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haFlores-e

Published by Paroberto, 2021-01-11 23:04:28

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O meio físico – o das ilhas – e psíquico – como resultado de se 149 ser ilha e de se estar na ilha – prendem o ser à terra ao mesmo tempo • que estimulam a fuga pelo mar ou ar; e essa vontade de emigrar que pode parecer ser o fim da miséria como solução de abundância para Vilca Marlene Merizio a maioria dos autores açorianos, em Almeida Pavão não é. A fuga mal sucedida de Guiomar e o amante da novela Crime na Povoação Velha, escrita pela personagem Margarida a partir da informação histórica fornecida por Gaspar Fructuoso e encaixada na narrativa principal sob a forma de mise em abyme do romance O Além da Ilha (1990) provam-nos que não é. José Martins Garcia demonstra que para J. Almeida Pavão, o ato de emigrar reveste-se de um tom próprio: ... partir para a América representa a solução para situações difíceis, por outro lado, essa solução acarreta dissabores e frustração (1987, p. 121-122) ao exemplificar com o sofrimento de Manuel, personagem de Passaporte para a América (Evocações, 1968, p. 133-140), micaelense de torna-viagem que, embora tentasse se convencer de que havia realizado seus sonhos de felicidade fora da ilha (levaria uma conterrânea como consorte), no estrangeiro seus projetos de vida são totalmente aniquilados quando ela o larga com um filho de uma ano, para casar com um rapaz da sua idade. E J. Almeida Pavão conta: Ao regressar: [...] Manuel voltou. Vinte e cinco anos... decorrido[s] como vinte e cinco séculos. As primeiras notícias não tinham sido boas, valha a verdade! Custara-lhe, de começo, a entender aquela algaravia dos diabos, as letras eram poucas e valera-lhe o primo ... – E tua viola, Manuel? – Qual viola! A gente tem lá tempo para pensar na viola? Nem para dormir... ... era dormir com o corpo moído e bêbado de sono.. Mas as saudades! ... À hora de deitar-se, o Manuel não ocultou uma lágrima de júbilo ao deparar com a sua velha cama com uma nova colcha de fustão branco...

Assim, nas narrativas de Almeida Pavão, a emigração surge como arremedo de uma situação conflituosa, tal como no caso da afilhada Fatinha, que, violentada pelo padrinho Sebastião, aceita o casamento com o amor da sua vida (José Luís) e viaja para o 150 exterior, com aquele marido, cujos olhos estavam postos na terra • da abundância, aceitando criar o filho que não era seu (O Fundo Há flores e frutos no colo das ilhas do Lago: 1990). O amor que unia os dois jovens venceu, embora o remorso tenha acompanhado insistentemente Alexandre, o pai da noiva, o qual, visitando a filha e já com saudades da ilha, não se acostumava com as comodidades americanas: e na América ...uma saudade súbita fazia-lhe rolar uma lágrima que vinha perder- se, evaporando-se com o calor da face. (PAVÃO, 1987, p. 246). A saudade, sempre presente nas lágrimas do açoriano que parte e na mágoa do açoriano que fica. Outro caso de violação sexual acometida pela figura de um padrinho e sogro em relação à sua afilhada e nora está presente em Marianinha, cujo desfecho leva o irmão da agredida a cometer um crime de assassinato em defesa da irmã, personagem que também sofre calada a ausência de um marido inconsequente dedicado à droga e a outras delinquências até à sua prisão e morte: Marianinha escrevia agora um presente sem futuro. Era como se mão estranha lhe tivesse arrancado as últimas páginas do livro da sua existência... em cujo percurso as relações entre a realidade e o sonho se combinam em movimentos recíprocos, mas divergentes. [...] A existência de Marianinha assemelhava- se a uma hora de crepúsculo eternizada e sem cambiantes ou a uma paisagem lunar, feita de solidão e silêncio. Viver para quê? Salvou-a o filhinho, o seu luzeiro de esperança: – Querido filho da minha alma! Vais ser feliz! Mais uma vez, o bem vencia. Em O Além da Ilha (1990, p. 150-151), outra desdita: o namorado de Margarida, açoriana afastada de sua ilha, estudando

em Lisboa, engana-a. Ela engravida e, com receio de não ser 151 compreendida pelos pais, esconde a verdade. Depois de um • acidente, em que perde a criança, a mãe descobre a situação e a ajuda. O pai também a perdoa. Mas, durante o conflito, expulsa do Vilca Marlene Merizio colégio onde era interna, e sem o apoio do noivo, a personagem entrelaça no mesmo sentimento de medo e vergonha, a proteção e a saudade: a Mãe e a Ilha – Mãe/Ilha. A Mãe e a Ilha ... um espaço virtual de tranquilidade de espírito, de segurança e de paz, a constituir um mundo endêmico, muito diverso dos outros mundos, seguro, no isolamento e na distância, pelo mar que o cercava como uma muralha protetora. A Ilha-ermo transmutava-se num objeto de sonho e de refrigério. Agora era outra Ilha que ela tinha dentro de si e do seu desamparo. Duas Ilhas que contracenavam numa dialética de forças entre a saudade e aquele pavor de se sentir só. Terrivelmente, irremediavelmente só. A Mãe e a Ilha convertiam-se... na Ilha-Mãe. E a ilha, essa ilha que viaja, como disse José Martins Garcia (1987, p. 119) transformada em ilha-mãe era o mesmo caracol em cujo corpo se enlaça o cárcere e a liberdade. Para J. Almeida Pavão: A Verdadeira Ilha, que transita das coordenadas geográficas para um mundo de irrealidade que se interioriza em mim, participando dum devir que só morre com a alma (1990, p. 15). Miguel de Unamuno (1989, p. 127 e 130) diz que toda a narrativa de ficção contém de uma forma ou de outra traços da vida do próprio criador literário. A permanência de certos romances que se eternizam são testemunhos do movimento constante: tudo o que se processa no imaginário do autor traz em si parte do seu criador; por isso o poema ou a obra de ficção contém uma porção autobiográfica. E se o escritor foi sensibilizado por uma pessoa, no momento em que ele se apropria das características daquele ser, o resultado é uma ficção; portanto quando o personagem nasce ele nasce do escritor ou poeta não importa em quem ele tenha sido inspirado. Viver na

história é viver a história! E um modo de viver a história é contá-la, criá-la em livros.98 Quer dizer, há uma lógica entre a intencionalidade do escritor e a utilização de certas virtudes e/ou características físicas de determinadas 152 pessoas do seu convívio para compor as personagens. Afinal, o autor • está trabalhando com fatores humanos e podem coincidir, ou ele Há flores e frutos no colo das ilhas mesmo pode optar, por valer-se de certas prerrogativas que suavizam ou enfatizam traços de personalidades dos que vivem a sua volta. Em relação ao ciúme, por exemplo, no romance Marianinha, a personagem Teresinha, acintosamente ciumenta, culpava as demais mulheres pelos possíveis deslizes do marido Bezerra, ao qual desculpava as pequenas traições, ou à pequena ‘facadinha’ no matrimônio, em nome da condescendência usual própria das mulheres da primeira metade do século passado que aceitavam a ideia corrente da necessidade viril do homem, espécie de atributo imanente ao sexo masculino, de dar uma escapadela conjugal. Mas a culpada sempre era a outra, a instigante que provocava o deslize. Não seria a velhaca da Lajinha que andaria a pôr a cabeça do marido a andar à roda? O diabo que o jurasse, se não tinha sido ela a provocá-lo, com aqueles trejeitos dengosos de serigaita lambida. [...] amaldiçoava agora as mulheres da Lomba – mãe e filha – às quais não dirigia palavra, dizendo, furibunda para si: – Rica justiça, não há dúvida! Matam o meu rico marido e pouco faltou para porem em liberdade o assassino. Mau fogo os abrase, que não quero vê-los diante de mim! (PAVÃO, 1997, p. 154 e 184). 98 [...] toda obra de ficción, todo poema, cuando es vivo, es autobiográfico. E mais: Todo ser de ficción... hace parte del autor mismo. Y se éste pone em su poema um hombre de carne y hueso a quien há conocido, es después de haberlo hecho suyo, parte de si mesmo... Vivir em la historia y vivir la história! Y um modo de vivir la historia es contarla, crearla em libros... Toda obra de ficção é autobiográfica. Todo ser de ficção ... faz parte dele mesmo. E se esse colocar em seu poema um homem de carne e osso a quem conheceu, depois de se ter apropriado dele, ele é parte de si mesmo... Viver na história é viver a história! E um modo de viver a história é contá-la, criá-la em livros (UNAMUNO, 1989, p. 127 e 130 tradução nossa).

Mas essa leitura de ir além do texto, depende da capacidade 153 de interpretação do leitor que figura sempre como colaborador da • obra literária desde o momento em que ele desvenda o mistério que encerra aquela escrita, recriando, por sua vez a trama apresentada. Vilca Marlene Merizio E esse apelo implícito do autor também se faz presente na obra de J. Almeida Pavão, haja vista a sua preocupação com o meio social, político, cultural e familiar do arquipélago açoriano. O texto de ficção vale pelo que é e não pelo que nele busca o pesquisador. Milan Kundera (1991, p. 60), em A Arte do Romance, diz categoricamente que o romancista não é nem um historiador nem um profeta: é um explorador de existências e explica que a existência, sendo o campo das possibilidades humanas, permite o desvelamento do que é estar-se no mundo. Assim, há que se entender os elementos constitutivos da obra de arte literária como uma possibilidade humana resultante da própria vida, tanto na forma de retrato das personagens, quanto na ação e no cenário. O universo literário é um mundo de possibilidades não importa de que fontes foram bebidas. A imaginação do autor é que as faz frutificar até despojarem-se do seu élan primordial que pode ou não estar vinculado à realidade de vida do autor. No Prefácio da 1a edição de O Fundo do Lago (1978), J. Almeida Pavão, vale-se da assertiva de Jean Cohen, O poeta é poeta não pelo que pensou, mas pelo que disse, querendo dizer que a obra, sendo pertença do público, não pode explicar-se pelas intenções que lhe sejam porventura subjacentes; o leitor é que se converte em seu juiz ou intérprete. O que o autor tentava era, pela segunda vez, a experiência de um romance tipicamente açoriano. E no Prefácio da 2a edição da mesma obra (1987), justifica, nove anos mais tarde: O Fundo do Lago pretende ser em parte um testemunho ou um depoimento sobre uma época e uma sociedade conturbadas, na região insular, reflexo de uma viragem maior a nível nacional..., evidenciando o comportamento de certas personagens por entre as manifestações frequentemente

estereotipadas, próprias das agitações de massa e de aspectos específicos da emigração. Na obra, entremeiam-se o cômico e o trágico que transpostos para o plano da ficção, não deixam de se constituir como componentes irrecusáveis duma teia, 154 que é a própria vida real. (PAVÃO, 1987). • A História, nesse caso, pano de fundo da trama, foi utilizada Há flores e frutos no colo das ilhas como uma situação existencial por meio das ações das personagens, em especial de Liduína, deixando à mostra a caracterização do homem e da mulher das ilhas em plena sociedade que evoluía. A conversa, que principiara em separado, em dois grupos, segundo os sexos, acabou por se generalizar e descambou para a política, a incidir sobre a nova ordem social e sobre as últimas conquistas revolucionárias: ...nem reforma agrária, nem ocupações ou expropriações, poucas reivindicações e, quanto a saneamentos, praticamente zero. Uma miséria! Não havia dúvida de que o povo açoriano ainda se encontrava muito pouco e muito mal esclarecido... (PAVÃO, 1987, p. 81). Essa mesma preocupação com a realidade insular circundante e a sua transposição como matéria ficcional é reafirmada, assim como já fora nos romances anteriores, pelo autor micaelense no texto Uma vida de romance, que precede o primeiro capítulo de Marianinha: Uma vida de romance ou romance de uma vida? Dois termos mutuamente imbricados...Uma existência real romanceada na sua essencialidade, que assume..., uma expressão escrita literatizada. Há realidades que, na sua intensidade factual e dramática, se assemelham à superlativação ou à refracção, próprias do ficcionismo, como há ficções que se afiguram ao acontecido no tablado da realidade vivida e sentida. A história duma vida ou uma vida com história para contar. Sim porque há vidas sem história. Mas a história (referimo-nos à estória) também possui a sua autonomia, mesmo quando procura refletir a realidade vivida. Autonomia na medida em que a sua ação se desenrola numa linha paralela à do real que caminha

ao seu lado, mas sem nunca se encontrarem. (PAVÃO, 155 1997, p. 15). • Ao transcender o seu mister de investigador, a ligação com sua Vilca Marlene Merizio terra natal faz J. Almeida Pavão deixar rolar a pena a partir de sua alma iluminada e descreve a ilha em peças ricas em imagens metafóricas que, afastando-se do documental, transportam o leitor para o mundo infinito da poesia. E é principalmente no romance Marianinha, a par do que vinha acontecendo em outras obras de cunho ficcional que J. Almeida Pavão consegue as mais ternas páginas sobre os cenários em que assentam as suas estórias: as paisagens paradisíacas da ilha de São Miguel que, por toda a sua vivacidade, são actantes encenando num espaço humanizado, ou melhor, dizendo, personagens e uma ilha animizada. No entanto, a voz do narrador de Marianinha alerta que não é no aspecto turístico das ilhas, no passeio por fora [...] que se revela a alma insular. É preciso ...ver por dentro, vivendo a vida dos seus habitantes, comungando do seu teor comum de existência, penetrando e assimilando um pouco dos seus mundos. Tudo o mais é paisagem (PAVÃO, 1997, p. 106). E ainda na mesma obra, aparece a confissão de um genuíno ilhéu que conhece as vicissitudes de habitar um território coroado de belezas naturais, mas afeito às intempéries meteorológicas desde o vento cortante aos sismos destruidores: as narrativas sobre a História Insular, a constituírem-se num extenso martirológico e num holocausto dos que não teimaram em não arredar pé. Referia-se ele às Sete Cidades, uma das descrições mais comoventes de todo o conjunto da obra de J. Almeida Pavão, se bem que sejam irretocáveis todas as outras que aparecem em trechos sucessivos, em especial às que compõem as Aquarelas, de A Roda do Tempo (1993). Na voz do narrador de Marianinha:

Do outro lado da cumeeira e num plano bastante inferior ao das lagoas, divisava-se o mar que... parecia espreguiçar-se numa dolência de mostrengo que se deixa amansar, matizado na superfície por salpicos brancos que se moviam irregularmente 156 com a mesma lentidão. Quanto às lagoas, eram o resultado • duma natureza indomável que se devolve a si própria, repondo o caos que originou com esses rastos de beleza compensatória Há flores e frutos no colo das ilhas das suas fúrias desorganizadas. (PAVÃO, 1997). Uma natureza cruel nos seus caprichos, em relação ao homem que habita as ilhas que, talvez por isso mesmo, na sua exuberância endêmica, tornam-no mais interiorizado, mais centrado na profundeza do seu ser de onde se projeta por meio de manifestações que surpreendem pela poeticidade de suas imagens tecidas por palavras cuja melodia transporta o leitor para aquele mar de saudade, ora leitoso e materno das costas da Povoação no sentido do Nordeste, ora virilmente mexido pelo turbilhão das ondas da costa ocidental (se não estou em erro, lá pelas bandas da Ribeira Grande) da ilha de São Miguel. Muito mais se teria a dizer a respeito da obra multifacetada do escritor J. Almeida Pavão, mas o que ainda resta como sugestão é a retomada dos estudos sobre esse autor tão genuinamente açoriano que deve ter sua obra completa reeditada. Quando comecei a traçar os objetivos desta palestra, lembrei- me de que a partir de 1992, entidades culturais catarinenses receberam do Governo Regional dos Açores bibliotecas de autores açorianos, entre eles o Núcleo de Estudos Açorianos, da UFSC, e o Museu Etnográfico – Casa dos Açores, de Biguaçu. Fui até esses locais. Realmente os livros estão lá. Na Biblioteca Central da UFSC existem quatro títulos de livros de J. de Almeida Pavão. Onde estariam o acervo completo que em 1996, o professor visitante expôs no hall de entrada da reitoria da UFSC? Já naquela ocasião, pessoas queriam conhecer os livros, mas não havia exemplares à venda. Hoje continuam ausentes nas livrarias do país.

Tive a sorte de receber doze publicações do autor e encontrar 157 mais três livros nos sebos contatados pela internet e cinco nas • bibliotecas públicas de Florianópolis. Pergunto-me: quem ou quantos catarinenses leram a obra de Almeida Pavão? Amigos, alguns Vilca Marlene Merizio privilegiados que já foram aos Açores, outros poucos que sabem da existência dessas bibliotecas? Lembro mais uma vez as palavras de Jean-Paul Sartre que dizia que a obra literária é um estranho pião que só existe em movimento (2001, p. 35). Para que esse pião/obra literária comece a rodopiar tem de existir o ato concreto da leitura; pião e obra literária só permanecem na dança enquanto o rodopio/leitura durar. O que fazer, então? Minha sugestão é divulgar em colóquios (e aqui a minha saudação comovida aos organizadores deste evento), escolas, universidades, associações literárias (proliferam academias...) o que tais obras, ao lado de outras de igual valor, encerram, ao mesmo tempo que revelam, do universo açoriano: tipos humanos, ideias, comportamentos, tradição, reflexões e pesquisa, desde a realidade do homem ilhéu às profundezas do imaginário. Do popular ao erudito; da cátedra ao ambiente familiar. Tudo junto: eu criador e eu social. Obra como criação cultural, ressonância do passado que se perpetua, pela arte, além fronteira, atingindo público que, das mesmas raízes, ainda conserva o poder de sentir-se como se [...] tivesse corpo e alma de Ilha, mesmo fora dela, que sente essa ausência perene da qual fala o autor: perpétua saudade que identifica a ânsia da partida com o desejo do retorno. Um cárcere que se transporta dentro de nós, à maneira duma tartaruga que fosse capaz de engolir a carapaça que a protege, mas que a oprime. (PAVÃO, 1987, p. 15), Assim também somos e sentimos, nós, os descendentes dos que primeiro dos Açores emigraram para SC. E termino, embora pesem os preconceitos (imaginários, espero!), entre compadrios, valendo-me da despedida dos dois personagens de Um ladrão na Noite, de A Roda do Tempo (1993, p. 168):

– Um compadre é sempre compadre até a morte – gritava o Capote, limpando os olhos com a manga da camisa, enquanto o Roqueira, apertando-lhe o peito num amplexo mais prolongado, confirmava com a voz igualmente comovida, 158 sublinhada por um soluço: • – Até à morte! Há flores e frutos no colo das ilhas E assim, das raízes à diáspora, para sempre, a arte permanece e, por meio dela, sobrevive a amizade, eternamente. E transcende! Referências AÇORIANO ORIENTAL. “Um humanista e incansável lutador pela cultura açoriana”, in Abertura. LITERATURA, Cultura e Evocação da Vida e Obra do Autor de “Xailes Negros”, 28 de setembro de 2003. ECO, Umberto. Leitura do Texto Literário. Lector in Fabula. A cooperação interpretativa nos textos literários, Lisboa: Editorial Presença, 1979. FREITAS, Vamberto. O Imaginário dos Escritores Açorianos, Lisboa: Salamandra, 1972. GARCIA. José Martins. Para uma Literatura Açoriana, Universidade dos Açores: Ponta Delgada, 1987. KUNDERA, Milan. A Arte do Romance. Tradução de Luísa Feijó e Maria João Delgado, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991. MAURON, Charles. Des Métaphores obsédants au Mythe Personnel. Introduction à La Psychocritique, Paris: Librairie José Corti, 1962. PARREIRAS, Márcia M. M. (2006). Ludwig Flek e a historiografia da Ciência diagnosticada de um estilo de pensamento segundo as Ciências da Vida. Disponível em: www.bibliotecadigital.ufmg.br. Acesso em: 10 fev. 2012. PAVÃO, José Almeida. O Fundo do Lago. Direção Regional dos Assuntos Culturais/SREC/Açores, Ponta Delgada: Signo Editora, 1987.

PAVÃO, José Almeida. Evocações. Páginas dum Álbum, Ponta Delgada: 159 Diário dos Açores, 1968. • PAVÃO, José Almeida. O Além da Ilha, Ponta Delgada: Empresa Gráfica Açoreana, 1990. Vilca Marlene Merizio PAVÃO, José Almeida. A Roda do Tempo, Ponta Delgada: Direção Regional dos Assuntos Culturais, 1993. PAVÃO, José Almeida. Marianinha, Ponta Delgada: Coingra, 1997. PAVÃO, José Almeida. Horas sem Tédio, Ponta Delgada: Ed. do Autor, 2001. PAVÃO JR., José de Almeida. Sub Tegmine Fagi. Ensaios, Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada/ Livraria Âmbar, 1947. PAVÃO JR., José de Almeida. O Sacrifício. Ensaio, Coleção Arquipélago, Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada/Coimbra Editora, Limitada, 1956. SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? Tradução Carlos Felipe Moisés, São Paulo: Ática, 2004. TOPA, Francisco. Apresentação de A Roda do Tempo, de José Almeida Pavão. Ponta Delgada: Direção Regional dos Assuntos Culturais. 1993. Página consultada em fevereiro de 2012. Disponível em: http://webletras. up.pt/topa. UNAMUNO, Miguel de. San Manuel Bueno, Mártir. Como se hace uma novela, Barcelona: Alianza Editorial, S.A., 1989.



9 A arte que permeia a cultura: Horácio Medeiros, Machado Pires, Fernando Aires99 Foi professor efetivo no Liceu Antero de Quental. 99 Texto inicialmente escrito para o 4o Encontro de Lusofonia, de 31 de março a 4 de abril de 2009, no Cie Teatro Lagoense, Lagoa, São Miguel, Açores, Portugal. Publicado em: Atas/ Anais 2009 do 4o Encontro Açoriano da Lusofonia. Açores: a insularidade, o isolamento e a preservação da língua portuguesa no mundo. Org. Colóquios da Lusofonia. 2009, p. 246-253. In: CD/DVD Editado por Colóquios da Lusofonia. 2009.

SINOPSE: Diante de uma obra de arte, sua escuta faz apelo à fala do Autor: palavra, metáfora, traço mais vincado, cor mais forte. O espectador aguarda... Quer mais... Se o diálogo não acontecer, o que parece ser a mudez de um e a falta de escuta 162 do outro transforma-se em inaceitável quebra da sinergia • cuja rede sutil alicerça o mundo da arte. Há de persistir na Há flores e frutos no colo das ilhas tela, no objeto ou no livro, uma vibração, um rumor capaz de comover o espectador/leitor na mesma intensidade com que emocionou o artista. O movimento do autor à tela e do escritor à expressão da palavra quase sempre é o mesmo da procura de saciedade que orienta e alimenta o observador no seu próprio deserto. Aquele que abre um livro, ou que admira uma obra de arte, anseia por algo de precioso para si. Aí, então, a comoção é atingida, a comunicação realiza- se e o milagre do entendimento acontece. Ferreira Pinto não explica. Dá-nos somente a sua obra: cor, imagem e palavra. Que sentidos vibram em nós estimulados por tantos sentidos, alguns de indecifrável grafismo? A captação da sua obra exige, para além da visão, a audição das palavras, verbo e figura que das telas entram em nós com a fúria do vendaval até se amenizarem sob os acordes de uma sonata. Sete sentidos só não bastam... Assim também, carregados de emoção, vibrantes acordes penetram as fímbrias de nossa alma ao sermos tocados pela música de Horácio Medeiros. E a fé que depositamos na escrita de Machado Pires confere magnificência à cultura portuguesa tão bem retratada nos seus estudos. E o que dizer da ternura de Fernando Aires, do acalanto juvenil que jorra de suas imagens, dos fatos por ele vividos e narrados, da atmosfera açoriana que rodopia por sobre as ilhas até alcançar os pontos distantes deste planeta onde almas inquietas se detêm na saudade? Tudo é Arte: poesia dos Açores... E aqui estamos para apreciá-la. Dentre os objetivos do Programa Missão Açores (PMA) destacam-se a revitalização e a defesa da cultura de raiz açoriana em Santa Catarina, muito especialmente no que se refere à língua, à

literatura, à arte, à história e às suas tradições, e o estimulo à criação 163 de projetos que tragam para os Açores vivências de uma Santa • Catarina contemporânea, aberta para o crescimento, de cá levando informações e experiências que atualizem o conhecimento daqueles Vilca Marlene Merizio que repassam as informações às novas gerações de lusodescendentes do Estado e das regiões fronteiras. Assim, ao desenvolver ações concretas no âmbito da pesquisa, do resgate e da valorização da açorianidade no Estado de Santa Catarina, com o apoio do Governo e em parceria com Prefeituras Municipais, Academias de Letras e outras instituições não-governamentais, o Projeto Missão Açores almeja despertar o interesse dos catarinenses no sentido de fortalecer os laços com Portugal e com as comunidades lusófonas a fim de que não se perca o elo original que identifica 8% da população catarinense descendente dos primeiros imigrantes portugueses e que ainda hoje habitam no sul do Brasil. Despertar o interesse de pesquisadores, docentes, estudantes, artistas, desportistas, escritores, poetas e da comunidade em geral para a atual situação das regiões portuguesas, quer sejam insulares (Madeira e Açores), quer se localizem em Portugal continental, como é o caso de Setúbal e Porto, é a determinante que distingue o nosso Programa já reconhecido como contributo ao desenvolvimento sociocultural da nossa sociedade. Subjacente aos interesses de divulgação e da troca de informa- ções e experiências sobre a cultura e a geografia física e humana da população do Estado de Santa Catarina e da Região Autônoma dos Açores, reside fundamentalmente o desejo de manter a unicidade da Língua Portuguesa, apesar de todo o mosaico cultural em que ela se insere. Daí o empenho no fortalecimento dos intercâmbios culturais entre o Estado de Santa Catarina e a Região Autônoma dos Açores, intensificando a cooperação mútua, tal como aconteceu com a reativação do protocolo de Intenções assinado em dezembro de 2007 pelos Governos de Santa Catarina e dos Açores, através de proposta emanada deste programa e altamente influenciada pelos Colóquios da Lusofonia, o que está permitindo a abertura de propostas efetivas

Há flores e frutos no colo das ilhasde ações nas áreas das Letras, Cultura, Arte, Gastronomia, Educação, Saúde e do Desporto, não só em Portugal, mas em outros dos países e comunidades onde é falada a nossa língua,100 com a finalidade supra 164 de troca de experiências e armazenamento de documentação. • Dessa forma, o Programa Missão Açores colabora na realização de intercâmbio de educadores, escritores, artistas, pesquisadores e outros e no deslocamento de elementos necessários – profissionais e estudantes – para a realização de eventos culturais em Santa Catarina e em Portugal, através de contatos com entidades oficiais e particulares das duas regiões. Exemplo disso, de cá para lá, foi a participação do músico açoriano Horácio Medeiros no encerramento das comemorações dos 260 anos de imigração portuguesa em Santa 100 Brasil e outros países da América Latina; Estados Unidos da América; Canadá; países da união Europeia; países africanos e asiáticos e Austrália.

Catarina, no último mês do ano de 2008, e da esperada participação 165 da musicista Ana Paula Andrade e da musicoterapeuta Luísa Maria • da Costa Gomes que se deslocarão a Santa Catarina, provavelmente ainda este ano, em projeto elaborado aquando da realização do 3o Vilca Marlene Merizio Encontro Açoriano de Lusofonia, acontecido aqui na Lagoa, em 2008. Da integração do artista açoriano Horácio Medeiros com os músicos catarinenses, muito especialmente com os que atuaram em Ilhas: um musical onde navegar é preciso, tivemos ontem a apresentação do Grupo Fielsons. Também esse congraçamento artístico-cultural é resultado dos Encontros da Lusofonia. Igualmente teve origem no II Encontro Açoriano de Lusofonia a gentil e nobre iniciativa do Prof. Doutor Luciano Pereira da criação dos Dias do Estado de Santa Catarina na Escola Superior de Educação (ESE) do Instituto Politênico de Setúbal, em Setúbal, realizada em maio de 2008 com bastante sucesso e, agora, em recente comemoração do primeiro aniversário de implantação do referido dia, com intervenções na ESE, mediante um ciclo de palestras nas áreas científicas da literatura, da educação, do desporto, da psicologia e das ciências sociais Espera-se para 2010 que o Estado de Santa Catarina e as prefeituras da Grande Florianópolis, em evento que reúna as instituições voltadas à consciência multicultural, mas harmonica- mente irmanadas aos lusodescendentes, assumam a realização do 5o Encontro Açoriano de Lusofonia no território catarinense. Resta, agora, ao Programa Missão Açores, já com a tendência a tornar-se uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) fomentar, em parceria com outras instituições brasileiras e portuguesas, o intercâmbio de publicações científicas e de caráter artístico e cultural a fim de continuar fiel à sua missão de promover um maior congraçamento de cunho afetivo-científico e cultural entre nossos dois países e regiões lusófonas. Ainda persistem, como finalidade do Programa Missão Açores, o estímulo à formação de um bancos de dados, a ser instalado na

Casa dos Açores-Museu Etnográfico, pertença do Estado de SC, que ainda vive à margem da Federação das Casas dos Açores Mundiais, conciliando a articulação dos sistemas de suporte informático dos organismos culturais com vistas a uma maior integração entre os 166 projetos catarinenses direcionados a regiões lusófonas de todo o • mundo. Estimular a investigação de temas contemporâneos junto às Há flores e frutos no colo das ilhas comunidades catarinenses, mediante palestras, reuniões de estudo, cursos, colóquios, congressos, atividades artísticas e desportivas e outras atividades, assegurando o aproveitamento máximo dos recursos humanos, da infraestrutura e dos equipamentos de cada partícipe também é objeto de trabalho do Projeto Missão Açores, bem como manter contato com instituições educacionais, criando novas áreas de ação conjunta para elaboração de programas de formação continuada aos profissionais do ensino através da implantação de, e participação em, cursos de curta duração e de programas de estágios em cursos superiores, assim como o desenvolvimento de programas de pesquisa conjunta, viabilizando a divulgação dos resultados no contexto dos países que comungam a Língua Portuguesa. O projeto quer, ainda, a inserção de parcerias com outros órgãos e instituições nacionais e estrangeiras, sempre em obediência à legislação em vigor no respectivo país que deverá facultar as condições administrativas e logísticas necessárias para a execução das ações propostas e oficialmente aceitas pelos representantes das partes. A publicação das obras literárias e dos resultados dos trabalhos de pesquisa será divulgada e distribuída nas escolas das regiões envolvidas, sendo esse um dos pontos centrais do Programa Missão Açores. Toda essa programação que ora está em andamento teve um início. E esse marco inicial de que falo, aconteceu em 1984 quando as Universidades dos Açores e a Federal de Santa Catarina assinaram entre si o Convênio de Intercâmbio de Professores, permitindo que o Estado de Santa Catarina continuasse presente nos Açores e de cá, pelos seus representantes, levasse um repertório de ações cujos

anseios maiores centravam-se na revelação destas ilhas ao nosso 167 Estado que as conhecia mais pelo seu passado do que pela sua • contemporaneidade. E dois nomes, por justiça e com dignidade, se fazem lembrados: a dos reitores da época, o Professor catarinense Vilca Marlene Merizio Dr. Ernani Bayer e o açoriano Prof. Doutor António M. B. Machado Pires, a quem especialmente hoje, de público, homenageamos, junto com o músico Horácio Medeiros, com o escritor Fernando Aires e com o pintor Ferreira Pinto. Impus-me, como condição de oradora deste 4o Encontro Açoriano de Lusofonia tarefa tão agradável quanto difícil – quando se trata de traduzir reconhecimento e pesquisa num minguado espaço de dez páginas escritas e vinte minutos de explanação – ao escolher como tema desta oração, a arte que permeia a obra de quatro ilustres portugueses, habitantes desta ilha, os já citados Machado Pires, Horácio Medeiros e Fernando Aires, completamente diferentes nos gêneros que os distinguem, mas todos ilustres amigos com que tenho a graça de privar, com uns mais, com outro menos, ao longo desses últimos 22 anos e cujo produto de trabalho enriquece o arsenal que identifica a cultura açoriana, tanto na área intelectual quanto artística e literária. Mas como ressaltar qualidades de quatro homens de cultura com vasta produção criativa, se a obra que produzem tanto tem de valiosa quanto de múltipla variedade? Mas, há que se começar e, se começo apenas citando, é porque, a brevidade aqui se faz necessária porquanto há uma cronologia rigorosa a cumprir (e eu tenho de chegar ao fim desta comunicação). Ao Prof. Machado Pires, apresento a nossa permanente homenagem e admiração pelo seu brilhante trabalho em prol da cultura açoriana101 e, por extensão, da catarinense. Pessoalmente, 101 A. M. Machado Pires, em “A Identidade Cultural dos Açores” (In: Arquipélago. Revista da Universidade dos Açores. Línguas e Literaturas. Ponta Delgada, 1987, v. 9, p. 155-166), conceitua açorianidade como a resultante da condição

expresso gratidão pela confiança de ter-me trazido aos Açores e aqui ter-me, dado, junto com a sua família, apoio irrestrito durante os cinco anos em que nos Açores permaneci, enquanto, na Universidade dos Açores, completava os meus estudos acadêmicos 168 no Doutoramento em Literatura Portuguesa Contemporânea. • Através do seu nome, a minha reverência também aos outros Há flores e frutos no colo das ilhas grandes mestres da Universidade dos Açores, amigos a quem dedico profundo afeto, aos professores falecidos Almeida Pavão, José Martins Garcia, e Prof. Farrica; aos professores doutores Avelino Meneses, Sílvio Conde, Paulo Meneses, Fernando Vieira Pimentel e Carlos Ventura; ao Prof. Dr. Nestor de Sousa, à Dra. Luísa Noronha, ao Padre Otávio, e às professoras Doutoras Adelaide Baptista, Maria Conceição Vilhena, Maria Margarida Maia Gouvêia, Rosa Maria Goulart e Maria do Céu Fraga e a tantos outros que ainda se avolumam na minha memória. A todos o meu abraço e o lamento de não os ter neste Encontro a compartilhar conosco um lugar na mesa dos oradores. (E aqui se não me remeto à obra escrita do Prof. Machado Pires é porque, em próxima ocasião, o farei com mais dedicação, tempo e vagar). Horácio Medeiros é o tecladista e compositor que aplaudimos de pé no 2o Encontro de Lusofonia, na Ribeira Grande, depois de ouvi-lo com a vibração e a maestria dos afamados virtuosos da música. Horácio, durante um mês (dezembro de 2008), em missão oficial considerada de interesse público pelos órgãos governamentais dos Açores, a convite do Governo do Estado de Santa Catarina, honrou os catarinenses com a arte musical que tão maravilhosamente de ser-se açoriano; isto é o ilhéu, “em virtude da situação geográfica, da sua constituição geológica e das circunstâncias históricas do seu povoamento “ é dotado naturalmente de forte peculiaridade. O sentimento e consciência dessa peculiaridade, depois de serem reconhecidos por Vitorino Nemésio (termo criado a partir da hispanidad de Unamuno) como manifestação de açorianidade “passou a designar a qualidade e a consciência do ser-se açoriano” (p. 155).

domina em cinco concertos no Estado, dos quais destaco o do Teatro 169 Pedro Ivo – 3o concerto de nível internacional no período da sua • inauguração –, o da Igreja Matriz de Biguaçu e o da reabertura da Catedral Metropolitana de Florianópolis. Durante a homilia de Vilca Marlene Merizio Natal, com profunda emoção, o Reverendíssimo Arcebispo da Curia Metropolitana de Florianópolis, Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, saudou Horácio Medeiros como digno representante do povo ilhéu que para Santa Catarina levou a fé que ainda anima grande parte da população, a mesma fé que confortava, na ocasião, os abnegados trabalhadores catarinenses que, nas tragédias das enchentes e dos desmoronamentos daquele final de primavera, perdiam seus bens materiais mas não a esperança num futuro melhor. Também comovido, o Governador do Estado de Santa Catarina, Luiz Henrique da Silveira, cumprimentou Horácio, felicitando-o pelo seu desempenho artístico e pela comemoração dos 260 anos da imigra- ção portuguesa no Estado. Ao Horácio Medeiros, revelação do 2o Encontro Açoriano de Lusofonia, o agradecimento de todos os catarinenses por sua disponibilidade e energia vibrante, pelos seus acordes, por seus louvores musicais ao Criador e à Criação, pelo seu Hino ao Cosmos, Luz Divina feito música. Como o descreveu Chrys Christello (2007), o Hino ao Cosmos “é uma nova e intensa experiência, cujos limites são os da imaginação, da criatividade e do espírito da música que nos leva numa viagem. É uma viagem interior, dos sentidos, da imaginação e da criatividade guiada por um músico – Horácio Medeiros – que nos convida, não saindo do lugar, à descoberta da música sem palavras dentro de cada um”. Ao Horácio, a nossa Amizade para sempre.

Há flores e frutos no colo das ilhas170 • Homenageamos também Fernando Aires, porque Fernando Aires é Poesia. Fernando Aires é o que de melhor se encontra na literatura portuguesa de ficção intimista. É a representação dos Açores, da ilha retratada com a ternura de quem a observa e a vive num tempo em que registra a si mesmo muito mais do que o calendário cronológico indica. Na sua obra, o momento presente anda lado a lado com as recordações da ilha e das regiões que visita, do convívio com os amigos, da infância – lembra a família, principalmente a mãe –, o vir-a-ser das coisas que, com o tempo, vão esmorecendo... Que é feito da alegria? Da fogueira que ateei? De um pouco mais de sol em horas sempre iguais? À minha frente, a estrada silenciosa para caminhar apenas com metade de mim [...]. (AIRES, 1988, p. 214).

Impossível ler Fernando Aires,102 quer em seus cinco volumes 171 do diário,103 aos quais denominou Era uma vez o Tempo, quer nos • contos, quer no romance A Ilha de nunca Mais (2000), ou mesmo na sua produção ensaística,104 sem ser tocado pela ilha, sem reconhecer Vilca Marlene Merizio as crises existenciais, a miséria do cotidiano, os conflitos internos, a hipocrisia, o alheamento provocado pelas “telenovelas e futebóis”,105 o isolamento, a diáspora, a solidão... Sem perceber o constante afastamento dos outros e, às vezes, até de si mesmo: Eu, no mais íntimo da minha verdade e da minha agonia. Fingindo que tudo vai bem para não dar pretextos à loucura. Sobrevivendo aos escombros de mim com a aparência da serenidade. Contando todos os minutos e todos os segundos do espanto de estar vivo. O que se faz para não dar pretextos à loucura? (AIRES, 1988, p. 203). 102 Indagado por J. L. Machado (1998) sobre o seu processo criativo, Fernando Aires responde: “Costumo escrever de jacto e depois é que trabalho o texto. É como um pedaço de barro que o oleiro molda em bruto, surgindo dali uma forma cada vez mais elaborada. Há, todavia, que ter atenção – porque se se trabalha o texto como quem faz rendinha à mão, há o grande risco de o texto perder a espontaneidade. Ele tem que brotar e ser alguma coisa de tão fluido como uma água que corre. É fundamental que seja uma coisa viva, que flua e vibre. Se mova por si e nos escape das mãos. Eça de Queirós também trabalhou minuciosamente os textos e não houve desastre. Mas o texto era do Eça... (“Entrevista”. Disponível em: http:// alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/entrev02.htm). 103 Onde relata as suas vivências: as viagens, a opinião sobre determinados acontecimentos nacionais e internacionais, as preferências literárias, as recordações da infância, o seu estado de espírito... 104 Fernando Aires (Ponta Delgada, ilha de São Miguel, Açores, 1928) licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Professor, orientou estágios pedagógicos e leccionou Psicopedagogia na Escola do Magistério Primário de Ponta Delgada. Aposentou-se como assistente-convidado da Universidade dos Açores (1975 a 1994). Na década de 40, pertenceu ao grupo que fundou o Círculo Cultural Antero de Quental, destinado a introduzir o Modernismo nos Açores. Fez parte da Direção do Instituto Cultural de Ponta Delgada (1978-1989). Colaborou com a Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, .desde 1993. Publicou obras ensaísticas e de ficção. 105 “O autor cumpre aqui o papel reivindicado pelos românticos: o escritor é aquele que denuncia os vícios e as injustiças do seu tempo” (MACHADO PIRES, 1997).

Vez por outra, contudo, deixa entrever um erotismo sutil que enleva e estimula, um amor tão delicado quanto (aparentemente) simples parece ser: 172 Ouviu-lhe a voz (há quantos milênios o silêncio?). • Inconfundível voz entre a multidão de vozes. Mágica Há flores e frutos no colo das ilhas dobadoira de fiar a vida. E o sinal inegável é este ardume no peito. Este íntimo enlevo. A alegria que me transborda. Este lago de ternura que escorre da paisagem toda como um luar. Este alvoroço de guizos que acende o sol no coração e grita a certeza do adeus impossível. Quem disse que eu tinha esgotado o destino? (AIRES, 1988, p. 292). E o sentimento de amor declarado por Linda, a esposa na vida real tanto do autor empírico quanto o textual: “Fiquei a pensar na bondade dela. Na coisa rara que é a bondade dela – e na força que tem. A força capaz de amarrar por dentro a noite desesperada da minha rebelião” (AIRES, 198, p. 295). Sobre Fernando Aires, escreveu Onésimo Almeida, no Prefácio de Era uma Vez o Tempo Diário III (1993, p. 12): “Não conheço nenhum escritor açoriano que tenha pintado o tempo em prosa tão bem como F. A.”. Seu diário são “páginas cheias de tempo da alma que o tempo da ilha faz”. Tempo sentido nos ossos. De perto, Ilha é prisão de mar. De tédio tecida. De distância tecida. Ilha de Nemésio e de Mesquita, com aves do mar na tormenta e o torpor dos dias pasmados de distância. Que não é o mar que sufoca de prisão, mas o céu côncavo, retinindo como um sino de finados a todo o comprimento do corpo- com-a-alma-por-dentro. (1993, p. 13-14). Tal qual Onésimo custou a escolher excertos para a sua análise, assim eu, recolho aqui e ali uns trechos com pesar de não poder divulgar todas as belas passagens descritas com a leveza dos que sabem que é natural a paixão que os alimenta. E cito, de Fernando Aires:

Fico a embeber-me de luz enquanto a vida me lateja na cova 173 das mãos com um zumbido de órgão. • Uma luz que desce e anula as sombras que as coisas fazem no chão. E tudo povoado do teu rosto. Vilca Marlene Merizio À medida que a chuva cai, vou sofrendo a metamorfose do enconchamento. Como um búzio. O ilhéu é tripulante de um navio parado em alto mar. [...] e enconcha-se. E de se enconchar toma aquele ar agreste das aves do mar. De onde me vem esta fenda enorme em que me desamparo por dentro do meu rosto? Ao amor e à amizade é preciso reinventá-los, limpá-los do pó das palavras mal soantes e das que não foram ditas. Criá-los junto ao peito, na abundancia dos sentimentos. [...] assoprar neles o fogo oculto do que foi dito e sentido na hora máxima do contentamento. (1993, p. 8, 13, 16 e 71). Em A Ilha de Nunca Mais (2000), o narrador avisa na voz de Bruno: “talvez um dia regresse à Ilha. Porém – ele sabe – por mais que se queira, nunca mais se regressa”... (AIRES, 2000, p. 72), confidência plausível já que como ilhéu, “é uma lapa agarrada aos sentimentos” (p. 89). É assim, com doçura, embora se sinta de quando em vez uma observação regada de uma latente rebeldia, que não chega a molestar o leitor, que escreve Fernando Aires a sua história, a história de um ilhéu que reflete, critica e aponta caminhos para si mesmo. Com a palavra justa. Comoção em cada virar de página... Obrigada Fernando Aires, pelos teus silêncios tão preenchidos de respeito à Língua Pátria, amor pela Ilha, pelos Açores, por Portugal! Referências AIRES, Fernando. A Ilha de nunca mais. Lisboa: Salamandra, 2000. AIRES, Fernando. Era uma Vez o Tempo. Diário I, Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1988.

AIRES, Fernando. Era uma Vez o Tempo. Diário II, Ponta Delgada, 1991. AIRES, Fernando. Era uma Vez o Tempo. Diário III, Lisboa: Salamandra, 1993. 174 AIRES, Fernando. Era uma Vez o Tempo. Diário IV, Lisboa: Salamandra, • 1997. Há flores e frutos no colo das ilhas AIRES, Fernando. Era uma Vez o Tempo. Diário V, Lisboa: Salamandra, 1999. AIRES, Fernando. Histórias do Entardecer, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Col. Gaivota. Premiado no Concurso Literário Açores/88, 1988. AIRES, Fernando. Memórias da Cidade Cercada, Lisboa: Edições Salamandra,1995. AIRES, Fernando. Memórias da Cidade Cercada. Contos, Lisboa: Salamandra, 1995. MACHADO, José Leon. Era uma Vez o Tempo de Fernando Aires, 1997. Disponível em: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/crit027.htm. PIRES, A. M. “A Identidade Cultural dos Açores”. In: Arquipélago. Revista da Universidade dos Açores. Línguas e Literaturas. Ponta Delgada, v. 9, 1987. TOMÁS, Manuel. Ilhas atlânticas. AÇORES – Paisagens em trânsito inventando um novo curso de memória, 1996.

10 David Mourão-Ferreira, o poeta viajor106 O amor à Mulher e o respeito à Liberdade e à História. 106 Artigo escrito a partir da conferência apresentada no XVI Encontro de Professores Universitários de Língua Portuguesa, realizado nas dependências da Universidade Estadual de Londrina, Paraná, de 6 a 9 de outubro de 1996, numa promoção da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa. In: Navegantes dos Mares às Letras. Ideário da Navegação na Literatura Portuguesa. Org. de Alamir Aquino Correa. Londrina: Editora da EUEL, 1997, p. 103-112.

Há flores e frutos no colo das ilhasSINOPSE: No seu fazer poético, David Mourão-Ferreira atualiza a metáfora marinha no dizer das emoções, da imaginação, da memória e de Eros... O amor à Mulher e o respeito à Liberdade e à História proporcionam ao eu lírico a vida como uma Secreta 176 Viagem, discurso mágico que, bastando-se a si próprio, revela/ • esconde um mito: o Mito de Ulisses. David Mourão-Ferreira, navegador solitário da sua própria consciência, ao reconhecer-se “marinheiro-Marinheiro desde a cabeça aos pés no seu ser-fazer poético traz sempre atualizada a metáfora marinha e a de todas as águas que o tornam deslizante como as fabulosas águas do rio de Heráclito”,107 metáforas que contêm o dizer das suas emoções, do mar de sua memória, de Eros... O amor à Mulher e o respeito à Liberdade e a todas as ciências humanas garante ao escritor o direito de apregoar a vida como uma “secreta viagem”,108 travessia para outra dimensão/ intensidade, Jardim para o qual o poeta encaminha o seu sentido de eternidade. Ao abraçar a alegoria da alma em navegação, esse “marinheiro Frustrado”, desde as primeiras composições escritas, aliou às múltiplas leituras a vivência das viagens efetivamente realizadas, daí resultando a opção por um léxico numericamente reduzido, mas rico, porque aproveitado com toda a força semântica que só um profundo conhecedor da palavra e da cultura mundial poderia imaginar. As constantes lexicais que fundamentam o conjunto da sua obra ressaltam a maestria de sua poética, numa seleção de temas que se repetem em imagens que articula e desarticula, que perde e recupera; ternura e gozo que se vincam e apagam numa sutil dialética de fome e saciamento, de unidade e diversidade, de real e de utopia... 107 [...]“sinto-me água de um rio”. 108 Título de um de seus poemas. Em Inscrição sobre a Ondas, poema que abre a sua Obra Poética 1948-1988, p. 27, David Mourão-Ferreira diz: “Mal fora iniciada a secreta viagem,/ um deus me segredou que eu não iria só.// Por isso a cada vulto os sentidos reagem,/ supondo ser a luz que o deus me segredou.”

O hermetismo dos seus versos, embora sugira a contextualidade 177 de um mundo onde o referencial quase sempre é a incomunicabilidade • dos afetos, por mais que se queira o prazer compartilhado, muito dela esconde, ensejando cumplicidade entre a sua invenção e a Vilca Marlene Merizio aquiescência do leitor ideal em pacto mútuo de aceitação: se tudo não foi dito, muito foi entendido; o sugerido fica por conta dos fragmentos habilmente dispostos em palavras insistentemente repetidas, das frases curtas com termos deslocados; do acúmulo de sujeitos sem predicados; ou, ainda, dos predicados destacados por complementos inusitados. E o leitor parece identificar-se com tal discurso poético, discurso mágico que se basta a si próprio. Numa das epígrafes de No Veio do Cristal, ao valer-se de uma citação de T. S. Eliot, David Mourão-Ferreira acentua o seu apreço aos acontecimentos que assinalam a origem e o fim das coisas, exortando-nos ao movimento progressivo e atualizado, sem repetições de experiências já vividas por mais prazerosas que tenham sido. Essa prática do renovo, apontada por Eduardo Prado Coelho como sinal da sua espantosa coerência, faz-me lembrar os primeiros poemas de David, quando, em 1946, aos dezenove anos, apresentava a sua profissão de fé, assumindo em “Imagem”,109 o desejo de definir a rota daquela aventura (literária) que, em todos os aspectos, apenas começava: Rio manso como um charco! Tu és bem a minha imagem: em mim há um barco já cansado de viagem... mas sou inferior a ti, que deslizas para o mar, enquanto eu, ai de mim, não sei onde irei parar... Ainda aos vinte anos de idade, David Mourão-Ferreira definia- se como um navegador inexperiente a quem apetecia um barco 109 1946, p. 35.

à deriva para “ver de longe os contornos da costa, belos ao longe, acenando de longe – e ir tocá-los, passar-lhes perto, para sentir, então, que a beleza era da luz e da lonjura (1947, p. 22). Essas figurações antigas já revelam a tendência para o 178 fingimento e para o sonho e me levam a outro poema Soneto Amargo • do Convívio Humano, escrito poucos anos mais tarde e publicado Há flores e frutos no colo das ilhas pela primeira vez em 1951: A pouco se reduz esta aventura; rio sombrio de palavras feito, onde cada garganta é um parapeito sobre o líquido engano que murmura... a partir do qual Graça Moura aponta a fala do poeta como “forma primeira da mentira”, sublinhando que o mais íntimo diálogo é irredutível e o convívio humano “um amargo e ilusório jogo de espelhos”: “os barcos não me quiseram./ As ondas me repeliram./ Os homens, esses, me feriram/ nos insultos que disseram.110 Fingindo ou não, a queixa do poeta traduz o que Fernando Pessoa (1990, p. 224) aconselhava: “Confessa, sim; mas confessa o que não sentes”, lição a que o David-diarista não estava alheio. Ele sabia da necessidade de ser outro quando do outro dependia. E a si mesmo dava crédito quando dizia ser coerente na sua incoerência: “a minha incoerência era o meu único aspecto coerente”, ou quando se automotivava: “Eu tenho de ser escritor. Isto para mim é iniludível e claro (1947, p. 5), profecia confirmada em 1991: “o que sou por dentro e por vocação, bom ou mau, é escritor. E talvez até, fundamentalmente, poeta. É como tal que me vejo e como tal que me assumo”.111 Em 1947, alma poética, o jovem miliciano, na Foz do Arelho, registrava em Os Íntimos Degraus112 o prenúncio do que iriam ser 110 MOURÃO-FERREIRA, 1950, p. 103. 111 MOURÃO-FERREIRA, in A Razão, 1991, p. 35. 112 Diário escrito por David Mourão-Ferreira, entre os anos de 1947 e 1948, texto não publicado, cuja cópia datilografada foi gentilmente cedida à autora pelo poeta. A partir

duas das principais vertentes da sua poesia: a Viagem, de Portugal para dentro de si mesmo e para o mundo, e o Mar, a partir do mar de Portugal: 179 • Vilca Marlene Merizio O mar: [...] ‘o mar da cidade grega’, que cada qual traz dentro de si, creio que eu realizaria neste lugar, frente a estas areias, a este oceano. O mar aqui é forte, mas graças aos deuses, não tem tragédia de mulheres chorando os maridos e os filhos que não regressam. Este mar ninguém sulca. Ele, contudo, condescendente como senhor que é, envia as suas águas à lagoa, e, nelas, tido aquilo que necessitam, desde o peixe com que se alimentam até aos limos que fertilizam suas terras. Agora, rasga-lo, possuí-lo – não! [...] Aqui, as condições são postas com dignidade, abertamente: o mar é só para quem quiser senti-lo: nada mais.113 A Viagem: desse texto, David Mourão-Ferreira escreveu Jogo de Espelhos (1996): ver O meu estudo literário A História de Um Amor Feliz (2004), p. 341-352. 113 MOURÃO-FERREIRA, 1947, p. 40-41.

[...] voltei a sentir uma sensação muitas vezes sentida: o desejo de que a viagem nunca mais acabasse, de que houvesse novas estradas, novas árvores, novas paisagens, novas coisas para ver e sentir. [...] Nasci para viajar, ainda que tendo como ponto de 180 partida a tal pequena ilha intacta de que fala o Morgan. E ... • ‘estas viagens atuais/são coisas preliminares/ para as viagens finais/ aos fundos dos Outros Mares’, como eu próprio digo Há flores e frutos no colo das ilhas num dos meus últimos poemas.114 Assim, a Viagem e o Mar vincaram o percurso do poeta como a linha-mestra condutora da imaginação propulsora do seu processo de criação literária. Viagem, no sentido de conhecimento, mais do que isso, de autoconhecimento e de reconhecimento. Conhecimento profundo de si mesmo; mergulho interior em busca das pérolas da sabedoria. Conhecimento dos lugares e das coisas; dos homens e dos seus anseios. Reconhecimento pelo trabalho alheio, pelas dádivas da Vida, pela presença de alguém em seu caminho (mesmo que apenas “vulto”, pela possibilidade de amar e de encontrar o Amor neste Mar da Vida que se expande em Memória e Conquista. O Mar, sendo Vida, é da sua vida que o poeta fala, ao dizer-se embarcação e Caronte; ao sentir-se náufrago e único sobrevivente; ao pensar-se como rio e margem, ponte e ilha, estrada e cidade, terra e mar: cipreste, navio... e, acima de tudo, vento, porto, casa e canção. Mas o poeta também exprime sua angústia existencial: o estar no mundo, a degradação da cidade, a ruína dos corpos, as amargas prosperités du vice, a guerra, temas contrários à paz que tanto almejava; paz que não estivesse apodrecida e que mantivesse fermentos de renovação. Tudo isso parece utópico, porém, insistia David Mourão-Ferreira: “senão acreditamos nestas utopias, então descremos da própria humanidade e até de nós mesmos”. Em Marinheiro Frustrado, poema publicado (intencional- mente?) na cidade do Porto, em 1950, o cenário é o da beira do 114 Idem, ibidem, p. 41; [sublinhado meu].

cais, pretexto para expressar o seu desejo de correr o mundo, não 181 como turista que, na pressa da viagem, vê apenas a flor e o fruto; • mas, sim, como o viajante que tudo experimenta, atento a “todos os sóis passados”; para ele, importava mais “o emaranhado das raízes Vilca Marlene Merizio ocultas” do que o espetáculo de todas as florações: Brisa do Mar que vens, brisa do Mar que vens de longes Continentes! Brisa do Mar que tens? brisa do Mar que tens para me pores doente?... [...] possuo um lindo mapa com a rotas envermelho: nenhuma rota me escapa, tida assim – escrita, no mapa. Tenho livros de viagens pelo meu quarto empilhados; certas das suas passagens, uns certos tristes bocados, quase me fizeram chorar... [...] Mas ainda há muito mais, muito mais! Ai, são imensos os fios que, lucidamente, tenho feito, composto, arranjado, para ter o prazer estranho/ de me supor embarcado.115 Se, em Marinheiro Frustrado, David tece as coordenadas da sua trajetória (parece que estamos a ver o cenário de Gaivotas em Terra, mais precisamente o do conto Agora o Fado Corrido), em A Secreta Viagem, faz a escritura dos domínios ainda a serem conquistados. 115 1950, p. 103.

Há flores e frutos no colo das ilhasE as palavras-chave de Inscrição sobre as Ondas – viagem, deus, segredo, vulto, solidão e luz – acompanham-no por toda a Obra Poética (1988) até o último poema, Reinscrição sobre as Ondas,116 182 onde algumas delas se repetem, agora com um outro significado: • Só comigo me encontro enquanto me concentro Nas ancas de Afrodite ou nos olhos das Parcas Mas seu que sou assim desde há imenso tempo Mal fora iniciada a secreta viagem. Em Veio de Cristal, o ciclo pretende se fechar: a travessia se cumprira, embora a passagem pelo seu Mar Vermelho tenha lhe custado um esforço desmesurado, tal como custou a Ulisses a passar por Ítaca, até alcançar o Ciclo Sombrio (a que chamo de Dissolução, ou seu Outono, conforme terminologia de Northrop Frye117) para depois emergir em O Menino nascia a bordo de um navio. Quando tudo parecia desmoronar, ouviu-se do poeta: “Onde estás, ó minha vida?”, ele, que anteriormente já havia pedido: – “não perguntem nada: as razões são longas./ Não perguntem nada: as razões são tristes. E, no seu entender, o “anjo falhado” que nem a embarcação salvou, apõe ao seu questionamento três verdades acutilantes e perturbadoras para quem foi sempre modelo de movimento e beleza: “Sono. Volúpia. Doença”, continuando mais adiante: “se preciso habitar-me nunca passo/ de navio solúvel dentro d’água”. O lamento daquela época, em que a solidão fez-se maior do que todos os outros sentimentos, prolonga-se se por toda a década de sessenta do século XX. Exemplos da Obra Poética (1988): 116 O último poema de Obra Poética 1948-1988, p. 409. 117 A obra de ficção de David Mourão-Ferreira foi objeto de estudo para a construção da minha Tese de Doutorado, defendida em outubro de 1992, na Universidade dos Açores. Um resumo foi publicado sob o título A história de Um Amor Feliz, Florianópolis: Ed. Da Autora, 2004.

Sinto-me um náufrago perdido,/ por entre limos e corais/ 183 diminuído (p. 74); Os meus joelhos,/ cada vez mais ossudos e • magros,/ cravaram-se na terra: são ciprestes (p. 76); Quisesses tornar tu este veleiro,/ que em secreto estaleiro construí, sem Vilca Marlene Merizio velas, sem cordame, sem madeira/ – mas branco!, e todo inteiro/ para ti... (p. 81); Puseram-me açaimes nas ventas do vento,/ ergueram açudes nas águas do mar... (p. 139) Já começa a ruir o edifício que sou/ – hotel, casa de jogo, hospício, biblioteca (p. 115). Já agora navegador experiente, continua, contudo, “ao sabor das ondas (era já noite) o navio dançava”,118 embalo constante que pode ser relacionado com todos os episódios de Itinerário Grego. Mesmo sem saber se o que procura é o “seio interior” da amada “num lago de sangue uma ilha de fogo” ou se é o seu último porto”, o poeta venceu os percalços que a vida lhe impôs. No Veio de Cristal, assustado pela precariedade da sua saúde física, David Mourão-Ferreira toma pé do já feito e do ainda por fazer e revela-se Criança, ainda sozinho, ainda feroz, moço na alma que “quanto mais canta mais morre de fome”. A intenção de comunhão-comunicação debalde tenta acontecer... A solidão imposta, por mais corpo que encontre ou vulto que se lhe apresente, ronda toda a sua criação. Mesmo Ulisses, quando dirigia palavras galantes a Nausícaa, Homero pôs-lhe na boca o que o coração só em parte sentia. Talvez por isso, o poeta tenha dito: “no carro em que segues eu não caibo”. Conhecia ele o caminho, sabia também como ir...; por isso, talvez, tenha se assumido como um “navegador solitário da literatura contemporânea”. No seu tempo de Sabedoria,119 vencido o seu Ciclo Sombrio, o poeta, romancista, cronista e ensaísta, um “lisboeta que deseja o Mundo”120 justifica o anseio que o arrasta para o Descobrimento, 118 1969, p. 71. 119 Ver o Capítulo 2, item 2.4.5 Sabedoria, o Mito do Inverno, p. 167-169 de A história de Um Amor Feliz, de Vilca Marlene Merizio, 2004. 120 GARCIA, 1980.

lembrando a mistura do que são feitos os portugueses, e, sobretudo, a herança étnica dos elementos romano, godo, hebraico e árabe: “A avassaladora presença (de matriz hebraica) de uma terra prometida tem a ver com o sentimento de saudade e com a procura dessa terra 184 em muitos outros lugares”, assim como “A nossa condição de finis • terra também nos arrastaria para a empresa dos Descobrimentos”.121 Há flores e frutos no colo das ilhas A busca empreendida por David Mourão-Ferreira. Se conheceu restrições de tipo geográfico, sincrônico tendeu posteriormente a ir cada vez mais além, isto é, ao mais recuado duma realidade cultural. Assim, sem que Eros deixe de ser excesso-plenitude que os ombros humanos não conseguem resignadamente carregar, a viagem no tempo projeta o autor em épocas remotas, por vezes históricas, por vezes, lendárias, por vezes na indestrincabilidade entre o mito e o documento, por vezes na personificação duma cidade em forma feminina, outras vezes na expansão da forma feminina nos rostos da cidade.122 Sem esmorecer, mais uma vez, pela palavra, o poeta seguiu o caminho. Movimentou o mundo. Falou de si em poesia, provando que o sonho pode dar-nos a dimensão da liberdade, que tem de ser exercida dia a dia porque, afirmava ele, “é só no exercício da liberdade que a liberdade se alcança, se vive e se reinventa”. Numa caminhada de tantos anos – 1947/1996 –, quase todo o tempo dedicado aos livros, quando diferentes formas de sublimar a escrita foram aparecendo, vejo David Mourão-Ferreira nesta última década (noventa do século XX), veleiro de luz incrustrado no veio de cristal, faixa de rocha que se diferencia das que a ladeiam pela 121 Esta busca pela “terra prometida” foi originariamente planejada sob a forma de uma Trilogia, intitulada Floresta de Enganos – Passagem do Rio Vermelho e o Jardim de cada um – que constituiria o seu tão almejado romance. David Mourão-Ferreira explica: cada personagem “irá cultivar o seu Jardim, onde lhe aprouver, da forma que lhe agradar. Mas será inútil e infecundo todo o jardim plantado por quem não tenha sofrido na Floresta, por quem não se tenha arriscado na Passagem do Mar Vermelho” (1947, p. 30). 122 GARCIA, 1980, p. 117.

natureza e pela cor, das quais se destaca pela ousadia dos temas e pela 185 (doce) canção com que envolve a sua voz. A palavra – “monumento • de palavras” –, mina que não esconde o mineral poético; o coração, rio em cujo fluir concentra-se a essência da sua criação; o espírito: Vilca Marlene Merizio amor que se faz melodia em perpétuo movimento de luz e onda, mar de altas vagas e de lago sereno; quietude e inquietação onde se amoldam as barcas, as jangadas, as ilhas – “E tantas, tantas ilhas/ no mar que não nos limitasse” – as camas..., assim como em Ladainha Horizontal: Como se fossem jangadas/ desmanteladas,/ vogam no mar da memória/ as camas da minha vida.../ Tanta cama! Tanta história!/ Tanta cama numa vida! [...] Ei-las vogando as jangadas/ desmanteladas, todas cobertas de escamas/ e do sal do mar da vida... [...] Só as tábuas das jangadas/ desmanteladas boiam no mar da lembrança/ e no remorso da vida.../ [...] – Sede, por fim, ó jangadas/ desmanteladas, / a ponte do esquecimento/ pra outra margem da Vida!/ Sede flecha, monumento, ponte aérea sobre o Tempo,/ redentora madrugada!123 Versos que valorizam o trabalho da memória e da imaginação. Mais uma vez, a poesia torna-se essencialmente linguagem figurada, intensificada pela emoção e transfigurada pela metáfora. O eco dos dois instantes – o que já passou e o instantâneo, ambos voltados para o futuro, pede silêncio, mas a percussão da ideia não esconde que, afinal, “toda a reminiscência é erótica”: que a lembrança seja d e uma cidade, de um acontecimento ou de uma mulher, é “sempre Eros que nos faz penetrar neste passado puro em si, nesta repetição virginal. Ele é o companheiro, o noivo de Mnemósina”, a “Rainha/ iníqua e 123 MOURÃO-FERREIRA, 1988, p. 138.

cúmplice das Parcas”124 ..., rainha que promove a mudança da retina e da rotina em renovo. 186 Se muitos e muitos poetas têm chorado a unidade perdida, o uno estilhaçado, o labirinto da variedade, David Mourão- • Ferreira supera – combate mesmo – o mórbido langor que percorre os estilhaços, os fragmentos, as ruínas.125 Há flores e frutos no colo das ilhas Quando muito, durante a existência permanentemente construída/reconstruída em solidão e procura emerge a constatação que sem ser cruel não deixa de ser triste: “De mãos dadas com o fado... a saudade.” Mas o poeta segue... Outros afetos o estimulam, a caminhada prossegue adiante: “à procura da pista de mais um europorto”, como passageiro dum Tempo e dum Continente, como vagabundo que assumiu frontalmente que a mentalidade ocidental – e a respectiva imagem poética – é uma “esperança de aves e de aviões”. Nisso, mais uma vez, o poeta revela nova faceta das suas paixões: a Europa – “não passo de um amador, de um amador de poesia e de um amador da Europa”.126 Uma Europa onde o poeta recolhe traços de múltiplas afinidades, concepções do amor e da viagem, ecos de tantas gerações de poetas, ecos de muitíssimas revoltas, inquietações e inquietismo; esta Europa exige-lhe, para além da visão atenta e imediata, com anotação de contrastes e de defasamentos, uma viagem ao invés, um recuo, nos tempos.127 Na natureza, tudo que é passível de transformação, ressurgindo de forma diferente pela contínua repetição sem perda da essência da origem, pode dar-se a entender como uma representação mítica. E David Mourão-Ferreira, pela retomada que faz de certas estruturas 124 MOURÃO-FERREIRA, 1988, p. 189. 125 GARCIA, 1980, p. 112. 126 1972, p. 11. 127 GARCIA, 1982, p. 113.

verbais e da determinada intenção – jamais negada – de trabalhar 187 o texto incansavelmente antes de dá-lo ao leitor, numa prova • evidente de amor e de respeito, traça já antes de 1950, antes de lançar publicamente o seu roteiro de partida – A Secreta Viagem – o seu Vilca Marlene Merizio programa estético, elegendo como invariantes do seu arcabouço literário alguns motivos que, pela constância de reapresentação ao longo de mais de cinco décadas, tornaram-se temas cujas conexões com variantes descritivas, narrativas e/ou subjetivas, possibilitam o seu enquadramento como a resultante de um esforço de registro fotográfico percorrido a partir de uma mapa apenas imaginado. E isso é um Mito. Muito mais: o Mito de Ulisses: Não tinha sido fábula a saudade De estar ao pé de mim sem estar comigo: Vejo-te agora em água, areia, carne, És o vulto no sonho pressentido.128 Um Ulisses século XX, que de Lisboa, temporariamente, mas sucessivamente, se ausentou para, distante, melhor nela inscrever sua saudade, enquanto também se dava aos Quatro Cantos do Tempo:129 “Mas de todas somente a que se chama Ítaca/ parece a rapariga à espera de eu ser eu”. Na sua Ítaca tão sonhada o que prevalece é o Poeta-Penélope, fiel aos seus velhos-mas-sempre-novos princípios estéticos assim como fiéis são os leitores do poeta, ele mesmo. Depois do tempo da Sabedoria, já no fim dos tempos terrenos que a Vida lhe reservou, David Mourão-Ferreira aventa a hipótese de um futuro de vida plena numa dimensão sobrenatural: “Isto também faz parte da essência sonhadora do homem, em que o mundo visível nunca chegou para o apetite de transcendência que nós os homens trazem consigo. É o sentido do transcendental, algo para além da vida humana como promessa de volta à Casa do Pai. Explicou o poeta: Isso, para alguns, 128 Ulisses a Nausicaa, OP88, p. 168. 129 Título de um dos livros que compõe a Obra Poética – 1948-1988.

realizar-se-á no campo do real, no campo da história; para outros, num além para o qual também há muitas chaves, sem sabermos se servem ou não nas respectivas fechaduras.130 Na sua barca de altas águas, cofre de múltiplos sentidos, em 188 variados portos ancorou, empenhando-se na penetração do seu • memorável templo poético. Do convés, e muito mais, do coração, Há flores e frutos no colo das ilhas deixou transbordar ideias, sentimentos, esperanças; e esculpiu promessas na fragilidade murmurante das ondas, na frieza silenciosa dos mármores, na temporalidade crepitante das árvores. Seu canto é melodia amorosa em perpétua viagem pelo mar da saudade. Referências GARCIA, José Martins. David-Mourão-Ferreira, a Obra e o Homem. Lisboa: Arcádia, 1980. MOURÃO-FERREIRA, David. Discurso Directo. Lisboa: Presença, 1969. MOURÃO-FERREIRA, David. Imagem. Rumos. Lisboa: Autores, 1946. MOURA, Vasco da Graça. David-Mourão-Ferreira ou a Maestria de Eros. Lisboa: Brasília Editora. 1978. MOURÃO-FERREIRA, David. Tábua Bibliográfica. Cadernos I e II. Lisboa, 1942 (Texto inédito, manuscrito). MOURÃO-FERREIRA, David. Os Íntimos Degraus. Lisboa, 1947 (Texto inédito, datilografado). MOURÃO-FERREIRA, David. Marinheiro Frustrado. In: Meridianos de Arte e Literatura. Uma Antologia de Escritores Modernos. Org. Carlos F. Barroso. Porto: Sociedade Editora Norte. 1950. MOURÃO-FERREIRA, David. Obra Poética 1948-1988. Lisboa: Presença, 1988. MOURÃO-FERREIRA, David. Tópicos Recuperados. Sobre a Crítica e outros Ensaios. Lisboa: Caminho, 1992. 130 1990, p. 36.

PESSOA, Fernando. A Razão. Revista. Lisboa. Lisboa. 1974. 189 PESSOA, Fernando. Gente. Revista. Lisboa, novembro de 1990. • PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego, Fernando Guedes e Bernardo Soares. Org. Teresa Sobral Cunha. Lisboa: Presença. Vilca Marlene Merizio



11 A espiritualidade de Antero de Quental131 Sede indulgentes [...], porque a indulgência acalma, corrige132... A espiritualidade de Antero de Quental. 131 Ensaio apresentado à banca do concurso para o cargo de Professor Titular – Disciplina Literatura Portuguesa – do Centro de Comunicação e Expressão do Departamento de Línguas e Literaturas Vernáculas, da Universidade Federal de Santa Catarina, 1998. Publicado em Dá rosas, rosas, a quem sonha rosas. (MERIZIO, v. 2013, p. 329-377). 132 José, Espírito Protetor, Bordeaux, 1863. In: KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o espiritismo. Tradução José Herculano Pires, 49. ed. São Paulo: Lake, 1987, p. 140.

Pensar em Antero de Quental é rever Portugal. É sentir os Açores e deixar sucederem-se imagens que nos dizem sofrimento, abnegação, justiça, amor... Poesia. É embrenharmo-nos no âmbito da Literatura, da Educação, da Filosofia, da Religião, da Política e 192 da Arte. É voltar a um tempo quando as amizades se estreitavam • no caminho árduo da vida. Mas é também retroceder ao mundo Há flores e frutos no colo das ilhas português do Século XIX, quando os padrões éticos e morais vivenciados por personalidades isoladas, como é o caso de Antero de Quental, sobrepujavam os fervorosos laços de respeito imposto ao já estabelecido, ao quase-inútil, em suma, uma volta ao que a Geração de 70 considerava a incapacidade generalizada de homens “velhos; período no qual, de forma globalizada e pública”, se anunciava o “declínio de uma civilização”, a “decadência de uma cultura”.133 Nesse sentido, estou pensando numa nação – Portugal – do último quartel do Século XIX, que precisava ser sacudida por novos valores políticos e sociais e numa literatura que agonizava nas mãos de uns poucos românticos que, se já haviam sido grandes, em nome dessa grandeza agora em marasmo, com necessidade de reajustamento, deveriam ceder espaço às consciências livres e inovadoras que objetivavam regenerar a organização social e literária do país. A voz de Antero de Quental emergia, então, na época, corajosa, desafiadora, ao mesmo tempo que doce, paternal, educativa. Antero de Quental foi poeta e revolucionário. O amigo que se fez defensor da Justiça. O líder popular. O doente resignado. O pensador que, na solidão dos seus dias, olhou para o infinito e o povoou de interrogação e de premissas. Antero de Quental, o “homem 133 “Uma época e uma civilização podem parecer, em certa fase, ainda cheia de vitalidades para uns, e, para outros, exemplarmente decadentes. [...] A literatura, sob a influência e os conceitos das ciências naturais e da medicina (psicopatológica, em especial) desenvolveu a ideia de que o homem da segunda metade do Século XIX é decadente e até um degenerado”. PIRES, A. Machado. A ideias de decadência na Geração de 70. 2. ed. Lisboa: Vega, 1992. p. 23. (Sublinhado do autor).

que é a mais alta glória dos Açores”,134 nele, tudo o que se perde em 193 fragilidade, doença e morte, recupera-se em correção, dinamismo e • coragem, cristalizados numa obra multifacetada e perene. Vilca Marlene Merizio A poesia, a prosa e a epistolografia de Antero de Quental fornecem-nos a prova definitiva do valor de uma alma que se esvaía em quase permanente estado de aflição, mas que se reanimava nos seus ricos instantes de elevação espiritual. Antero de Quental, desde o início José Bruno Carreiro (1981) fez uma compilação sobre a vida e a obra de Antero de Quental. No Prefácio do primeiro volume dos seus subsídios para a biografia do grande escritor açoriano, ao sublinhar que jamais omitiu um pormenor, por mais insignificante que fosse, a respeito da vida de Antero, relatada, quase de par a passo desde o nascimento até a morte, o biógrafo açoriano adverte que, no 134 CARREIRO, José Bruno. Antero de Quental. Subsídios para a sua Biografia. 2. ed. Ponta Delgada: Instituto Cultural/Braga: Editora Pax, 1981, v. 1. p. 11.

estudo sobre a obra de Antero de Quental, “nada deve ser julgado sem interesse”.135 É a vida do poeta construindo-se em obra. É o poeta assumindo-se como personagem da sua própria criação. O interesse de José Bruno Carreiro sobre a vida de Antero 194 remonta aos ancestrais de Antero, o poeta de São Miguel. Pela • linha paterna, Antero de Quental era filho de Fernando Quental, Há flores e frutos no colo das ilhas natural de Ponta Delgada, Açores, Portugal. Seu pai foi um dos Bravos do Mindelo que lutou, entre outros 7.500 homens, nos exércitos de D. Pedro IV (D. Pedro I do Brasil) contra Dom Miguel, outro filho de D. João VI ( do Brasil). Segundo neto do Capitão André da Ponte Quental e Câmara, “pessoa da nobreza da cidade de Ponta Delgada. André da Ponte Quental e Câmara, o avô, foi também um dos chefes da revolução liberal na ilha de São Miguel, em 1821. Foi eleito deputado às Cortes e, em 1822, assinou, em sétimo lugar, a Constituição Portuguesa. Nos anos seguintes, André fez parte da Câmara Municipal de Ponta Delgada. A respeito desse avô, Antero de Quental refere-se a ele como sendo da roda de amizade de Bocage, o notável satírico português que não deixou registradas por escrito as suas composições poéticas. Os dois amigos, o avô de Antero e Bocage, gozaram e sofreram, juntos, aventuras e perseguições.136 Pela linha materna, Antero era filho de D. Ana Guilhermina da Maia, nascida em Setúbal, Portugal, e neto do Desembargador Antero José da Maia e Silva, de Tomar, também Portugal. 135 Ainda sobre Antero foi escrito: “Aquele que é, depois de Camões, o maior de todos” (Prof. Costa Pimpão); sobre os Sonetos de 1864-1874: “o mais alto, luminoso cume, a que subiu a poesia no nosso país” (António Sérgio); Sonetos de 1874-1880: “os cinco poemas lúgubres [...] devem ser um dos grandes instantes da poesia humana: depois das estrofes gloriosas d’ Os Lusíadas e dos sonetos de intuspecção (sic) profunda de Camões, não há na poesia de língua portuguesa, de tão rico património, outro instante de tal intensidade (Fidelino de Figueiredo). Unamuno considera que alguns sonetos de Antero viverão enquanto viver a memória dos homens e ainda diz: “Em España no tenemos nada que se le parezca” (Por terras de Portugal y de España, p. 19). 136 “poeta nada vulgar; infelizmente nada resta das suas composições, porque as não escrevia”. Citado por Carreiro (1981, p. 37).

Antero de Quental nasceu em Ponta Delgada, Ilha de São 195 Miguel, Arquipélago dos Açores, Portugal, a 18 de abril de 1842. • Suicidou-se na mesma cidade, a 11 de setembro de 1891. Não teve descendentes. Vilca Marlene Merizio Com o nome de Anthero Tarquinio do Quental foi batizado na Igreja Matriz de Ponta Delgada (cujo padroeiro é São Sebastião). Pelo assento de batismo, fica-se sabendo que Antero de Quental nasceu e residiu na que hoje é conhecida como Rua do Castilho (antes Rua dos Gulas, depois Rua do Lameiro), residindo com a família nas casas de números ímpares de 11 a 19. O nome de Antero de Quental figura entre a relação nominal de mancebos que, em 1863, constituíram o “contingente militar da freguesia da Matriz”, conforme registros dos recenseamentos militares do Concelho de Ponta Delgada e, entre os assentos de 1838 a 1842, do índice do Registro Civil do mesmo Concelho. Sobre a casa em que nasceu e residiu Antero, Júlio de Castilho (o Visconde de Castilho, filho de Feliciano de Castilho), amigo de infância de Antero, deixou registrado: O palacete dos Quentais tinha um quintalão todo cheio de sombras. Lembro-me de um bosque de bananeiras, que me parecia as florestas virgens da América”. E no mesmo passo: “A Rua do Lameiro, sossegada, pouco habitada então, tinha, como muitas outras da cidade, um ar campestre e a erva crescia ao longo das paredes e dos muros. Expressões de carinho e de saudade em relação à casa da infância são manifestadas por Antero numa de suas curtas visitas à ilha, já quando residia no continente português. O relato, publicado no Correio dos Açores, 17-IV-1921, e citado por Carreiro (1981, p. 4-5), é feito por Aristides da Mota, vizinho da família, que se refere a um episódio de 1887: Por mais de uma vez o vi procurar com a vista, de sítio inacessível, a casa onde nasceu e mais permanentemente

passou a sua primeira mocidade; esse olhar era um olhar demorado de saudade e por uma vez me interrogou sobre certa particularidade que não podia identificar com essa casa, e de facto se não identificava, mas que por efeito da perspectiva a 196 ela parecia pertencer. • Esse episódio foi registrado pelo autor Aristides da Mota, em Há flores e frutos no colo das ilhas carta remetida a Luís de Magalhães, datada de 21 de outubro de 1891, quarenta dias depois do suicídio de Antero: Comovia-se sempre que via a casa em que tinha passado a sua infância. Da penúltima vez que aqui esteve (1887), um dia, procurou-me em ocasião que estávamos ao jantar, a que ele assistiu, sentado ao meu lado, donde se via por uma das janelas do quarto o torreão (um 2o andar) de uma casa que ficava a pouca distância. Estava eu dizendo qualquer coisa, a que ele principiou por atender; depois notei que o seu olhar se fixava insistentemente para além daquela janela, e que ele decerto não ouvia o que eu dizia; continuei contudo. De súbito, interrompendo-me, e como quem, depois de ter evocado com força a memória não consegue lembrar-se, diz, em forma de pergunta: ‘Aquela torre que daqui vejo, pela sua posição parece a da casa de meu pai, mas desconheço-a’. Havia neste dizer um tom de sentimento e de tristeza indefinível; não sei como melhor traduzi-lo se pelo desgosto de ele ter esquecido (como podia supor) o aspecto de uma coisa que lhe evocava recordações muito queridas, apenas delineadas no fundo de um passado saudoso, se pelo desgosto de ver que mãos desconhecidas tinham alterado esse aspecto, por forma que não coincidia com a lembrança nítida que dele tinha. Seja como for, a pergunta era feita com a intenção de sair de uma dúvida. De facto, o que ele via era a torre de uma nova construção contígua à casa do pai, e que, na perspectiva, cobria a torre desta. Quando lhe expliquei isto, desanuviou-se. Vi nele um movimento de repouso, os músculos, visivelmente contraídos, como pela ação de um sentimento doloroso, dessas dores vagas, mas que afetam toda a organização da

consciência distenderam-se; ficou como se lhe tivessem dado 197 uma boa notícia.137 • Ainda sobre a infância de Antero, há referência sobre outra residência da família Quental, a casa na qual residiu, desde 1811, o Vilca Marlene Merizio avô paterno de Antero, André da Ponte de Quental, e onde nasceu o pai, Fernando de Quental, e os seus quatro tios. A partir de 1820, André da Ponte de Quental fixou residência na Rua do Castilho. A partir daí, o solar do Bonsucesso, no Ramalho, freguesia de Ponta Delgada, passou a ser ocupado pela família apenas no verão. No mesmo solar, Antero hospedou-se em agosto de 1867, quando voltou para São Miguel, demorando aí até outubro de 1868. O ar de introspecção – esse olhar de mergulho íntimo – é uma característica que, comumente, se vê aflorar nos poetas açorianos. O meio físico em que decorreu a infância de Antero – afinal, a Geografia e a História condicionam a vida do indivíduo, diz Vitorino Nemésio – marcou profundamente a sua personalidade. Das marcas tangíveis das suas palavras é possível o tracejar de um mapa que espelha a sensibilidade, não só do autor, mas da alma açoriana presente em sua obra. Mariano M. de F. Maia registra o seu pensamento sobre a influência das nove ilhas do Arquipélago dos Açores na inteligência e no humor dos seus habitantes: Aqui a natureza apresenta contrastes notáveis, que predispõem os espíritos que os observam desde a infância para a descoberta e compreensão da alternativa dos contrários, que a observação penetrante reconhece nas coisas e factos, sobre que depois vem a exercer-se. Aqui, pelos vales, nem amplos, nem limitados, por alterosas montanhas, pelas ravinas pouco profundas, pelas planícies não extensas, ostenta-se uma vegetação exuberante, característica do clima húmido e da fertilidade dos terrenos, que torna a paisagem, sobretudo, amena e suave, e incute nos 137 In: Suplemento de Cultura, Jornal Diário da Manhã, Lisboa, 17 de agosto de 1943.

caracteres um fundo melancólico, que os tornaria frouxos se não fossem tonificados pelos panoramas que encerram os vales da Furnas e Sete Cidades, e pela contemplação do largo oceano... [...] A pátria do açoriano explica e determina o seu carácter e 198 as tendências de sua inteligência e sentimento, associando-se • estas àquele, em completa harmonia, constituindo assim, nos maiores de seus filhos, individualidades portentosas como Há flores e frutos no colo das ilhas Antero de Quental e Teófilo Braga.138 No seu primeiro artigo escrito, A Pátria, Antero diz: nunca me pude conformar com a ideia de entrepor as vastas solidões do Oceano entre mim e a terra que me viu nascer. Não sei que secreta magia prende o coração ao canto da lareira pátria; aquele tosco banco sobre o qual os séculos passados têm vindo por um instante chorar nas suas dores, ou alegrar- se nas suas felicidades, para logo desaparecerem da cena do mundo.139 Sobre a casa paterna da Rua do Castilho, informa Aristides da Mota o fato de Antero, no mesmo ano de sua morte, haver-lhe confessado “que a não via nem se lembrava dela sem emoção”.140 Em 1876, é na mesma casa que volta a habitar por dois escassos meses, conforme registra em carta de 3 de junho a Oliveira Martins: “O que tenho estado é triste bastante, nesta casa onde vim ao mundo não sei para quê”.141 Sobre as outras residências de Antero, dentro e fora da Ilha, sabe-se que foram de extrema pobreza, guardando, quando muito, os móveis estritamente necessários, livros e, sempre, púcaros com flores. Pelo índice Geográfico e Toponímico, anexado por Ana Maria Almeida Martins, em Cartas II, torna-se público que Antero de Quental residiu em Lisboa, Coimbra, Vila do Conde, Paris, Porto, Belleuve, Ponta 138 Carreiro (1981, p. 77). 139 In: Prosas da Época de Coimbra. Lisboa: Sá da Costa, 1982. p. 83-84. 140 Idem. Ibidem, p. 5. 141 Cartas I. p. 347.


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