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Published by Paroberto, 2021-01-11 23:04:28

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3 Concha Rousia, a poetisa galega28 Quando o desconhecido é quase familiar: Se os carvalhos falassem 28 Comunicação apresentada no Colóquio da Lusofonia, na Maia, concelho da Ribeira Grande, ilha de São Miguel, Açores, em 15 de outubro de 2016.

Há flores e frutos no colo das ilhasBiografia De nome de batismo Concha Rodrigues Peres, Concha Rousia 50 nasceu no dia 4 de outubro de 1962, em Covas, Galiza, Espanha. • Psicoterapeuta, licenciou-se em 1995 em psicologia, na Universidade de Santiago de Compostela. Especializou-se em psicologia clínica. Mestre em Ciência, em Marriage and Family Therapy, pela Universidade de Maryland, USA, 1999, quando defendeu a tese Multilingualism and psichotherapy. Exerce a função de Secretária da Fundação Academia Galega da Língua Portuguesa e é cofundadora da Academia Galega da Língua Portuguesa. É membro da Associação Galega da Língua desde 2004, membro da associação Cultural Pró Academia Galega da Língua Portuguesa, presidente pela parte galega do Instituto Cultural Brasil Galiza, membro da Junta Diretiva da Ordem dos Psicólogos da Galiza e Coordenadora da Comissão Cultural, onde, entre outras atividades, criou o Prémio Literário “Rosa de Cem folhas”, já em sua quarta edição. Colaboradora dos Colóquios da Lusofonia. Em março de 2010 participou na Comitiva Oficial desses Colóquios na sua visita à Academia Brasileira de Letras, onde deu uma palestra para falar da participação da Galiza nos Acordos Ortográficos da Língua Portuguesa. Administradora do blog Republica da Rousia: republicadarousia.blogspot.com Publicou: Se os carvalhos falassem. Santiago de Compostela (Galiza): Associaçom Galega da Lingua, 2016. As Sete Fontes. Romance, em 2005, formato e-book pela editora digital portuguesa ArcosOnline (www.arcosonline.com), Arcos de Valdevez, Portugal. Dez x Dez. 2006, Antologia poética, Abrente Editora (Galiza). Cem Vaga- lumes. Obra composta por 16 haicais premiados e publicados polo Concelho de Ames, em 2006. Herança (Conto). In Rascunho (Jornal de literatura do Brasil), Curitiba, Brasil, 2007.

Participou da Primeira Antologia do Momento Lítero Cultural, 51 em formato digital. 2007, Porto Velho, Brasil. Nas Águas do Verso. • Antologia. Porto: Portugal, 2007. Antologia do XXII Festival de Poesia do Condado. Gráficas Juvia, 2008. Poeta, Mostra a tua Cara. Vilca Marlene Merizio Antologia. Rio Grande do Sul: Brasil, 2008. Mulheres. Antologia poética. Mulheres Feministas do Condado, Galiza, 2011. IV Antologia de poesia lusófona. 2012. Folheto, Leiria, Portugal. Volume 7 da Coleção “Poesia do Brasil”, correspondente ao XV Congresso Brasileiro de Poesia, que se celebra em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil. Tem publicado poemas, contos, crônicas e outros textos em diversas revistas galegas como Agália ou A Folha da Fouce; e em jornais como o Novas da Galiza, Galicia Hoxe, A Nosa Terra, Portal Galego da Língua, Vieiros, e em brasileiras como Momento Lítero Cultural. Recebeu os seguintes prêmios: Prémio de Narrativa do Concelho de Marim, 2004, Galiza. Prémio de poesia do Concelho Ames, 2005, Galiza. Ganhadora do Certame Literário Feminista do Condado, 2006, Galiza, com o romance A Língua de Joana . Quando o desconhecido é quase familiar: Se os carvalhos falassem Saúdo a escritora Concha Rousia, baluarte dos Colóquios da Lusofonia, e, em seu nome, cumprimento todos os presentes. Meu interesse pela Galiza vem da infância. Sensibilizo-me ao ouvir ou ler histórias semelhantes às contadas por minha mãe nas noites frias de Brusque, em Santa Catarina, Brasil, quando tudo era aconchego, viagens a tempos e a espaços sagrados, imaginário que alimentou a minha formação e de onde partiram os meus primeiros arremedos de produção literária. Eram histórias que vieram da minha avó, provavelmente ouvidas de sua mãe que as ouviu de suas

Há flores e frutos no colo das ilhasavós; e, assim, de avós em avós, o respeito e o gosto pela tradição de povos, que nem sabíamos se existiam de verdade ou se também eram fruto da história contada, eram transmitidos por nossa mãe, com a 52 emoção que nos despertava para as delícias da poesia e o mistério • dos contos de fadas. Também em Concha Rousia o deslumbramento da infância continua vivo. O amor à família e à terra de origem, cantado em prosa e verso, vem de longe. O ânimus voltado para a crítica social e política e a ânima, criando metáforas e símbolos, recriando mitos e fazendo reviver arquétipos, vivem em calorosa e aberta cumplicidade: eu sou um ser selvagem sou a natureza viva que se vê a morrer eu sou todos os seres humanos do planeta e sinto simultaneamente tudo o que me nega. É como se a autora alertasse: invento, mas o que sinto e escrevo é de verdade porque faço literatura, e essa veracidade poética emana de seus escritos revestida de simplicidade que empolga e cativa, tal como acontece no poema “Todos os meus seres”, onde a voz que fala, na tentativa de se autodefinir, revela sentir-se filha da mãe Terra e irmã das estrelas, com ascendência celestial: Nasci no colo dessas montanhas [...] Quase filha de um anjo. O mesmo que dizer, meio humana, meio deidade, um arquétipo que, entre a liberdade e a escravidão, simplesmente é o que afirma e nega, diz e contesta. Por vezes a poesia sou eu cheia de estrela por dentro,

postou Concha Rousia numa das páginas do Facebook, estado de 53 alma benfazejo que lhe confere o poder de testemunhar a resiliência • de que são sujeitos os seres fictícios a que tem dado origem, tal qual se verifica no seu ambiente sociocultural, palco dos temas de cuja Vilca Marlene Merizio dramaticidade preenche seus escritos literários. Em outros momentos, Concha já dissera que sua poesia aporta mensagem sagrada/ ...das deidades, consciência que lhe permite apresentar-se como “cultivadora”, ao mesmo tempo em que estabelece uma ordem de importância ao se autodefinir como sendo labrega, poeta, psicoterapeuta, singular maneira de se expressar através de uma pluralidade de falas que se opõem e complementam: ora como omnisciente deusa, ora humana, defensora dos ideais de sua pátria combalida simplesmente por questões linguísticas. Eu diria mesmo, quase um Prometeu de saias e sem castigo. No poema “Ser”, a VOZ (e aqui podíamos grafá-la em maiúscula, a voz do eu lírico assume-se como pertencente a uma “cultura milenar”: desde a dúvida de nada ser à certeza de ser múltipla naquilo que deseja compartilhado: Sou galaica sou índia e sou malaia Sou infinita..., até a certeza do que já foi e continua a ser, embora nem sempre tenha a convicção de que realmente já tenha sido. E é em “Antela” que diz: Já não sou eu quem me define É só a minha inexistência a falar por mim... De todos os modos, a confissão inequívoca da nulidade do seu existir, lembrando Pessoa, confirma o estado de desilusão que a aflige ao considerar-se ferida aberta... herdeira natural dos antigos míticos celtas, povo que traçou o destino e lhe ensinou a coragem de soltar a voz e querer o compartilhamento das benesses da vida:

corri descalça pelo campo sem saber que o campo era meu mas era 54 e fui pessoa sem saber que era • E agora sou nada. Há flores e frutos no colo das ilhas Por sentir-se “nada”, tudo se tornou “areia no deserto” daquela memória. E o testemunho de ser nada gerou força naquela que sabe conjugar o verbo da coletividade: ...ser eu sem saber que sou eu mesmo ser tu sem saber que sou tu mesmo ser pó sem saber que sou pó. E é nesse balanço onde yang e yin confluem para o enlace poético, a sua voz, sendo voz da natureza, é dita para ser ouvida como “frondosa árvore de sons”, voz que continua pregando não só comunhão, mas também semeadura, gestação e frutificação, tal qual como se ouve no poema que clama: sou voz das que cantam e a voz das sem voz das que já calaram e das que ainda não falam Sou a voz da vossa voz/ da nossa voz... Sou Uxia Senlle, que canta Espanha. Que canta Galiza. De todas as formas, a produção literária de Concha Rousia me comove. A retomada de arquétipos e temas antigos, volvidos em lendas, símbolos e mitos, são tão próximos, que tenho a impressão de que é sobejamente familiar a emoção que sinto ao ler suas obras. Até mesmo as atitudes de algumas personagens e os elementos coincidentes com a cultura de nosso tempo mais me persuadem de que já “conheço isso...”, “que sei como é...”, que “já senti a mesma coisa...” Talvez não na mesma

proporção descrita, mas com sentimento muito semelhante. Por isso, 55 entristeço-me, com ela, quando, relata que “É noite, e os meus irmãos • andam perdidos” e, mais me inquieto ao ouvi-la falar Vilca Marlene Merizio de jardins condenados a morar nas mãos de jardineiros cegos que detestam flores. E a partir daí, de onde o seu “texto me olha”– vejo homens à deriva em seu próprio chão natal – minha empatia aumenta porque pressinto que o que a autora vai apontar, a mim também toca e emociona, ao mesmo tempo que me compensa o fato de sabê- la ligada à Terra, por vezes até fazendo sentir a presença de Ísis, o eterno símbolo da Terra-Mãe, pelo seu jeito (dela, da autora empírica enquanto “eu lírico”) de ser Natureza, solidarizando-se com homens e mulheres da sua Galiza. Gente que, na sua maioria é Corpo em agonia, barco à deriva governado por marinheiros cegos e doidos, embriagados de rum e esquecimento. E o lamento doloroso não deixa passar desapercebida a impotência que domina a voz que a escritora tomou de empréstimo para a construção de sua obra: A Vida passa por mim como um rio de gente a me povoar Hoje doem me os que já se foram Sinto também as dores dos que agora Passam E doem-me os que virão quando o meu rio secar Mesmo assim, com tantos embates, o esforço vale a pena, quando a vontade de lembrar cria novos atalhos rumo a um futuro de necessárias mudanças. Mas, quando as lembranças, em vez de

Há flores e frutos no colo das ilhasconduzirem a um final feliz, continuam apenas memórias inúteis, como barcos de papel 56 ... o livro da memória se fecha, • a tristeza invade a alma, mas a boca não cala, porque o “mel” ainda ferve nas veias de quem se importa, queima-lhe a carne e só tranquiliza quando a dor converte-se em literatura. E aí, principalmente aí, tal como a melra, a defender o seu território em tempo de primavera, a autora, como forma de preservação dos seus valores e princípios: escreve escreve escreve/ fala diz liberta o verbo diz tudo tudo tudo..., mesmo angustiada pela impossibilidade de resolver o que tem de ser transformado, porque não é só em suas mãos que está tão significativa resolução. E ouve-se a queixa: Quem perde a sua língua algum dia no Olimpo das deidades tem, por força, de reencontrá-la. Por força e fé, lá, no além... E aí haveria a reconciliação na conciliação do que agora o poder é só imagem e símbolo. Essa forma de dizer, esse olhar crítico ao que sucede no profundo de sua alma em relação ao seu país, mais me toca diante da indignação confessa:

Podem prender os nossos corpos 57 e prendem os nossos corpos • Podem tapar as nossas bocas [...] E tapam as nossas bocas Vilca Marlene Merizio Podem deitar lixo nos nossos ouvidos [...] Podem, podem... podem... Os que podem não temem. E os que temem sentem-se paralisados pelo mando de homens e mulheres imbuídos de decisões que não são respostas às necessidades dos cidadãos. Esse é um “Tempo de se render não”, clama a poetisa ao lembrar a história gloriosa de seus antepassados. E cito, os bárbaros de hoje não, ... nunca poderão entrar no sagrado da nossa memória Nunca vencerão o nosso exército de árvore que erguido e Celta vive no nosso interior. O cenário está pronto; é preciso estar pronto para a ação! E, aqui, enquanto leitora, cúmplice dessa voz trágica, mas cheia de ternura, torço para que a profecia revelada pelos versos se realize em razão da esperança que vibra nas fímbrias do desejo da recuperação bendita: Nunca queimarão o nosso bosque de animas jamais nos renderemos Jamais jamais jamais nos renderemos. Essa afirmação, tão poderosa quanto eloquente, deixa sobressair a seiva eivada de patriotismo concentrada nas palavras que denunciam uma Galiza, “mãe viva” – oh que pena! – de “filhos mortos”. Confessa Concha Rousia:

E a mim mata-me mata-me viver com estes mortos. 58 O comprometimento de uns, o alheamento de outros, no geral, • o empoderamento de poucos e o sofrimento da maioria que não pode, na verdade, nem contar consigo mesma... Mas vamos ao novo livro de Concha Rousia: Há flores e frutos no colo das ilhas Numa terra longeva, a escolha para o nome de um livro, Se os carvalhos falassem..., tem muito que dizer já que o título contém a semântica total da obra. Dessa forma, a condicional “Se” abre-nos um mundo de expectativas que se alongam através das reticências. E o sintagma verbal cria o mapa poético onde se desenham os roteiros de muitos entendimentos, mesmo que as linhas estejam apenas projetadas. A possível antropomorfização do termo carvalho no título patenteia o dizer de Concha Rousia em palavras poucas porque extenso é o seu significado. A imagem do carvalho sustenta-se como o eixo do mundo, holograma capaz de conter miríades de epifanias jorradas do interior da alma da poetisa em lances de memória e denúncia porque fruto da partilha da eterna complementariedade dos opostos, em gozo e solidariedade; em sofrimento e proteção; em sonho e na crua realidade onde se luta porque se valoriza e se quer a liberdade de expressão, e uma vida digna, justa e compartilhada com equanimidade por todos. Na capa do livro, Se os carvalhos falassem (2016), sobre a foto de uma casa de pedra, destaca-se o título da obra que, por uma centena de páginas, enfeixa 55 poemas. Casa ou templo; carvalho ou árvore- da-vida, dupla simbologia que nos lega a junção perfeita entre a Terra- mãe, da qual nascem as pedras, e o céu para onde normalmente as pedras e as copas dos carvalhos apontam. Assim, pedra (resistência) e carvalho (regeneração), ao encabeçarem os poemas, podem levar- nos a interpretações tão dissemelhantes quanto são os sentidos de permanência em oposição aos de fim. A pedra, na sua solidez estática pode ser o ponto estratégico que ancora e protege nossos desejos, afirmações e ações concretas, enquanto o carvalho, pelo seu poder dinâmico de longevidade e de regeneração, diante dos ciclos da vida

e da morte, propulsiona a peremptória evolução da vida quando 59 nada permanece fiel ao que já foi, mudando a cada estação. Até • mesmo o sentido dos benefícios da impermanência não nos garante sua perpetuidade. A eternidade é feita de momentos... Vilca Marlene Merizio No entanto, chama atenção um traço comum aos dois conjuntos de elementos pedra e casa, casa e carvalho: na mesma proporção que se complementam, pedra e casa se distanciam, conforme o sentido que emprestamos às duas metáforas. A casa, templo, abrigo e segurança, também podem exprimir pobreza de horizonte, enclausuramento, contenção, assim como pedra, pode figurar com a acepção de segurança e durabilidade, mas também de dureza, estilhaçamento impossível de se recuperar, trabalho e luta penosa pela sobrevivência. A casa pode ser corporificada como o lar, o ambiente acolhedor em que pai e mãe são os provedores e protetores naturais, um mais do corpo, outro, principalmente, do espírito, como bem exemplificam os dois poemas iniciais da obra oferecidos um ao pai, o primeiro, e o outro, o segundo, à mãe. Assim, com a liberdade de fronteiras poéticas, tanto as de compreensão literal como as advindas pela literariedade, a leitura dos versos de Concha Rousia direciona o entendimento a extensos e variados territórios. Se não, vejamos: Atravessei o mar e o meu cabelo ondulou-se para sempre Estiquei os meus braços e me nasciam penas e o ar me elevava ao céu Fechei os olhos e neles pousaram-se as estrelas Andei descalça pela relva/ e a terra deu-me raízes. Os elementos da Natureza, vivendo as sem-fronteiras de estado, na liberdade que os reinos naturais permitem ao criador literário, forjam um “eu lírico” que consegue distinguir as máculas da infância, quando as lembranças gotejam dores que a tradição não engendra.

Em “Quando era miúda”, a intolerância institucional, emanada de mentes menores marcava as lembranças que da dor fizeram bandeira. E hoje, na indignação não contida, a revelação não mais escamoteada acusa a escola sob a forma de cárcere sem janelas; a igreja fria, gélida 60 e despiedada e uma corte sem vacas. As três: escola, igreja e corte, • coadjuvadas com a miséria, a violentar língua e espiritualidade por Há flores e frutos no colo das ilhas todo o transcurso de uma vida. Língua e cultura são pilares de nossa identidade. Neste é o nosso modo de viver, estar e fruir o mundo, a apalavra é veículo da dor e da esperança. A minha ortografia ... é uma emigrante retornada, diz Concha Rousia. Na Metalinguagem, o yang manifesta-se, com imagens fortes, carismáticas e masculinas: Levo o mar na palavra, e o yin corrobora tal força sendo corpo que engendra o poema: Eu escrevo com sangue que me queima que me cicatriza as feridas que me causa o parto dum poema. E é através do léxico desse “eu lírico” que a autora confessa: Quando fui pobre [...] fui rica e não sabia; o pêndulo oscila entre palavras fortes como troncos... outras mais leves como ramos para dizer que palavras borboleteiam [...] como cócegas ao vento..., enquanto existe um passarinho [...] que me consola quando a saudade aperta.

Por isso, talvez, a escolha pela dupla de signos que levam a 61 múltiplos significados pode transmitir a ideia de que também o “eu • lírico” de Se os Carvalhos Falassem pertence ao panteão das deidades encarnadas neste planeta. Ao identificar-se com a Totalidade, Concha Vilca Marlene Merizio Rousia, através da voz dos seus versos, dá-nos a dimensão do que podem ser considerados mitos contemporâneos, alguns dos quais sustentam e dão peso à sua obra, tal como é a percepção da identidade nacional – a língua é a minha pátria – que, em determinado sentido, encontra-se periclitante. Os méritos da reconquista, voltados para a justiça e para os direitos humanos, me parece ser o grito de alerta que flui da produção literária de Concha Rousia, sinal de que, pelo menos, durante a travessia por este espaço planetário, ainda há tempo de se entender que literatura é lampejo de cujo manancial brota o conhecimento que pode curar a nossa psique: Sou uma viagem que sabe do seu final incerto no tempo e no espaço. A universalização das imagens metafóricas de Se os carvalhos falassem é-nos oferecida em clima de renovo, redobrando a cada página e a cada leitura o jogo do encantamento pela riqueza de suas variações significativas, desde uma consciência racional até uma subjetividade poética que deixa extravasar uma “luminosidade, um reforçamento da coerência psíquica”. E esse sonho que Concha envolve em múltiplos acordes revela uma consciência forte e lúcida que crê no poder do sonho tanto quanto na força da palavra dita e escrita. E os sons da fala escrita abrem caminho para uma polifonia de sentidos capazes de gerar no leitor a vontade transcendental de transformar o mundo, criando espaço para a harmonia pessoal e a paz coletiva. Pelo menos, é isso que se espera e, que provavelmente, Concha tenha desejado.

Há flores e frutos no colo das ilhasVoltando ao que parecem ser as palavras-chave da obra, árvore, pedra e casa, das imagens que essas palavras suscitam parecem aflorar os aspectos limites da Vida: a estagnação e a mudanca. Do ponto 62 de vista literário, a submissão de uns por falta de conhecimento das • forças internas e dos direitos intrínsecos do ser humano; do ponto de vista sagrado, a passagem para a assunção da dignidade de uma vida com ética, conforto e valoração dos seus fazeres e saberes, resultado não só de uma escolha pessoal, mas de um trabalho plural de conscientização humana, política e social. Pedra, água, casa, árvore, receptáculos e veículos do sagrado, concretizam o dom espiritual que perpassa por toda a obra de Concha Rousia. Do feminino e do masculino conjugados, a liberação do jugo do inconsciente que escraviza. Quanto às alegorias e outras figuras que transitam desde o subterrâneo da poética de Concha Rousia, seu amor pela língua pátria se ufana e eterniza, quando diz: eu sou só tua, Galiza. No entanto, não termina aí, sabe olhar para os lados e ver até onde seu amor pela língua pátria se estende. Apraz-nos a sua maneira de irmanar-se também ao nosso país, mesmo que seu coração esteja fielmente vincado nas terras de Compostela: Brasil, sinto-te tão meu que a minha própria pátria deixa de doer-me. Conhecedora da realidade de seu torrão natal, em outros versos, deixa transparecer certa mirada de loba ferida lhe consagra: Galiza, Maldigo a classe intelectual incapazes de levar à escrita o que o povo nas suas mãos e bocas ao longo de tantos séculos...

O sonho de uma Terra-Mãe saudável e progressista, de uma 63 Galiza dadivosa enquanto berço da cultura e da língua utilizada por • mais de 261 milhões de falantes esfacela-se diante da tirania de uma minoria que têm nas mãos o destino da pátria. Assim, me parece Vilca Marlene Merizio ser. Por essa razão [e por outras], tenho vontade mesmo de, em eco, repetir uma das declarações da autora, quando, com valentia, fala da sua aldeia natal, Covas: o meu mundo aí no colo das montanhas. E com ela, ainda, em simbiose fraterna, admitir: Eu sou essa montanha preguiceira sou a Rousia. E – por que não? – com ela, levantar o bastião defensor do uso da língua, que também é a nossa. Quem perde a sua língua não tem mais deus não tem mais pátria [...] não tem verbo para fazer-se carne para fazer-se casa dessa alma... E assim, a cada produção, a cada enfeixamento de sua lírica ou de sua intervenção via ficção, Concha Rousia, também se ergue sob a forma de ave migratória que busca calor e abrigo em outras ambientações. Em suma, como se continuasse no propósito literário lançado em As Sete Fontes, Nântia e a Cabrita d’Ouro, seguindo o plano do lendário e mítico, Se os Carvalhos Falassem é o pulsar lírico do que a poetisa já fez manifestar-se por vozes várias na prosa de ficção, num desenho nítido do que ficou apenas e metaforicamente subentendido nas dobras das páginas anteriormente editadas. Um dos exemplos que se pode apontar são os múltiplos sentidos das

Há flores e frutos no colo das ilhasfiguras de linguagem relacionadas à palavra pedra. Nos primeiros versos de Tempos Duros, Concha diz que Na Galiza o tempo é de pedra, o sol é de pedra, a alma é de pedra, e até mesmo a sua memória 64 é também de pedra... também • de pedra o horizonte com as suas lendas a escrever a nossa memória de penedos, misérias, humilhações e injustiças. Então, parte-se do pressuposto que, realmente numa aldeia da Galiza, existiu numa aldeia, e era a de Covas, um relógio de pedra que marcava as horas e que foi salvo pela coragem de um campesino. Pois bem, esse assunto, essa “narrativa fundamentadora”, esse “núcleo mítico”, como diria Charles Durand (1999, p. 68) será retomado no romance, mas fica a indagação: O que será um mundo de pedra? “Memória de pedra”, tempo, sol e alma de pedra? A princípio, quero crer que memória de pedra é aquela memória que não se apagará nunca: forte, resistente, que ficará para sempre... Perene. E que tempo, sol, e alma, seguindo o mesmo raciocínio, também são presenças eternas, infinitas, sem começo e fim. Perene também é a presença do pai, a quem a autora: “Se os carvalhos falassem, não ficaria tão só, confessando: “nem os monólogos queimariam tanto a garganta”. Na minha leitura, o pai ausente presentifica-se através da imagem do carvalho, metáfora de valoração, vigor, resistência e força (e a homenagem a ele está feita); também homenageia a mãe em “De Madeira”, da mesma forma, comparando-a com a firmeza e versatilidade da madeira – em oposição ao cortante metal: De madeira tu que te sabes manter firme como o pau, [assim como] de madeira o sonho e o barco no qual foges Salvando o mundo das chamas.

Em outras passagens para relembrar os que já se foram, o “eu 65 lírico” oferece, mediante um objeto cuja utilidade descreve, O Carro • das Vacas. o seu reconhecimento figurativo: Vilca Marlene Merizio Não, não é um simples carro não é madeira que apodrece... É um ser vivo que se rende. A ideia também da madeira/carvalho como proteção, arquétipo ligado à mãe e ao pai, pode ser sentida em Galiza II: o deserto chegara às nossas almas Desoladas ante a devastação começamos já a erguer dentro de nós um exército de árvores. E assim, para honra dos galegos e satisfação dos seus leitores, mantém-se uma Concha Rousia que, aparentemente tímida, tem a força de mostrar o seu espírito amoroso, mas crítico, sua pujança frente aos temas linguísticos e sociais que ainda precisam de ajustes, sua feminilidade na escolha do cenário onde seu pensamento poético tem razão de ser. Na hora mágica do olhar as estrelas para sentir o cosmos, na hora em que nem a melra voa, nem o galo canta, sua alma renasce, nova, sem passado e futuro e, ela, a autora pode-se sentir triste, mas “livre”, no seu sentido de “definitivamente libertada” pela poesia que conta dela o que foi: ora uma ora outra, em diversas “Biografias” que se encaminham para um desejo póstumo: que suas palavras restem “cinzas” como o corpo ficará no depois... Apesar de imagem tão infecunda sobre sua própria existência, o que acredito sobrar do seu querer é a extinção dos jardineiros cegos que detestam as flores cultivadas nos jardins da Galiza e do mundo. Oxalá isso aconteça: uma pátria livre onde seus filhos em sã consciência e liberdade possam orgulhar-se, com

Há flores e frutos no colo das ilhasFernando Pessoa/ Bernardo Soares, de sua língua mãe, quebrando quebrar as fronteiras que algemam corpo e da alma, permitindo a vida e o sonho, a emoção e os sentimentos de cada utente da língua 66 que o identifica. • Eu sou as escolhas que faço Eu sou a Natureza, conclama Concha Rousia, o que vem confirmar a ideia de que tudo neste universo, em toda a Natureza, se integra, conecta, transcende... numa rede incomensurável de sentimentos, pensamentos, atos, fatos e acontecimentos sustentados pela tradição, pelas crenças, pela fé, pela imaginação, pela ciência, resultado de sucessivas existências de mundos paralelos – fictícios ou reais – que se interpenetram a fim de serem entendidos, compreendidos e compartilhados na sua essência. A polifonia e a multiplicidade dos elementos constitutivos do universo, embora por vezes embaralhem o sentido humano, na maioria das vezes, aproxima o diferente, o distante, o pouco usual. Há que se entender essa polissincronia universal para viver-se num mundo equânime mesmo com as fronteiras ideológicas, geográficas e até linguísticas. Por tudo isso, e mais que isso, reforço, neste momento, a admiração pela capacidade literária – serpe em volutas, como que se quisesse tocar cabeça e cauda, mas que se abre em cada volta a uma nova e revigorante visão – tomada de consciência que, no meu entender, lança Concha para o pódio dos melhores escritores universais desta segunda década do século XXI.

4 Há flores e frutos no colo das ilhas dos Açores.29 Um olhar terno à literatura açoriana Um olhar terno à literatura açoriana. Depois de prolongada polêmica sobre a existência ou não da Literatura Açoriana nos finais do século XX, com o surgimento nos 29 Paráfrase a um verso de Álamo de Oliveira: “Há Hortênsias no Colo da Ilha”.

Açores de novas obras de alta qualidade literária, hoje [2005],30 pode ser considerada Literatura Açoriana toda a escrita de manifestação poética e narrativo-literária que se produz no Arquipélago dos Açores, ou fora dele, mas sobre ele, por poetas e escritores que 68 sintam, de coração, a alma açoriana pulsar em si. Por isso, peço-lhes • permissão para falar da Literatura Açoriana, dedicando esta palestra, Há flores e frutos no colo das ilhas in memoriam, ao poeta e escritor José Martins Garcia, nascido no Pico, na Criação Velha, em 17 de fevereiro de 1941, e falecido, em Ponta Delgada, em 3 novembro de 2002. A ele dedico estas palavras em consideração por ter introduzido pela primeira vez em Portugal, mais especificamente na Universidade dos Açores (1985), a disciplina Literatura e Cultura Açorianas. Já em 1992, em O Imaginário dos Escritores Açorianos, José Martins Garcia, ao ser entrevistado por Vamberto Freitas, era categórico ao ser questionado sobre a existência da Literatura Açoriana: “Existe uma Literatura Açoriana”, sim! E explica: “Existem [na literatura feita nos Açores] formas dum conteúdo que são específicas da mundividência açoriana [e que são ] tratadas como arte da linguagem”.31 Seria a açorianidade (e aqui lembro Vitorino Nemésio) pressentida do ponto de vista literário. As discussões levantadas depois de 24 de abril de 1974, por Onésimo Almeida, José Martins Garcia, João de Melo, A. M. Machado Pires e Pedro da Silveira, tanto nos Açores, quanto em Lisboa e nos Estados Unidos, ajudaram a traçar o perfil literário da produção açoriana. A polêmica começou a ser gerada a partir de um conjunto de pareceres acumulados desde a publicação no Diário dos Açores (1923), de uma entrevista com Vitorino Nemésio, passou pela defesa da existência apenas de uma “escrita açoriana” 30 Texto escrito especialmente para ser proferido na Casa dos Açores de São Paulo, em 27 de outubro de 2005. 31 “Sátira, Angústia e Exílio na Ficção de José Martins Garcia. In: O Imaginário dos Escritores Açorianos. Lisboa: Salamandra, 1992. p. 123.

ainda sem estatuto de literatura, na opinião de João de Melo32 (1978), 69 pelas afirmações sobre a “marginalidade” da literatura açoriana • apontada por Pedro da Silveira, ganhou força na série de justificativas apresentadas por diversas personalidades literárias e publicadas Vilca Marlene Merizio na revista Vértice (1982),33 e fortaleceu-se com as obras Para uma Literatura Açoriana (1987), de José Martins Garcia, Açores, Açorianos, Açorianidade, de Onésimo de Almeida e o já citado O Imaginário dos Escritores Açorianos, de Vamberto Freitas (1992). Esse tempo de questionamentos foi ultrapassado. Certamente, hoje não restam dúvidas sobre a existência e a franca expansão da literatura açoriana. Como explicou Vamberto Freitas: [...] é que tanto a crítica como algumas editoras nacionais começaram a perceber que o seu país estava verdadeiramente repartido no Atlântico, e a sua criatividade estava fulgu- rantemente viva em todos os seus recantos.34 Pelas publicações literárias das duas últimas décadas nos Açores, fica constatado que o diálogo entre os poetas e escritores deixaram de ser conflituosos, por vezes mesmo, coincidindo na temática, na mitologia e na mesma dinâmica da escrita: “Que eu saiba”, afiança João de Melo, “isso era inédito na história literária portuguesa”. A intenção do autor de Gente Feliz com Lágrimas sempre consistiu em transpor, a partir das ilhas, um universo simbólico, próximo do mundo real português. “Nos Açores do presente persistem muitos dos dados que em parte explicam os mistérios, os equívocos e a espiritualidade de todos os portugueses”.35 E referindo-se à sua obra O Meu Mundo não é deste Reino, argumenta que a sua ideia de exílio 32 Registrada no prefácio que fez à Antologia Panorâmica do Conto Açoriano Séculos XIX e XX. Lisboa: Veja, 1978. 33 no 448, maio/junho de 1982. 34 Idem, ob. cit., p. 8. 35 Idem, ob. cit. p. 97.

foi a proposição de uma “nova mitologia literária, segundo a qual a “ilha” pode ser a alegoria possível de um país. Um outro exemplo que corrobora a ideia de João de Melo é a recente criação de Daniel de Sá da novela ainda inédita – O Pastor 70 das Casas Mortas – que relata a desertificação de uma aldeia de • pastores na Serra da Estrela. No entanto, toda a novela pode ser Há flores e frutos no colo das ilhas lida também como uma metáfora acerca da emigração açoriana. Recebi, por meio eletrônico, três capítulos de O Pastor das Casas Mortas: “A janela”, “Lavadeiras” e “A cama”, sem saber ainda que se referiam a uma outra região portuguesa, e li-os como se realmente estivessem falando a respeito da diáspora das ilhas açorianas. A casa de Laura, que tinha sido a primeira a fechar-se de vez, ainda a dona não era emigrada, estava arruinada na parte da cozinha havia alguns anos, e nesse Inverno caiu-lhe mais um pedaço. Com os ventos a varrerem aquele espaço interior que lhe fora tão íntimo, a fechadura rebentou e as tábuas meio soltas da porta da rua bailavam atirando-se contra os batentes. Manuel resolveu fixá-las para que a habitação desventrada não ficasse com as entranhas devassadas aos olhos de quem passasse. Lá dentro só o quarto dela estava inteiro, com uma cama que se aguentava de pé mas a que os ratos e o tempo haviam roído os cobertores e os lençóis, deixando ver partes do colchão sob uma camada de pó que formava uma crosta repelente. Aquela era a cama de Laura [...]. Em 1996, Machado Pires, a respeito do fazer literatura açoriana fora dos Açores, trazia como exemplo o trabalho literário de André Siganos, de naturalidade francesa e que, residindo nos Açores, lá escreveu e publicou seus poemas. Adelaide Baptista fala de um John Updike, americano. Ambos evocam uma ilha parada, “ancorada”, “sentada”, assim como, como do ponto de vista deles, está sentado o ilhéu açoriano, “pensativo, de olhar fixo, colado ao chão”, em plácida ausência,/ esperando ao chuvisco/ao lado do

arado/os dias sem quebra” [...], não só por razões econômicas, mas 71 também anímicas – (cito Urbano Bettencourt, em Raiz de Mágoa) • “nesse vaivém de quem mesmo não partindo, deixa partir os olhos no corpo de ficar”.36 Vilca Marlene Merizio Adelaide Baptista, em Os Açores através da sua Literatura, salienta que ao se fazer um cotejo sobre a literatura açoriana – escrita dentro ou fora dos Açores, por açorianos, continentais ou estrangeiros –, um pensamento se destaca: a literatura como uma “mitologia consciencializada” em razão de se assentar sobre a experiência partilhada e verbalizada de uma comunidade, onde se enraíza a natureza e a especificidade do lugar, em que se entretece em forma de diálogo, a alma de uma região ou país. Esse material basilar, em “moldes conscientes, atuam sobre o açoriano, definindo- lhe um modo especial de vida, uma maneira particular de pensar, de agir e de se comunicar”.37 E isso é açorianidade, conceito ou concepção cuja definição, para José Martins Garcia, se afigura difícil, por envolver domínios mais vastos do que os da literatura. E, em confirmada a açorianidade de uma obra, visto está que ela pertence à Literatura Açoriana, enquanto “superestrutura emanada desse habitat, incomparável, duma vivência e duma mundivivência peculiares”.38 Diz Machado Pires: esse fazer literatura é “fenômeno estético e cultural que, na sua essência, não precisa ser adjetivado de geografia, nem de política, nem sequer de nacionalidade, pelos vistos nem sequer de língua – ainda que neste caso seja a nossa [grifo do autor] língua”. E pergunta: “Não é literatura, tout court, que se faz nos Açores por causa de se estar (ser) nos Açores? Não é isso o mais importante?” Quase que em resposta à indagação de Machado Pires, José Martins Garcia, em “Atualidade da Literatura Açoriana” (1997), 36 Setúbal: Ed do Autor, Galeria Culdex, 1972, p. 24. 37 João de Melo e a Literatura Açoriana. Lisboa, Dom Quixote, 1993. 38 In: O Cárcere e o Infinito.

diz que a Literatura Açoriana fugiu ao regionalismo para abordar os mais intricados temas da condição humana. E cito: 72 [...] não é uma literatura caracterizada por uma temática porque, muito simplesmente, nenhuma literatura o é. Pode • caracterizar-se, assim, pelo modo como os escritores açorianos (dentro e fora dos Açores; nascidos nos Açores ou algures) Há flores e frutos no colo das ilhas tratam o material que esteia as suas obras. Determinar-se esse modo, essa forma específica de elaboração de tais obras, constitui provavelmente o único método susceptível de fornecer uma base à concepção duma literatura açoriana.39 Assim, em se pensando na Literatura Açoriana e nela detendo- se um olhar atento, sobressaem, pelo menos, cinco tipos de autor: 1) o que é nascido nos Açores e lá vive (Daniel de Sá, Urbano Bettencourt, Emmanuel Botelho, Dias de Melo, J. Almeida Pavão, Ângela Almeida e Álamo de Oliveira); 2) o nascido nos Açores, tendo vivido fora dele e retornado às ilhas até a morte (José Martins Garcia e Antero de Quental); 3) o que nasceu numa das ilhas e jamais voltou para novamente ter residência fixa (Natália Correia, Pedro Silveira, Eduíno de Jesus e Onésimo Teotónio Almeida), ou o que ainda não voltou (João de Mello, Eduíno de Jesus); O 4o tipo – o autor que não nasceu nos Açores, mas que, tocado pelas suas águas, lá se batizou em essência. Entre esses, cito Raul Brandão e Maria Orrico e da última, as palavras: “Percebo que ninguém chega aos Açores mais do que uma vez. O primeiro passo nas ilhas é definitivo e irrevogável, marca-nos para o resto da vida o corpo em viagem” (Terra de Lídia). O 5o tipo é aquele nascido fora do Arquipélago dos Açores, mas que traz no sangue o sangue do açoriano nato: são os descendentes dos imigrantes, como é o caso de Machado de Assis e Cecília Meirelles, no Brasil, e Katerine de Vaz, na América do Norte. 39 In: Para uma Literatura Açoriana, ob.cit., p114.

O olhar com que se olha as ilhas de dentro das ilhas é diferente 73 do olhar que as olha de fora. A casca da maçã sempre foi sedução • mesmo que se saiba que o essencial resida na polpa. Mas a “a posse só acontece quando existe a generosidade da penetração”. Só realmente Vilca Marlene Merizio deixa-se seduzir pelas ilhas quem se sente seduzido. Para dar-se a elas “urge notar o prosaico e o mítico, o inefável e o violento, o poético e o supérfluo, o pitoresco e o folclórico, o fantástico e o comezinho”,40 como diz Álamo de Oliveira. Por isso, torna-se compreensível o fato de duas obras escritas por estrangeiros terem tido elevada repercussão: Terra de Lídia, da moçambicana, residente em Lisboa, Maria Orrico, que viveu nas três ilhas do Grupo Central: Pico, Faial e São Jorge; e Saudade, da americana Katherine Vaz, filha de pai português, natural da Terceira, Açores, e mãe irlandesa. Terra de Lídia, em 1992, foi duplamente premiada: num Concurso promovido pela Câmara Municipal de São Roque do Pico e com o Prémio Literário Eça de Queirós. Sobre Saudade, uma “narrativa de morte e vida, de gênese e de apocalipse”, escreve Adelaide Baptista: Saudade é a primeira obra de ficção com ampla projeção a ser publicada na diáspora, em terras americanas, sob o ponto de vista étnico, tendo por palcos privilegiados de ação os Açores (onde o onírico e o real se confundem) e a América da época de Ronald Reagan, onde reinam o desespero e a desorientação a par com o esvaziamento de valores e o arrefecimento das relações humanas.41 Ficar? Partir? Morrer vivendo lá fora ou viver morrendo nas ilhas? Creio que essa é a decisão mais difícil que alguém possa tomar. Um grande contingente de pessoas nascidas no Arquipélago dos Açores optou por partir, desse, uma pequena parte voltou; outra, 40 ABREU, Maurício e OLIVEIRA, Álamo. Açores. Setúbal: Maurício Abreu e Victor Figueiredo, 1987, p. 9. 41 “Os Açores: espaço de castigo e redenção”. In: Arquipélago. Rev. da Universidade dos Açores. V. XIV. Ponta Delgada, 1994-1996, p. 256.

a maior parte, continua emigrado. Todos, contudo, poetas ou não, lembram e choram a ilha querida – muitas vezes amaldiçoada quando nela, mas mil vezes abençoada quando dela afastado. Eduardo Bettencourt Pinto, no Posfácio de Nove Rumores do Mar, diz: “Nos 74 Açores, cresceu em mim um grande, inalterável labirinto de melodias • e experiências inolvidáveis”. E acrescenta: “Mas só ao chegar à ilha,/ Há flores e frutos no colo das ilhas Estonteado e perdido,/ Compreend[i]eu que a saudade/ Nunca leva um homem ao princípio do tempo” (Homem consigo próprio). Vamberto de Freitas confirma: “toda a minha educação literária [desenvolveu-se] numa universidade americana e foi nos Estados Unidos que o conceito de exílio e literatura me foi penetrando a consciência”. “Olhar não é só o gesto de pousar os olhos sobre” diz ainda o poeta Álamo de Oliveira. “É sustentar a memória com o encanto e o desencanto – tudo o que fere e se ferra com tatuagem.42 Ler a literatura dos Açores é provocar os olhos da alma com todo o imaginário que do enredo escorre. Cada obra é, por si mesma, um caleidoscópio provocador de imagens inumeráveis, onde a ficção ou a poesia nem sempre atenuam a dureza do quotidiano ilhéu. Transpassadas para o universo ficcional ou poético, na história real vivida por sua gente é que está o maior deslumbramento. E neste momento não posso deixar de, pelo menos, nomear as belíssimas peças de Almeida Pavão (Xailes Negros, O fundo do lago e O Além da Ilha), Dias de Melo (muito especialmente Pedras Negras) e Judite Jorge, com Permanências. Assim, para ler a Literatura Açoriana, é preciso um olhar abrangente e, simultaneamente, minucioso: um olhar que capte a paisagem, mas que fixe as singularidades que cada ilha possui; um olhar que se prenda no seu povo e lhe aprecie a alma. Porque[...] a relação do açoriano com a ilha toca um certo halo de silêncio, respeito e perfeição. Por isso, “ainda é possível saborear os sons 42 RAACH, K-H.; DUARTE, M. Ac(z)ores. Portugal: Edições Blu, 1995.

harmoniosos do silêncio.43 E é neste respirar aparentemente bucólico, 75 mas insuportavelmente irrequieto do homem açoriano, transposto • para a arte, que reside a beleza da sua literatura. Vilca Marlene Merizio [...] que nos importa a nós o olhar de sempre alheio se é de dentro que outro olhar espreita?44 E desse dentro é que brotam as saudades, às vezes, um pouco amenizadas com a troca de correspondências, onde se manda para além do afeto, toda a amargura que consome quem se viu obrigado a emigrar. Diz João de Melo que “só pelos cincos sentidos nos devemos aproximar das ilhas: E assim escutaremos o tempo que nela passa todas as horas do dia, como passam o azul dos pombos e os bandos de pássaros atravessando o vento das manhãs; pelo olfato, conheceremos seus discretos odores: a fragrância das tangerinas em flor, o aroma da erva húmida e aquele enxofre vulcânico que fez delas ilhas de Deus e do Diabo e com todos os outros que nos restam, estaremos nós também transformados em ilha e as lembranças farão com que nos dissolvemos em saudade. É esse Açores que, cada vez mais vai sendo (re)descoberto por viajantes e poetas. É imprescindível que novos nomes surjam e nova literatura seja lida nos Açores e fora deles, sobre eles. João de Melo, é frontal quando denuncia: “é preciso que as pessoas saibam: a literatura dos Açores não nasceu nem morreu com Vitorino Nemésio”. Ela continua viva e atuante. Exemplo disso, são os escritos de Joaquim Alice, ainda inéditos... 43 Idem, p. 15-16. 44 Judite Jorge

MARAVILHOSA VIAGEM Permite-te entrar por ti adentro, Permite-te encontrar-te 76 na imensidão do teu interior • Permite-te Ser (a cada instante) Procura o teu Centro, ... Há flores e frutos no colo das ilhas ... o ponto onde existe o mais recôndito de ti ... mas mantém a visão da totalidade que te circunda, que existe ao teu redor (da qual fazes parte, e ao mesmo tempo – tu própria – ajudas a criar) Aventura-te em-Ti Descobre-te naquilo que o teu Ser sempre soube que era Parte na tua Direção Voa por ti adentro (repito) Paira sobre o teu pensamento e observa Integra isso tudo e muito mais ... no vasto SER no infinito SER ... que a cada instante vais-sendo e, se (por ti) perguntas, responde-te ... apenas ... o SILÊNCIO BOA(s) VIAGEM(s)! Essa opção pelo centramento do diálogo poético num tu, que não deixa de ser a extensão de um “eu” lírico, aponta o desmantelamento do estatuto de um eu sofredor, avesso ao de fora, fechado num isolamento a que o “eu” – solitário e em solidão – açoriano até há pouco se manteve. Joaquim Alice cuida mais do outro, fala mais do outro e das mudanças que no outro se devem operar do que nele próprio. Seria mais uma estratégia de isolamento? A alegria que hoje o estrangeiro sente nos açorianos, essa agitação interna que os leva, entre eles, a conversarem alto, a dizerem

da sua vida (e às vezes da dos outros), o tom irônico e satírico, as 77 observações aguçadas, a franqueza..., mas também a solicitude, a • amizade franca e hospitaleira, apontariam uns Açores mais abertos ao progresso e a mãos dadas com a evolução que determina a sua Vilca Marlene Merizio identidade como portugueses de uma nova geração diferenciada de seus irmãos continentais? (aqui sem qualquer desmerecimento aos portugueses do Continente) Acho que sim. No entanto, é o mesmo Joaquim Alice que me responde: ACEITAÇÃO quando me busco... quando tento centrar-me... a maior dificuldade tem sido ... descobrir/atingir o essencial: ACEITAR-ME ! ... tal como estou de momento, se num só ponto resido, ou se “estou-toda-espalhada” (levanto a cabeça, dou “a” gargalhada) Se mais por fora, se mais por dentro ... a qualquer hora eu sou o centro ! ! ! e neste “mar” ... o sucesso não resulta ... do analisar a meta não é o centrar(-se) reside, sim, em atingir a consciência do que se É (no momento) e isso ... ACEITAR

De nada adianta o pesquisador preocupar-se apenas com as variantes dos falares de cada ilha. Isso não garante a literariedade da literatura. Para se ter uma literatura que fuja do regional é preciso mais. É preciso universalidade. Os aspectos geofísicos e históricos 78 contam, mas acrescem-se a eles a psicologia individual e coletiva • do povo, a filosofia de vida, a moralidade e os costumes da época, a Há flores e frutos no colo das ilhas identidade integral do território aberta à comunidade global. Então, sua estrutura poderá ser lida e apreciada por todo o mundo porque contém, para além da sua especificidade, os mesmos códigos da universalidade humana. E assim acontece com a Literatura Açoriana, que, repito, existe, sim, e é admirada por quantos conhecem a Língua Portuguesa. E se não é mais, é porque faltam bons tradutores e editores internacionais que descubram esse grande filão literário. E foi refletindo assim que consegui compreender o que José Martins Garcia pretendia que eu alcançasse a fim de melhor estudar a Literatura Açoriana. Senti, então, ser necessário ao homem interessado no desenho da consciência das ilhas, um tornar-se resistente e leve como a lava, e ao mesmo tempo, sensível e doce como a aragem que passeia, no verão, entre faias, urzes e o louro- da-terra. Se as ondas do mar beijam as rochas e se perpetuam em espuma é nas rosas de miolo da figueira que o mel das ilhas do Pico e Faial se eternizam em arte. Apreciar a Literatura Açoriana, que não deixa de ser portuguesa, por sua universalidade, é saber ir e voltar. É apreciar o verde e o azul, mas também o negro. É rir e chorar. É ter na polarização natural da vida o contraponto do sonho. É resistir... mantendo, não na vida, mas apenas na memória, a sempre pulsante dor do isolamento e a nódoa da partida. E, então, pela literatura, voltar a esse tempo mágico onde tudo é permitido, porque expressão de alma sofrida, vivida. E assim, Natália Correia, conservou na garganta o ardor da despedida, sempre pimenta a queimar-lhe a vida...

Ai madrugada pálida e sombria 79 Em que deixei a terra de meus pais • E aquele adeus que a voz do mar trazia dum lenço branco a acenar do cais... Vilca Marlene Merizio O meu veleiro – era de espuma fria – – levava-o o fervor dos vendavais. À passagem gritavam-me: aonde vais? Mas só o meu veleiro respondia. Cruzei o mar em direções diferentes Por quantas terras fui, por quantas gentes, Nesta longa viagem que não finda. Só uma estrada resta – mais nenhuma Na ilha que o passado envolve em bruma, Um lenço branco que acena ainda...45 Viagens, despedida, veleiros, vendavais, madrugada pálida e sombria, estradas... bruma. “Sempre o mesmo horizonte/ – mar, névoa, a ilha em frente” (Almeida Firmino): termos e temas recor- rentes na Literatura Açoriana. Todos nós, ou quase todos, já vimos isso, já sentimos a dor da despedida e ninguém melhor do que Natália Correia para, poetizando sobre o seu próprio existir, deixar à posterioridade o retrato da sua angústia: o lenço branco da despedida – sempre o adeus “acena ainda”. Essa é a herança açoriana, quer na vida real quer na literatura. Onde tem um açoriano jorra saudade. E o tempo que, nos Açores, é sentido em outra escala que a não a nossa, se concretiza de forma a forçar o ilhéu a se expressar através da poesia. Lembremos Teófilo Braga (1843-1924):46 45 In: O sol nas noites e o luar nos dias. 1993. 46 In: Os Poetas dos Açores, de Ruy Galvão, p. 52.

O Tempo! O Tempo! Em meio deste Oceano Revolto, escuro, lamentoso, triste, Sem margem que se arraste, E nos envolve insano, 80 O momento presente é a jangada • Aonde a existência vai arrebatada. Há flores e frutos no colo das ilhas É o meio-ambiente acolhedor (o fator geográfico é um elemento dominante na natureza psicossomática do homem ilhéu), a paisagem enternecedora – sempre a mudar (há quem diga que num dia vive-se as quatro estações) e, ao mesmo tempo, ameaçadora (abalos sísmicos e mudanças bruscas de tempo), o mar (ora leite na sua mansidão; ora onda gigante) e o vento, que imprimem à obra literária uma feição particularmente subjetiva (a tristeza, a solidão), derivada de uma fina sensibilidade e de um temperamento naturalmente melancólico do ilhéu do Atlântico Norte. Realmente, para mim, o Tempo nos Açores é mágico, diria mesmo, é um Tempo sem tempo onde tudo se transforma em felicidade. Já para Roberto Mesquita, pelo contrário esse mesmo Tempo o amargurava e oprimia. Nas palavras do poeta florentino: [...] \"a alma afogada na maré da desesp’rança/anônima, que inunda a noite bruma e mansa/e me oprime como os sinos afinados...” (Roberto Mesquita).47 A luz dos Açores que ao estrangeiro cativa é a mesma que, por sua permanência cíclica e secular, depaupera o poeta de sensibilidade à flor da pele, cujo exemplo maior é José Martins Garcia: Isto da geografia, e do clima que necessariamente lhe está associado, é um problema dos diabos. A luz dos Açores, mesmo em dias de sol, é uma coisa aquosa, um derrame que pesa nas pálpebras. Melhor do que eu o escreveu Raul Brandão, encantado, sim, mas farto dessa atmosfera de limbo. Essa atmosfera pesa na escrita. O clima não explica nada, claro! Mas quem nos garante que não tem a sua quota-parte 47 Roberto Mesquita. “Getsémani”, In: Poetas dos Açores. Ob.cit. p. 291.

de responsabilidade na atmosfera social dos Açores? E, por 81 conseguinte, na escrita cercada por essa sociedade?48 • Ao referir-se à sociedade, José Martins Garcia queria dizer Vilca Marlene Merizio que, em meio tão próximo como são o das ilhas, em que todos se conhecem, é muito fácil as pessoas, lendo o escritor conterrâneo e contemporâneo, encontrar um fundo de verdade nas páginas escritas por ele, quer seja sob a forma de poema, quer seja a de ficção narrativa. Sobre tal assunto, questiona Onésimo Almeida: “Mas ou a literatura é só fingimento ou há uma ligação profunda (obviamente nem sempre coincidente) entre as vozes dos narradores da ficção de José Martins Garcia, do poeta, e de José Martins Garcia himself ?A quem conheceu de perto Martins Garcia será difícil, senão impossível, vergar-se ao peso das teorias literárias contra-evidentes”, já que era costume de José Martins Garcia dar vazão à sua veia literária a partir de fatos concretos. Explica Onésimo Almeida: na ficção narrativa, todos os lugares por onde José Martins Garcia passou entraram de algum modo nos seus livros. E o poeta justifica-se: “a ficção, sendo distinta da realidade, tem profunda relação com a realidade”, por isso, o sentido de “abandono, ou o sentimento de exílio interior na terra açoriana e depois a labiríntica caminhada à procura de outra vida e outro lugar”,49 fizeram o poeta de Temporal, confessar: Eu próprio criei o meu exílio”. E esse exílio procurado é muitas vezes transcrito na dor da ausência, no signo da saudade. E de saudades nutrem-se e sobrevivem açorianos e os por eles cativados dentro e fora do país. 48 (quase) teóricos e malditos. Lisboa. p. 68. 49 O Imaginário, p. 115



5 J. J. Chrys Christello e os Colóquios da Lusofonia: inesgotável contributo para a divulgação da literatura açoriana e a vivificação da língua portuguesa una e dinâmica Por uma língua portuguesa una e dinâmica.

SINOPSE: 2018, ano de abundância? No meu país, é crença de que, quando de um lado sobra, é porque, do outro, falta na mesma proporção. Tento alinhar o meu pensamento para exprimir em palavras a minha grande admiração por uma personalidade 84 do mundo lusófono e me deparo com tantos caminhos que • me sinto embaralhada sobre que direção tomar no início desta jornada. Sobejam-me informações, notícias, comentários, mensagens, registros fotográficos e fonográficos, obras literárias Há flores e frutos no colo das ilhas de cunho pessoal e outras por ele organizadas, poesia, crônicas, escritos diversos, lembranças, partilhamento de leituras várias, participações em redes sociais... tanta produção que me perco diante do monumental acervo produzido pelo amigo que quero homenagear: o poeta, escritor, jornalista, tradutor, pesquisador (e tantas outras coisas mais), Chrys Chrystello. Mas estou honrada, embora saiba da responsabilidade de “chover no molhado” (acredito que todos os que aqui estão comungam a minha ideia) diante deste profissional da área de Letras a quem devo reverência pelo muito que faz, principalmente ao presidir (e dar vida a-) os Colóquios da Lusofonia, dignificando a Língua Portuguesa, divulgando os Açores em todos os continentes e deixando, até onde chegam suas palavras, riquíssimo legado linguístico, cultural e histórico, de cuja herança se valerão para sempre os filhos da diáspora. E mais uma questão me instiga neste momento: como adequar a minha fala a um dos temas propostos pelos Colóquios, se o que tenho para dizer sobre o autor em foco abrange todos os temas do programa? Ao tema 1 – Homenagens aos Autores Locais – porque, mesmo não tendo nascido no Arquipélago dos Açores, aí reside e dele fez a sua pátria e a revela aos sete cantos do mundo; ao Tema 2 e aos seus subtemas, porque é em defesa da Língua Portuguesa, do seu ensino e da sua prática, que ele se posiciona; ao Tema 3, em razão de serem os subítens matéria com que se ocupa em sua produção literária e nos âmbitos da arte e da comunicação. E, finalmente, no Tema 4, da Tradutologia, porque estaria bem colocado como profissional que é. Portanto, eis-me aqui, em dúvida quanto ao caminho, mas plenamente centrada no que acho justo e meritório: prestar agradecimentos ao Dr. Chrys Chrystello, há muitos anos nosso anfitrião, dia e noite a postos para a todos os participantes dos Colóquios da Lusofonia bem atender.

J. J. Chrys Christello e os Colóquios da Lusofonia50 85 Nasci em Santa Catarina, no Brasil, mas todos os meus • antepassados pela linha direta da minha mãe são portugueses, uns Vilca Marlene Merizio vindos dos Açores, os que emigraram no século XVIII, e outros, de Portugal continental, que vieram ao Brasil a serviço da Coroa Portuguesa. Pela linha paterna, descendo de italianos e alemães. Isso para dizer que, descendendo de imigrantes, naturalmente me associo, neste ano de 2018, às comemorações dos 270 anos da imigração açoriana e madeirense em Santa Catarina, Estado cuja cultura muito deve aos primeiros povoadores europeus. A título de informação, registro que na ilha de Santa Catarina, constituindo o município de Florianópolis, somos uma população de quase quinhentos mil habitantes, num Estado, o de Santa Catarina, com mais de 7 milhões de almas, fazendo parte da população total do Brasil, que é de 207.660.929 pessoas (IBGE, Diário Oficial da União, 2018). Dessa população, a maioria descende diretamente de portugueses ilhéus, o que nos leva a querer insistentemente manter relações com os Açores [e, estranhamente, muito pouco com o arquipélago da Madeira]. O projeto Missão Açores 2018, junto ao Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Santa Catarina (IHGSC), que ora represento, aliou-se às iniciativas de comemoração dos 270 anos da Imigração Açoriana e Madeirense em Santa Catarina, encaminhando o Projeto Ao Encontro das Raízes – proposta de viagem de estudos e trabalho aos Açores – à Direção Regional das Comunidades, que lhe concedeu uma passagem aérea, principalmente para participação neste Colóquio, e a doação de 200 títulos de obras da literatura açoriana, acervo que fará parte da Biblioteca Açoriana Prof. Doutor A. M. B. Machado Pires, instalada no IHGSC, cuja inauguração ainda ocorrerá neste ano [a maioria dos outros volumes que compõe o acervo já existente no são igualmente fruto de doações do Governo dos Açores, desde a 50 Conferência apresentada no Colóquio da Lusofonia, realizado no Centro de Cultura da Madalena, ilha do Pico, Ac1ores, Portugal, em 15 de outubro de 2018.

década de noventa do século passado]. Por essa razão, achou-se justo o descerramento, nas dependências do instituto, em Florianópolis, de uma placa de agradecimento ao Governo da Região Autônoma dos Açores pelo apoio recebido, o que vai garantir a continuidade 86 do projeto Dinamização Intercultural, programa cultural e literário • do qual fazem parte Adriana e José Geraldo Rodrigues de Menezes, Há flores e frutos no colo das ilhas também membros da AICL, aqui presentes [e que para cá vieram por esforço próprio]. Assim, graças ao sempre renovado estímulo dos Colóquios da Lusofonia, o programa cultural e inter-institucional Missão Açores, que contempla atividades de informação, formação, integração e pesquisa sobre a literatura e a cultura açorianas, depois de um afastamento de dois anos, volta com força total, reagrupando sua equipe de trabalho, dando oportunidade a novos protagonistas de se integrarem à divulgação da literatura, da arte, da cultura e da educação de Santa Catarina e dos Açores. Infelizmente, por falta de apoio em ano eleitoral, suprimiu-se parte do projeto Encontro das Raízes que incluía a ida de seis profissionais açorianos para o Simpósio Memória e Diáspora, previsto para a realização em Florianópolis, em agosto passado. Lamento profundamente que outras atividades do mesmo projeto, nomeadamente as de intercâmbio de professores e escritores, previstas para o Simpósio Diáspora e Memória, não tenham tido o mesmo êxito. E qual relação existe entre esses eventos com Chrys Chrystello e os Colóquios da Lusofonia? A resposta se resume numa só palavra: legado, aquilo que dos Colóquios ficou na memória dos catarinenses, desde a nossa primeira participação nos encontros da lusofonia e açorianidade. Legado, como História ainda em construção, porque é, em razão da vontade de participar dos Colóquios da Lusofonia, que catarinenses se predispõem a ler e a estudar obras literárias de autores açorianos ou de outras nacionalidades que escrevem ou escreveram sobre os Açores. E, assim, o grupo que, na última década, em Santa Catarina,

conheceu e estuda a literatura e a cultura açorianas tem aumentado 87 consideravelmente, desde que participamos em 2007 do primeiro • encontro realizado por Chrys Chrystello na Ribeira Grande, Ilha de São Miguel. Vilca Marlene Merizio Por intermédio da Professora Doutora Graça Castanho, em 2007, conheci Chrys Chrystello, quando recebi dele o primeiro convite para participar do 2o Encontro de Lusofonia e Açorianidade, na ilha de São Miguel. Criado o projeto Missão Açores 2007, cujas atividades paralelas se estenderam de São Miguel às ilhas do Pico, Faial e Graciosa, vim para os Açores, coordenando o trabalho de 23 profissionais: professores e estudantes universitários, escritores e artistas do Grupo Gira Teatro, representando a Academia São José de Letras, com apoio financeiro do FUNCULTURAL/SEITEC-SC – Sistema Estadual de Incentivo ao Turismo, Esporte e Cultura e o apoio logístico das câmaras municipais açorianas as quais visitamos oficialmente. Estabeleceu-se, a partir daí, a amizade que ainda perdura e se solidifica cada vez mais. A partir da experiência altamente positiva da Representação Catarinense nesse 2o Encontro de Lusofonia e Açorianidade e das atividades paralelas executadas a partir daquele primeiro momento nas outras ilhas, o projeto Missão Açores 2007 empenhou-se para a criação e a assinatura do Protocolo de Cooperação Mútua entre o Estado de Santa Catarina e a Região do Arquipélago dos Açores, documento assinado em Florianópolis, em dezembro de 2007, com a presença de representantes do Governo dos Açores e que deram abrigo e oportunidade de execução a novas atividades na área de intercâmbio cultural. No ano seguinte, em 2008, como consequência das atividades iniciadas no ano anterior, sempre tendo como marco inicial os Encontros da Lusofonia e Açorianidade, o projeto Missão Açores, novamente a convite de Chrys Chrystello, participou do 3o Encontro da Lusofonia e Açorianidade, ao lado de 88 representantes de várias partes do mundo onde a Língua Portuguesa é falada, levando aos Açores um grupo de

oito professores e escritores representantes da Academia de Biguaçu, SC. Dos Açores, por intermédio do prof. Doutor Luciano Pereira, do Conselho Executivo dos Colóquios da Lusofonia, a Delegação Catarinense estendeu-se em visita à Escola Superior do Instituto 88 Politécnico de Setúbal, ocasião em que foi planejado um projeto de • volta dos catarinenses a Setúbal e um programa de intercâmbio na área Há flores e frutos no colo das ilhas da arte e educação entre Setúbal e SC. Alguns trabalhos artísticos e culturais originados na época continuam em vigência entre setores que se desligaram do projeto Missão Açores, mas que ainda são operantes entre grupos de teatro de SC e Setúbal. Foi oportunizada pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, por iniciativa também do Prof. Doutor Luciano Pereira – a quem igualmente externamos nossa gratidão e homenagem – a Instituição dos Dias do Estado de Santa Catarina em Setúbal (4 e 5 de maio de 2008), quando integrantes do Missão Açores 2008 apresentaram a sessão líterocultural “Santa Catarina: suas terras, sua gente: suas ilhas”, organizando uma Mostra de Pintura a Óleo, de minha autoria, um stand com exposição sobre história, geografia e cultura catarinense, com exposição de livros de autores de Santa Catarina e peças de artesanato. Essas mesmas atividades foram reapresentadas na ilha Graciosa sob o total apoio do Dr. Jorge Cunha e do Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz da Graciosa, senhor José Aguiar, a quem também prestamos nossos votos de reconhecimento. Ainda, no ano de 2008, a representação catarinense formada especialmente para participar dos eventos da Lusofonia, doou material bibliográfico de autoria catarinense às entidades públicas do arquipélago, realizou saraus literários em escolas e entidades culturais das ilhas, visitou autoridades, bibliotecas, museus e pontos turísticos, ao abrigo do Protocolo de Cooperação Mútua entre as duas regiões, sempre com o apoio financeiro para as passagens aéreas cedido pelo SEITEC-SC e o apoio logístico de transporte, hospedagem e alimentação concedido pelas câmaras municipais da

Ribeira Grande, Lagoa, Graciosa, Vila Franca do Campo e de outras 89 autarquias portuguesas. Ainda no mesmo ano, o projeto Missão • Açores participou do Congresso Internacional “A voz dos avós: migração e património cultural”, na Universidade dos Açores, em Vilca Marlene Merizio Ponta Delgada, com duas comunicações, publicadas posteriormente pela Universidade de Toronto, Canadá. Ainda em dezembro de 2008, o tecladista e compositor açoriano Horácio de Medeiros, cuja apresentação triunfal do seu Hino ao Cosmos deu-se no 2o Encontro de Lusofonia, participou da programação do projeto “Magia da Música e Fascinação de Um Hino ao Cosmos” do Missão Açores, e, a convite do Sr. Governador do Estado de Santa Catarina, apresentou no Brasil cinco concertos musicais: na reabertura da Catedral Metropolitana de Florianópolis, com a presença do Governador Luiz Henrique da Silveira e autoridades em Missa oficiada pelo Arcebispo Primaz do Brasil, Dom Murilo Ramos Krieger; na Igreja de Biguaçu-SC; na Escola de Música de Biguaçu, no centenário Clube Caça e Tiro Araújo Brusque, em Brusque, SC. e no recém-inaugurado Teatro Pedro Ivo Campos, em Florianópolis, onde, em completa integração, o artista micaelense Horácio Medeiros abrilhantou o espetáculo “Ilhas: um musical onde navegar é preciso”, ao lado do Grupo Fielsons, de Florianópolis. Em 2010, os Colóquios foram a Santa Catarina, mas, na ocasião, eu estava fora do país. Nos anos que o Missão Açores deixou de comparecer aos colóquios, quase sempre pela falta de apoio financeiro, a movimentação em Santa Catarina era de igual intensidade já que mantínhamos os integrantes do projeto catarinense em constante contato com a cultura e a literatura açorianas, muitas vezes buscando inspiração nos próprios temas dos Colóquios, que sempre mantiveram aceso o estímulo ao estudo das obras pertencentes à literatura açoriana. Eu própria publiquei alguns livros, artigos e ensaios, e muito há ainda para se publicar. Nos anos seguintes, vieram outras representações catarinenses nos Colóquios da Lusofonia. Mais uma vez em 2012 e 2016, e, agora,

em 2018, voltamos nós. Em 2012, na ilha de São Miguel, vim por conta própria. Em 2016, a convite da escritora açoriana Lúcia Simas, da Vila Franca do Campo (São Miguel), apresentei a obra O homem de Corfu, no Centro de Cultura de Ponta Delgada, pela ocasião do 90 lançamento do livro da poetisa filósofa de Vila Franca do Campo. • Participei mais uma vez dos Colóquios da Lusofonia, também no Há flores e frutos no colo das ilhas mesmo o ano de 2016, agora na Lomba da Maia, com comunicação sobre a obra de Concha Rousia. Ainda no mesmo ano, a convite do escritor açoriano Joaquim Alice, passei a organizar para publicação sua obra poética, de ... do mais profundo de (todos) nós. Poemas em oito volumes, para serem lidos com o coração (em editoração), cujos Prefácio, Introdução e Notas também escrevi. O que quero deixar registrado é que dos primeiros contatos com Chrys Chrystello surgiu plena adesão aos objetivos dos Colóquios da Lusofonia, embora, ainda no começo, os encontros não tivessem tal nomenclatura. Atualmente, o projeto Missão Açores cumpre suas metas, visando promover a integração científica e cultural entre os falantes da Língua Portuguesa que tenham em comum, principalmente, a tradição açoriana como origem. Através da participação ativa nos encontros anuais, quer seja por meio de trabalhos acadêmicos, palestras, divulgação da arte e cultura catarinense, exposição de pintura, apresentação de peças de teatro, espetáculos musicais, desdobra-se em programas, projetos e parcerias para, cada vez mais, trabalhar em benefício da unificação da Língua Portuguesa e da manutenção dos traços culturais que deram origem à tradição catarinense, fazendo-se respeitar em Santa Catarina e em Portugal como promotor de ações que fortalecem os nossos ancestrais lações de amizade e parentesco. Embora seja reconhecido como germinador de ideias capazes de ampliar o alcance das atividades culturais pertinentes à nossa origem lusa, o Missão Açores necessita de apoios logísticos para a sua execução e de parceiros que não o deixem cair na repetição inócua da reprodução automática de efeitos paliativos. O que o projeto Missão Açores reinvindica é a confiança

dos seus parceiros e a possibilidade de expansão de conhecimentos 91 entre estudiosos das duas regiões. E isso, a participação nos Colóquios • nos garante, com os convites anuais, como ponto fundamental para a criação de novos estudos e pesquisas. Vilca Marlene Merizio Além do reconhecimento em relação aos convites que temos recebido, é impossível falar em Literatura Açoriana sem falar nos Colóquios da Lusofonia e, mais impossível ainda, abordar os Colóquios sem nos referir ao Chrys Chrystello, já que ambos, Colóquios e Chrys, se confundem numa mesma personalidade, embora permaneça incólume a individualidade marcante do presidente da Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia – AICL, face às múltiplas modalidades que domina em relação à comunicação social e aos âmbitos das letras e da educação formal, estratégias das quais se vale para alcançar o público das diferentes coletividades ligadas aos Colóquios, inclusive, e principalmente, a de Santa Catarina. Feita a justificativa do quão importante se reveste para Santa Catarina, em relação aos laços que a prendem aos Açores, a participação nos Colóquios da Lusofonia, passo à segunda a parte desta comunicação. Quase às vésperas da Viagem de Estudos e Trabalho do projeto Ao Encontro das Raízes, do programa Missão Açores 2018, levada pela responsabilidade de, em nome do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, honrar o monumento de que a obra de J. Chrys Chrystello se reveste no âmbito da lusofonia, era madrugada e ainda não conseguira dormir, sensibilizada pela releitura do poema Da Redondeza do Sentir, de José Martins Garcia – que Urbano Bettencourt fizera a gentileza de publicar na sua página do Facebook e que Chrys Chrystello divulgou no seu atualíssimo Blog.lusofonias. net, na sessão Recordar José Martins Garcia. A leitura provocara em mim um misto de dor pela ausência sentida do grande poeta picoense, falecido prematuramente em 2002, mas ao mesmo tempo, gerara uma saudade infinda dos amigos que, nos Açores, sempre me acolheram de forma amistosa e fraterna, Só, então, senti a alegria da certeza de que

em breve estaria aqui novamente reunida com os amigos de sempre. E esse turbilhão de sentimentos realmente me tirava o sono. Quando passei por uma madorna (cochilo), logo, imagens de religiosos ardiam em chamas, enquanto pessoas discutiam se seria fogo posto ou não. 92 De tanto estar com o pensamento nos Açores – e isso já é habitual – • e talvez até pela atenção a que dedico às notícias sobre os incêndios Há flores e frutos no colo das ilhas nas florestas europeias – talvez de tanto ler o Chrys, suas notas, crítica e informações sobre o assunto – as pessoas que povoavam o meu sonho eram escritores, todos a falar ao mesmo tempo, gesticulando e movimentando-se rapidamente de um lugar ao outro. Concluindo: eram três horas da manhã e a febre, aquela que nos acometem o inverno rigoroso e a gripe indesejada, me provocara sério pesadelo. Levantei-me. E a impressão que me acudiu naquele despertar inesperado, é que eu não estava só; uma miríade de poetas e escritores açorianos e brasileiros, dentro de mim, me impeliam à escrita [eu tinha que começar a redigir o texto para esta comunicação], fazendo- me trocar o aconchego da cama quente pela sala até então vazia e fria do meu escritório. E, mesmo diante do computador, sentia forte a lembrança de José de Almeida Pavão, saído do sonho, dando voz a uma personagem, se não me engano, do romance Marianinha: “E uma saudade súbita fazia-lhe rolar uma lágrima que vinha perder- se, evaporando com o calor da face”. Era a saudade que, mais uma vez, batia forte. Saudade renovadamente aumentada a cada notícia assimilada em relação aos Açores lida no blog do Chrys – e eram muitos, todos dias, mais de uma dezena –, a cada página escrita vencida da exposição a ser feita, a cada fato rememorado a partir da pesquisa intencionalmente dirigida à redação deste texto que ora vos dirijo. E, mais uma vez, a presença imaterial do escritor micaelense segredava: “Se ouvires cantar os pássaros... arruma os teus versos ou a tua prosa e põe-te a escutar, simplesmente a escutar, com o teu sentimento de ouvir”. Eu não ouvia pássaros, mas sabia que havia de escutar a voz do Chrys, para ouvir-me a mim mesma, antes de continuar a escrever. Então, sim, acalmei.

O eco do canto que ressoa desde os Açores aos meus ouvidos, 93 muito especialmente nestes momentos pré-colóquio, em canção que • me afina os sentidos e enriquece a alma, é a reverberação da produção poética e histórico-jornalística [se assim a posso considerar], Vilca Marlene Merizio do nosso anfitrião neste 30o Colóquio da Lusofonia, José Chrys Chrystello, cuja presença constante nos meios lítero culturais cabe a mim louvar como protesto de reconhecida gratidão por permitir que Santa Catarina também se manifeste nesta profícua assembleia de homens e mulheres interessados e interessadas na dinamização da Língua Portuguesa e na divulgação das obras literárias que são reflexos da história, cultura e ideologia dos seus usuários, mesmo que, fisicamente, distantes da sua mátria. Daniel de Sá, o professor-escritor da Lomba da Maia, num dos seus primeiros escritos da década de oitenta, escreveu ao justificar a escolha de um determinado tema para a redação de um texto literário: “Sou eu quem fala, minhas razões são minhas”. Assim valho- me dessa lembrança para justificar muito particularmente as razões por que escolhi para título desta comunicação “Chrys Chrystello e os Colóquios da Lusofonia: inesgotável contributo para a divulgação da literatura açoriana e a vivificação da língua portuguesa una e dinâmica”. [E agora vejo em que “mato sem cachorro me meti”,51 desculpem o dito popular, mas nem a febre, nem o pesadelo com os homens em chama, nem o parodoxo de, para falar de apenas uma pessoa, ter mil caminhos a minha frente para escolher o que me levará ao final desta comunicação, me levam a desanimar... Maximizando o meu sentir, posso dizer mesmo que estou diante do que representa a entrada de Petra52 a um turista que mesmo informado, fica pasmo 51 Um momento de perdição pessoal total, uma situação onde não há a quem recorrer. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/mato+sem+cachorro/. Acesso em: 18 ago. 2018. 52 Petra (Jordânia), uma das maiores maravilhas do mundo, cidade esculpida na rocha, fundada no século VI a.C. pelos árabes nabateus, que construíram um império comercial, transformando-a em importante rota comercial (seda, especiarias e outros), que ligavam a China, a Índia e a Arábia do Sul ao Egito, Síria, Grécia e Roma.

diante da grandiosidade do Parque Arqueológico daquela antiga civilização. E assim fico eu, que tentei me imiscuir no que Chrys Chrystello anda a publicar e o que já deixou impresso desde a sua juventude. Mas, vamos a cumprir a tarefa, que o tempo urge.] 94 E me pergunto, depois de meses estudando a obra de Chrys • Chrystello, quem é o poeta, escritor, jornalista, professor, tradutor e Há flores e frutos no colo das ilhas intérprete, revisor, organizador de livros, editor, presidente da direção e da comissão da Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia, este J. Chrys Chrystello, moço simpático e acolhedor que parece estar sempre à disposição dos associados da AICL para responder de imediato aos questionamentos a respeito dos Colóquios? Claro que, para apenas mencionar algumas referências vou “fazer chover no molhado”, porque ele próprio não se faz ocultar, divulgando seus biodados, notadamente seus trabalhos literários, jornalísticos e outros, no corpo dos documentos que edita, tanto nas páginas dos Colóquios quanto nas obras publicadas por meios físicos, digitais e eletrônicos. E, nós, que somos da AICL, disso temos conhecimento. E tudo está em nossas mãos, assim como todo o histórico dos Colóquios, não só os realizados nas ilhas, mas também mesmo os acontecidos em outras partes do mundo. Mesmo assim, recomendo a leitura da “Badana Direita”, ou como dissemos nós, brasileiros, da orelha direita de ChrónicAcores:uma circum-navegacão, vol. 3,53 que considero a tábua de referência mais completa sobre as atividades jornalísticas, culturais e literárias de J. Chrys Chrystello, incluindo e mencionando aí suas atividades profissionais desde 1972, quando publicou o seu primeiro livro de poesia Crónicas do Quotidiano Inútil, vol. 1. até a editoração dos Cadernos (de Estudos) Açorianos da AICL, publicação que preside desde 2010 e que contém 41 exemplares, sendo o último dedicado a Pedro da Silveira, em cuja nota introdutória, o próprio Chrys, Editor dos Cadernos, explica: Os suplementos dos Cadernos Açorianos servem para transcrever textos em homenagem a autores publicados pelos 53 h t t p s : / / w w w. l u s o f o n i a s . n e t / a r q u i v o s / 4 2 9 / O B R A S - D O - AU T O R / 1 0 4 8 / CHRONICACORES-vol.3-parte-I–2005-2010.pdf.

Colóquios da Lusofonia, pelos seus participantes ou até pelos próprios 95 autores.54 • Chrys Chrystello foi quem trouxe os Colóquios da Lusofonia Vilca Marlene Merizio para os Açores, portanto, os Colóquios não nasceram nos Açores e nem lhe são pertença exclusiva, nem Chrys Chrystello é açoriano. Então, temos de ir mais atrás, delinear o traçado que o trouxe até a Lomba da Maia, em 2005, para compreender, afinal, o quanto ele tem trabalhado pela conservação da cultura das sociedades a que se liga, da sua aptidão para a divulgação da arte literária, tanto através da sua letra como poeta e cronista quanto da tradução, edição e escrita de livros e promoção de encontros anuais entre profissionais lusófonos dispostos a discorrerem sobre os temas que, junto a uma Comissão Científica, apresenta. Também o Curso Açorianidades e Insularidades (2010) encontra-se detalhado no site dos Colóquios, assim como todo o histórico vivencial da AICL, sociedade civil atuante durante os 30 colóquios já realizados (2005 a 2018), mas que nasceu do compromisso do seu criador de levar adiante o projeto de Lusofalantes na Europa e no Mundo, idealizado pelo seu mentor, o Professor Doutor José Augusto Seabra, e do qual nasceram, em 2001, os Colóquios da Lusofonia, cujo objetivo maior centra-se na “união pela mesma língua”, quando todos os participantes desta egrégora partilham do conhecimento, sem distinções de nacionalidade, credo ou etnia, e cujos princípios baseiam-se na cidadania da língua portuguesa, todos irmanados pela Língua comum, com respeito absoluto às variações pertinentes ao pluriculturalismo das sociedades que a usam. Especificamente como jornalista e escritor, Chrys Chrystello desempenha suas funções na rádio, televisão e imprensa e, hoje também, nas redes sociais onde se mantém presente em blog, no facebook, no twiter e em outros. Suas crônicas, bastante voltadas para a memória histórica, política e social, mas também para a expressão pessoal, expõem fatos de interesse regional e global. 54 Observe-se que todas as edições estão disponíveis em www.lusofonias.net.

Seus livros, abundantemente ilustrados e com temas variados, são veiculadas na forma física e eletrônica. Na verdade. Tudo o que faz e publica é fruto de uma vida dedicada ao fazer literário, voltado para o público, sob o enfoque jornalístico, mas sempre com perfil didático, 96 num afã, que soa sincero, de registrar, informar, criticar positivamente, • transmitir, divulgar, partilhar, contribuir, elucidar, esclarecer, alertar, Há flores e frutos no colo das ilhas rememorar, reconhecer, formar opinião sobre e, até mesmo corrigir (algumas vezes), fatos e acontecimentos que vão tecendo a história deste nosso mundo, para uns, completamente globalizado, para outros, em árido e estreito compartimento avesso a conceitos e técnicas inovadoras. Falo da produção de J. Chrys Chrystello, este homem/feixe de luz comunicativa, cujo foco de atenção volta-se habitualmente para acontecimentos polêmicos, sem deixar, contudo, de registrar para a posteridade, o que a memória coletiva, baseada apenas na oralidade, pode não ser capaz de perpetuar. Profissional extremamente ético, e altamente comprometido com o exercício da cidadania, o português de ancestrais trans- montanos, cuja genealogia confirma a nobreza de berço, embora ele próprio disso não se enfatue, australiano por opção, residente nos Açores desde 2005, fez da Lomba da Maia, a catedral/castelo de onde se comunica, a toda a hora, porque sempre online, com os amigos que fez nascer e mantém ciosamente informados e ligados à teia dos fortes tentáculos da Lusofonia que tão bem sabe movimentar. Atuante nos principais meios de comunicação social, desde o espaço físico que percorreu em suas andanças por Timor, Bali/ Indonésia e Austrália (1974), Portugal (1975), Macau (1976 a 1982), de volta a Austrália (Perth, 1979, Sidney, 1983 e Melbourne, 1983) e novamente a Portugal continental (Porto, 1996 e Bragança, 2002) foi na ilha de São Miguel que, montada a sua fortificação, estabeleceu- se com a família, de onde continua a liderar o que considera “a concretização de utopias”, ou seja, a reunião de pessoas para tratar, duas vezes por ano, em solos portugueses – ilhéu ( São Miguel, Santa Maria e Graciosa) ou continental (Porto, Bragança, Seia, Fundão, Montalegre e Belmonte) –, e em territórios do Brasil, Macau e Galiza,

da divulgação e da plena conscientização da açorianidade literária. Em 97 treze anos de atividade, 30 colóquios, contando com o atual. Nesses • encontros, com presença significativa de personalidades vindas dos grandes continentes onde vigoram as comunidades lusófonas, Vilca Marlene Merizio as falas objetivam aproximar estudos sobre temas criteriosamente apresentados pela Equipe Científica a qual preside. Assim, voltado permanentemente para os assuntos gerais que interessam à humanidade, até os mais caros à grande massa lusófona espalhada pelos quatro cantos do mundo, dos veículos impressos aos eletrônicos, do rádio à televisão, da cátedra universitária aos encontros e colóquios particulares, Chrys Chrystello, enaltecendo, sempre, a supremacia da Língua Portuguesa, com projetos realizados visando a preservação, o enriquecimento e a unidade da língua, fornece elementos variados da cultura local, regional e universal. Jornalista, em nível de excelência... Mais não será preciso dizer. Sua interação com o meio social, agora facilitado pelo processo digital, trá-lo presente onde haja um leitor, um ouvinte, um expectador, sempre norteado por princípios éticos e senso crítico elevado. Norteia a partir de seu “lastro conceitual, teórico e técnico”, mesclando adequadamente as notícias que se apoiam nos fatores socioculturais, econômicos e políticos. Ele faz porque sabe fazer. Enfim, sentia-me preparada para escutar, com o sentimento de ouvir, conforme ensinamento do prof. Pavão, a voz clara, vigorosa e incessante deste português de raízes transmontanas, mas açoriano de coração, voz autêntica que se propaga Açores afora, mediante a verdade inconteste de sua pena, que mais não faz do que deixar registrado a sua vivência literária de quase cinco décadas. E, em deixando reverberar em mim esta voz conhecida, mais fácil torna-se transpor para este texto formatado em poucas páginas todo o meu sentido reconhecimento ao J. Chrys Chrystello, este humanista de cunho universal, que parece estar dia e noite atento aos acontecimentos, pronto a ver e a ouvir para dizer. E é tanto o que diz que penso ouvir, não só a melodia de sua escrita poética, mas

o clamor dos menos favorecidos, dos injustiçados, dos desprezados socialmente, dos que sofrem pela invisibilidade de suas profissões diante do encastelamento dos mais poderosos. E é com o meu sentido de atenção auditiva, como o nosso bom Almeida Pavão sugeriu, 98 que me comprazo com toda a orquestração da sua palavra escrita • a me ajudar a compreender o quanto é importante e significativo o Há flores e frutos no colo das ilhas trabalho profícuo das pessoas que se dedicam às letras codificadas pela nossa língua portuguesa. A este monumento cultural, fenômeno da natureza literária a que temos como amigo e a quem chamamos Chrys Chrystello, a ele, à sua família, à sua Helena, ao seu filho João e a toda a sua sociedade lusófona, agregada aos Colóquios, o meu mais profundo respeito por obra tão dignificante que faz com que também meu Estado, Santa Catarina, sinta-se honrado com os ecos da melodia que do Arquipélago o alcança via registros inegáveis de amor à língua portuguesa e, muito especialmente, a essas nove ilhas atlânticas capazes de despertar os melhores sentimentos principalmente naqueles aqui não nascidos, mas que por elas foram tocados. A respeito de todos esses anos de dedicação de Chrys Chrystello à língua e à literatura, e frente a todo esse seu trabalho de construtor cultural, sirvo-me do dizer de Antero de Quental: “Nem visão nem real: amor! Amor somente!...”, para concluir com David Morão-Ferreira: “É sem dúvida Amor todo esse jogo/ É sem dúvida Amor Mas de repente/ É sem dúvida Amor e não é nada.” Diante disso tudo, diante de Chrys Chrystello, e da família que ele formou, que construiu de encontro a encontro desde estes penhascos açorianos, diante desta família lusófona da qual todos fazemos parte, diante... dizia, da grandiosidade da obra de J. Chrys Chrystello, só me resta confessar, finalmente, me valendo mais uma vez das palavras do grande poeta português, trisneto de avô açoriano, David Mourão-Ferreira: “Não sei mais nada: sei apenas AMOR!”.


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