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haFlores-e

Published by Paroberto, 2021-01-11 23:04:28

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Delgada, Póvoa de Varzim e em outros lugares menores. Também viajou para a América do Norte, Inglaterra, Espanha e França. Espiritualidade e trabalho 199 • O trabalho é santo, porque é o modo de amar da inteligência. Vilca Marlene Merizio Em A ruína da casa romântica e o naufrágio de Hegel, Eduardo Prado Coelho (1987, p. 191-201) teoriza sobre a essência da crítica literária portuguesa contemporânea, citando Schlegel e apontando os padrões da análise crítica desde os gregos que a inventaram, fundaram e nomearam. A favor dos gregos estava a aproximação dos textos em estudo, o que facilitava o confronto dos vários manuscritos com a lição que o texto continha. Os documentos in loco possibilitavam a avaliação das lacunas, das edições subsequentes, do estudo das fontes antigas, o que permitia também um julgamento mais preciso sobre a lição do texto e a visão de conjunto de toda a obra estudada. No dizer de Schlegel, [...] “os gregos não apenas escolhiam como liam bem. [...] Liam incessantemente os textos clássicos. E isso permitia-lhes encontrar a chave do seu génio: ‘a inteligência da totalidade da arte e da cultura”. No sentido do todo é que estava o mistério da crítica literária: a arte do autor e a absorção da arte pelo crítico. Ainda na era antiga, para os romanos, a arte da crítica tornava- se mais difícil, já que eles se confrontavam com uma cultura e uma arte que lhes eram estranhas porque vindas do exterior. A mesma dificuldade que já sentiram os romanos, sente o pesquisador deste final de século quando se dedica ao estudo de obras criadas em séculos passados ou de autores contemporâneos, mas estrangeiros, mesmo agora na era da informática. O problema maior apontado por Schlegel concentrava-se na investigação fragmentária, baseada em partes da obra, tecitura que não corresponde à totalidade poético- literária original. Julgar através de passagens isoladas, mesmo que

se discuta até a exaustão os pormenores de uma obra, é perder a afetividade do texto. Na opinião de Francisco Schlegel: “A primeira condição para a compreensão da obra de arte é a apreensão do todo”.142 E aponta, 200 como imprescindível ao método, a necessidade de uma construção • dedutiva, de um conhecimento do todo na arte e na poesia: a primeira Há flores e frutos no colo das ilhas abre a dimensão histórica e o segundo, institui a dimensão filosófica. Portanto, em síntese, uma “decantação filosófica da história” e uma “visão histórica da filosofia; ou ainda, “uma inteligência da diferença e do devir”.143 (Grifo do autor). Em relação à obra de Antero de Quental – poesia, prosa e epistolografia –, os textos existentes em bibliotecas institucionais e particulares de Santa Catarina não garantem a presença da totalidade de escritos anterianos e, muito menos, da fortuna crítica acumulada nesse último século e meio de produção ensaística de teóricos da literatura sobre o filósofo açoriano Mas, do que temos em mãos faremos uso, principalmente dos dois volumes de Antero de Quental – Subsídios para a sua Biografia, de José Bruno Carreiro (1981); da coleção Obras Completas de Antero de Quental, editada pela Universidade dos Açores, com organização, introdução e notas de Nuno Júdice, Joel Serrão, António M. B. Machado Pires e Ana Maria Almeida Martins; das Atas do Congresso Anteriano Internacional, realizado na passagem do centenário de morte do Autor, em Ponta Delgada, Açores, Portugal, do qual participei como ouvinte; do estudo sobre a evolução da filosofia existencialista e do pensamento pedagógico de Antero de Quental, realizado por Fernando M. Soares Silva; da pesquisa sobre a evolução espiritual de Antero e de outros escritos, por parte de Joaquim Carvalho; para além de textos críticos e de outros ensaios inseridos em volumes de História Literária e em livros didáticos de Literatura Portuguesa. 142 Apud Coelho, 1987. p. 193. 143 Idem. Ibidem, p. 194.

201Vilca Marlene Merizio • Obras Completas de Antero de Quental. Para além do mais, como explica Ana Maria Martins (1981. p. 10), muita da correspondência [de Antero] se perdeu: em incêndios, inundações, até em naufrágios, [...] sobretudo devido à incúria de possuidores, algumas vezes descendentes dos destinatários, que de todo desconheciam o valor desses documentos. Também o poeta rasgou muito dos seus escritos, ato testemunhado por colegas e amigos desde o tempo de Coimbra, tanto que nada garante ser a obra de Antero de Quental conhecida a que encerre toda a produção escrita desse “herói cultural português”, como adjetivou Eduardo Lourenço. Por razões didáticas, em estudo preliminar, antes da redação final desta pesquisa, optei por seguir a ordem cronológica da produção literária de Antero, correlacionando-a com a sua

vida estudantil, profissional, filosófica, política e religiosa. No entanto, por razões que não cabem neste contexto, o que aqui segue apontado, é uma planilha a ser brevemente retomada para ampliação e aprofundamento. 202 O motor que me impulsiona é o desejo de ver claramente • delineada a evolução do pensamento de Antero de Quental no que Há flores e frutos no colo das ilhas concerne à religiosidade, através das cartas, da poesia e da prosa, com ênfase dada ao último período de sua vida – 1882/1891 –, aquele considerado por José Bruno Carreiro como o da Santidade de Antero, sem, contudo, desprezar as produções anteriores. Antero sempre procurou equilibrar pensamento, doença e trabalho, desempenhando o seu papel com paciência, mas nem sempre o poder de ação comandada pela vontade permitiu a realização dos seus desejos, por melhor que eles tenham sido. A sua maneira pessimista de sentir o mundo, de acreditar que não nasceu para ser feliz, é também característica de outros poetas ilhéus nascidos nos Açores, mesmo que mais recentemente.144 Antero, homem de boas maneiras, era uma figura impecável, tanto no físico quanto nos seus aspectos internos. Abundam os testemunhos favoráveis a respeito do poeta, principalmente os emitidos por Eça de Queirós e pelos seus contemporâneos. Eis algumas descrições, documentadas em textos publicados na época e recolhidos por José Bruno Carreiro: [...] belo e vigoroso rapaz (Mariano Machado); [...] cabeça nobre e arejada, porte altivo; cabelos loiros, muito bastos, de um forte tirante a cor de fogo; o sorriso tinha grande expressão de bondade (Bulhão Pato); 144 Sobre a caracterização tipológica do açoriano, ver também NEMÉSIO, Vitorino. “O Açoriano e os Açores”. Porto: Renascença Portuguesa, 1929. p. 18; RIBEIRO, Luís. Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade. Informação Preambular. Notas e Bibliografia por João Afonso. Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 1964; ALMEIDA, Onésimo T. Açores, Açorianos, Açorianidade – um Espaço Cultural. Ponta Delgada: Signo, 1989.

[...] cabeça fulva, audaz e leonina, erguida com um porte 203 triunfal; desproporcionada gaforina, crespa e mal aparada; • barba curta, à Cristo, de um loiro claro (João Machado); [...] cabelos bastos e loiros; rosto oval; faces de um leve cor- Vilca Marlene Merizio de-rosa; nariz um pouco aquilino (Visconde de Faria e Maia); [...] enorme cabeleira encrespada, de um loiro avermelhado; olhos muito azuis, alegres, irónicos, maliciosos – ou abstratos e perdidos (Batalha Reis); [...] magnífico varão, cabeleira em desalinho: grenha densa e loira com lampejos fulvos [...] que quase por completo lhe cobria a testa; fulva grenha flamante e romântica; grenha cor de oiro, que flamejava por cima das multidões (Eça de Queirós); [...] olhar sobranceiro, de vivo lume cheio e puro afeto (Alberto Teles); [...] figura impávida, alegre figura indómita de paladino; cabeça resplandecente e vigorosa, a juba de oiro leonina, a testa curta de Hércules Farnésio, o olhar azul, cheio de intrepidez, e de candura, e o lábio virgem, de uma pureza helênica, de uma frescura silvestre e matinal (Guerra Junqueiro); [...] um sorriso bom que os amigos lhe conheciam (Caetano de A. Albuquerque); [...] o seu incomparável sorriso (Luís de Magalhães); [...] um sorriso que, no fundo, ainda quando vibrava alguma ironia, era sempre bom, mas sempre triste (Jaime de Magalhães); [...] um júpiter rosado, de olhos azuis, barba e cabeleira doiradas, chapéu de feltro mole e grossa bengala na mão (Alfredo Bensaúde). Desse belo conjunto de epítetos, destoavam alguns defeitos do corpo que a “capa e a batina dissimulavam admiravelmente”: as grandes

orelhas, as pernas finas e compridas e os pés demasiado grandes. Luís de Magalhães, ao vê-lo pela primeira vez, teve a impressão que Antero oscilava um pouco: “como os homens do mar”. Tal oscilação não era só física. Psicologicamente, Antero oscilava entre períodos 204 de nevrose alucinante e calmia doce e serena, quando se revelava um • estudioso contumaz empenhado em vencer os enigmas do Homem e Há flores e frutos no colo das ilhas da Natureza, transcendendo o aqui e o agora. Estivesse ele com a família parental ou com os amigos do coração, como ele costumava chamar os de sua geração, ou aqueles cuja amizade foi conquistada e alimentada durante o percurso de sua vida terrena, estava Antero equilibrado e feliz. Tivesse alguém para ouvi-lo ou para discutir ideias novas, escritas em algures, mas que tratassem da Humanidade ou que trouxessem luz aos seus pesadelos mais íntimos, aí estaria Antero inteiro, por completo, mesmo que deitado sobre o leito com crises de dor e desalento. Embora o jovem Antero poeta fosse em muito romântico pelo tom, pelas imagens, pela exaltação, pelo vocabulário (‘ocaso’, ‘longas sombras’, ‘poesia de ruínas’, ‘o céu da liberdade’ e outros sintagmas), a verdade é que procurava ideias e não só sentimentos [...]. Uma obra que começou de facto a dissolução do Romantismo... Uma poesia onde, efetivamente, já não se fala do amor e da Idade Média, mas onde a marcha da própria História é fulcral, onde se faz apelo à Justiça, à Liberdade, à Revolução: ‘O Evangelho novo é a bíblia da Igualdade: / Justiça, é esse o tema imenso do sermão./ A missa nova, essa é missa de liberdade: / O órgão a acompanhar... a voz da Revolução!’ Mas para Antero Revolução não é licenciosidade, anarquia, violência: pelo contrário, é a evolução do Homem, pela educação das consciências [...] E, por mais que defendesse o Povo, cuja hora chegara, sublinha não obstante uma determinada ordem de reconstrução, como se de uma religião nova se tratasse. Só nesse sentido se pode compreender a frase final da sua conferência do Casino sobre a decadência hispânica (1871): ‘O Cristianismo

foi a Revolução do mundo antigo. A Revolução não é mais do 205 que o Cristianismo do mundo moderno’.145 • Revolucionário, mas não de armas de fogo, letais; só no espírito, como muitas vezes costumava dizer, Antero era um visionário. Vilca Marlene Merizio Amigo dos seus amigos, foi-lhes fiel até à morte. Oliveira Martins, João de Deus, Alberto Sampaio, José da Cunha Sampaio, João Lobo de Moura, Joaquim de Araújo, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, são alguns dos muitos que tinha. Todos foram a sua família de opção. No entanto, uma das amizades que mais frutos gerou foi a que teve com Germano Meireles, pai das duas meninas que mais tarde adotou como filhas (quem sabe até o pivô do seu suicídio). Germano Meireles, jornalista “notável e viperino”, como o chamou Pinto Osório, era pobre e portava um grave defeito físico. Antero admirava-o e, em diversas ocasiões, tentou ajudá-lo a encontrar trabalho. É deprimente o retrato de Meireles, traçado por Pinto Osório: [...] inteligência superior, talento vivíssimo, era, em todo o seu ser, originalíssimo! Baixo, magro, olhos vivos, beiços finos, cara pequenina, sem barba e povoada de um velo claro, grande mobilidade de fisionomia, havia nele alguma coisa que fazia lembrar um pequenino rato! Aleijado dos pés, que tinha como que amputados e voltados para trás, o que o fazia caminhar com dificuldade, ondeante, vivia como que em guerra com a natureza, que havia tido com ele aquela enorme crueldade! Era azedo, desdenhoso, sarcástico! Um sarcasmo vivo e em pé! Palavra fácil, vibrante, ousadíssima como a sua pena. Mas Antero não se importava com os defeitos físicos do amigo Meireles. Via-o na sua beleza interior, naquilo que para os outros era vedado ver. Antero completava-se em Germano Meireles. Eram amigos íntimos. Queriam-se muito bem. Dizia Antero sobre a 145 PIRES, A. M. B. Machado. Antero de Quental. Prefácio e Antologia. Angra do Heroísmo: DRAC, 1987. p. 18.

ligação de amizade que os unia (carta de 1865, enviada a Francisco Machado): “salvas as alterações próprias da individualidade do carácter, pensávamos e sentíamos por uma mesma inteligência comum e um mesmo coração”. 206 E, em carta a Mariano Machado de Faria e Maia, Antero, para • quem solicitava uma oportunidade de trabalho na Redação do Jornal, Há flores e frutos no colo das ilhas do qual o amigo fazia parte da diretoria, escreveu: “por mim e pelo Germano [...], trataremos de fazer alguma coisa digna da fraternal companhia, pois sabes que muitas vezes a lembrança de quem vai conosco e o amor nos dão uma força e uma vontade superiores”. E continuava, num outro parágrafo: Fora uma bela coisa esta maneira de se mostrarem os amigos à luz do mundo unidos e abraçados, fazendo um só na obra como o são no desejo e no espírito! Temo que isto, por ser bom, não seja para a nossa ventura. A este respeito tenho sonhado coisas bonitas... mas, na incerteza de quem sabe de sobra o que são enganos, abstenho-me de esperanças [...]. (CARREIRO, 1981, p. 230). Não se tem certeza se o pedido foi ou não aceito. Mas essa tendência de ajudar os amigos, de rogar por eles aos mais afortunados era uma constante em Antero. Também ficou para a posteridade um pedido de ajuda para o poeta João de Deus. Com os amigos, não importa se homem ou se mulher, escrevia fluentemente, como se estivesse conversando ao pé do destinatário. Todas as suas indagações, quer filosóficas, quer religiosas ou mesmo profissionais e familiares, eram discutidas por escrito. Obrigado a manter-se em casa, quase sempre preso ao leito, era a carta o meio eficaz para o seu anseio de relacionamento humano. Em 23 de fevereiro de 1889, Antero escrevia, da Vila do Conde a Maria Amália Vaz do Conde: O Transcendentalismo tem de ser restaurado, de um feitio ou de outro. Só ele pode satisfazer, ou, pelo menos iludir e entreter as desmedidas aspirações, as ambições e esperanças

incorrigíveis do coração humano. Sem isso receio que, apesar 207 de toda a ciência que já há, e da muitas que se há-de ir ainda • produzindo e acumulando [...] o bípede singular que inventou Deus e pôs a virtude, que se não vê nem palpa, acima de todos Vilca Marlene Merizio os bens visíveis e palpáveis deste mundo, o bípede capaz destes sublimes paradoxos não tenha outra alternativa, para não cair numa soez mediocridade, senão a de uma maldade diabólica.146 Para todos os correspondentes de quem recebia um exemplar de obra recente ou de literatura antiga, Antero oferecia uma palavra de estímulo ou de correção, sem deixar de falar dos seus estudos, da sua filosofia, da sua visão de mundo. A Manuel Ferreira Deusdado, escreveu, em setembro de 1888: [...] a luz do espírito humano não é fragmento truncado e incompreensível [aqui já há demonstração clara de que Antero abandonara o Panteísmo] ou uma coisa à parte e isolada no meio do universo, mas sim um elemento fundamental dele e a mais alta potência e expressão da sua essência. A metafísica e o espiritualismo só poderão ser destruídos quando, ao mesmo tempo, forem abolidos a razão e a consciência humanas.147 Antero de Quental via no ser humano a fonte geradora de todas as suas tensões particulares. Queria lhe descobrir a alma e o que a movimentava. Queria saber do espírito. Queria compreender, por isso, amava, instintivamente como se fosse esse o seu único destino. Pesquisando sobre o pensamento de Antero sobre religião e moral, Lúcio Craveiro da Silva apresenta os patamares a que Antero chegou dentro do âmbito da filosofia: Primeiro: “superação da antinomia basilar na teoria geral do ser; segundo, Ciência e Filosofia (teoria da evolução na libertação do ser inconsciente e do ser consciente); terceiro, Filosofia e Moral e quarto, a Religião ligada à Moral (realização ideal do homem). 146 Cartas II. p. 929 147 Cartas II. p. 901.

Nessas sínteses não estão incluídas, porque inacabadas, as reformas sociais que ocuparam grande parte da atenção de Antero no início da sua carreira, ainda como jovem militante e intervencionista na política de seu país, se bem que tenham restado incólumes nas Odes 208 Modernas, os grandes ideais reformistas de Antero que, amenizadas • com o tempo, se escasseiam ao longo da sua correspondência epistolar. Há flores e frutos no colo das ilhas Uma das razões por que Antero se voltou para o lado mais pessoal e íntimo da humanidade é o fato de ele ter fundamentado a sua opinião no estudo de sistemas filosóficos que abrangiam tanto a preocupação social quanto os conceitos metafísicos. Ele próprio diz que “no meio das caóticas leituras” a que se entregava, leu de Goethe (Fausto) a Proudhon e Michelet, “devorando com igual voracidade romances e livros de ciências naturais, poetas e publicistas e até teólogos.” Mais não confessou Antero sobre os seus estudos. Da leitura de Hegel, deixou registrado: “Não sei se o entendi bem, nem a independência do meu espírito me consentia ser discípulo: mas é certo que me seduziram as tendências grandiosas daquela estupenda síntese”.148 Contudo, foi o Hegelianismo o condutor das suas especulações filosóficas: foi dentro dele que aconteceu a sua evolução intelectual. De Karl Marx, Antero não herdou a vocação do “sistema”. Foi por outro caminho, o de Leibniz, e, principalmente o de Hartmann, mais espiritualizados. Valorizou o Homem como indivíduo e não como membro de grupo social cooperativado. Refletiu sobre a consciência e a vida interior e íntima do cidadão, levando em conta, sobretudo, a sua liberdade individual. Nessa reflexão, Antero buscou-se a si mesmo, procurando respostas para os problemas da sua própria inquietação existencial. Tentando acomodar as doutrinas de Hegel com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon e com o espiritualismo transcendental em ebulição dentro do seu peito e da sua consciência, ainda em Coimbra, desceu confiante para a “arena” com uma 148 Cartas II. p. 834.

armadura “mais brilhante do que sólida”. E ele mesmo se autoavaliava: 209 “Mistérios da incoerência da mocidade”, antes de exclamar: “queria • reformar tudo, eu que nem sequer estava a meio caminho da formação de mim mesmo”.149 Vilca Marlene Merizio Na sua carta autobiográfica, escrita a pedido de W. Storck, seu editor, considerava que, na sua juventude de ufanista, consumira muita atividade e “algum talento merecedor de melhor emprego” em publicações esparsas em jornais, revistas, folhetos, em conferências revolucionárias (referência às Conferências do Cassino que, aos olhos do Governo, eram extremamente nocivas à sociedade estabelecida). E conta: “ao mesmo tempo em que conspirava a favor da União Ibérica, fundava com a outra mão sociedades operárias e introduzia, adepto de Marx e Engels, em Portugal, a Associação Internacional dos Trabalhadores”. Aí estava Antero, oscilando de um ponto a outro: de operário da Imprensa Oficial de Lisboa a (mais tarde) Presidente da Liga Patriótica do Norte; de proprietário de terras e cultivador de alimentos a operário de uma tipografia estrangeira (e foi aí, na França que ele perdeu a já fragilizada saúde do seu sistema nervoso). Contestatório, Antero publicou o seu primeiro folheto panfletário em 1864: com o título “Defesa da Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal”. De entremeio, arrastou por longos seis meses, uma polêmica com o seu velho amigo, vizinho e professor Feliciano Castilho: a Questão Coimbrã. Era a derrocada dos processos letárgicos de um romantismo já caduco, entronizado por Castilho. “Houve em tudo isso muita irreverência e muito excesso”, reconheceu Antero, quase vinte anos depois. E justificou: [...] é certo que Castilho, artista primoroso, mas totalmente destituído de ideia, não podia presidir, como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e antes de tudo aspirava a uma nova direção, a orientar-se como depois se disse, nas 149 Idem. Ibidem. p. 834.

correntes do espírito da época. Havia na mocidade [mais tarde, a Geração de 70] uma grande fermentação intelectual, confusa, desordenada, mas fecunda: Castilho que não a compreendia, julgou poder suprimi-la com processos de 210 velho pedagogo”.150 • Há flores e frutos no colo das ilhas Mas a polêmica entre Antero e os seus compatriotas não termina aí. Vieram muitos outros polemistas, inclusive o seu conterrâneo e colega Teófilo Braga ( sobre as informações de Teófilo Braga a respeito de Antero, José Bruno Carreiro na sua magnífica obra Antero de Quental – Subsídios para a sua biografia, procura pôr em evidência todos os enganos – há quem diga: “erros propositados” – de Teófilo Braga). 150 Carta a W. Storck, em Cartas II (1881-1891). Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1989.

Com Antero, moço, participando na vida pública do país, ainda 211 sem emprego fixo que honrasse a sua vontade de trabalho, abria-se • uma nova era para o pensamento português. Antero estava ciente de que fora ele o porta-estandarte da bandeira nova que tremulava no Vilca Marlene Merizio coração dos jovens da segunda metade do Século XIX. Em relação ao ufanismo ibérico, detonado com a publicação do folheto Portugal perante a Revolução da Espanha, anos depois, Antero, revendo a sua participação revolucionária mais em espírito do que em ação desencadeada, considerou ter sido uma “grande ilusão”, da qual só desistiu, e cito: “(como de muitas outras desse tempo) à força de golpes brutais e repetidos da experiência. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas coisas da sociedade!151 E mais “escritozinhos” de ocasião, como ele próprio os definia, publicou. Sua contribuição para a História resume-se na série de estudos intitulada “Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa”. “E todavia era aplaudido!”. Era seguido. Fez escola. Foi líder de uma geração. Mas nem sempre foi feliz: “Há muito tempo que sei escrever, mas foi-me necessário chegar aos 45 anos para ter que escrever”. Era a falta de recursos financeiros. Tornara-se um homem comum à procura de trabalho (o trabalho é santo...). Um homem que oscilava entre o estado de bem-aventurança espiritual e literária e as agruras de uma doença nervosa da qual nunca conseguiu restabelecer- se completamente: “A forçada inanição, a perspectiva da morte vizinha, a ruína de muitos projetos ambiciosos e uma certa acuidade de sentimentos, próprio da nevrose”, forçaram-lhe a encarar desabridamente o problema existencial. Pensamento e sentimento arrastaram Antero para um “pessimismo vácuo e para o desespero”, testemunhado pelos versos que escreveu, muitos dos quais destruiu, pelas composições que conseguiram permanecer, pela obra que ainda restou. E aqui convém 151 Idem. Ibidem. p. 836.

Há flores e frutos no colo das ilhascitar as Primaveras Românticas, Sonetos Completos e Odes Modernas, poesia de lágrimas, mas também de resignação e consolo. 212 O ideal religioso de Antero de Quental • Pelo valor que a sua obra apresenta, pode-se afirmar que Antero de Quental, tendo vivido de 1842 a 1991, é o representante natural das ideias manifestadas na segunda metade do Século XX, mais precisamente, do que foi convencionado chamar a Geração 70. Isoladamente, porém, a atuação de Antero como líder de uma época, contém um programa especial de onde emerge lucidamente o seu pensamento filosófico e religioso. O seu programa foi um grito de reação e de juventude, cheio de esperanças, de inovações e de ardor; a sua obra filosófica realizou-a ele dentro dos horizontes daquele programa e foi principalmente obra do homem já amadurecido (ACTAS, 1993, p. 732), diz-nos Lúcio Craveiro da Silva. Pena que programa e obra ficassem incompletos, assim como ficou incompleta a sua vida neste planeta, truncada tão precocemente aos 49 anos de idade pelo seu suicídio. Institucionalmente, Antero de Quental bacharelou-se em Direito. Como aluno, sabe-se, e é ele mesmo quem o diz, não foi nunca um estudante exemplar: Cursei, entre 1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo por ela bacharel formado em Direito. Confesso [...] que não foi o estudo do Direito que me interessou e absorveu durante aqueles anos [de Coimbra], tendo sido e ficado um insignificante jurista.152 Autodidata, empenhou-se desde a mocidade no estudo da filosofia, na vivência da poesia, no pragmatismo das reformas sociais 152 Idem. Ibidem. p. 833.

e, principalmente na dedicação à moral e à religião como bússola 213 para a humanidade. A sua criação, tanto em prosa como em verso, • comprova a dialética constante entre o seu pensamento e o modo de viver dos portugueses do seu tempo. Vilca Marlene Merizio Se a sua poesia é resultado do seu estado íntimo, livre e espontâneo, a sua prosa não deixa de ser circunstancial, produto de uma fusão das suas virtudes temperadas com os condimentos da vida social e política do seu país, imerso numa situação que ele próprio considerava caótica e ultrapassada. Ao tentar compreender o seu pensamento, muitas vezes senti a evolução processada ao longo dos anos de participação na vida pública do país, aclimatada segundo o seu estado de ânimo, devido aos seus tormentos físicos e psíquicos. Dificuldades surgem quando são notados hiatos prolongados na sua história tanto pessoal como literária e político-social. Para a compreensão das suas afirmativas, faltou indicação sobre as leituras nas quais embasava as suas teorias. O que está omisso na obra de Antero de Quental, quer pela sua incompletude, quer pelo desaparecimento de documentos (textos originais), sem mesmo falar dos artigos anônimos publicados por ele, ou mesmo sob forma de pseudônimos, força o pesquisador a buscar no contexto da época pretextos para suposições de acordo com a sua própria inclinação natural. Por isso, é supondo que devam existir registros que ainda não foram compilados (existe na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, Açores, Portugal, material inédito à espera de leitura), que tenciono, a partir deste trabalho, recolher documentação capaz de comprovar que Antero de Quental, durante certo tempo da sua vida, viveu e proclamou uma vivência segundo os valores espirituais que, na época, começavam a ser divulgada na França. Creio, ainda, que os investigadores, naturalmente, buscam no seu trabalho de pesquisa, revelar as descobertas de acordo com a sua própria crença. É sabido que Portugal é um país cuja maioria popular confessa a Religião Católica. Nos Açores, especificamente em Ponta Delgada, há

grande contingente de Católicos, embora nas livrarias açorianas e do continente português, facilmente sejam encontradas as obras de Allan Kardec e outros livros de fundamentação doutrinária, donde se deduz que há leitores e, portanto, adeptos da filosofia espírita. 214 A primeira ideia que tenho a respeito do momento em que • Antero de Quental conscientiza-se do seu despertar espiritual é Há flores e frutos no colo das ilhas através do poema Deus, de Alexandre Herculano (1810-1877), e o poeta açoriano, ele mesmo, narra o fato: Tinha os meus dez anos quando pela primeira vez ouvi recitar a um bom padre, que me ensinava rudimentos de gramática latina. Não ouso dizer que tivesse entendido. E, entretanto, profunda foi a impressão que recebi, como a revelação de um mundo novo e superior, a revelação do ideal religioso. Escapava-me o sentido de muitos conceitos, a significação de muitas palavras: mas pelo tom geral de sublimidade, pela tensão constante de um sentimento grande e simples, aqueles versos revolviam-me, traziam-me as lágrimas aos olhos, como se me traduzissem, embalado numa onda de poderosa harmonia, na região de coisas transcendentes. Daí por diante, interrompia muitas vezes a repetição dos casos gramaticais para pedir ao meu paciente mentor uma recitação daqueles versos. A minha nascente intuição do ideal religioso achava uma expressão reveladora na poesia grave e penetrante daquele hino sacro.153 (Sublinhado meu). E assim é a ode Deus, de Alexandre Herculano: Nas horas do silêncio, à meia-noite, Eu louvarei o Eterno! Ouçam-me a terra e os mares rugidores, E os abismos do inferno. Pela amplidão dos céus meus cantos soem E a Lua prateada 153 Em Advertência do Tesouro Poético da Infância, XIV-XV. Citado por José Bruno Carreiro (1981), p. 96.

Pare no giro seu, enquanto pulso 215 Esta harpa a Deus sagrada. • Antes de tempo haver, quando o infinito Media a eternidade, Vilca Marlene Merizio E só do vácuo as solidões enchia De Deus a imensidade, Ele existia, em sua essência envolto, E fora dele o nada. No seio do Criador a vida do homem Estava ainda guardada. Ainda então do mundo os fundamentos Na mente se escondiam Do Onipotente, e os astros fulgurantes Nos céus não se volviam. Eis o Tempo, o Universo, o Movimento Das mãos sai do Senhor; Surge o Sol, banha a terra, e desabrocha Sua primeira flor; Sobre o invisível eixo range o globo; O vento o bosque ondeia; Retumba ao longe o mar; da vida a força A natureza anseia! Quem, dignamente, ó Deus, há de louvar-te Ou cantar teu poder? Quem dirá de teu braço as maravilhas, Fonte de todo o ser, No dia da criação, quando os tesouros Da neve amontoaste; Quando da terra nos mais fundos vales As águas encerraste?! E eu onde estava, quando o Eterno os mundos, Com destra poderosa, Fez, por lei imutável, se livrassem Na mole poderosa?

Onde existia então? No tipo imenso Das gerações futuras; Na mente do meu Deus. Louvor a Ele Na terra e nas alturas! 216 Oh, quanto é grande o Rei das tempestades, • Do raio, e do trovão! Há flores e frutos no colo das ilhas Quão grande o Deus, que manda, em seco estio, Da tarde a viração! Por sua Providência nunca, embalde, Zumbiu mínimo inseto; Nem volveu o elefante, em campo estéril, Os olhos inquietos. Não deu ele à avezinha o grão da espiga, Que ao ceifador esquece; Do norte ao urso o Sol da primavera, Que o reanima e aquece? Não deu Ele à gazela amplos desertos, Ao cervo a amena selva, Ao flamingo os pauis, ao tigre o antro, No prado ao touro a relva? Não mandou Ele ao mundo, em luto e trevas, Consolação e luz? Acaso, em vão, algum desventurado Curvou-se aos pés da cruz? A quem não ouve Deus? Somente ao ímpio No dia da aflição, Quando pesa sobre ele, por seus crimes, Do crime a punição. Homem, ente imortal, que és tu perante A face do Senhor? És a junção do brejo, harpa quebrada Nas mãos do trovador! Olha o velho pinheiro, campeando Entre as nuvens alpinas: Quem irá derribar o rei dos bosques Do trono das colinas? Ninguém! Mas ai do abeto, se o seu dia

Extremo Deus mandou! 217 Lá correu o aguilhão: fundas raízes • Aos ares lhe assoprou. Soberbo, sem temor, saiu na margem Vilca Marlene Merizio Do caudaloso Nilo, O corpo monstruoso ao Sol voltando, Medonho crocodilo. De seus dentes em volta o susto habita; Vê-se a morte assentada Dentro em sua garganta, se descerra A boca afogueada: Qual duro arnês de intrépido guerreiro É seu dorso escamoso; Como os últimos ais de um moribundo Seu grito lamentoso: Fumo e fogo respira quando irado; Porém, se Deus, mandou, Qual do norte impelida a nuvem passa, Assim ele passou! Teu nome ousei cantar! — Perdoa, ó Nume; Perdoa ao teu cantor! Dignos de ti não são meus frouxos hinos, Mas são hinos de amor. Embora vis hipócritas te pintem Qual bárbaro tirano. Mentem, por dominar, com férreo cetro, O vulgo cego e insano. Quem os crê é um ímpio! Recear-te É maldizer-te, ó Deus; É o trono dos déspotas da terra Ir colocar nos céus. Eu, por mim, passarei entre os abrolhos, Dos males da existência Tranquilo, e sem terror, à sombra posto Da tua Providência.

Não foi pela Ciência que Antero de Quental nos passou a visão do seu ideal religioso, mas pelo coração. Esse coração sempre aberto aos amigos, aos irmãos. Sempre cheio de dúvidas, de dores, de agonia. O que ele testemunha são manifestações que se produzem 218 com exclusão das leis humanas e escapam à competência da ciência • material, visto não poder explicar-se por algarismos, nem por uma Há flores e frutos no colo das ilhas força mecânica; só pela fé. Refiro-me à sua religiosidade, à sua fé. Quando um fato novo surge, sem guardar relação com qualquer conhecimento científico conhecido, o sábio, para compreendê-lo, tem que abstrair-se da sua ciência e dizer a si mesmo que o que se lhe oferece constitui um estudo diferente, impossível de ser entendido com ideias preconcebidas. E o que fez Antero durante longo percurso da sua vida? Afastou-se da vida mundana. Enclausurou-se no seu próprio castelo de dúvidas, pensou, escreveu e ensinou. É certo que se valeu, principalmente, dos conceitos e das teorias dos grandes cientistas e filósofos alemães e franceses. Mas, é mais certo ainda, que a sua fome de diálogo (e aqui me lembro do dialogismo baktiniano), satisfeita através da correspondência tradicional – a carta – muito lhe tenha ajudado a compor o seu raciocínio. No entanto, sem um auditório vivo que o criticasse e estimulasse mais o seu lado direito do cérebro, compreende-se a demora das sínteses das suas reflexões. Dificilmente um homem só, mesmo sendo muito criativo, consegue seguir o seu rumo, sem tropeçar nas pedras do caminho. E essas pedras, pelo que a vida de Antero deixa entrever, e pelo que o mesmo Antero, personagem maior da sua obra, quis que víssemos e conhecêssemos, são formadas pela ausência de afeto, pela falta de companheirismo... pelo desamor dos quais sempre afirmou ser vítima. Justamente por acreditar que Antero, católico de nascimento e formação juvenil, depois de haver se integrado ao Panteísmo e ao Budismo, teve contato com o Magnetismo, Espiritismo ainda incipiente, à luz da codificação de Allan Kardec, farei uma leitura da obra anteriana, baseando-me nos livros A Gênese, O Livro dos Espíritos, Obras Póstumas e O Evangelho segundo o Espiritismo.

Observe-se a carta assinada por Antero de Quental (no 510), 219 escrita de Vila do Conde, em 1886, e endereçada a Carlos Cirilo • Machado (Visconde de Santo Tirso), que transcreverei na íntegra: Vilca Marlene Merizio Meu jovem amigo Creio que o magnetismo é efetivamente alguma coisa, uma força orgânica, talvez a força orgânica: mas a este respeito nada mais sei, e cuido que mais nada se sabe por ora. O que é a eletricidade no mundo inorgânico – um X – é no mundo orgânico o magnetismo – outro X – mas certamente coisas muito positivas ambas. Mas talvez só daqui por mil anos se possa saber alguma coisa a respeito delas, digo alguma coisa que valha a teoria científica dessas forças. Como quer que seja, eu ocupei-me em tempo com o magnetismo e vi coisas bem notáveis... Fez-me ver um padre do Algarve, que, por sinal tanto se embrenhou, e tão sinceramente, naquela pesquisa, que acabou por perder a fé católica e se despadrou, perdendo os meios de vida que tirava do sacerdócio. Vivia há poucos anos em Lisboa, obscuramente, dando lições de Português, e chamava-se, se bem me lembro Chaves. O Sérrea Prado, deputado do Algarve, conheceu-o; ele, que também se dá às ciências ocultas, lhe pode contar muitos casos notabilíssimos de lucidez magnética. É fácil que pelo magnetismo se expliquem muitos dos efeitos maravilhosos do espiritismo e das mesas girantes, assim como toda uma classe de fenómenos, que muita gente nega, mas eu tenho por certos os pressentimentos. Agora como, isso não sei e penso ninguém sabe. O magnetismo parece estabelecer uma unidade de consciência entre várias pessoas, ainda que separadas por grandes distâncias, de sorte que o que uma sabe, sabem-na outras logo. Pelo menos, em todos os casos de lucidez a que assisti nunca vi a sonâmbula adivinhar coisa alguma ignorada por todos os que se achavam em relação magnética com ela, mas só coisas que ela ignorava, mas que pelo menos um dos assistentes conhecia. A tal unidade de consciência é uma coisa que não repugna à razão filosófica. Se ler Hartmann, na ‘Filosofia do Inconsciente’, verá que essa é uma das pedras angulares do sistema daquele

engenhoso e profundo alemão. Segundo ele, essa unidade, expressão da unidade fundamental das coisas, existe latente ordinariamente, e só se manifesta obscuramente nos factos do instinto. O magnetismo será, segundo esta ordem de ideias, 220 o momento em que essa unidade de consciência de latente se • torna patente. Mas tudo isto é mera especulação, hipótese e filosofia: de Há flores e frutos no colo das ilhas positivo só temos por ora os factos, que muita gente lhe poderá atestar, como eu. E adeus, que acabou o papel. Antero de Q.154 Considerando-se o teor da Carta no 364, é notável perceber a amizade que realmente une os dois missivistas. Antero lera com prazer a “cartinha” de Cirilo Machado e tece-lhe elogios. Concorda que fizera falta ao amigo (“Concebo que lhe tenha feito alguma falta: as nossas conversas não eram vãs, e o Carlos não é daqueles, que, por terem talento, se cuidam dispensados de ouvir e atender”155) e convida-o a ir à Vila do Conde. Dá-lhe de presente o livro de Oliveira Martins (Portugal Contemporâneo), que lhe havia emprestado e de cuja leitura Cirilo Machado havia gostado. Recomenda a leitura de outros livros de Oliveira Martins e louva abertamente o historiógrafo. Fala do país e aconselha: [...] o futuro político, social e moral desta terra parece-me comprometido, quanto o futuro de um povo o pode estar. O abaixamento do nível do espírito público é espantosamente rápido. Invade e arrasta tudo. É um triste conselho para se dar a 154 Cartas II, p. 813-814. Na epistolografia anteriana constam três cartas de Antero a Cirilo Machado: a primeira, de 15 de dezembro de 1881, na qual aponta o jovem amigo como aquele de “entre os rapazes da última geração” a quem estimava e de quem “esperava alguma coisa sã” (carta no 364); a segunda, datada do Porto, em setembro de 1885 (carta no 471), e a terceira já mencionada. Carreiro (1981) menciona Cirilo Machado nas páginas 61, 379, 386 e 393 do seu primeiro volume, e nas páginas 63, 100, 115, 180 e 244, do volume II de Antero de Quental- Subsídios para a sua Biografia. 155 É comum ainda hoje nos Açores, na linguagem coloquial e íntima, usar-se o primeiro nome como se fosse uma forma de tratamento. O verbo é conjugado na terceira pessoa.

um rapaz, que mal entra agora na vida, dizer-lhe ‘abstém-te!’. E 221 todavia é o único que lhe posso dar. Nesta cheia de misérias, que, • transbordando, leva consigo, quando encontra, só há escapar ileso quem fugir para os pontos mais altos, onde naturalmente Vilca Marlene Merizio se está isolado. Aprenda, meu jovem amigo, a viver de si, porque a vida social tornou-se um perigo para quem quer conservar a elevação da sua inteligência e a pureza da sua consciência.156 Abster-se, no sentido que Antero emprestou ao termo, é afastar-se das misérias humanas, conservando-se o espírito na dimensão do bem. Antero e a sua “santidade”. Antero vivendo a máxima evangélica: “Fazer aos outros o que queríamos que os outros nos fizessem”, disciplina que o convida a tornar-se útil, de acordo com as suas faculdades e com os meios naturais de sobrevivência. Por isso, não causa estranheza o fato de Antero estar sempre ajudando, sempre corrigindo, sempre dando sua opinião. A carta acima foi escrita por Antero em dezembro de 1881. Portanto, em 1881, Antero já demonstrava ter consciência de que a fraternidade para ser exercida precisa de sociabilização, mas o ser pensante, na construção do seu monumento filosófico pessoal precisa de concentração de energias, de solidão edificante, de paz para criar. Estaria Antero, já em 1881, com 39 anos, desapontado com a Humanidade, ou só o que agora o movia era o solidarismo pessoal? Para a fraternidade e igualdade sociais – talvez de valores utópicos – são provas eloquentes a sua atividade panfletária, incluídas as Prosas de Coimbra. Sobre Igualdade, Fraternidade e Liberdade – programa de uma ordem social, que realizaria o mais absoluto progresso da humanidade, se os princípios que representassem pudessem receber inteira aplicação157 –, prosa e poesia anterianas garantem o devotamento do seu autor ao bem, cuja aspiração não tem limite. 156 Cartas II. p. 604-605. 157 KARDEC, Allan. Obras Póstumas, Tradução de João Teixeira de Paula, São Paulo: Lake, 1995. p. 179.

A aspiração do homem ‘para uma ordem superior é o indício da possibilidade de ali chegar”. Não era isto que Antero estimulava em Cirilo? Veja-se o término da referida carta: 222 Creia que, de resto, ainda numa posição solitária, se pode, dum • modo ou doutro, fazer muito bem. E não é isso o essencial? Há flores e frutos no colo das ilhas Tudo o mais é só instrumento para tal fim. Que importa, pois que o instrumento varie, se o fim é sempre o mesmo?158 Diz Kardec (1975, p. 182): “Aos homens do progresso” cabe ativar o circuito entre os deveres e os benefícios da fraternidade, porque só assim se “firmarão por si mesmos, sem abalos e sem perigos, os princípios complementares da liberdade e da igualdade”, movimento que requer estudo e aplicação de meios eficientes para a conquista. E quem mais do que Antero lutou pelo bem-estar dos seus irmãos, pela paz de uma nação? Já na segunda carta a Cirilo Machado, da qual se tem notícia,159 redigida quatro anos depois da anteriormente referida, o tom com que Antero dirige-se ao jovem amigo é de censura. “O verdadeiro crítico e um juiz, não um adversário”, adverte Antero. A admoestação refere-se a uma crítica de C. Machado a respeito da Velhice do Padre Amaro, obra do português Guerra Junqueiro (1850-1923), sobre a qual Antero também tinha algumas críticas a fazer, ele mesmo confirma. Mas o modo como foi enfocado pelo missivista gerou em Antero uma reação de mentor, educador que jamais deixa de orientar os seus discípulos: Apesar de V. bater [...]160 tão desalmadamente num que eu sempre amei muito, não lhe posso encobrir que na maioria dos casos bate certo. 158 Cartas II, 1989, p. 605. 159 Carta “publicada por Norberto de Araújo no Diário de Lisboa de 25 de Abril de 1929 com a informação de que se destinava a Carlos Cirilo Machado (Visconde de Santo Tirso). Em Cartas II, 1989, p. 755. 160 No sentido de criticar violentamente. termo ainda usado em Ponta Delgada, Açores.

A Velhice do Padre Eterno foi um grande erro e custou-me 223 imenso ver que o Junqueira persistiu em o cometer. [...] a • Velhice é o sintoma duma deplorável mania de profeta, que ameaça perdê-lo como perdeu o Hugo. Entretanto há para um Vilca Marlene Merizio como para o outro atenuantes, que V., para ser inteiramente justo, deveria ter posto em relevo. Tanto um como o outro receberam a poesia como alguma coisa de mais humano do que simples diletantismo. A intenção era boa, o caminho que seguiram é que foi errado. Assim, pois, achando que bate certo, acho ao mesmo tempo que foi, como dizem os ingleses, one sided. Além disso, acre e visivelmente hostil. [...] V. há-de vir a ser um crítico: acho que tem estofo. Mas há- de primeiro convencer-se de que a acritude faz muito para o afeito, mas muito pouco para a persuasão. Receio que o confundam com os adversários sistemáticos e injustos do Junqueiro, conquanto saiba que o seu sentir é outro e outras as suas intenções. E adeus.161 E Antero termina, como sempre: “Do seu do coração.” Realmente, a sinceridade trespassa toda a carta. Antero é justo. Justiça que lhe acompanha desde os primórdios da sua vida literária. Sobre Justiça, na pergunta de número 873 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec indaga: “O sentimento de justiça é natural ou resulta de ideias adquiridas?” Ao que os Espíritos respondem: “É de tal modo natural que vos revoltais ao pensamento de uma injustiça. O progresso moral desenvolve sem dúvida esse sentimento, mas não o dá. Deus o pôs no coração do homem”. À pergunta 874 – “Se a justiça é uma lei natural, como se explica que os homens a entendam de maneiras diferentes, que um considere justo o que a outro parece injusto?” – é respondido: “É que em geral se misturam paixões ao 161 Cartas II, 1989, p. 755. Sublinhado do Autor.

julgamento, alterando esse sentimento, como acontece com a maioria dos outros sentimentos naturais e fazendo ver as coisas sob um falso ponto de vista”. O que seria, então, a Justiça? Mais uma vez, Kardec codifica a resposta: “A justiça consiste no respeito aos direitos de cada 224 um”.162 • É com tal espírito de justiça que Antero, conhecendo e Há flores e frutos no colo das ilhas reconhecendo a devoção cristã de sua mãe, católica convicta que era,163 nos seus últimos momentos de vida, “lembrou-se de mandar buscar o Viático”. É Cirilo Machado quem relata, em artigo publicado no número anteriano da Nova Alvorada, de 1 de novembro de 1891. O falecimento se dera a 28 de novembro de 1876, conforme registro de Bruno Tavares Carreiro164 e testemunho do próprio Cirilo Machado: Antero [...] andava ansioso, com receio de que chegasse tarde. Não era somente a intolerância indiferente dos homens inteligentes. Era a convicção de que o Viático ia dar a paz a uma alma que sofria. E o Antero, cuja alma se debatia no sofrimento, não queria que o espírito de sua mãe deixasse de ter a consolação dos crentes na hora suprema.165 Ainda sobre os sentimentos de pesar, após o falecimento da mãe, nas cartas dedicadas à memória da que foi a “companheira dedicada e quase o único amparo da sua existência de doente incurável’, escreve para Alberto Sampaio, Germano Meireles e Oliveira Martins, confiando a sua dor. “Abracemo-nos na nossa comum orfandade”, 162 O Livro dos Espíritos. Tradução de Herculano J. Pires. 56. ed., São Paulo: Lake, 1997 163 “De sua mãe disse Antero a Carolina Michaelis que “era muito católica” [...] Teófilo Braga diz que era ‘extremamente religiosa e submetia os filhos à forte disciplina católica’ [...] e Souza Martins observa que foi ‘uma santa senhora, que de fanática roçava pela teomania, pertença vulgar do histerismo [...]; Adriano Pimentel: ‘santa senhora de incomparáveis virtudes [...]’; Bulhão Pato: ‘senhora de educação primorosa’ [...]; Júlio de Castilho: amável e muito formosa’ [...]. (CARREIRO, 1981. p. 61). 164 Idem, Ibidem. 165 Idem, Ibidem. Vol. 2, p. 63.

dizia ao primeiro, em dezembro de 1876, e confortava o amigo que 225 sofrera o mesmo mal, conformando-se: • São coisas sabidas, previstas, certas, mas quando chegam Vilca Marlene Merizio fazem impressão como se fossem totalmente imprevistas! Tenho sofrido muito nestes últimos 15 dias, e chorado também e agora mesmo escrevendo estas linhas. Não tenho coração que corresponda ao estoicismo da minha filosofia, por isso choro – mas não me envergonho de chorar. Além de tudo o mais, faz muito bem. [...] o que é necessário é que a nossa dor seja serena e resignada e não descambe em hipocondria, em desespero do mundo e da vida. A tristeza, diz a lei de Zoroastro, é um pecado. Convém conservar a fronte serena do idealista. Na tua carta [...] parece-me divisar algum excesso de melancolia. Não te deixes cair nesse estado, meu querido Alberto: não só se sofre muito e inutilmente, mas fica o espírito deprimido. Desculpa estas exortações, mas como todos os dias as faço a mim mesmo, julgo que como amigo as devo fazer também, que te achas na minha mesma situação. [...] Acho que não há situação alguma de que se não possa tirar partido para o progresso do nosso espírito: esforço-me pois por me conformar “com a minha situação e por conseguir dentro dela o máximo bem moral.166 Com a falta dos pais, é a Oliveira Martins que Antero se volta, pedindo consolo, arrimo e tutoria. A carta é curta, talvez a mais curta que ele tenha escrito para o amigo confidente: Diga-me duas palavras das suas, fortes e boas. Eu sei o que há a dizer a mim mesmo, mas far-me-á bem que mo diga você. Estou muito sereno e conformado, e aplicando à minha situação os dogmas da nossa comum religião. Mas isto não impede que esteja triste – e estando triste, de quem me hei-de lembrar senão de V., maximamente depois que já não existe 166 Cartas I, 1989, p. 357.

minha mãe? [E pela primeira vez a saudação fraterna:] Receba um abraço do seu amigo e irmão”. (Sublinhado nosso.) 226 Para Germano Meireles, comunica o falecimento da mãe, daquela • “excelente mulher” e, fazendo todos os esforços da razão e da vontade, anuncia que se propôs uma tarefa difícil quase superior às suas forças já que “se parece muito com a santidade” e conclui com reticências Há flores e frutos no colo das ilhas que mais prometem um programa de vida a ser estabelecido que o encerramento de uma ideia. Sobre essa mesma “santidade” Antero vai se referir, mais tarde, na carta autobiográfica a W. Storck, assim como já havia a ela se referido em correspondência enviada a António de Azevedo Castelo Branco, de Lisboa, no verão de 1866: [...] a vida é um silogismo: o teto paterno é uma premissa; a outra é a família que o homem cria para si no trabalho e no amor; a conclusão é a morte na doçura da sua própria consciência e na fraternidade das outras consciências que lhe aprovam a vida. É preciso que a sociedade seja bem ímpia para obrigar o homem à blasfêmia social por excelência – a Revolta. O lar é toda uma política; e o status quo, uma filosofia. Quantas vezes as lágrimas me têm corrido no meio destes pensamentos! Afora tudo isto eu tenho preso ao coração um amor que não sei (talvez porque não quero, nem o ele merece) como tirar daqui! [...] É que tudo aquilo, por isso mesmo que é santo e justo e radioso, só na santidade, na justiça e na luz se pode aceitar.167 Ana Maria Almeida Martins, em Cartas I (1989), reafirma o grande sentimento de amor e respeito que Antero nutria pelos pais; no entanto era com a mãe que se entendia melhor.168 Na carta enviada de Lisboa à Senhora Dona Ana Guilhermina, em 20 de julho de 1858, já com 16 anos, portanto, pede-lhe como favor conseguir do 167 Idem. Ibidem, p. 79-80. 168 Sobre o amor maternal e filial, O Livro dos Espíritos preconiza: O amor maternal e o filial persistem no homem por toda a vida e “comporta um devotamento e uma abnegação que constituem virtudes; sobrevive mesmo à própria morte”.

pai o dinheiro necessário para a compra de livros: “Isto devia eu ter 227 pedido diretamente ao Papá, mas não sei que acanhamento me deu, • que tenho vergonha de lho pedir, enquanto que à Mamã lho peço com mais confiança”. Vilca Marlene Merizio Sobre o falecimento do pai, Fernando de Quental, tem-se poucas notícias. “As relações entre Antero e o pai ter-se-ão tornado extremamente difíceis logo ao findar a adolescência”, diz Ana Maria Almeida Martins (1989) na Introdução das Cartas I. É conhecido um antigo episódio ocorrido entre o “velho” Bravo do Mindelo e o filho, ainda muito jovem, quando o mesmo teve de sair à rua com um paletó do seu pai, porque a isso o mesmo o havia obrigado, para testar a sua obediência. O tom irônico das palavras do pai ao narrar o fato, com orgulho, perturbaram-no para sempre. Na morte do pai, avisa os amigos da sua decisão de partir para Lisboa e é só para Bulhão Pato que fala do ambiente de sofrimento a que está exposto, entre a família: Aqui estou agora, no meio destas aflitas mulheres, aflito eu como elas, por ver a pobreza das consolações de que escassamente dispõe a fria inteligência em face das dores reais e irrefletidas. [...] Quero dizer que a espécie particular de pensamentos puramente racionais, que a mim me consolam, ainda desconsolam mais corações que só sentem e não reflexionam. Triste condição da filosofia! ou então, triste condição dos sentimentos humanos!169 Neste ponto, é válido conferir o que diz o artigo “Regeneração da Humanidade” sobre a geração dos moços dos meados do Século XIX, que se distingue da anterior pelo progresso moral e por “uma inteligência e uma razão geralmente precoces, de par com um sentimento inato do bem e crenças espiritualistas”. Conforme o texto referido, no mundo será processado um grande e fecundo trabalho de gestação, cujo fruto se distinguirá pela unidade e uniformidade de 169 Cartas I, 1989, p. 193.

convicções que se predispõem ao amparo na dor e à confraternização na alegria. E continua: 228 [...] uma das características distintivas da nova geração • espiritualizada será a fé inata; não a exclusivista e cega, que divide os homens, mas fé racional, que esclarece e fortifica, que os une e confunde no mesmo sentimento de amor de Deus Há flores e frutos no colo das ilhas e do próximo”. [Com a geração extinta, extinguir-se-ão os] últimos vestígios da incredulidade e do fanatismo, igualmente contrários ao progresso moral e social.170 E o homem novo do Século XIX pensou com uma fé raciocinada tal qual a vivenciada por Antero desde a morte do seu progenitor, em março de 1873 (Tinha ele 31 anos de idade). Eis um excerto de comprovação: Mas os novos não são os que nasceram em tal dia e tal ano: tenham que idade tiverem, os novos são só os que dizem coisas próprias de inteligências sãs e vigorosas, de corações altos e puros. O resto, pouco importa a certidão de baptismo, nem sequer é velho; é decrépito, é cadaveroso: sepulchra dealbata.171 Ainda é de se observar que após a morte do pai, tem-se o registro de poucas cartas de Antero a seus amigos, falando sobre o assunto. Na datada de 13 de abril, na epístola escrita a Oliveira Martins não há qualquer referência à perda do pai, o que nos leva a supor que outra carta em que anunciava o falecimento deve ter se extraviado com o tempo. O que ressalta dessa é a pressa com que Antero a redigiu, quase às vésperas de sua partida para a Ilha de São Miguel. O não ter viajado de imediato compreende-se pelas dificuldades de locomoção entre o continente e as ilhas que, na época, só era realizada por via marítima, com datas de embarque 170 Kardec, 1995, p. 244. 171 Cartas I (1989), p. 2001.

espaçadas entre si. O que chama atenção nesta missiva são o tom 229 puramente formal, a afirmativa “Por cá, tudo em santa paz”, depois • de haver iniciado a carta com um “Saio depois de amanhã para a ilha de S. Miguel, onde me demorarei 4 ou 5 meses, talvez” (quando por Vilca Marlene Merizio diversas ocasiões já tenha deixado claro o quanto é penoso voltar para Ponta Delgada) e a simples menção a um possível desconforto que pressente irá sentir: “Recomendo-lhe que me envie para a Ilha [...] o que for saindo das suas publicações, socialistas ou literárias, favorecendo-me juntamente com alguma daquelas suas cartas, como V. mas sabe escrever, que me animem e de que lá precisarei por certo”. O luto de Antero pelo pai também chegou a nós pela presença da tarjeta negra na carta endereçada ao primo Augusto Arruda Quental, datada de 31 de abril de 1873 (erro de Antero ou do Jornal que a publicou? – indaga Ana Maria Almeida Martins). É nessa época e, ainda da Ilha, que Antero faz a pergunta a Oliveira Martins (2 de julho de 1873): “O que há a respeito da Fraternidade? A carta enviada a Jaime Batalha Reis tem teor apenas profissional, não fosse o poema sem título a ela anexado: A espada inexorável que flameja No horizonte de um povo impenitente, E não poupa, na ameaça indiferente, Nem tugúrio, nem paço, nem igreja. O gáudio, que encoberto peregrino Ergue, imprevisto, nas humanas liças, A espada das históricas justiças, A espada de Deus e do Destino; De que pensais que é feita? Porventura Pensais que é feita dum metal terreno, Cheio de jaça e fezes, e em veneno Temperado talvez por mão impura? Que é feita de cobiça e violência

Há flores e frutos no colo das ilhasE de ódios cegos, brutos, truculentos? De cobardes e falsos pensamentos? De ultraje, de furor e d demência? 230 Quanto vos iludis, irmãos, sabei-o, • Homem de pouca fé! Sabei que a espada Sinistra, em cuja folha abraseada Uma palavra em língua estranha leio, Que esse rubro sinal de mudo espanto, Fixo, pregado ali num céu terrível, Contínuo, inquebrantável, inflexível À prece, à ameaça, à dor, ao pranto, Que essa espada da morte e do pavor... É só feita de bem inalterável, De verdade ideal e impecável... E que esse açoite é feito só de Amor. Ao texto primeiro, Antero juntou uma última estrofe e publi- cou-o por inteiro, com a numeração XII na segunda edição de Odes Modernas:172 “Sabei, povos, que em hora de demência/ Amaldiçoais a mão que vos castiga:/ Essa inflexível mão é mão amiga,/ É a mão paternal da Providência! O cuidado que tinha com a família do irmão demente, a preocupação com as irmãs e com os sobrinhos, a dor da perda do irmão e dos cunhados, tudo era pensado e registrado nas longas conversas que mantinha por escrito com os amigos. Em meados de sessenta do século XIX, Antero ainda não se dera conta de quanto a correspondência iria fundamentar a sua obra poética e filosófica. Acreditava ainda, talvez por humildade excessiva, quiçá pelo perfeccionismo exagerado, que, por fatalidade, a sorte não lhe bafejara com o dom da palavra escrita: “nada sei dizer em cartas, de sorte que escrever ou não vem a dar na mesma”. Engano 172 QUENTAL, 1988, p. 153-154.

seu. Mais uma peça que o destino lhe pregou ou que ele pregou 231 ao Destino! • José Bruno Carreiro dá como terminada a Fase Pessimista de Vilca Marlene Merizio Antero, em 1881. Entra ele, então “naquela região da impersonalidade, que é a verdadeira beatitude”, a santidade. É dessa época, quando recém-instalado em Vila do Conde que Antero escreve a Francisco Machado de Faria e Maia, contando: Vivo aqui, numa terrazinha morta, onde não conheço ninguém, com duas crianças [as filhas de Germano Meireles, adotadas por Antero] que também não conhecessem ninguém, além de mim. Esta singularidade de vida não é extravagância, mas em parte necessidade imposta pelas condições da doença, em parte como sistema por mim adotado, para ver se chego a um equilíbrio moral [...]. De resto, tenho um tal sossego interior, que posso dizer que sou feliz, no bom e único verdadeiro sentido da palavra. [...] Continuo [...] especulando, e tenho lido, lido e pensado bastante, possuindo hoje um conjunto definido e ligado de ideias, como quem diz, o meu sistema.173 Referia-se Antero ao seu sistema filosófico que, infelizmente, não foi dado a público na sua completude. Mas, quanto a esse sentido de beatitude, também expresso quando de uma volta aos Açores, à luz da filosofia espírita, compreende-se que Antero, despojado de si, despojado do conforto supérfluo, fazendo o bem para as afilhadas a quem adotou, pensando na Humanidade e tentando resolver todos os problemas dos povos, pairava num mundo especial, na dimensão em que as forças interiores superam as adversidades: O sentimento do bem se encontra por toda a parte e de maneira espontânea, porque são mundos [dimensões] habitados somente por bons Espíritos [...] Eis porque os homens ali são 173 Actas do Congresso Anteriano Internacional, 1993, p. 743

felizes e assim será também na Terra, quando a Humanidade se houver transformado e compreender e praticar a caridade na sua verdadeira acepção.174 232 Antero praticava-a. • Em Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Há flores e frutos no colo das ilhas Século (SERRÃO, 1989), Antero, a partir do reconhecimento de que “ninguém pode sentir e estudar ao mesmo tempo, cientificamente os próprios sentimentos”, reveste de uma nova concepção as teorias de Spinosa e Descartes, principalmente no que se referem às categorias do ideal kantiano e da vida espiritual: “ao cepticismo opõe a nova doutrina espiritualista o testemunho da consciência”. Na consciência temos o sentimento claro e evidente de que a verdadeira individualidade é essa energia simples, autônoma e espontânea: o espírito. A essência do espírito, lembra Antero, é a espontaneidade: o espírito percebe o universo, não adptando-se a ele, mas adaptando-o a si. O universo, tal como ele se nos representa, e, no fundo, uma criação do espírito: se existe para nós é porque o concebemos: aparece-nos não refletido na inteligência, mas verdadeiramente visto nela. [Os] factos são o ponto de partida das ideias, cuja virtualidade está no espírito. Portanto, o espírito é uma força espontânea e consciente que evolui gradativamente: ainda nos ínfimos degraus, a unidade do espírito já aparece,masénoaltoqueelasesupera.Assim,manifestando a Ideia, talvez traduzida por Deus, que Antero escreveu: A IDEIA Lá! Mas onde é lá? aonde? Espera, Coração indomado! O céu, que anseia A alma fiel, o céu, o céu da Ideia, Em vão o buscais nessa imensa esfera! 174 O Mundo dos Espíritos, p. 293.

O espaço é mudo: a imensidade austera 233 Debalde noite e dia se incendeia... • Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia A rosa ideal da eterna primavera! Vilca Marlene Merizio O Paraíso e o templo da Verdade, Oh mundos, astros, sóis, constelações! Nenhum de vós o tem na imensidade... A Ideia, o sumo Bem, O Verbo, a Essência, Só se revela aos homens e às nações No céu incorruptível da Consciência. A noção de Espírito, ou Ideia, para Antero, evolui na mesma proporção que se desenvolve e se consolida a sua obra, mas não perde o seu sentido primeiro de ser “origem de todas as coisas”, “a causa fundamental” cujo efeito é o ser humano; é, em confrontação com o Espírito, que o indivíduo alcança a consciência plena do seu ser, da sua autenticidade e do seu lugar transitório no espaço. E Deus, segundo a percepção humana é o eterno “Ignotus”, “jamais redutível à finidade do pensamento ou do coração humano. [...] Por isso, nenhum ser humano, nenhum profeta jamais poderá desvendar o Eterno; só a totalidade do Pluriverso, cuja consciência e cujo centro é o Espírito, terá o condão de oferecer esse ensejo”.175 Onde te escondes? Eis que em vão clamamos, Suspirando e erguendo as mãos em vão! Já a voz enrouquece e o coração Está cansado – e já desesperamos... Por céu, por mar e terras procuramos O Espírito que enche a solidão, E só a própria voz na imensidão 175 Antero de Quental. Evolução da sua filosofia existencialista e do seu pensamento pedagógico. Angra do Heroísmo: Direção dos Serviços de Emigração. 1996. p. 69.

Fastigada nos volve ... e não te achamos! Céus e terra, clamai, aonde? aonde? Mas o espírito antigo só responde, Em tom de grande tédio e de pesar: 234 Não vos queixeis, ó filhos da ansiedade, • Que eu mesmo, desde toda a eternidade, Também me busco a mim... sem me encontrar. Há flores e frutos no colo das ilhas O Espírito, a grande incógnita que atormentou Antero por toda a sua vida. O Outro que só poderia ser tocado pela Inteligência, pela crença, pela Fé. Mas a verdade absoluta está longe da compreensão humana na sua mediunidade. E de Kardec, mais um momento de comunicação com uma Inteligência superior, impregnada da mais pura moralidade: Deus existe, não o podeis duvidar, e isso é o essencial. Acreditai no que vos digo e não queirais ir além. Não vos percais num labirinto, de onde não podereis sair. Isto vos não tornaria melhores, mas talvez um pouco mais orgulhosos, porque acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, pois de lado, todos esses sistemas; tendes que vos desembaraçar de muitas coisas que vos tocam mais diretamente. Isto vos será mais útil do que querer penetrar no impenetrável.176 Inteligência e vontade pairavam para além do domínio puramente físico. Teria Antero, continuado incessantemente a sua busca? Teria Antero feito a leitura do excerto acima? Pela vivência cristã de Antero, tanto por suas palavras como pela sua ação, é de se supor que ele também participou de sessões mediúnicas, se não, não teria ele dado testemunho tão sério e comprometedor a Cirilo Machado sobre as “mesas falantes”, em carta já anteriormente citada. Mais uma pista nos é fornecida quando Antero explica a doutrina da evolução, e, se aparentemente parece estacionar na filosofia naturalista de Schelling e Hegel, é nos princípios da filosofia 176 O Livro dos Espíritos,1997, p. XX.

espírita que encontra respaldo para a sua criação filosófica e poética. 235 No Universo, a Ciência “mede e pesa”, mas não explica todos os • fenômenos de nossa alma. A alma, na sua constante busca de liberdade, aprende e evolui, num ritmo ascensional, tal qual é sentido Vilca Marlene Merizio em Evolução, fenômeno ao qual Antero deu voz: Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo, Tronco ou ramo na incógnita floresta... Onda, espumei, quebrando-me na aresta Do granito, antiquíssimo inimigo... Rugi, fera talvez, buscando abrigo Na caverna que ensombra urze e giesta; Ou monstro primitivo, ergui a testa Nos limos paúl glauco pacigo... Hoje sou homem – e na sombra enorme Vejo, a meus pés, a escada multiforme, Que desce, em espirais, na imensidade... Interrogo o infinito e às vezes choro... Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro E aspiro unicamente à liberdade. A evolução do homem sucede-se de acordo com a natureza, na mais gradual realização de si em si mesmo. Há sucessão, jamais retrocesso ou contradição. É o que a filosofia espírita considera como premissa: o espírito dorme na pedra, movimenta-se no animal irracional e acorda no Homem: “A matéria inerte, que constitui o reino mineral, não possui mais que uma força mecânica [“Fui rocha”]; as plantas, compostas de matéria inerte, são dotadas de vitalidade [“tronco ou ramo na incógnita floresta”]; os animais, compostos de matéria inerte e dotados de vitalidade, têm também uma espécie de inteligência instintiva, limitada, com a consciência de sua existência e individualidade [“Rugi, fera, talvez buscando um abrigo”]; o homem, tendo tudo o que existe nas plantas e nos animais, domina todas as

Há flores e frutos no colo das ilhasoutras classes por uma inteligência especial ilimitada, que lhe dá a consciência do seu futuro, a percepção das coisas extramateriais e o conhecimento de Deus [“sou homem, aspiro unicamente à 236 liberdade”]”. E liberdade é Deus. • É assim que o espírito, sem sair de si, se cria e fecunda continuamente, compenetrando-se cada vez mais com a sua própria essência, extraindo dela, da sua infinita virtualidade, momentos cada vez mais complexos e ricos de ser, até atingir a mais alta consciência de si. Reconhece-se então idêntico com o eu absoluto e independente de toda a fenomenalidade: concebe Deus como o tipo da sua mesma plenitude, concebe e sente a vida moral como a esfera da realização desse ideal [...], fim último, aquele de que os fins anteriormente propostos, limitados e transitórios, eram só imagem e preparação.177 Há uma força inteligente. Há causa e efeito. Há liberdade de escolha (livre arbítrio) e há ideal: “Deus, se Deus fosse possível, seria esse ser absolutamente livre. Mas porque isso não é real, é que é verdadeiro”. Contudo, a liberdade do homem é determinada pela razão. E a razão exige o bem e a verdade, exige o Amor, verdadeira plenitude e perfeição do ser. É o clímax da eternidade é a união do espírito (que talvez já tenha sido alma) com Deus. Só quem, dissolvendo a própria vontade na vontade absoluta do bem e “identificando-se com ela, renuncia ao eu limitado e a tudo quanto é dele – o seu egoísmo, as suas paixões, o seu erro profundo e a sua inenarrável miséria – só esse alcançou a vida eterna.” Esta renúncia, verdadeira vida de virtudes, constrói o patamar para a imortalidade: A renúncia a todo o egoísmo é o [...] caminho direito que leva [o Homem] à liberdade, à perfeição, à beatitude. Como não 177 Filosofia, Obras Completas de Antero de Quental. Ponta Delgada: Universidade dos Açores/ Lisboa: Editorial Comunicação, 1991 p. 155.

há-de então o justo dar-se aos outros, dar-se a todos os seres, 237 se com cada ato de dedicação conquista e firma a própria • beatitude? Libertando-os, liberta-se: aperfeiçoando-os, aperfeiçoa-se: beatificando-os, beatifica-se Para conseguir o Vilca Marlene Merizio próprio bem, tem de se fazer como que o instrumento do bem universal. E nem verdadeiramente para conseguir o próprio bem: porque despojado de personalidade e egoísmo, morto para o eu individual, o bem atrai-o em si ou fora de si, indiferentemente, e tende a realizá-lo seja onde for.178 Antero exorta, dizendo que a “consciência do justo é o único templo do único Deus, e, nesse templo, a renúncia ao egoísmo é o único culto”. A consciência do justo – Deus – “dá aos simples a candura e a graça: dá aos humildes a dedicação sem alardes: a uns e a outros o perfume da virtude que se ignora”. Diz a doutrina Espírita: Todas as virtudes têm o seu mérito, porque todas são indícios do progresso no caminho do bem. Mas, a sublimidade da virtude consiste no sacrifício do interesse pessoal para o bem do próximo, sem segunda intenção. Do egoísmo se “deriva todo o mal. Estudai todos os vícios e vereis que no fundo de todos existe egoísmo. Por mais que luteis contra eles não chegareis a extirpá-los enquanto não os atacardes pela raiz, enquanto não lhes houverdes destruído a causa. Que todos os vossos esforços tendam para esse fim, porque nele se encontra a verdadeira chaga da sociedade. Quem nesta vida quiser se aproximar da perfeição moral deve extirpar do seu coração todo sentimento de egoísmo, porque o egoísmo é incompatível com a justiça, o amor e a caridade: ele neutraliza todas as outras qualidades.179 178 Idem. Ibidem. p. 166. 179 O Livro dos Espíritos, 1997, p. 297.

Há flores e frutos no colo das ilhasLOGOS Tu, que eu não vejo e estás ao pé de mim E, o que é mais, dentro de mim – que me rodeias 238 Com um ninho de afetos e de ideias, • Que são o meu princípio, meio e fim... Que estranho ser és tu (se és ser) que assim Me arrebatas contigo e me passeias Em regiões inominadas, cheias De encanto e pavor... de não e sim... És um reflexo apenas da minha alma, E, em vez de te encarar com fronte calma Sobressalto-me ao ver-te e tremo e exoro-te... Falo-te, calas... calo, e vens atento... És um pai, um irmão, e um tormento Ter-te ao meu lado... és um tirano, e adoro-te. O Conhecimento, o Logus: Deus. A tese e a antítese, mas sobretudo, a Síntese. Só um coração puro em mente privilegiada podia ter tal raciocínio. Antero devia dar-se conta de que humanidade, na sua coletividade, não poderia desempenhar o papel de “abstrato de quintas essências”, pois em se referindo à metafísica, ao transcendental, é preciso estudo, sapiência, vontade e poder de comunicação. Para os mistérios do Desconhecido são necessários homens cultos, líderes natos que se sintam à vontade dentro do espírito do bem. Finda a redação das suas Tendências, Antero descansa: Já sossega, depois de tanta luta, Já me descansa em paz o coração. Cai na conta, enfim, de quanto é vão O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa. Penetrando com fronte não enxuta, No sacrário do templo da Ilusão, Só encontrei, com dor e confusão, Trevas e pó, uma matéria bruta...

Não é no vasto mundo – por imenso, 239 Que ele pareça à nossa mocidade - • Que a alma sacia o seu desejo intenso... Na esfera do invisível, do intangível, Vilca Marlene Merizio Sofre desertos, vácuo, soledade, Voa e paira o espírito impassível. O progresso foi alcançado graças à conquista da plenitude da consciência. A força inteligente dinamizou o entendimento e resultou Poesia, síntese perfeita do pensamento. Força autônoma, lúcida e plena, o espírito eternizou-se. E a filosofia ... “Ai da filosofia que não venha do coração”, já descobrira Antero. A que Ruy Galvão de Carvalho acrescenta: “em Antero até o seu intelectualismo é de raiz afetiva. A filosofia de Antero é baseada numa moral de características afetivas”,180 onde a supremacia cabe ao Bem, à Justiça, ao Amor. A espiritualidade de Antero Este trabalho não tem a pretensão de apresentar um caráter definitivo sobre o tema do sentimento religioso do grande escritor português Antero de Quental. Muitas e muitas informações foram registradas durante o estudo, exemplos colhidos, conclusões provisórias alinhadas. No entanto, é mister que se concretize o que agora se inicia e que futuros projetos sejam elaborados nesse sentido Antero de Quental, por si só, é uma figura extremamente enigmática que se agiganta através da aproximação natural entre o pesquisador e o pesquisado. Cativante, apaixonante, renasce tanto pela pena dos seus críticos como pela voz que canta os seus versos, que vibra com a sua coragem revolucionária, que chora com o seu sofrimento, que o segue na busca do infinito. E aí não se pode mais largar a obra que se quer completa, impossível deixar de ler as suas 180 Antero Vivo, Lisboa: Ocidente, 1949. p. 15.

cartas, por ordem cronológica de emissão, acompanhando a sua produção poética e de prosa filosófica e política, ou ainda de querer ler as cartas por destinatário e, então, compreender como, num tempo tão distante deste nosso, ele – o “génio que era santo” – pôde 240 criar um monumento de sentimentos que se expandem no peito em • direção à eternidade. Há flores e frutos no colo das ilhas Desde os meus tempos de estudante universitária, sentia por Antero um distanciamento medroso, um não sei quê de pavor, de sentimento sem razões palpáveis. Em Ponta Delgada, ao passar pelo banco em que Antero se suicidou, um arrepio na alma, fez-me esquecer Antero, deixá-lo perdido em tanta lenda, em tanto devotamento, em tanta mistificação. Quando, no Congresso Anteriano Internacional, ouvi o catedrático da Universidade dos Açores – Prof. Doutor José Martins Garcia – de viva voz, em sua palestra “As ‘ficções’ de Antero de Quental”, promulgar que ele também se sentia distanciado de Antero, tive uma sensação de alívio por saber que não estava sozinha dentre tantos devotos de “Santo Antero”: Confesso que, depois de haver proposto uma crítica dialógica como via possível para a atenuação das discrepâncias entre discurso criticado e discurso crítico (ou do crítico), me aflige a enorme dificuldade que experimento em relação à poesia de Antero de Quental.181 No princípio, a mim também afligia tanto sofrimento supor- tado por em ente só, sobretudo porque, antes de compreender a obra anteriana, muitas passagens de recensão crítica, lidas aqui e ali, avolumavam-se no meu intelecto sem possibilidade de gestação capaz de uma resenha. Hoje o panorama é outro. Sempre mais e mais voltadas também para o espiritualismo, reler a obra de Antero de Quental foi descobrir novos rumos, agora dentro dos pressupostos (que aqui 181 In: Actas. Congresso Anteriano Internacional, 1993.

nem chegaram a ser discutidos) da Lógica da Criação Literária, de 241 Kate Hamburger (1996), com subsídios impregnados pela teoria • doutrinária da Filosofia Espírita. Vilca Marlene Merizio Não penso em religião como seita, mas sim como ideia, como filosofia de vida. Já Antero dizia que a Religião é essencial ao homem: “A Religião [...] deve ser a maior, a mais nobre, a mais bela e a mais livre entre todas as coisas da vida – ou deve deixar de existir então”.182 O sentimento religioso vivenciado por Antero, que transmigrou do catolicismo romano (pelas mãos de Michelet, Taine, Renan, Hegel) ao espiritualismo espírita, a partir do Magnetismo (amparado por Hartmann e pela própria dor pessoal) fundamenta-se na ideia de que Deus só tem explicação e valor enquanto necessidade imanente da realização do homem no Universo. Dizia Sócrates: “Dentro do homem existe um Deus, não sei qual, mas existe” e Platão exortava: “Humanidade! Humanidade! não mergulhes mais os teus tristes olhares nas profundezas da Terra, procurando aí os castigos. Chora, espera, expia e refugia-te na ideia de um Deus intrinsecamente bom, absolutamente poderoso, essencialmente justo”. E Cristo “com os olhos da fé lia no horizonte anuveado das visões do profeta esta outra palavra de consolação: dentro do Homem está o reino de Deus”... assim, Antero disse. Assim Antero orou: “Abençoada doença”... E mais: “é preciso chorar e amar aquilo que nos faz chorar”. Antero: um exemplo de vida, onde a falsa negação de Deus é a prova contundente da Sua existência. Onde os mortos vivem com os vivos, “Na comunhão ideal de eterno Bem”. Como síntese, aponto, primeiro, o soneto “Com os Mortos” como testemunho do sentimento religioso de Antero de Quental. Os que amei, onde estão? idos, dispersos, Arrastados no giro dos tufões, Levados, como em sonho, entre visões, Na fuga, no ruir dos universos... 182 “A Bíblia da Humanidade de Michelet”, Prosas da Época de Coimbra, 1982. p. 270.

Há flores e frutos no colo das ilhasE eu mesmo, com os pés também imersos Na corrente e à mercê dos turbilhões, Só vejo espuma lívida, em cachões, 242 E entre ela, aqui e ali, vultos submersos... • Mas se paro um momento, se consigo Fechar os olhos, sinto-os a meu lado De novo, esses que amei: vivem comigo, Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também, Juntos no antigo amor, no amor sagrado, Na comunhão ideal do eterno Bem. Vivos e mortos, todos comungando da mesma Eternidade. Mas, para melhor deixar registrado o olhar de Antero de Quental para a santidade, transcrevo o soneto Na Mão de Deus, que, para mim, é uma das suas obras primas: Na Mão de Deus Na mão de Deus, na sua mão direita, Descansou afinal meu coração. Do palácio encantado da Ilusão Desci a passo e passo a escada estreita. Como as flores mortais, com que se enfeita A ignorância infantil, despojo vão, Depois do Ideal e da Paixão A forma transitória e imperfeita. Como criança, em lôbrega jornada, Que a mãe leva ao colo agasalhada E atravessa, sorrindo vagamente, Selvas, mares, areias do deserto... Dorme o teu sono, coração liberto, Dorme na mão de Deus eternamente! Florianópolis, 30 de junho de 1998.

Referência 243 • ACTAS. Congresso Anteriano Internacional. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1993. Vilca Marlene Merizio AGUIAR E SILVA, Vítor M. de. Teoria da Literatura. 7. ed., Coimbra: Almeida, 1986. ALBUQUERQUE, Isabel de F. e. Alguns inéditos de Antero de Quental e Subsídios para a sua Epistolografia. Lisboa: Signo, 1992. ALMEIDA, Onésimo Teotônio. Açores, Açorianos, Açorianidade. Espaço Cultural. Ponta Delgada: Signo, 1989. BAKHTIN, Mikail, Esthétique de la Création Verbale. Paris: Gallimard, 1984. BERRIO, A. García. Teoria de la Literatura. La Construcción del Significado. Poético. Madrid: Cátedra, 1989. CARREIRO, José Bruno. Antero de Quental – Subsídios para a sua Biografia. V. I e III. 2. ed. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada; Braga: Pax, 1981. CARVALHO, Joaquim. Evolução Espiritual de Antero e Outros Escritos. Angra do Heroísmo. 1983. CARVALHO, Ruy Galvão. Antologia Poética de Antero de Quental. Seleção e Notas. Angra do Heroísmo: SREC, 1983. CARVALHO, Ruy Galvão. Antero Vivo. Lisboa: Ocidente, 1949. COELHO, Eduardo Prado. Os Universos da Crítica. Lisboa: Edições 70, 1987. HAMBURGER. Logique des Genres Littéraire. Paris: Seuil, 1986. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. de J. Herculano Pires. 56. ed., São Paulo: Lake, 1997. KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, Trad. de J. Herculano Pires, 49. ed., São Paulo: Lake, 1997. KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. de J. Herculano Pires. 11. ed., São Paulo: Lake, 1995.

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Pires e Ana Maria Almeida Martins. Ponta Delgada: Universidade dos 245 Açores. • SERRÃO, Joel. Antero e a ruína do seu Programa. 1871-1875. Lisboa: Livros Horizonte,1988. Vilca Marlene Merizio SILVA, Fernando M. Soares. Antero de Quental. Evolução da sua filosofia existencialista e do seu pensamento pedagógico. Angra do Heroísmo: SRAS/ DSE, 1986. UNAMUNO. Miguel de. Por Terras de Portugal e de Espanha. Lisboa: Vega, 1998.



Sobre a autora Vilca Marlene Merizio nasceu em Brusque, Santa Catarina, Brasil e vive em Florianópolis há 57 anos. Doutorou-se em Literatura Portuguesa Contemporânea na Universidade dos Açores, Portugal (1992); Mestre em Literatura Brasileira (1978) e Licenciada em Letras (1973) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora universitária de Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Portuguesa (aposentada pela UFSC). Mestre em Reiki. Organizadora de obras literárias e revisora de textos. Idealizou, criou e coordenou programas e projetos nos âmbitos educacional, cultural, linguístico e literário. Pesquisadora do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Portugal e da CAPES, Brasil (1987/1992). Ex-Presidente da Associação Catarinense de Artistas Plásticos – ACAP. Cofundadora da Casa dos Açores de Florianópolis, da Associação dos Poetas Livres de Florianópolis, da Academia São José de Letras e da Academia Desterrense de Literatura, da qual é Presidente. Atualmente, é também membro do Instituto Histórico e Geográfico (IHGSC), do Instituto de Genealogia de Santa Catarina (INGESC) e da Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia, Portugal (AICL). Criou a Biblioteca Açoriana Prof. A. M. B. Machao Pires, do IHGSC, cuja organização contou com a colaboração da Bibliotecária Patrícia Régis. Criou e organizou, com a colaboração de Patrícia Régis, a Biblioteca Açoriana do IHGSC. Prestou consultoria e revisou Adolpho Konder Foot-Ball Club. A força no Futebol Catarinense, de José Geraldo Rodrigues Menezes (Tubarão: Copiart). Em 2018: (1) Organizou e prefaciou Flor(em) essência, para além da esquizofrenia. Poemas de José Alberto Vieira, escrito nos Açores (Tubarão: Copiart). (2) Organizou, com Introdução e Notas da coleção ...do mais profundo de (todos) nós. Poemas de Joaquim Alice, Box Literário com nove volumes, para serem lidos com o coração. (3) Prestou consultoria e revisou Da Depressão à Razão, à luz do espiritismo, de Pedro Artur Alves Pereira. (Florianópolis: Habitus). (4) Pesquisou, organizou e escreveu o texto que serviu de base à edição de Entre o agora e o amanhã: a história da união que tem feito diferença na educação pública catarinense/UNDIME-SC, texto revisto, atualizado e ampliado por: Bruna carvalho madeira (Tubarão: Copiart). (5) Prefaciou Memória da Terra, romance de José Martins Garcia (Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2019). Publicações. 2013: Dá rosas, rosas, a quem sonha rosas. Sobre alguns poetas, escritores e artistas brasileiros e portugueses (Blumenau: Nova Letra). 2012: Memorial Undime-SC no seu Jubileu de Prata. Pesquisa, organização e texto. (Florianópolis: Sagrada Família). Em 2004: (1) Janelas da Alma, livro de afetos e desejos. 25 anos de poesia (Florianópolis: Papa-Livro). (2) A História de Um Amor Feliz Estudo Literário, (Blumenau: Nova Letra). (3)Açores... De memória (Contos). 1996: Quase... de Corpo Inteiro (Poesia). Poemas escritos nos Açores. (Florianópolis: Edição do Autor). 1979: Experiência de Ensino-Aprendizagem, Premiado no Concurso Nacional de Ensino de Redação (MEC, Brasília). Tem trabalhos publicados em várias antologias, coletâneas e revistas literárias.

Este livro foi diagramado com as fontes Minion Pro e Roboto Slab. Publicado on-line pela Editora Arte & Livros em dezembro de 2020.


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