abotoar da braguilha: ‘E agora?’.70 70 Oliveira, 1995, p. 26-27.

E com a Burra Preta como foram os seus acasalamentos? Primeiro, defendeu-se de um burro “almofadinha” com um coice que só o Poeta entendeu. Em seguida, deixou-se cobrir, quieta, por outro burro, como se fosse a fatalidade da espécie. Só com Estrelo foi 108 diferente. Há tempos os dois “se deixaram beber do amor (platônico • até que)... “Logo que chegavam aos cerrados, corriam direitos à Há flores e frutos no colo das ilhas parede e para ali ficavam em lambe-lambe teimoso e demorado como par namoradinho e fresco”. Num dia de maior conivência afetiva, Estrêlo desatinou e saltou para o cerrado de Burra Preta. Foi uma festa! Correram, cabriolaram, relincharam gargalhadas, pegaram-se de cócegas e, numa guinada mais espertalhona de Estrêlo, Burra Preta estatelou-se, fazendo-o cair em cima. Ficaram de focinhos colados, na pose de quem se beija. [...] O calor do corpo foi-se- lhes comunicando mutuamente até sentirem aquela impressão desconcertante [...] Sem nada terem combinado, suspiraram profundamente e ao mesmo tempo. Foi um suspiro doce, todo feito de açúcar em batidas de coração. Estrelo sentiu crescer um irreprimível desejo de posse, dando por si excitado [...] Burra Preta não se apercebeu logo da mensagem expressa no brilho estranho dos olhos do amigo. Não tinha instintos infanticidas, mas o desejo de Estrêlo não a deixou hesitar. Ajeitou-se como convinha e Estrêlo possuiu-a com a fogosidade e o entusiasmo de quem o faz pela primeira vez. Foi lindo. Relinchou toda a tarde, como se tivesse engolido a Ode à Alegria de Bethoven. Também Burra Preta sentiu, pela primeira vez, o prazer do amor. Fizera daquele ‘burrico’ um ‘burro’. (OLIVEIRA, 1995, p. 140). Se os humanos a amavam sem mais nem por quê, a Burra Preta, deixando-se amar pelos puros de coração, só se entregou a um outro animal da sua espécie quando o descobriu puro e terno para com ela. E, assim, num ritmo cada vez mais surpreendente, o cronista vai narrando as peripécias inteligentes da Burra Preta e as suas reações frente à postura de certos homens, ilhéus infelizes que descontam

na burra o seu desamor, até a informação final, um artigo publicado 109 no jornal da vila mais próxima, a comunicar, não a morte a tiro da • Burra Preta, mas o suicídio do Poeta71 que se perdeu na viagem sem regresso da sua última caminhada em direção às profundezas Vilca Marlene Merizio do mar. A manchete da notícia chamava atenção: “O Poeta da Vila desapareceu”. E em tipo menor, como forma de dizer que nessa relação podia existir qualquer esquisitice: “POR PERDER A SUA AMIGA OU QUE OUTRO MISTÉRIO?” (p. 162). A nota dizia: OUTRO MISTÉRIO?” (p. 162). A nota dizia ainda que no reverso do desenho da cara de Burra Preta, encontrado com os pertences do Poeta, lia-se: Burra Preta Criadora dos meus sonhos. Amiga eterna da minha palavra E meu amor impecável S. Roque (Vila), Ano 199... A promessa ao Divino cumpria-se. O desaparecimento da Burra Preta continuaria a ser um mistério. Esse amor à Burra Preta que se disseminava entre os humanos mais sensíveis da Vila e de outras Vilas por onde ela passasse, toma conta de quase todas as personagens do romance, muito especialmente do cronista que, declarando o seu amor também à Burra, registra no meio da página onde há de escrever a sua biografia, se de biografia a obra se tratasse, o título e a dedicatória, como última homenagem: Burra Preta Com uma lágrima!72 71 “Burra Preta e o Poeta da Vila não se amavam, nem sequer de forma platônica. Eram amigos, amigos a tempo inteiro e, por isso, o relacionamento era simples. Entendiam-se às mil maravilhas, abertos e despertos para si e para os outros, atendendo às realidades do quotidiano, apostados numa luta que lhes permitia serem úteis à sociedade” (p. 61). Sobre o relacionamento de Burra Preta e o Estrelo, ver p. 139 e seguintes. 72 “Onde Burra Preta ficou sepultada continuo a depositar hortênsias” (p. 24).

3o item – A capa do Divino: a promessa de um pecador será atendida? O que provocou a ruptura estrutural do esquema de composição deste texto, já anteriormente anunciada no que eu vinha alinhavando, 110 foi o conto da americana Katherine Vaz, filha de pai português, • natural da ilha Terceira, Açores, e de mãe irlandesa, emigrados para Há flores e frutos no colo das ilhas os Estados Unidos, essa América a que tanto os açorianos aspiram e a que José Francisco Costa tanto admira: “Ó América da minha loucura/ Estrada do meu descaminho”. O homem que era feito de rede,73 de Katherine Vaz, traz poucas novidades para além da belíssima ilustração de Álamo de Oliveira: da Festa do Divino, a capa da realeza, a bandeira e as bandeirolas a dizer do bodo, tema corrente na Literatura Açoriana. Uma coroação de Espírito Santo não é apenas o que se come e o que se bebe, nem a festa com foguetes ou com encontros de amor. É também a devoção, sobretudo a que brota da cerimônia na igreja, herdada de fé, testamentada de geração em geração, do berço à sepultura.74 [...] agora na longínqua Califórnia ainda faziam o que a Rainha [Santa Isabel] tinha pedido: ela declarara que todos os anos, no Pentecostes, seria oferecida uma refeição aos pobres e aos esfomeados, e a própria nobreza vesti-los-iam com capas e coroas, sentando-os à mesa com eles.75 Contrato com o Espírito Santo: “Por favor, torna a minha filha numa estrela de cinema. Se me concederes essa graça, serei mordomo o ano que vem, e a todos darei de comer”.76 73 Lisboa: Salamandra, 2002; tradução de Vamberto Freitas; ilustração de Álamo Oliveira. 74 Em Burra Preta com uma lágrima, Álamo inicia o livro a partir de uma coroação na sexta dominga de Espírito Santo. 75 VAZ, 2002, p. 20. 76 Idem, Ibidem.

A história contada em O homem que era feito de rede ultrapassa 111 o sentido sacro-profano da festa para focar o caráter de pai da • protagonista que, alheia à desonestidade paterna, sem condições que a predispusesse a isso, perde, no ponto de vista do pai, a chance de Vilca Marlene Merizio ser convidada a participar de uma filmagem étnica. O pai, jogador nato, rouba do patrão e cunhado o dinheiro para a compra de uma capa que instigará a filha a usar nas festividades do Divino. Ele conhece a filha e sabe que, por vontade própria, jamais empenhar- se-ia a ser a escolhida, em razão do seu pouco entusiasmo pela arte cinematográfica. Mas pensando mais no que vai ganhar do que nas aspirações da filha, enfeita-lhe, então, o corpo com a capa mais cara da procissão. Que vence é a prima que, vestida de forma mais simples, acaba recebendo o convite do “olheiro” para a participação nas filmagens. A capa não passa desapercebida aos avaliadores: vai ser emprestada para as filmagens. Vamberto Freitas, no Prefácio ao livro, sublinha que O homem que era feito de rede, É sobretudo uma declaração de amor ao grupo e às suas sincréticas tradições na América, uma outra ‘viagem para dentro’, que na sua comédia e ironia não deixa nunca de notar vícios e virtudes de um outro grupo nacional integrado numa sociedade em busca permanente de ‘sucesso’ e de sua própria reinvenção. Esses vícios e virtudes trazem as personagens para o mundo real cheio de artimanhas, truques e violência, onde o mais esperto quer sempre ter vantagens e a possibilidade de sucesso se sobrepõe à ética. No mundo da migração não é diferente. Malfeitores, interesseiros, aduladores, falsários, mentirosos sempre existiram, mas nem sempre, nas narrativas, são eles os contadores da história. Katherine Vaz preferiu assim.77 Por isso, o próprio personagem questiona: O que era ele 77 Diferentemente de Madalena Férin (1998), que em “Recado da Ilha”, faz a antagonista morrer sem dar respostas para a atônita narradora que se vê envolvida em caso insólito.

durantes essas oito horas diárias, senão uma pobre rede armadilhada para contas mal feitas? E o narrador revela: era um infeliz, ainda preso na armadilha de um amor não correspondido. Afinal, conformava-se: “O amor nem sempre volta... dissolver-se-á no ar à nossa volta, o ar que 112 nos custa tanto a respirar”. • E aqui chega o momento de nós trazermos ao público Há flores e frutos no colo das ilhas catarinense a obra do conhecido pintor e educador Tomaz Borba Vieira, O Carcereiro da Vila e outras estórias, lançado no primeiro semestre deste ano em Ponta Delgada. Sobre a obra, Onésimo Teotônio de Almeida assevera: São narrativas cuidadas, cheias de informação, e atenção a pormenores psicológicos, além de com uma impecável atitude em relação a personagens saídas de meio simples, como são as freguesias da ilha. O narrador consegue mergulhar nelas e descobrir-lhes riquezas que passam ao lado do olhar de tanta gente.78 “Um melro quase azul à força de ser negro”,79 epígrafe do livro que, embora sendo um verso de Florbela Espanca, exprime a maneira portuguesíssima de dizer o poético das ilhas; o melro negro (turdus merula azorensi) é um dos mais presentes exemplares da avifauna açoriana e o que mais impressiona o visitante estrangeiro pelo seu voo rápido e rente ao chão frente aos automóveis que cruzam a ilha, principalmente no trajeto que vai da Povoação ao Nordeste da ilha de São Miguel. Os oito contos (O Carcereiro da Vila; Bus Stop; Noites de Moscovo; Gino; Guardar Segredos; Americano; Carreiro de Formigas; Assalto ao Parlamento), distribuídos em 181 páginas, ricamente ilustradas pelo Autor, expressam fatos pitorescos desde o tempo da ditadura salazarista até o repatriamento dos emigrados americanos que são forçados a voltar às ilhas de origem dos seus pais por algum 78 VIEIRA, 2008, 1a orelha. 79 Florbela Espanca.

deslize que cometeram no país de adoção. Hoje, desempregados, são 113 quase mendigos que têm de se ambientar num país que não é o seu • por preferência, embora toda a política de migração. Vilca Marlene Merizio Inteligentemente irônico, o livro de contos de Tomaz Borba Vieira encanta pela leveza com que aborda assuntos recentes universalmente aceitos com a perspicácia, mas também com a delicadeza de quem não quer impor estilos nem ideais. Simplesmente conta, sem tomar partidos, sem alindar ou desmerecer. É a alma das pessoas simples das freguesias da ilha que se faz transbordar num acorde que liga indissoluvelmente a oralidade de um povo à perenidade da sua literatura escrita. Diz João de Melo que é pelos cincos sentidos que devemos aproximar das ilhas, atentos, e assim escutaremos o tempo que nela passa todas as horas do dia, como passam o azul dos pombos e os bandos de pássaros atravessando o vento das manhãs; pelo olfato, conheceremos seus discretos odores: a fragrância das tangerinas em flor, o aroma da erva húmida e aquele enxofre vulcânico que fez delas ilhas de Deus e do Diabo e com todos os outros que nos restam, estaremos nós também transformados em ilha e as lembranças farão com que nos dissolvemos em saudade. Assim, em saudade, proclamo a minha paixão pela Literatura Açoriana. Referências COSTA, José Francisco da. E da Carne se fez Verbo. Lisboa: Salamandra, 2000. DIAS DE MELO. A Montanha Cobria-se de Negro. Ponta Delgada: Ver Açor, 2008. FREITAS, Vamberto. Imaginário dos Escritores Açorianos. GARCIA, José Martins. Memória da Terra. Lisboa: Vega, 1990.

GARCIA, José Martins. No Crescer dos Dias. Lisboa: Salamandra,1996. JORGE, Judite. Afectos de Alma. Lisboa: Dom Quixote, 2001. 114 JORGE, Judite. Notas para um Discurso de Amor. Ponta Delgada: Artes Gráficas e Publicações, 1994. • OLIVEIRA, Álamo. Burra Preta com uma lágrima. Lisboa: Salamandra, 1995. Há flores e frutos no colo das ilhas RAACH, K-H.; DUARTE, M. Ac(z)ores. Portugal: Edições Blu, 1995. SÁ, Daniel. Ilha Grande Fechada. Lisboa: Salamandra. 1992. VAZ, Katherine. O Homem que era Feito de Rede. Tradução Vamberto Freitas; Ilustração Álamo Oliveira. Lisboa: Salamandra, 2002. VIEIRA, Tomaz Borba. O Carcereiro da Vila. Edição Artes e Letras, 2008.

7 Nos caminhos da realização80 Tu, que buscas o Tao, exercita-te com a plena energia do teu coração e do teu espírito!81 Romance escrito pela moçambicana Maria Orrico 80 Palestra proferida por Vilca Marlene Merizio na 5a Semana de Estudos Açorianos 20 anos (de 29/11 a 03/12/2004) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, em 30 de novembro de 2004. Publicada nos Anais da 5a Semana de Estudos Açorianos 20 anos UFSC, 2005. Também em CD. 81 “Cânticos para o encorajamento dos homens”. In: A doutrina da Flor de Ouro. São Paulo: Pensamento, 1990, p. 159.

Algumas tradições ancestrais apontam sete caminhos para a concretização ideal do ser humano, sete modalidades passíveis de encaminharem o homem para a felicidade. Também considerados raios, essas sete formas de luz atuam mesmo sem delas a humanidade 116 ter conhecimento. No âmbito místico, os Sete Caminhos Secretos • da Realização correspondem às sete vias que uma pessoa percorre Há flores e frutos no colo das ilhas durante a sua permanência neste mundo. Tal constituição setenária, cuja origem remonta aos sete veículos internos que sustentam corpo e alma humanos, reflete-se, ainda segundo os antigos, no Homem e no Cosmo. Para descrever, de forma compatível com o pensamento contemporâneo, os sete caminhos percorridos pelo homem numa existência terrena, escolheu-se o caminho (tanto o emocional quanto o físico) simbolicamente percorrido por Lídia, personagem de Terra de Lídia, romance escrito pela moçambicana Maria Orrico,82 publicado pela editora Salamandra, em edição apoiada pela Câmara Municipal de São Roque do Pico, Açores, Portugal. O Homem não é só feito de corpo e alma: corpos sutis constituem a natureza humana. No modelo da Medicina Vibracional (e agora estamos nos referindo às últimas conquistas da física quântica e da medicina contemporânea), a interexistência do espírito em diversas moradas interplanetárias e a sua jornada pelo mundo físico cria o mistério da vida neste planeta. Dimensões corpóreas, além do plano físico, sutis e inseparáveis, possibilitam o despertareoarmazenamentodesentimentoseemoções no ser humano, a aquisição de conhecimentos, a manifestação de pensamentos e ideias na forma de criações físicas reais, a interagência entre os indivíduos e o discernimento entre as suas diversas atitudes comportamentais. Tudo isso, em conjunto, tornam o homem, para 82 Maria Orrico vive em Lisboa. Terra de Lídia foi o resultado da sua experiência pessoal nas três ilhas do Grupo Central do Arquipélago dos Açores, Faial, Pico e São Jorge, Portugal.

além de um ser social, um ser multidimensional ou, nas palavras de 117 Dora Incontri,83 um ser interexistencial. • Segundo as teorias da medicina chinesa tradicional, a doença Vilca Marlene Merizio (e aqui pensamos a doença como todo desvio da saúde nos campos físico, espiritual, emocional e mental) é o resultado de um desequilíbrio no fluxo da energia Ki para os órgãos do corpo (fígado, estômago, pulmão). Um dos tratamentos possíveis para as doenças, tanto emocionais quanto físicas, centra-se no reequilíbrio do fluxo das bioenergias magnéticas sutis para os órgãos afetados, os quais podem estar com deficiência ou excesso da energia vital.84 O conjunto dessas bioenergias forma as camadas constitutivas do homem.85 Todo homem possui essa complexa rede de energia invisível, desde o recôndito mais íntimo do seu ser até os limites do seu campo áurico, o que o torna um ser que vibra interna e externamente em múltiplas relações dimensionalmente harmônicas (ou não). No romance Terra de Lídia (TL), de Maria Orrico, já nas primeiras páginas, a personagem principal evidencia um desequi- líbrio emocional quando, logo após o rompimento do seu relacio- namento amoroso, pede “asilo sentimental” a um amigo de Lisboa. Literariamente, estava diagnosticada a razão, a “doença” que motivou a personagem a buscar alívio para o sofrimento, um antídoto para o seu mal de amor: 83 Pedagogia Espírita: Um Projeto Brasileiro e Suas Raízes. Bragança Paulista, Comenius, 2004. 84 Como bioenergias sutis são consideradas: a energia biofotônica (comunicação luminosa de célula a célula); o Ki (energia de vida absorvida do ambiente e herdada dos pais); o prana (energia ambiental); a energia etérica (luminoso magnético, ou perispírito, estado vibratório mais alto que penetra o físico. Qualquer distorção no corpo etérico causa distorção celular no corpo físico); a energia astral (energia emocional capaz de alterar as partes energética e física, modificando-as e afetando pensamentos e comportamentos); energia mental ( mente concreta racional presente na vida cotidiana) e energias espirituais superiores (fluxo de energia da alma para a forma física; repositório de recordações de existência para existência). 85 Na diegese narrativa, Lídia-personagem, a princípio desequilibrada energeticamente (ver páginas iniciais do romance), recompõe-se nos Açores.

Há flores e frutos no colo das ilhasFui procurá-lo porque todos os outros me pareceram demasiado longe ou insuportavelmente próximos. [...] Tinha consigo uma mala pequena, um grande desgosto e a tristeza 118 dos olhos sem medida possível.86 • Os corpos espirituais superiores estão diretamente ligados com a alma humana. O corpo causal tem registrado tudo o que a alma vivenciou no plano físico terreno tanto na sua vida atual quanto em suas vidas passadas. Segundo a filosofia oriental, a codificação energética da jornada da alma, em suas múltiplas expressões, está ali armazenada. Para compreender a relação dos corpos sutis com o comportamento humano, com tudo o que se refere às ações, às emoções e às realizações, é preciso passar pela curva progressiva do aprendizado espiritual, fundamentado na teoria do retorno do espírito a Terra, que pode acontecer por mais de uma vez, em corpos físicos diferentes, nascidos em lugares diversos.87 O homem é uma síntese de tudo o que há no Cosmos e, como tal, o seu caminho deve conter a síntese de todos os caminhos. Ninguém é só vontade. Somos uma coisa, mais outra, e outra, tudo somado ao que ainda desconhecemos sobre nós mesmos. No indivíduo, convivem o corpo, as emoções, os pensamentos, as intuições, a vida... Ninguém é portador único das dores do mundo: o amigo de Lídia, em completa empatia, “no final riu-se da [sua] narrativa e repetiu-a com outros detalhes e na primeira pessoa [...] Variações sobre o mesmo tema, eis o que somos...” (TL, p. 6). Foi com o propósito de reagir a essa vida de sofrimento há muito contido que Lídia, “como se chorasse por palavras”, expôs ao amigo o seu drama, “com demoras de amargura. Contou [...] de todos 86 ORRICO, Maria. Terra de Lídia. Lisboa: Salamandra, 1994, p. 5. 87 Isso tudo, como tentativa de explicar não só a razão da personagem ir aos Açores, obedecendo a um chamado de cura emocional, mas principalmente a razão de tantos catarinenses que se deslocam aos Açores ficarem irremediavelmente apaixonados pelas ilhas do arquipélago, mistério que também acontece em relação aos amigos açorianos que para cá se deslocam em férias ou a trabalho.

os choros, do tempo corrido sobre um amor perdido e em ruínas, do 119 [...] coração quase partido em dois”. Falou-lhe ainda das desilusões, • dos cansaços infinitos de uma caminhada sem sentido, da urgência de dormir profundamente, longe daquela cidade e das recordações. Vilca Marlene Merizio Lídia tinha [...] urgência de um espaço maior e com mais luz e mais ar, um cheiro mais forte, uma textura diferente, da necessidade de escrever, escrever até esgotar todas as palavras, escrever até cair num coma de sentidos [...], escrever a reconquista da vida afeita de dentro da solidão, longe dos olhos dos outros e dos agravos, longe da felicidade e da sua tirania, longe dos vícios e das batalhas que o amor arrasta (TL, p. 7). “Tenho uma casa numa ilha”, foi a resposta do amigo: na ilha do Pico. Depois o molho de chaves, a viagem de duas horas sobrevoando o Atlântico Norte e a chegada à ilha do Faial, nos Açores. Na alma, ainda a recomendação do amigo a ressoar em cadência repetida: Volta apenas quando souberes sorrir outra vez. “Resiste à solidão das ilhas, resiste sempre, não olhes o mar de frente enquanto as saudades tomarem conta de ti, podes adoecer de medo e morrer de distância (TL, p. 7). Chegada à Horta (Faial), surpresa, Lídia descobriu que seu primeiro cativeiro era o do corpo e, segundo, o do olhar. E descuidando-se da guerra entre os olhos do corpo e a lembrança das feridas, sua alma, esquecida do conselho do amigo, abriu-se para a luz “morna e acesa, mas também branda e sombria, como que a pedir desculpa por incomodar de cores a ilha quieta”. Era um verde fresco o que saltava dos montes infinitos para os olhos andarilhos de Lídia, a estrangeira, [...] pondo linhas de lonjura ao longo das estradas bordeadas de verde, manchas de conforto no lilás forte das hortenses, borrões de prazer à vista do mar liberto cujo cheiro navegava nos ventos dos quatro pontos cardeais, vindo de todos os lados dos sentidos (TL, p. 8).

Estava no Faial. E adentrou a casa emprestada pelo amigo como se fosse a sua “concha de silêncio”. Não chorou: impossível naufragar em mar que não cabe em “alma de continental”, mar imenso e desaquietado que dá medo, mas onde os olhos cansados 120 de terra e sementeira agora repousam. Um mar “trilho sem começo • possível nem fim esperado, chão pouco firme onde marés antigas Há flores e frutos no colo das ilhas vieram depositar pedaços de terra breve” (TL, p. 11). Depois de sentir o mar e o silêncio, as dores que a traziam para a ilha começaram a amainar. Era o portal da cura a abrir-se em alvorada para a transformação plena. Da constatação do fim do inverno, a primavera de emoções surgia como primeiro caminho a ser percorrido por aquela que, perdida entre as sombras do desgosto, quer-se em alquímica transmutação da infelicidade em prazerosa existência no porvir. Os sete veículos interiores do homem que o conduzem à paz e à felicidade, combinados e em perfeito equilíbrio, expandem-se pelos caminhos da realização pessoal. Começando pelo mais sutil e profundo, é o caminho da Vontade que, sozinho, não teria formas para se manifestar. Sem a razão (é preciso mente que a racionalize), emoção (cores e luz), vida que a mantenha, e corpo que a reflita, a Vontade é apenas abstração e como tal, não se realiza. A Vontade precisa de ação para existir. Portanto, o primeiro caminho dos sete Caminhos para a Realização exigiu de Lídia o reconhecimento das suas necessidades afetivas e a firme resolução de reencontrar a sua tranquilidade existencial. O segundo caminho percorrido por ela foi o da Aceitação, tornando-se sensível em relação aos fatos inusitados que lhe foram acontecendo até alcançar a iluminação: ao buscar-se a si própria descobria em si a divindade. E Lídia, intuição só, dirigiu-se ao Almoxarife, “com os olhos na praia negra”, sem se aperceber que, para além das nuvens densas deitadas no horizonte, uma ilha enorme em forma de catedral escondia-se nas “artimanhas do céu baço dos Açores” (TL, p. 14): a ilha do Pico.

Então, deu-se o encontro: conheceu Tomás, o cego de “olhos 121 brancos e baços como o leite”, que predisse: “Vais ser feliz nos Açores!” • Como ele soubera? Porque a sua intuição lhe ditava a afirmação: “Está cá, ainda, não há um dia, e o Pico já se descobriu todo para se Vilca Marlene Merizio mostrar. O Pico é o rei destas ilhas, se ele gosta de si, a ponto de se desvendar no primeiro dia, todas as ilhas a tratarão bem” (TL, p. 15). E era pela memória da mãe que Tomás, cego desde a erupção dos Vulcão dos Capelinhos,88 conhecia a ilha e os homens. Mas, muito mais, a sua aprendizagem se dera pela intuição, pelos olhos da alma que faziam a leitura do mundo através dos sentidos. As cores só são percebidas porque existe luz. E Tomás era portador desse espírito que tudo vê, tudo sabe, tudo adivinha. Era homem. Era ilha. Tanto o ser como o não-ser têm raízes no mesmo fundo primordial, só se distinguindo pelo nome. E Tomás era o seu nome: o santo (leitura do nome, invertendo-se as sílabas). Ao se unirem os opostos, realiza-se o mistério: a porta da qual surgem todos os milagres é aberta. O mar planetário que limita todos os continentes e o mar singular que ronda as ilhas: o mar para Lídia sempre fora uma estrada passível de navegação, transponível, um pequeno obstáculo entre uma terra e outra, uma fenda do tamanho de um passo de homem. Mas Lídia odiava o mar dos continentes: [...] odiava-o, ao pensar nos primeiros navegadores, naqueles que se haviam batido de alma e coração contra cabos donde se avistavam apenas sombras de medo e Adamastores, lendas de dragões e outros sustos, homens que se haviam aventurado no escuro pela Cruz de Cristo desenhada a ferro e fome nos campos da pobreza, homens que haviam empenhado corpo e esperança para morrer num capricho de maré e morrer gratuitamente, às portas do universo prometido (TL, p. 18). 88 Vulcão dos Capelinhos, localizado no extremo poente da ilha do Faial, nos Açores. Sobre a erupção do Vulcão dos Capelinhos, acontecida em 1957, ver imagens e textos em Capelinhos: um Vulcão que veio do Mar. Disponível em: http://www.meteopt. com/forum/sismologia-vulcanismo/erupcao-vulcao-dos-capelinhos-faial-acores.html. Acesso em: jan. 2013.

E o terceiro caminho da realização, o da Mente Abstrata, também tinha de ser vencido. Sem reflexão que permita o desencadear de um espírito crítico capaz de dar à luz a compreensão das coisas é impossível ao homem, a paz. A mente abstrata elabora, compara, 122 deduz. É preciso pensar, filosofar desde as primeiras até as mais altas • potências da realidade humana. Por isso, para além da constatação, Há flores e frutos no colo das ilhas a comparação: nas ilhas, [...] “o mar era o verdadeiro chão daquelas gentes, um elemento fixo e perturbador, e era preciso conquistá-lo e fazer dele um aliado. [...] Era o mar que ditava os caminhos possíveis naquela terra entrecortada, talhada em jeito de portos sucessivos de uma viagem que não para nunca” (TL, p. 18). Era o mar o alimento d’alma e não um inimigo feroz A Mente Concreta, ou a consciência do saber, permite o estabelecimento do quarto caminho da realização através do acoplamento e da reunião de coisas materiais manifestas no cotidiano que possibilitam o arrepanhar da memória. Por isso, Lídia, desde sua tarde primeira em terra marinha, terra que se acabava abruptamente debaixo dos [seus] pés continentais, sabia que só poderia falar daquela gente depois de aprender a obedecer às disposições do mar soberano. Nas palavras dela: “Render-me a ele, reconhecer-lhe o poder e a majestade, e só então sentir a alma húmida e o olhar denso e pesado da melancolia que vai sobre a saudade que separa as ilhas” (TL, p. 19). As Emoções constituem o quinto caminho para a realização. Mesmo a mais primitiva das emoções (instinto) não pode ser apagada com a razão. As emoções têm de ser elevadas como árvores que se levantam verticais e “abrem-se aos céus em inúmeras mãos verdejantes, onde pássaros cantam e ninhos prometem novas primaveras”.89 Uma árvore sem esses propósitos seria seca e estéril, apenas um pouco de matéria fincada ao chão. Através da dádiva do amor incondicional, do amor partilhado, da compaixão, da 89 RIZZI, 2004, p. 16.

lealdade, da amizade sem fronteiras é que se pode palmilhar o quinto 123 caminho, o da constatação: “Fui-me habituando àquele arfar de ar • molhado e a sensação da pele antiga, pele de castigo e submissão, foi desaparecendo” (TL, p. 19). Vilca Marlene Merizio A Sabedoria da Natureza é o sexto caminho da realização, veículo carregado da força vital que a todos e a tudo anima neste planeta. A vida é que dá sorriso às crianças, coragem aos moços e benevolência aos velhos. E são eles, os anciãos, que mais sabem e mais ensinam quando têm com quem aprender. Assim, pelas vias do sexto caminho aprende-se a observar a vida, cumprindo as suas leis com retidão, limpeza e ordem. Observando as raízes do nosso povo, pode-se compartilhar e, compartilhando, está-se espiritualizando o querer. Daí a um passo se estará transmutando o fazer. Tomás se aproxima de Lídia e convida-a a ir ao alto do Pico. A pé, “pelo caminho das pedras”. O cego ainda não a entende. Não sabe por que Lídia está ali. Intui apenas que ela está em fuga (talvez mesmo nem ela saiba que está à procura). Partiriam à noite em direção ao pico do Pico; por isso o espanto de Lídia: “Não será perigoso subir tudo no escuro?”. “Tenho vivido assim toda a vida”, foi a reposta de Tomás que, na noite seguinte a precedia, nas veredas que serpenteavam o penhasco da encosta rebelde, escolhendo o caminho com a sabedoria do pastor que conduzia com desvelo a sua ovelha perdida. E Lídia, valendo-se de uma linguagem metafórica musical pinta o concerto do alvorecer de mais um dia de sol: [...] “e isto é o sol. E vem uma harpa tecer uma escala que cala todos os outros sons e morre, esta criança respira profundamente, tudo acabou, e tudo começa aqui. Vem a bonança sobre a tempestade... Nasceu o dia, Tomás!” (TL, p. 39) Tomás chorava. Abraçaram-se. A unificação do espírito e a aquietação da alma são o começo da sintonia. Estava criado o elo. O caminho mais visado pelo homem é o sétimo: o Material. Por ser o mais simples e o mais próximo de nós, é o mais difícil de ser percorrido. O homem contemporâneo, abandonando a mentalidade

das grandes linhas de montagem, poderia voltar a trabalhar com as mãos, sentir de novo a pedra e a madeira, a lã e o fruto, o cristal das águas sobre a pele. Então, leria o mundo com a sabedoria dos simples e seria feliz. 124 Quem lê ficção, não precisa conhecer a fundamentação teórica • que sustenta romances, novelas ou contos. Basta compreender, sentir Há flores e frutos no colo das ilhas a mensagem através das ações das personagens e, então, perceber o Tao, a luz resultante da evolução gradativa do ser humano. E as imagens psíquicas disponibilizadas pelo contador de histórias, o fazedor de mitos, o criador de universos mil vezes reinventados poderão emergir em forma de catarse. Literalmente, Tao significa caminho ou estrada. A forma mais antiga de ideograma compõe-se de três elementos: um caminho, uma cabeça (mestre: a consciência coletiva, um princípio de ordem transpessoal) e um pé (discípulo) humanos: mestre e discípulo, juntos, procuram o caminho. Tomás, o mestre; Lídia a discípula. E Tomás e Lídia, nas noites dos Açores, desbravam em peregrinação montanhas e caldeiras,90 precipícios e fajãs,91 no dormir esperançado, de olhos postos na incerteza da noite, o pensamento longe, a pedir manhã sem nevoeiro, olhar largo, na ventura de ver, num só gesto de cabeça, todas as ilhas solitárias... As pessoas que 90 “Uma caldeira é geralmente uma grande estrutura vulcânica de colapso localizada sobre uma câmara magmática. Apresentam formas circulares a elípticas com diâmetros que vão de pelo menos um quilómetro, podem ultrapassar dezenas de quilómetros, estando delimitada por altas margens topográficas (representadas por vulcões marginais ou diques anelares, em geral). [...] Poderá, posteriormente, haver a formação de nova(s) câmara(s) magmática(s) e dar origem a novos cones vulcânicos dentro da própria caldeira. Há ainda, por vezes, a instalação de lagos dentro da caldeira, caso a zona tenha bastante pluviosidade”. Ver caldeira vulcânica. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/ wiki/Caldeira_vulc%C3%A2nica. Acesso em: out. 2013. 91 Fajã: “António Cândido de Figueiredo, no seu Novo Dicionário da Língua Portuguesa, define fajã como toda a terra baixa e chã ou como pequena extensão de terreno plano, susceptível de cultura, junto a uma rocha, geralmente à beira-mar, formada em regra por materiais desprendidos por quebradas ou acumulados na foz de uma ribeira e assentes quase sempre num banco de lava muito resistente”. Disponível em: http://pt.wikipedia. org/wiki/Faj%C3%A3. Acesso em: out. 2013.

sobem ao cume do Pico olham o infinito para ter uma “memória 125 breve de continente, de terra cheia e junta”... Para ter a certeza de que • “a terra existe e não acaba nas margens da sua ilha, vive muito para lá, cumprindo em pequenos punhados a vingança por tanta solidão, Vilca Marlene Merizio tanto sal, tanto “espaço sem a certeza de raízes fundas” (TL, p. 42). E as pessoas que descem as caldeiras e caminham extasiadas entre os ninhos das gaivotas plantados à beira das lagoas encontram no silêncio do coração das montanhas e na maciez da areia úmida a benevolência do amparo materno. O princípio de ordem da natureza atua tanto para dentro como para fora. Daí a ideia da conciliação dos opostos: o alto e o baixo, o nativo e a estrangeira, o importante e o insignificante, o Pico e a Caldeira, a praia e a igreja. Todos esses elementos naturais, encadeados no romance como trilhas percorridas pela estrangeira sob a orientação segura do cego Tomás despontam paradoxalmente como a linha mais reta para o restabelecimento de Lídia. Os altos e baixos vencidos pelas duas personagens principais do romance de Maria Orrico extrapolam o simples caminhar para mostrar/ conhecer, dando à ação das personagens e aos seus diálogos o que de mais fenomenal pode-se encontrar em literatura: o enlace perfeito de realidade e ficção; do micro e macrocosmo, do individual ao universal. Esse subir ao Pico, descer à Caldeira do Faial, e viver em São Jorge, para depois vir do alto para o baixo e vice-versa é que torna o romance um verdadeiro retrato do arquipélago açoriano (embora trate somente de três ilhas do grupo central) em manifestação viva de amor de quem nele habita, mas infinitamente mais sentido por aquele que o reencontra. Tomás fala de poesia. Diz o nome de Lídia, traz antigos versos (Álvaro de Campos) para que, aceitas as diferenças, surjam as semelhanças que mais os atraem e os unem. Sem o intercurso da subjetividade não se é capaz de aprofundar e enriquecer a compreensão lógica do mundo interior; da mesma forma, sem o caminho da introspecção profunda e ampla carecemos da experiência para compreender o processo mental da psique.

Em virtude disso, a contemplação objetiva do caminho interior através das paisagens telúricas do inconsciente permite a iluminação do caminho para que não se corra o risco de se perder nas suas sombras. Para Lídia, Tomás era o guia, o que ensinava a ver 126 um mundo diferente, o que tinha sempre algo a dizer, sempre uma • descoberta a apontar, sempre uma recusa, uma razão para conduzi-la Há flores e frutos no colo das ilhas de volta a si mesma: “Levava-me pela mão, somente pelo prazer de me guiar o espírito, até o lugar de onde ele próprio estendia o corpo e a alma para perceber o mundo”. E Tomás e Lídia, pelos caminhos do inconsciente, irmãos no mesmo gesto de decifração inaudita personificam a alegoria contida nos momentos em que o Eterno irrompe no processo temporal de Cronos. O fluxo da energia inerente à natureza original da alma, o Ki, circula entre os dois para que ouçam a voz suave da verdade. E se em Terra de Lídia, Tomás é a Verdade, isto é, o caminho, Lídia, encontrando-o, amando-o e a ele se unindo carnal e espiritualmente, desperta do seu sono de estrangeira e, com ele e através dele, sofre a transformação: Era um feitiço poderosíssimo o que assim me prendia os olhos teimosos à ilha do Pico e o coração cativo a todas as ilhas, que são os lugares mais distantes do mundo, sempre e sempre, nas profundezas da imaginação, velas que o vento sopra no mar rumo à aventura, marcos do desconhecido [...], ecos de magia... Era o encadeamento perfeito do caminho de Lídia nas ilhas: no alto do Pico para ver nascer o sol e poder subir tão alto como as cores crescentes que levantam o dia; no fundo de uma cratera vulcânica para partilhar da noite o que ela tem de forte e sonâmbulo, deitar-se no [...] chão e reter no corpo a energia das terras dormentes, a inércia completa do mundo, todos os espaços em branco, todos os sons [...] O calor dos baixios, o escuro e o resguardo

das encostas, o silêncio inquebrantável dos cercos, toda a 127 paz uterina para o cumprimento das noturnas gestações • (TL, p. 59). Lídia e Tomás suspensos pela mesma ternura nadam em Vilca Marlene Merizio comunhão e afeto. Dessa vez, Tomás presentifica também o encan- tamento: [...] ensinas-me a tocar e a aprender no corpo-volume dos escritos as formas que a luz roubou dos meus olhos, e, em troca, eu dou-te o meu falar de eco que nasce sem nenhum ruído que o provoque, apenas um tocar de sabedor, um eco que é meu e é nosso... (TL, p. 78). Mas, nem tudo estava resolvido. Seria preciso vencer novos obstáculos, curar o passado para que a nova alma pudesse se desenvolver. E veio a surpresa: Frederico, o antigo companheiro, estava lá a insistir para que voltasse. Depois a constatação e o reconhecimento de já não ser a mesma. Lídia compara os dois homens que ocupam agora a sua vida. Volta a sentir-se perdida, pequena, à deriva... O marido pronuncia o seu nome como se a sua voz viesse da outra margem do oceano. O encanto desaparecera porque já é outro que adoça o seu coração. O seu nome ela queria pronunciado por quem o dissesse em voz de poesia. Na verdade, seu nome dito sem gota de agitação, sem promessas nem cobranças. O nome serenamente pronunciado como se nada e tudo dissesse... Se ela voltasse, estaria levando todos os fantasmas consigo; não haveria transformação. Frederico, olhos mais mortos que os olhos cegos de Tomás, olhos cegos de raiva ... E Lídia: “Não vou, Frederico”. E Lídia, sozinha, vencido o grande obstáculo da sua vida, saiu, caminhou noutra direção, passos certos em novo rumo. Nesse momento, buscando a verdade, a Verdade interior é-lhe revelada. Lídia integra-se ao Todo, dando-se toda ao mar: [...] “agora eu era das ilhas virgens, era do mar

imenso e dos navegantes, já nada interrompia a minha longa rota, tinha uma paisagem aberta à minha frente” (TL, p. 90). Ela, depois de viver acorrentada à verdade de Frederico, viera para as ilhas em busca de novos caminhos e, agora, resgatada a 128 sua dignidade, deslumbrava-se com a paz. Estava, pois virada uma • página e, no livro da sua vida, mais um capítulo se abria. No caminho Há flores e frutos no colo das ilhas da Verdade, ela passara a ser a sua própria verdade. Consciente, desperta para o seu momento de grandeza, a totalidade dinâmica do seu jogo interpenetra todo o micro/macrocosmos. Da escuridão, saiu o Tomás [...] Chegou junto da água, descalçou-se, despiu-se lentamente... [...] tinha uma outra intenção nos olhos com que me iluminava. [...] Em volta tudo era um cerco de mar manso que marulhava... (TL, p. 90), a acobertar os amantes. Querer? Lídia queria. Ceder? Lídia não podia. Mais uma vez a conciliação dos opostos era exigida: entre o medo de reacender todas as luzes da memória pelas mãos de um outro – Frederico longe, para sempre fora do real e longe do possível – e Tomás, no escuro, sempre no escuro, limpo, fresco, com cheiro à pureza das ilhas...! A dor de outrora e o prazer do momento, nas pernas escravas e abertas, sempre abertas por medo ou vontade... Ontem e hoje, no mesmo gesto repetido, a dúvida, o trauma, a escuridão... O querer/não querer: “Tomás não te sujes comigo/eu não quero/eu já nem sei amar...” E mais adiante: “Para!” Ele não faz nada, ela não foge, não se esquiva, e ele não a prende. O toque dentro da água é escorregadio: um manto de sargaço, leve, muito leve. Ele diz: “Deixo-te fugir, se quiseres”. Ela não foge”. Esse não-querer-e-no-entanto-deixar-fazer é resultado do centro da energia que flui entre o açoriano e a estrangeira. E esse centro situa-se entre os olhos – no sexto chacra – que, como leme, movimenta toda a criação, fazendo circular o yin e yang, experiência que permite a inteireza do indivíduo em perfeito equilíbrio dos seus sentidos.

Lídia, através do companheirismo de um cego, conhece as três 129 ilhas do Arquipélago dos Açores: Pico, Faial e São Jorge e a si própria • permite-se modelar: está composta a mítica 10a Ilha dos Açores: a Terra de Lídia. Uma terra em que todos os verdes se completam, mas Vilca Marlene Merizio na qual a ausência da flor se acentua na falta. Lídia, quando chega ao Faial, está com alma carregada de tristeza. Aos poucos, foi-se habituando “àquele arfar de ar molhado” e com a sensação de uma outra pele, embalada na ilusão de “ser já açoriana de alma completa e corpo satisfeito” (TL, p. 90). O objetivo de Tomás, ao sentar-se em silêncio (e por três vezes, Lídia o encontrou assim), seria o de unir a função desenvolvida pelo consciente do ego a um aspecto maior da totalidade, à fonte do ego. Quando me sento, esqueço tudo: dou repouso aos meus membros, silencio o meu raciocínio, separo-me do corpo e da alma e me torno um com o Grande Uno. Tanto a revelação como a hora do retorno, quando a noite se transforma em dia, a escuridão em luz, a quietude em atividade, a morte em vida, o retorno em início, o yn no yang, Lídia a si mesma, referem-se às duas faces de uma mesma moeda. Manifesta-se o mistério: a porta pela qual surgem todos os milagres. Mas no final, não há casamento. Tomás exige o afastamento de Lídia: ele quer que ela regresse ao seu mundo, já agora forte e restabelecida. Consuma-se, então o antigo ensinamento chinês: “Se queres a felicidade, permanece sem desejos, e então contemplarás o milagre”. No romance Terra de Lídia é o Outono que se anuncia. Por isso, não há flores para festejar a conquista. Do ponto de vista psicológico, a flor significa a origem, o desenvolvimento do eu ao redor do seu núcleo mais íntimo. E a ausência da flor em Terra de Lídia ainda é sementeira; não há gestação porque, antes, é preciso desenvolver do mais íntimo o início de uma nova vida. O homem que pratica o seu caminho para a realização leva uma vida comum, porém a sua alma habita o Santificado. “Esse não-fazer-e-no-entanto-fazer” é o efeito da unidade no centro. E o centro da sintonia está entre os olhos, que é por onde Tomás vê o

mundo. O ponto central, o eixo das sintonias significa ação. E agir significa deixar toda a criação se transformar, não limitando apenas à percepção. Por isso, é preciso deixar Lídia partir. Mas a Terra de Lídia continua prenhe de surpresas... De sedução. Em Tomás comprova- 130 se a sinergia entre homem e natureza, onde se entrelaçam fios do • pensamento religioso e filosófico. Há flores e frutos no colo das ilhas Lídia para reequilibrar-se vai à ilha, ao útero, em eterno retorno. A ancestralidade, no romance, é simbolizada pelos tios de Tomás, os laços de família, a velha casa do Faial. Mas o mundo dele situa-se no “antes do tempo”, e a criação do céu só acontece depois de Lídia criar o seu próprio mundo. Para a circulação da Luz necessita-se também da luz do ouvido. Há uma luz do olho e uma luz do ouvido. A primeira luz, a do olho, é a unificação do Sol, da Lua e de outros astros; a luz do ouvido é o ponto de intersecção da luz interior e do sol interior na semente, lugar onde a luz se reúne, se unifica para depois germinar. A luz do ouvido Lídia tinha. A luz dos olhos, Tomás dominava, mas o cego de quase-nascença não permite a estagnação. E Lídia parte. Fazia-se necessário o desapego. Lídia parte. Aos açorianos, os seus penhascos. Como dizia Lili Pavão: os Açores são para os açorianos. Olhar para dentro do próprio coração e reconhecer o próprio eu, eis a concretização dos Sete Caminhos. E esse retorno ao vazio é unificado no Tao, e o Tao se realiza e a realização consome o Tao. Esse mistério não pode ser explicado. O seu lugar é no Aqui e Agora. E a liberdade se faz. Quando a luz circula pelo espaço dos ancestrais (Campo do Elixir), os espíritos que vagueiam se aquietam. E estar nos Açores é voltar ao Paraíso, à casa do Pai. Relacionar a ida de Lídia para os Açores é retornar à Grande Estrada que leva ao Palácio de Jade. Lídia podia voltar para o rio da sua memória. Tomás catou com as mãos poejo e marcela. E rosmaninho. E morangos silvestres porque também estavam em jogo os instintos e a sexualidade. E os dois, comendo os frutos que a terra lhes oferecia, foram homens e

felizes, não importando as origens: continental e ilhéu se unificavam 131 pelo amor. • Tomás acendeu ao pico do Pico: ele nada temia. Lídia subiu ao Vilca Marlene Merizio cimo do Pico e deixou de temer. Os pais de Tomás, na adversidade (erupção do Vulcão dos Capelinhos), foram os últimos a deixar o monte em brasa. Foi do que sobrou do antigo farol que Tomás contou: a cada contração da terra o parto se fazia, e “tiveram de esperar até que, ao primeiro rio de lava que escorreu da boca do vulcão” (TL, p. 122), nasceu Tomás, o homem não só ali nascido, mas “um filho da ilha, parido nas torções da terra, nas suas contrações e dores”. Sabia as ilhas de memória porque crescera dentro delas, fora a sua gestação uma gravidez de terra e mulher, nascera trazendo no sangue os caminhos [...] “tão determinado como o vulcão que o expelira para o mundo, tão definitivo como as quedas que lhe roubaram a vista”. “Tão sem saudades como a terra inerte, tão sereno como os séculos que passam, inofensivos, pelas rochas”. Tomás, o “filho das rochas” (TL, p. 123) que conduzindo Lídia pelo caminho das pedras até à serenidade das fajãs, soube transmutar o inferno em poesia. Tomás é o homem-ilha. Lídia: a décima Ilha. Lídia, com coragem, rasgou o mar para resgatar um tempo feliz; conseguiu trilhar o caminho da realização pessoal, partindo do caos, aqui simbolizado pelas pedreiras negras do Pico, vivenciando os altos e baixos do Faial até alcançar a doçura de São Jorge. Tudo conquistado e merecido. Mas, advertiu Tomás, se teimasse em ficar, “mesmo depois da dor amansada”, aí seria covardia. E disse: Nós fomos uma viagem, tu vieste ao largo, eu dei-te ao corpo maré... Mas soube sempre que o teu caminho não se cruzava comigo por mais que uma crônica de assombro. O teu rumo passou por aqui, o meu nunca daqui sairá (TL, p. 115). Lídia, sozinha, retornou à sua terra de origem, completa e irremediavelmente curada. Só lhe sobejam saudades!

Há flores e frutos no colo das ilhasReferências GERBER, Richard. Um Guia de Medicina Vibracional. São Paulo: Cultrix, 132 2001. • ORRICO, Maria. Terra de Lídia. Lisboa: Salamandra, 1994. RIZZI, Jorge Angel Livraga. Os sete caminhos para a realização espiritual. Belo Horizonte. Nova Acrópole, 2004.

8 Das raízes à diáspora: perenidade garantida pela arte92 Perenidade Garantida pela Arte. 92 Texto escrito a partir da conferência José de Almeida Pavão: das raízes à diáspora, apresentada no XVII Colóquio da Lusofonia, na Lagoa, ilha de São Miguel, Açores, Portugal, em 1 de abril de 2012. Publicada nos Anais do XVII Colóquio da Lusofonia e no CD do XVII Colóquio da Lusofonia. 30 de março-3 de abril de 2012. Lagoa, Ilha de São Miguel, Açores, Portugal.

Conheci o Professor Doutor José de Almeida Pavão93 nos corredores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, quando ele e a Sra. Dona Lili pediam informações a respeito do local onde ficava a parada de 134 ônibus para o centro da cidade. A universidade estava em greve e o • Prof. Pavão acabara de lecionar para uma turma do Departamento Há flores e frutos no colo das ilhas de Língua e Literaturas Vernáculas. Ouvi o pedido de informação por acaso: também eu saíra de meu gabinete com certo atraso. Na secretaria do curso, naquela hora de almoço, não mais havia professores nem funcionários. Passava das doze horas. Era 1986. Eu sabia da presença do casal Pavão em Florianópolis, mas ainda não os conhecia. Apresentamo-nos e, em razão da dificuldade em apanhar condução àquela hora e por considerar deselegante deixá-los sem companhia, convidei-os para almoçar em minha casa, que ficava a pouca distância da universidade. Aceitaram. Fomos a pé. A feijoada agradou-lhes. A Sra. Dona Lili confessou- se surpreendida pela facilidade com que havíamos nos entrosado, inclusive almoçando juntos, em minha casa, numa segunda-feira, nem mesmo duas horas decorridas do nosso primeiro encontro.94 Havíamos, naquele instante, iniciado uma trajetória de amizade, amor e respeito que até hoje perduram, mesmo já tendo os dois amigos partido para outra dimensão espiritual. Mais duas vezes, o Prof. Pavão e a Sra. Dona Lili voltaram a Santa Catarina. Em julho de 1987, por ocasião da II Semana de 93 José de Almeida Pavão, professor e escritor açoriano. Principais obras: O Fundo do Lago (1978), Os Xailes Negros (publicado pela primeira vez em 1973, foi alvo de adaptação televisiva), O Além da Ilha (1990), Evocações (1968), A Roda do Tempo (1970), Ad Familiares (1994), Relicário de Cantigas (1994), Espelho da Memória (1995), Marianinha (1997). 94 Foi naquela ocasião, que o Prof. Pavão falou-me entusiasticamente sobre os Açores, que eu conhecia apenas pelas lembranças da minha avó, pela história da colonização de Santa Catarina e pela vivência com os manezinhos do litoral catarinense, na época ainda discriminados pelos descendentes dos colonizadores alemães e italianos do interior do Estado (com quem convivi até os meus dezenove anos).

Estudos Açorianos, na UFSC, visitaram-nos com uma comitiva 135 grande, nela incluída uma representação do Governo Regional • e professores da Universidade dos Açores, inclusive os Doutores António M. Machado Pires, Rosa Goulart e Maria Margarida Maia Vilca Marlene Merizio Gouveia, entre outros. Prof. Pavão e a Sra. Dona Lili também foram à minha residência, dessa vez na casa de sítio, em Picadas do Sul, São José, onde, com todos os outros convidados, serviram-se de um churrasco à moda gaúcha, sem que os comensais se sentassem formalmente à mesa. Lembro-me da observação da Sra. Dona Lili, dirigindo o olhar complacente para os outros visitantes açorianos, como que a me desculpar: em Roma, como os romanos; e, sentando- se num banquinho baixo, de madeira, apoiou o prato com saladas, farofa e carne de boi, nas pernas, tentando equilibrar o copo de suco de pitanga na mão esquerda. O Prof. Pavão, em paz, e à vontade, com mais sorte, pois encontrara uma pilastra sobre a qual apoiara o prato, e com a bonomia que lhe era característica, interessava-se em saber como se assava tão deliciosa carne de gado. No mesmo ano, em outubro, cheguei a Ponta Delgada, onde permaneci por cinco anos, sempre amparada pelo casal Pavão que me abriu as portas de seu lar, pondo-me em contato com pessoas da sociedade açoriana, além de me dar – e à minha família – preciosas lições de vida e riquíssimas aulas sobre o Arquipélago dos Açores, Portugal Continental e as terras da diáspora no hemisfério norte. Que me lembre, só mais tarde, em 1996, o casal Pavão retornou à Santa Catarina para participar das comemorações do Festival do Mar. E por que menciono sempre a Senhora Dona Lili, quando penso ou falo no Prof. Pavão? Porque o casal era inseparável. E, acredito, o caráter e a fibra da Sra. Olívia da Conceição Pereira de Almeida Pavão, a Dona Lili, devem ter servido de substrato para a composição dos traços fortes e positivos que marcaram certas personagens criadas pelo escritor J. Almeida Pavão. Uma vez o professor me disse: minha mulher é uma generala, expressão que encontrei mais tarde no romance O Fundo do Lago

(1987), ao ser revelado o caráter de Liduína, esposa de Clemente Guimarães, mulher de espírito aberto, paradigma de tolerância e compreensão: 136 – A minha mulher é uma generala. Nasceu para mandar. Eu • obedeço como soldado disciplinado. Há flores e frutos no colo das ilhas [...] Se alguma vez o Guimarães tentava pôr-lhe objeções, o olhar de Liduína fulminava-o sem mais delongas como a traduzir em linguagem discursiva: – É inútil, Clemente, não gastes argumentos desnecessários. O marido, a justificar esta subserviência nada custosa, explicava aos estranhos: – A nossa vida é pautada por uma norma que nós observamos religiosamente: em casa, manda ela, mas fora sou eu que dou a sentença final. O excesso de zelo de Liduína para com o esposo Clemente é marcante. No romance: [...] Guimarães tinha uma dívida perpétua de reconhecimento para com a mulher, embora com algumas reticências: a Liduína, com a imaginação incandescida pelo ciúme, arvorava-o às culminâncias dum Don Juan (1987, p. 31). Acontecido na vida real: no final da década de oitenta, não sei precisar a data, houve um congresso promovido em Ponta Delgada pela Universidade dos Açores sobre as comunidades de cultura de raiz açoriana (se bem me lembro) a que compareceram o reitor da UFSC e outros professores catarinenses. Fazia parte da programação cultural do evento um passeio pelos pontos turísticos da ilha de São Miguel. No dia aprazado, à entrada do autocarro, quando ainda estávamos escolhendo o lugar para se sentar, a Sra. Dona Lili, sorridente, depois de me cumprimentar com dois beijinhos e um abraço, observou, sorrindo: – Então, estás com meu marido ao peito, heim!

Sem entender o tom a observação, disse-lhe que não, que trazia 137 o Prof. Pavão no coração – e logo acrescentei com sinceridade, mas • também, no fundo, preocupada com a fama das mulheres brasileiras no estrangeiro: trago no meu coração toda a família Pavão, a senhora Vilca Marlene Merizio também. E ela, sem cerimônias, tocou no broche de marquesite com a forma de um pavão, recém-adquirido numa ourivesaria de Ponta Delgada, e que eu usava na lapela do casaco. Rimos, e o caso ficou por aí, embora a mesma cena tenha se repetido sempre que eu aparecia com o tal broche na gola de um vestido ou do casaco. Lembro agora que antes, assim que cheguei a Ponta Delgada, em 1987, sem marido, a quem o casal conhecia, e com quatro filhos, três dos quais já adultos, num jantar oferecido, se não me falha a memória pela Universidade dos Açores no Hotel São Pedro (acredito que foi durante o mesmo congresso), a convite do casal Pavão, sentei- me à mesa junto com os seus amigos. Trajava eu um tailleur de veludo verde cujo casaco, sobre um vestido tomara que caia, apresentava um decote quadrado (no meu entendimento não muito pronunciado). Assim que me acomodei ao seu lado, a Sra. Dona Lili, tirando uma écharpe da sua bolsa, ofereceu-me para cobrir-me o colo: é melhor agasalhar-se, pode pegar uma constipação... explicou-me ela. Acedi, agradecida, entendendo o que nós, as mulheres, às vezes não dizemos por palavras; no entanto, agimos por precaução. A partir daí, aprendi, e muito, com a Sra. Dona Lili, a viver nos Açores sem perturbar a vizinhança ou quem quer que fosse, em especial as mulheres. E foram incontáveis naquela época, os domingos que passamos juntos, na residência do casal, junto com a família, nos passeios pela ilha (muitas vezes o Prof. Pavão me disse: vocês – referindo- se também aos meus filhos – conhecem a ilha de São Miguel muito mais que a maioria dos micaelenses), nos aniversários em minha casa, quando eu lhes servia feijoada ou sopa de mocotó (na falta de melhor...), quando o Prof. Pavão então, oferecia-nos árias musicais do seu seleto repertório. E agora me vêm à mente também as canções do Aníbal Raposo e da Conceição Tavares que, admiravelmente, junto

com os demais convidados davam-nos provas da beleza contida na música portuguesa. E havia o serão poético. Ah! Que encanto, meu Deus! E se espaço houvesse, outros nomes ilustres aqui eu poderia apontar. 138 Em quase todas as quintas feiras, no final da tarde, ou muito • cedo, logo depois do almoço, de 1987 a 1992, excetuando apenas Há flores e frutos no colo das ilhas quando estavam em viagem ou com sérios compromissos, o casal passava rapidamente por minha residência – só o tempo de um chá – para, no sentido de dar-me apoio. Jamais poderei deixar de me sentir grata e orgulhosa por tão generoso acolhimento, acompanhamento incondicional e companheirismo durante a minha formação em Ponta Delgada. Amor familiar mesmo. Com simpatia e alma aberta, ambos partilhavam seus saberes e fazeres. Por isso, aos dois, a minha gratidão, ternura e amor agora materializados nesta homenagem. Vi-os pela última vez quando, em novembro de 2002, voltei a Ponta Delgada e, numa visita, ministrei Reiki à Senhora Dona Lili, a pedido do Prof. Pavão. Ele me disse: – Primeiro ela, quero que Lili fique bem. Dona Lili adormeceu na sala. O Prof. Pavão arrumou-lhe as almofadas e levou-me até a porta. Despedimo-nos pela última vez. Em 2003, telefonei para a filha do casal, cujo endereço eletrônico eu encontrara por acaso. Doutora Leonor me deu a notícia: o Prof. Pavão, meu querido amigo e compadre, havia falecido. A Senhora Dona Lili estava bem; mas nunca mais a vi. De ambos, conservo intatos o calor da amizade e condolente saudade. Vivesse entre nós hoje, Prof. Pavão estaria com 93 anos de idade. Faleceu com 84 anos, dos quais, conforme já dito, cinco tive a graça de partilhar com ele e sua família (1987-1992) num convívio de muita amizade, compreensão, troca de experiências e aprendizagem (da minha parte), cheguei mesmo a convidá-lo para padrinho de crisma do meu filho mais moço, então com 17 anos. De 1992 até sua morte, continuamos a amizade jamais quebrada pelos longos

períodos de ausência física; pelo contrário, cada vez mais solidificada 139 pelo respeito mútuo e admiração crescente. • Quando optei por homenagear o escritor açoriano J. Almeida Vilca Marlene Merizio Pavão,95 tinha em minhas mãos quase uma vintena de livros de sua autoria, grande parte dos quais oferecidos pelo próprio autor, outros, minuciosamente garimpados em bibliotecas catarinenses, todos configurando o retrato da feição poética e científico-literária desse grande humanista nascido em Ponta Delgada em 1919 e falecido na mesma cidade em 20 de setembro de 2003. Do seu espólio literário, remontam mais de setenta publicações, que incluem investigação, ensaios e ficção, dos quais contam estudos e análises literárias, ensaios, artigos e teses sobre grandes nomes e temas da literatura portuguesa.96 Consegui pelo site Estante Virtual sua primeira obra publicada sob o título Sub Tegmine Fagi, de 1947: sete ensaios a que o autor pediu que não rotulassem de crítica literária: (1) A sombra de Bernardim Ribeiro nas ‘Saudades da Terra’ de Gaspar Fructuoso, (2) Mito e Fatalismo no Sentimento Trágico dos Gregos, (3) Os Reflexos do Fatalismo Grego num Clássico e num Romântico, (4) O sentido da Realidade em Júlio Dantas, (5) A indisciplina Romântica de Eça na sua Evolução Literária, (6) O Diabo na Literatura e (7) A Eternidade de D. João.97 95 Nome próprio conforme anuncia o escrito na capa de Horas sem Tédio (2001). Ou: José de Almeida Pavão, José Almeida Pavão, ou, ainda José de Almeida Pavão Jr., poeta, romancista, ensaísta, pesquisador, amante inveterado e divulgador da cultura açoriana. Prof. Doutor Pavão tinha o dom de ensinar por tudo o que vivia e contava. Era um homem de bem, como o definiu Vamberto Freitas. A Profa Doutora Maria do Céu Fraga, que o substituiu na cadeira de Literatura Portuguesa na Universidade dos Açores confirmou: o Professor conseguia muito bem conciliar a parte da exposição de ideias, em que era muito vivo, com a parte do trabalho duro, onde ele também era muito exigente (Açoriano Oriental, 2003, p. 3) . 96 Ao revisar o texto desta conferência, em fevereiro de 2020, constatei o registro de 72 títulos de textos, ensaios, palestras, conferências, artigos, poesia e obras de ficção de autoria de José de Almeida Pavão, no segundo volume da Bibliografia Geral da Açorianidade, de Chrys Chrystello, p. 369-373, edição de Letras Lavadas, Lomba da Maia, Açores, Portugal [2018]. 97 Publicou ainda, os ensaios: Reflexões sobre o Teatro Cómico. (1955), Garrett Clássico e Romântico. (1955), O Sacrifício. (1958), Fialho: o Homem e o Artista. (1959), Alves Redol

Nas Duas Palavras de Abertura, texto que antecede os ensaios Sub Tegmine Fagi (1947), o autor posiciona-se a respeito da crítica portuguesa da época e seus autores, que se arroga[va]m um saber 140 enciclopédico aliado à superabundância do talento capaz de devassar • todas as esferas, e que se vangloriavam de dizer mal da prosa ou dos versos dos outros Dizia J. Almeida Pavão que a verdadeira Crítica, Há flores e frutos no colo das ilhas era aquela que, segundo ele, deveria ocupar um lugar ao sol, como subsidiária da Cultura, que desempenha papel relevante [e] que voga muito acima desses conceitos comezinhos de se dizer à boca pequena o que não havia coragem para ser dito em público... E continuava, no mesmo parágrafo: [...] o mal dos portugueses está no uso e no abuso das Ideias Gerais, apanágio de tantos pseudo-Fradiques, que escondem a sua superficialidade no ouropel da ciência barata dos compêndios (PAVÃO, 1947, p. 1). E esse testemunho inabitual, maneira de ser que fugia à regra do senso comum expresso naquele momento, foi o fulcro determinante por onde navegaram suas obras vindouras. Com esse pronunciamento, inaugurou-se a pedra fundamental onde se alicerçou o eixo do que pode ser considerado o seu mito pessoal, no dizer de Charles Mauron (1962), ou como mais recente tem-se evidenciado, expandindo em viva voz o estilo do seu pensamento de acordo com as Ciências da Vida (Parreiras, 2006); melhor eu diria: as ciências literárias que servem de fonte e de foz da criação artística. Essa opção por repelir a má língua no julgamento de obras alheias, manifestada ainda no começo de sua carreira, acompanhar- e o Neo-Realismo. (1961), Uma Gramática Latina de Verney (1962), Poesia e Mística. (1964), A Poesia e a Novela em Frutuoso. (1967), A Realidade e o Símbolo em Kafka. (1967), Arte e Compromisso. (1972) Antero e a Morte. (1972), Pessoa e os Heterónimos. (1972), O Classicismo de Ricardo Reis (1973), (1973), O Portuguesismo de Cecília Meireles e os Açores. (1974), Sortilégio da Insularidade nos Poetas Micaelenses. (1977), Aspectos Populares Micaelenses no Povoamento e na Linguagem. (2a ed., rev. e aum, 1982). (1981), Aspectos do Cancioneiro Popular Açoriano. (1981), Popular e Popularizante. (1984), Temas Camonianos. (1988), Colagem dos Tempos. Caminheiros da Cultura. (1992), Nugas Linguísticas. (1995), Páginas Revividas. (1998), Páginas Revividas II. (2001), Horas sem Tédio.

lhe-ia por toda vida, imprimindo-lhe incontestável envergadura 141 moral e intelectual e plena aceitação em toda a comunidade científica. • Ainda há algumas semanas, no Brasil, às margens do Atlântico Sul, na ilha de Anhatomirim, ouvi dele dizer: o Doutor Pavão era um Vilca Marlene Merizio querido. E quem dizia, num misto de ternura e reconhecimento e com conhecimento de causa, era a Profa Doutora Maria da Graça Borges Castanho. Impunha-se naquele distante 1947, publicamente, o homem de letras, o professor que defendia a crítica de pendor construtivo, aquela que, na sua função interpretativa, pode abrir novos horizontes ou lançar um rasto de luz nas trevas de que por vezes se rodeia a solução de um problema não raro mal posto... Prof. Pavão era a favor da Crítica (e ele a grafava com letra maiúscula) que, desprovida de ideias preconcebidas, orienta[ria] as correntes de gosto e da opinião, ao mesmo tempo, sistematiza[ndo] a Cultura (PAVÃO, 1947, p. 1). Contundente, o mestre afirmava: ser um crítico de arte não implica necessariamente que este seja um poeta ou um pintor, interpretando, comentando ou corrigindo aquilo que ele próprio não faz ou pode não ser capaz de fazer. E tomando os imperativos da profissão que abraçou, o magistério, força que o impeliu ao estudo permanente e ao uso exclusivo de todas as energias, com sacrifício quase completo doutros sectores de atividade espiritual, punha-se ao lado do professor competente que, ao contrário do pedagogo de atitude despótica, rejubila-se com o ...o aparecimento de novos valores que despontam para a vida; e concluía o humanista micaelense que exercia o magistério como um sacerdócio: é no interesse desinteressado de si próprio que se cifra a beleza do magistério. Queria que os seus alunos o ultrapassassem em sabedoria (impossível, isso!). Educador e Amigo assim era J. Almeida Pavão. Homem de fé tinha o dom de ensinar por tudo o que vivia e contava. Era um homem de bem, definiu-o Vamberto Freitas. A Profa Doutora Maria do Céu Fraga, que o substituiu na cadeira de Literatura Portuguesa na Universidade dos Açores confirmou: o Professor conseguia muito

bem conciliar a parte da exposição de ideias, em que era muito vivo, com a parte do trabalho duro, onde ele também era muito exigente (AÇORIANO ORIENTAL, 2003, p. 3) . Na dedicatória de Sub Tegmine Fagi (1947) dirige-se ao Pai, 142 com uma ternura que tanto envolve a sua ascendência quanto a • descendência (dois filho e netos); a sua ternura paternal transcende Há flores e frutos no colo das ilhas a família de sangue e bafeja alunos e amigos. Na dedicatória ao Pai, diz: “À memória de meu Pai em/ quem encontrei, acima de tudo/ um Amigo, o melhor exemplo/ a legar ao meu filho”. E, assim, amigo de todos, ouvindo para aprender e ensinando sempre, até o final do seu tempo, foi fiel a si mesmo, deixando o registro escrito de suas pesquisas e estudos como investigador, ensaísta, articulista, romancista, poeta e professor. Poderia dizer mesmo que esse pendor de J. Almeida Pavão o ergue ao estatuto das bem-aventuranças quando partilha, de boa vontade, casos e causos do seu cotidiano. Nesses momentos, a modéstia que o identificava dava provas da sua grandeza interna, permitindo que o seu nome fosse inscrito indelevelmente na galeria dos que se afirmam como os melhores, desde a terra onde medraram suas raízes até os países da diáspora açoriana. Ainda em relação às suas obras de investigação, vieram outros textos ensaísticos onde foram abordadas obras de Gil Vicente, Frei Luís de Sousa e Garret, Luís de Camões e Fernando Pessoa, Antero de Quental, Vitorino Nemésio, só para citar alguns, desde a poesia à ficção narrativa; do romance clássico ao folclore; do teatro às tradições populares; do documento histórico, político e social à aos temas religiosos; das referências às paisagens telúrica e humana da ilha de São Miguel ao falar das gentes dos Açores e de Santa Catarina. Nada escapou ao ensaísta que tinha na alma o condão de transformar em poesia tudo o que os seus olhos viam e o coração sentia. Em 1956, publicou O Sacrifício. Ensaios que abordam o tema do sentimento religioso. Na Nota Breve que antecede o texto, diz que é um trabalho de pura especulação, sem apologia a nenhum credo. Da segunda parte, das Manifestações do Sacrifício Antropocêntrico

entre os Primitivos, destaca que ...o homem crê no destino, mas 143 integra[...]-o no mundo da sua vivência (PAVÃO, 1956, p. 219). E a • sua compreensão sobre o destino foi transposta para a ficção. Tanto que, no que se refere às narrativas, a força arquetípica do destino, da Vilca Marlene Merizio sorte ou do fado, provavelmente pesou na escolha das diretrizes que o ajudaram a compor as suas personagens, muito especialmente as femininas, como é o caso, por exemplo, de Marianinha e Margarida. Em Marianinha (1997), o narrador, no final do romance, dá a entender que crê no destino e na previsão da cigana. Entretanto, Marianinha, sofrida e calada, vivendo num tempo mais afastado do nosso, justificava-se, lembrando as palavras da mãe a propósito de uma promessa que pretendia que a filha fizesse a favor da recuperação do marido dependente de drogas ilícitas: nós, os humanos, é que somos responsáveis pelos nossos atos. Para isso Deus nos concedeu inteira liberdade. Ela nada fizera para receber a punição de ter um marido malandro, irresponsável, traficante e usuário de drogas. Por isso, em seus pensamentos, ainda acovardado pela educação assentada na religião do castigo, terminava sempre com um ato de contrição: – Perdoai-me, Senhor, por vos ter ofendido. Mesmo reconhecendo a situação, subjazia na consciência o pecado. A culpa instalara-se na inocente. Em O Além da Ilha (1990), mais culta e socializada do que Marianinha, Margarida tem outra concepção a respeito do seu próprio destino. Ao dar contas de sua vida e, principalmente, do seu labor literário para a amiga confidente, à pergunta Onde aprendeste tudo isto, responde: – Na busca de um encontro comigo própria e da minha própria liberdade. Foi a luta contra a adversidade que mo ensinou. Deixar de me submeter passivamente ao destino. E o destino ... é constituído ...por um conjunto de circunstâncias criadas por nós próprios. Fui eu a grande responsável do que me aconteceu. E, como tal, hei-de superar-me a mim mesma. Tem de ser a razão a vencer

e, com esta armadura de sofrimento, sinto-me mais forte para enfrentar o futuro. (PAVÃO, 1990, p. 131). 144 Os tempos eram outros. A evolução acontecia. A descoberta • da força interior alavancava as consciências, embora a fé numa força superior continuasse tão forte quanto em todos nos tempos idos: Há flores e frutos no colo das ilhas – Creio numa força sobrenatural, misteriosa que, neste mundo, me instila a coragem que sinto para enfrentar o mundo. Um Deus interior, que se instala no meu próprio ser. Uma voz que sinto e cujos ecos reboam, ao mesmo tempo estranhos e inerentes à minha essência. Um Deus feito de vontade e determinação. E o julgamento da amiga madeirense encerrou a questão: Marianinha, agora, depois de todo o sacrifício pelo qual passara era Uma alma que sofre metamorfoseada num ser que pensa. Estava posto o Mistério... Mas o escritor não escreve para si mesmo, porque, se assim fosse, ele encontraria no texto criado apenas o seu saber, a sua vontade, os seus projetos. E encontrar-se-ia inexoravelmente! E não se sabe o que poderia resultar disso. Dentro da sua condição humana, poderia encerrar-se na redoma das suas fraquezas ou cristalizar-se nos picos de glória, não mais se importando com a magnificência do cenário natural em que habitasse, no caso em foco, o arquipélago dos Açores, tão cheio de exuberâncias e tão frágil quanto aos cataclismos. Nem a sua gente tão rica de predicados, persistente, forte e generosa no lar farto, mas também com aquela parte, mesmo que minoria, solta de língua e encolhida na casca de um, céu cinzento, despertaria o seu interesse de pintor das letras nessa ilha mãe e madrasta conforme o capricho momentâneo da natureza. A aclamação aos santos, o sacrifício dos romeiros por uma boa causa, o folclore, as danças populares, as quadrinhas, as sopas do Espírito Santo, a fé no Senhor Santo Cristo, as promessas, a cultura urbana e a do campo, a evolução dos costumes, a destrinça entre

vizinhos e gerações conflitantes, a vontade de expansão mar a fora 145 quando a falta do que comer desenha sonhos de abundância, a coragem • da entrega ao desconhecido (O Além da Ilha...), tudo fornecia matéria para o imaginário de J. Almeida Pavão. Mas, se na sua obra, o riso e o Vilca Marlene Merizio pranto coabitam, a tragédia é sobreposta pelo engraçado – Queres mais água, Jacinta? – pela resolução dos conflitos, pela volta à paz. E quando penso num espírito tão singular quanto o de J. Almeida Pavão ao tratar de uma rica e múltipla gama de temas e modos da cultura da sua região, lembro-me da pergunta que frequentemente José Martins Garcia impunha quando procurava demarcar uma obra literária posta em leitura: qual o modo pelo qual o autor descortina o fulcro de sua obra? E se me fosse dado responder, não vacilaria em dizer que J. Almeida Pavão escrevivia (para usar uma expressão de David Mourão-Ferreira) o que ele considerava mais sublime e sagrado: a Vida com tudo o que ela é. Possivelmente bebendo na fonte dos grandes mestres da literatura portuguesa, também ele, Mestre, respeitou os costumes de sua terra natal, com seus altos e baixos, evidenciando a sua gente, com as suas glórias, seus tropeços, misérias e condenações. Possivelmente, enjoou-se quando teve de contar as mazelas escondidas nas quatro paredes de uma casa, a velha mortificação da alma quando se sabe que a inimizade alicerçada na traição floresce entre irmãos, vizinhos e parentes. Condescendente, sabia a distância que vai da aceitação à comiseração. Salva tudo isso o seu lirismo pungente que lhe permite intrometer-se na diegese, deixando sua voz ser reconhecida por aqueles que com ele privavam. Mesmo assim, em seus aproximados 54 anos de escrita ininterrupta, falou, anunciou, denunciou. Disse. Disse diretamente pela palavra oral, por fábulas, pelo exemplo, sobretudo pelo registro escrito, cuja leitura comprova ainda hoje o monumento que sua obra é. Em todos os tempos, e em todas as pátrias, na relação autor/ leitor, uns mais que outros escritores têm o condão de conduzir o leitor na direção do seu objetivo, muito embora o próprio texto distancie-se da intenção primeira do autor. Jean-Paul Sartre (2004, p. 14) afirmou que o escritor lida com os significados enquanto os

poetas silenciam ao alcançarem o que está além do signo, além da linguagem, além das palavras que se instalam no nível exterior do homem. O poeta vê as palavras do avesso, como se não pertencessem à condição humana; o escritor não se serve da palavra como um signo 146 de um aspecto do mundo, ele apenas a reveste da imagem de um • desses aspectos, criando o espelho do mundo, onde a sonoridade, Há flores e frutos no colo das ilhas a extensão, as desinências, as aliterações, as onomatopeias e as animizações representam muito mais do que significam. Por outro lado, Milan Kundera (1991, p. 18) partilha a ideia de que a única razão de ser do romance é descobrir uma porção de vida até então desconhecida da existência. Eu diria que, J. Almeida Pavão, acima de tudo, e principalmente nas suas narrativas, descobre e desvela para revelar aquilo que sua percepção primeiro viu e sentiu como coisa verdadeira, fermentou o visto, o sentido e o intuído em seu imaginário, depois manifestou a amálgama criada sob forma de arte literária. O modo de ser, de pensar e de agir de suas personagens – que vão do cômico ao trágico – pode até ser apontado como originado em fatos reais, mas a sua obra ganha foros de universalidade quando a literariedade do conjunto transcende o regional. É dentro desse aspecto que J. Almeida Pavão, no mais das vezes, deu voz ao seu eu lírico que surge demasiado em sua prosa de ficção. Bem assim como Sartre diz: a palavra que arranca o prosador de si mesmo e o lança no meio do mundo, devolve ao poeta, como num espelho, a sua própria imagem (2004, p. 15 e 16). O ser lírico manifesto na prosa de José de Almeida Pavão já foi apontado por Francisco Topa na Apresentação de A Roda do Tempo, de J. Almeida Pavão (1993, p. 3), aquando da sua segunda edição, ao enfocar o tempo da memória, que se expressa pela presença de [...] um eu claramente expresso ... um eu que se projeta e se revela, mesmo no discurso sobre os outros, à maneira de uma fotografia em espelho que revelasse mais o interior do fotógrafo. Concluída a leitura, a imagem mais forte que nos fica é desse eu – entrevisto de perfil, denunciado por pequenos traços que vão assumindo contornos líricos.

Francisco Topa exemplifica essa quase osmose entre autor/ 147 narrador e personagem do conto Entre a terra e o mar. Depois de • fixado o retrato de João Levinho, maltrapilho e miserento, pai de família, morador de praia de cuja casa o mar, à medida que lhe dava Vilca Marlene Merizio o sustento, perturbava-lhe o modo de viver; o confidente que lhe destruíra o teto, não era o causador dos males de sua vida: – Má raios partam o vento, que não deixa em paz o mar! (PAVÃO, 1993, p. 179). J. Almeida Pavão é um poeta e, concomitantemente, investigador convicto. Ele, pelos seus escritos, fala, conta, acrescenta, declara, traz à lembrança, relaciona, contorna, interpela, persuade e ensina. Nele é a mente que opera através do coração. O poeta convive, partilha, comove e nos comove pela sua própria comoção. Por isso, não posso deixar de fazer menção a dois dos textos de Evocações (1968, p. 167-175): A Personalidade de Milorde e Lamentos de uma Formiga, o primeiro dedicado ao filho Eduardo, o segundo uma forma de, em nome do seu próprio altruísmo, fazer jus à cigarra tão vilipendiada na literatura pela fama de malandra. Amiga cigarra... Admiro-te pela felicidade de seres boa... Admiro-te... vivendo o sonho da tua arte e a beleza do teu canto com uma firmeza inquebrantável, superior ao desânimo ou à decepção que poderia trazer-te uma visão mais lúcida do mundo e dos seres que o habitam. Admiro-te pela ingenuidade com que interpretas a maldade dos outros... pela fome que te realça, em pequenos e curtos contrastes, os contornos da ventura que persistes em não perder, insensível aos favores alheios. Admiro-te ... por aquela felicidade que eu não tenho e que imagino nos outros que eu julgo menos tristes e menos desventurados do que eu. Uma felicidade que se reflete no fundo da minha alma como uma dor de ausência e de privação daquilo que se deseja e que se crê que nunca se possa possuir. Felicidade que é, que se sente, que se quer e que se imagina. (PAVÃO, 1968, p. 181).

Aí o retrato do homem em reverência à Natureza. Bem essa a imagem que trago do Prof. Pavão. Desde o momento em que optei por homenageá-lo, falando de sua vasta obra, pensei reportar-me apenas à sua obras de prosa 148 poética e ficção narrativa: Evocações (1968), O Fundo do Lago (1987), • O Além da Ilha (1990), A Roda do Tempo (1993) e Marianinha Há flores e frutos no colo das ilhas (1997); no entanto, o texto por si só se constrói e, diante da memória saudosa do querido amigo e autor, outros trechos foram transpondo o umbral da escolha. Do elenco acima citado, que pretendi que fosse o corpus deste trabalho, só não faz parte Os Xailes Negros. Explico: por ironia do destino, talvez, não encontrei exemplar algum em toda Santa Catarina e nem mesmo nas bibliotecas públicas, livrarias e sebos do Brasil. O exemplar que, cuidadosamente ocupava lugar de destaque no meu acervo particular, também sumiu. Portanto, de Os Xailes Negros só tenho em mãos limitada bibliografia passiva. Aliás, sobre a fortuna crítica da obra de J. Almeida Pavão, em Santa Catarina, infelizmente existe pouco material. Sobre essa falta, Vamberto Freitas, ao considerar J. Almeida Pavão como o profissional sempre pronto para ver o bom e o positivo na obra alheia (Açoriano Oriental, 2003, p. 3), afirmou ter existido uma certa injustiça crítica em relação à obra de Almeida Pavão, em especial frente a Os Xailes Negros, precioso documento sobre a mais conturbada época moderna do nosso país (FREITAS, 1992, p. 73 e 74). [...] os Xailes Negros contém em si... uma clareza narrativa,,, algumas das poucas... pulsações dos anos 60 e 70, em Portugal. Narrativa ora de hesitações, ora de intromissões mais ensaísticas e moralistas do que ficcionais ... nos seus melhores momentos quase que desanda para nos oferecer um retrato perfeito do seu tempo. Romance de denúncia e ao mesmo tempo, de clara apologia de um mundo que está visivelmente a cair, digamos que é o texto perfeito da era nacional caetanista. Reconhece um passado perdido, mas teme a incógnita do futuro.


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