Vilca Marlene Merizio Festa Como não vi teu coração aberto, tua luz acesa? Tua ternura vencendo montes e planícies? Como pude estar tão absorta em mim mesma que não pressenti teu murmúrio, tua canção de amor? A porta foi o primeiro sinal. Depois, as frestas da cortina, o calor da sala, a voz em verde-romã. Os gestos... molhados Calientes! O verbo... Marfim, maçã. Agora o manto é cristal. Canto sem ferros. Só luar. E o mar infinitamente cinzento em céu azul se tornou. ... 101 ...
Quase... de corpo inteiro Insônia É nas tranças do vento que verdadeiramente sou feliz quando, sem trancas nem retrancas, vens todinho povoar o azul do meu querer. E nós, monarcas jubilados pelo ouro do labor cotidiano, entoamos hinos à liberdade partilhada pelos convivas no ágape desta sétima casa onde reinamos. ... 102 ...
Vilca Marlene Merizio Assimilação Naveguei em teus olhos: te vi por inteiro. E o teu peito ninho de coral em brasa vulcão sem crateras em pulsão efervescente me aninhou. Estou feliz. Imensamente feliz! ... 103 ...
Quase... de corpo inteiro Divindade No sussurro da alma em festa, sou feliz. O peito dilata-me em canção, em voo, em correnteza, em maré. (No infinito, o nosso abraço eterniza-se na estrela mais próxima da minha constelação lunar.) Sou grande e forte. Sou água, sou fogo. Sou sol, sou nicho. Sou chuva, sou mel. Sou brilho, sou sal! ... 104 ...
Vilca Marlene Merizio Impotência Por que não encontro arte capaz de perenizar o instante em que os pelos do teu braço penetraram na penugem dos meus? Por que não consigo imagens para traduzir o que sinto quando meus olhos se perdem nos teus? O que dizer desse olhar que me chama tão docemente tão ternamente tão claramente que até me faz corar? Por que não consigo pintar nem cantar, nem esculpir, esse teu olhar muito mais do que apenas um olhar? Por que não consigo no cosmos gravar que esse teu olhar – avelã de purpurina líquida – me fascina me amarra me domina me arrebenta me alucina me deixa louca me mata? ... 105 ...
Quase... de corpo inteiro Esse teu olhar que me faz gente me reanima me faz chorar... Sorrir. Me faz mulher? ... 106 ...
PARTE III Asfixia Ai daquele que é chegado e que não chega Cecília Meireles
Vilca Marlene Merizio Ilusão Nem sempre a fotografia conta toda a história. ... 109 ...
Quase... de corpo inteiro Amargura Em fio, escorre o murmúrio da calçada ao relvado úmido o chão úmida a cama úmidos os cabelos úmida a boca A seca vontade secou o perfume ... 110 ...
Vilca Marlene Merizio Poema mutilado pronto para consumo As sobras do poema são lâminas e flores. Não queiras sondar os abismos; no desvelamento... pasma a verdade. ... 111 ...
Quase... de corpo inteiro Parto No momento em que escrevo, não vejo o que escrevo, não leio, não penso. A mão desliza e abro o peito para, em solavancos, grossos toros de madeira, às vezes carvalho, às vezes ipê – o mais das vezes umbaúba, cortiça, cedro, jacarandá ou garapuvu – nascerem pedra pesada feita Palavra. E o que mais sangra é a garganta. ... 112 ...
Vilca Marlene Merizio Dor Ainda: rolo no estômago, garganta grossa, alma estraçalhada e medo de gritar – justiça! Ainda garras de aço matam a vontade, e a morte prematura acoberta o desejo azul de ser borboleta... Ainda. ... 113 ...
Quase... de corpo inteiro Interregno E hoje, como estou? Um copo caído? Um corpo quebrado? Ou a fome de amor a ser satisfeita? Recomeçar, não. Reviravolta. Acabou-se. Não estou mais nem para mim mesma. Libido em recesso. Fechado. Sem incubação. ... 114 ...
Vilca Marlene Merizio Decepção Esperava mais... Esperava samba... Esperava canção, O não atravessou todos os caminhos, varou todas as constelações e feriu o ninho onde o amor nascente acalentava futuro. ... 115 ...
Quase... de corpo inteiro Enigma A luz não permaneceu luz. As sombras continuam trevas. O calor, o sexo e o amplexo desafogam por instantes a mágoa sentida. Mas tudo volta a ser escuro, pesado, forjado, mirrado. Mal-amado. ... 116 ...
Quase... de corpo inteiro Premonição Os lábios revoltos na face eram os mesmos olhos da cara torta que, na vidraça, se espelhava em aviso. E de dor, não de frio, alma e coração aceitaram a verdade. ... 118 ...
Vilca Marlene Merizio Até parece E da mulher... Quem conhece verdadeiramente seus tormentos? Diz o provérbio “cada roca com seu fuso”, mas, como pode a mulher sobreviver com coragem, sem desistência, quando a aliança de ouro no dedo, se distancia do anel farpado que agrilhoa o coração? Até parece que é sempre bom ser mulher: Sofrer, sangrar por dentro, e, às vezes, até por fora. Calar pelos filhos, pelos pais, pela comida amarga, pela veste que cobre o parque onde brinca o senhor seu marido, pelo berço de espinhos, pelo cadafalso que sua vida intima é? Até parece que sempre é bom ser mulher: espancada, enxovalhada, caluniada, aviltada, mutilada, fingindo que é muito amada, mal-amada, o mais das vezes, é a Mulher ... 119 ...
Quase... de corpo inteiro Agnus-dei Não há música. O bem-te-vi engoliu os provérbios e cuspiu as cinzas. Nem se dá conta, o infeliz passarinho de que, enquanto não reconhecer a força de suas asas, não poderá defender o seu território. ... 120 ...
Vilca Marlene Merizio Despedida Mais um amigo que vai Mais um amigo que chega Se vais... que te vás! Não quero ir junto Quero que voltes Mutilações Sobreposições ... 121 ...
Quase... de corpo inteiro Omissão Omissão... Pecado elevado ao quadrado Infinitamente multiplicado Pelas potências em mil ... 122 ...
Vilca Marlene Merizio Era uma vez .... Os poetas não têm amigos. Se os tivessem, suas emoções perder-se-iam nas palavras ditas ao vento. ... 123 ...
Quase... de corpo inteiro Manhã Noite passada os deuses pisotearam nervos ossos e carne Tenho mil anos e carrego o peso do mundo É isto cansaço ou o preço de viver na Atlântida? ... 124 ...
Vilca Marlene Merizio Parede Estrangeira! Acusa-me o silêncio dos corpos pés e cabeças sorrateiros espiando-me entre o negrume da areia Estrangeira. Silêncio na fronteira dos afetos na avareza de um sorriso aberto na pressa do aperto de mão Só da fluidez gelada do beijo do mar sou irmã ... 125 ...
Quase... de corpo inteiro Pranto É Inverno. Minha alma soluça... Nus, os troncos contorcem-se entre o negro da areia grossa e o esbranquiçado da bruma que envolve a ilha. Tormento... Nem o reflexo das lagoas alivia. Tudo escuro, preto presente no falso repouso. O mar... irmão na orla de basalto, chora. Perdido também no corredor, um par de sapatos escuros. Escuro... ... 126 ...
Vilca Marlene Merizio E assim há de ser Catedral! Sexta-feira. Nove no dia. Choro a desolação seca e murcha que me ronda a alma. Ninguém no meu pranto consola o ranger de dentes, os carrinhos cerrados, os punhos fechados, a cara no chão. Ferro em brasa. Louca servidão que faz do homem supostamente livre escravo peregrino de um futuro incerto, medonho e usurpador. Nove; sexta-feira, Lá está ele... de chapéu na mão. Na mão esquerda, porque na direita ampara-o a bengala. O sotaque brasileiro da novela da tarde, carregada de mulher e sexo, zera qualquer equação e anula todas as necessidades. ... 127 ...
Quase... de corpo inteiro Nem sobra a contramão, um contrarregra, ou estafeta para levar a notícia quebrada ao homenzinho bobo do meu planeta. Profissão e café Apesar de tudo... Não foi tão mau, sexta-feira nove portuguesa. Qual fumaça, o navio deu a volta. Sacrifício e pena, Cardápio de amanhã. ... 128 ...
Vilca Marlene Merizio Desespero ou esconjuro Salve, Pai Matias, na sua fé! Pelo manto verde de Iemanjá! Quebrem-se todas as amarras. Caiam por terra todos os quebrantos! Manto azul de Iemanjá, azul purpurino, sol e prata, lençol de ágata em gruta secular, afoga mil vezes, mil vezes amordaça, nulifica até o nada este canto de sereia! Odoia, odoia, Iemanjá! Vermelho-sangue de Iensã Oiá, acode a filha guerreira Que, na luz do teu vento, almeja a paz. Acordes... Aplacadas as tempestades, acalmadas todas as iras, despedaçados todos os maus presságios, enterradas desavenças e malquerenças, possam bem-te-vis e priôlos e sabiás, novamente livres, universo renascido, saudar o Supremo, com girassóis, rosas e hortênsias. ... 129 ...
PARTE IV Outro, o santuário Se ouvires cantar os pássaros... ... Arruma os teus versos ou a tua prosa e põe-te a escutar, simplesmente a escutar, com o teu sentimento de ouvir. J. de Almeida Pavão
Vilca Marlene Merizio Constatação Quanto de nós se perde na brancura informe da bruma? Quanto de nós se esconde na lonjura do abraço? Quanto de nós se procura na distância do olhar? Quanto de nós ressuscita no afago escoado do aperto de mão? Ah! Quanto de nós se salva no desenho das palavras tecida em sorriso? Ah! Quanto de nós se salva! ... 133 ...
Quase... de corpo inteiro Saudade Sou saudade do longe donde vim Armando Cortes Rodrigues Nevoeiro Fumarolas O cheiro de enxofre revolve as entranhas e a fome de frescas pastagens bebe o fel da distância O barulho inquieta o progresso irrita e as saudades fazem-me viver em poesia ... 134 ...
Quase... de corpo inteiro À procura de mim Para Maria Emília Lueneberg (in memoriam) A Memória é a escultora de nós mesmos. Nada anda à solta nesse labirinto imensuravelmente apertado, lago e granito. Gavetas organizadas. Arquivo completo. O homem insiste, persiste, quer a leitura de outros textos, saber de outros contextos, ler os pretextos e as entrelinhas, descobrir a animação do virar da página e deslumbrar-se com o colorido das folhas. Mas a Memória não cede. Sonega-lhe a inteireza do que já foi. Zelosa, sepulta o segredo: desvelado, o homem seria outro. Avarenta, sem justiça nem explicação, quando muito, repete na rotina da concessão pseudolibertadora, a cópia dos mesmos retratos, das mesmas fotografias, dos mesmos desenhos, das mesmas tintas. E o livro concedido é sempre o mesmo: surrado, batido. História conhecida, sentida, raiz repetida. Uma vez ou outra, um outro parágrafo, a capa de outro tomo, a graça – ou a desgraça de uma nova leitura. ... 136 ...
Vilca Marlene Merizio Então, ludibriado, com as comportas quase abertas pelo furor das águas subterrâneas, o fácil fica difícil e o simples, desconexo. E o homem pele e polpa novas, desconhece-se, desconcerta-se, desencontra-se, ou ... assume-se e tenta ser feliz. Quem sabe, melhor mesmo seria a Memória, guardiã de aço, continuar cofre sem porta, muro sem fenda, penhasco negro de lava vulcânica. ... 137 ...
Quase... de corpo inteiro Triste acalanto Para Sidneya Gaspar de Oliveira Por sobre as nuvens choronas brinca o sol reflexos de prata espadas de luz e calor e num gesto de consolo deixa escapar um arco-íris para a menina que quer comer o Sol o vento o mar a chuva o mundo ... 138 ...
Vilca Marlene Merizio Ternura Rolinha minha, com que encanto soletras o piu-piu! Será o “pê” mais difícil que o “mê”? Ou a oclusão só está na minha vontade? ... 139 ...
Quase... de corpo inteiro Brincadeira Para Rhiannon M. Callado Duas meninas no balanço corpos colados cabelos ao vento E o ranger das correntes acalenta o sorriso solto num instante de felicidade ... 140 ...
Vilca Marlene Merizio Minha menina Para a Sra. Profa. Dona Leopoldina In memoriam Quanta ternura neste beijo molhado quentinho de chuva caída uva desprendida dos olhos teus! E meus pesares e meus penares vão todos pelos ares quando me dizes adeus: – Até logo, mãe. São horas da escola. Dona Leopondina me espera. E lá vai ela, catita, tchau no sorriso, ouro nos cabelos, mansidão e brilho na voz, No olhar de estrelas, oceano e seda! ... 141 ...
Quase... de corpo inteiro Universo feminino Preciso de multidões para me encontrar. Almada Negreiros São tantas as mulheres a quem devo minha história! Se olho para trás: lá bem longe, com raízes nas florestas negras da Alemanha, Ômama Augusta, braço de ferro e formosura. Tinha só um pecado a minha austera avó alemã: a música, a mesma que já fora do seu pai, dos pais dele e de todos os outros avós paternos. A música, lenitivo dos imigrantes, a afugentar a saudade Trabalho e Arte, resiliência plantada pelos pés no chão. Lídia, meiga avó de ascendência açoriana, fazias-me crer pela herança de portugueses costumes que, antes de nascer, nos Açores vivi. Nem tão longe, no entanto, tão profundo, lá onde tudo se concentra, irradia e acalenta, Arary, minha querida e doce mãe brasileira, eterno perfume do bem-querer, cheirinho bom que ainda hoje me inebria. ... 142 ...
Vilca Marlene Merizio Fado em universo masculino e uma saudade súbita fazia-lhe rolar uma lágrima que vinha perder-se, evaporando com o calor da face. J. de Almeida Pavão Avô Pai Filhos Netos Bisnetos Irmãos Sobrinhos Amigos Esposo Todos José E de todos os José Adalberto José irmão filho pai e ex- ... 143 ...
Quase... de corpo inteiro Homem Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço, Sentado numa pedra da memória. Vitorino Nemésio Meu pai nasceu na minha adolescência. Antes ele sentava-se à cabeceira da mesa, mas eu nunca o vi. Hoje pergunto-me se seriam dele aquelas mãos a tomarem a sopa, se dele era aquela voz de boa-noite ouvida e respondida sempre que se acendia a luz. Sim, dele eram com certeza. O seu braço levantava-se já antes da ceia. E perdia-se na boca, o gole de aguardente (que cachaça só os bêbados bebiam...) para abrir o apetite. A mão redonda com pintinhas escuras era-me dada para beijar: – Bênção, pai. – Deus te abençoe, minha filha. (Não sei a razão, mas acho falta de um acento circunflexo aí.) E o mundo poderia fechar-se aqui. ... 144 ...
Vilca Marlene Merizio Meu pai curvado, mãos em vai-e-vem comandavam o cabo da enxada qual batuta de um maestro. A melodia era doce. A terra enternecia-se: profusão de cores e frutos. Tudo florescia em candura. E as mãos em concha me chamavam: um legume fresco, uma laranja, um pintinho recém-nascido. Palma da mão, varanda de azulejos! Serenas, firmes e fortes, as mãos de meu pai multiplicavam-se, cultivavam a lavoura... escreviam..., contavam o dinheiro escasso e voltavam a escrever em livro grosso; passavam, as mãos do meu pai, pelo dorso dos cavalos, matavam porcos, acariciavam bezerros, degolavam galinhas e arrancavam, uma a uma, as cebolinhas do quintal. Ousadas nas noites de domingo, as mãos do meu pai. Ouço minha mãe dizer: – Para de brincadeira, Pedro, as meninas ainda estão acordadas! Um dia, descobri-lhe os olhos. Foi aí que meu pai nasceu. Olhos Verdes. Serenos. Puros. Lagoa e mar. Depois, os cabelos, grisalhos. Ralos. Fiozinhos... Os outros, o tifo levara. ... 145 ...
Quase... de corpo inteiro Espantei-me com o seu tamanho. Gigante em tudo. Nos princípios. Nos valores. No vigor. No cuidado. Só o beijei no rosto, quando, geladas, suas mãos postas grudavam-se ao corpo inerte. No calor da minha saudade, coração sangrado por mil espadas, sua energia retornou a mim. Trago-a ainda. E meu, todinho, meu pai passou a morar comigo, inteiro dentro de mim. Agora mesmo, sinto-o... Estamos aqui. Juntos. ... 146 ...
Vilca Marlene Merizio A menina da mamã Onde moro há pássaros ainda Alcides Buss Nisca de nascimento, abençoou-a fada madrinha. Pais quase centenários. Irmã mais velha morta, irmão na guerra e outros sete na luta pelo ganha-pão. Sozinha, sempre sozinha, encarapitava-se nos galhos frágeis da caramboleira, nos mais fortes da laranjeira-umbigo, nos mais rentes ao chão da goiabeira. Cada fruta, um aluno. O pomar, a escola. O jardim outra, a horta mais uma a formar a universidade. E a menina-professora sem palmatórias e sem varas de marmelo (que esta fruta nem mesmo lá existia) ensinava/aprendia a lição. Os alunos-passarinhos, quase sempre em bandos, mancha alegre em céu demasiado azul, ou a comer alpiste no pedrado da calçada, avessos à estática dos repolhos, dos lírios e das violetas, seguiam em férias para terras só conhecidas pela boca da mãe/avó a contar a epopéia dos antepassados lusitanos: bravos, ilustres, sangue azul. ... 147 ...
Quase... de corpo inteiro A mãe contava. Os serões gelados esgotavam-se no bem-bom da sua cama. Branquinho da tapioca, o pai sóvinha ao alvorecer. O quarto da mãe era branco. E quente. Calor gostoso. As mãos da minha mãe também eram quentes. Quentes e macias. Seu corpo branco, redondo, macio ... Jardim! Só os seus pés eram frios. Até onde verdade e ficção embaraçavam-se naquela memória de histórias repetidas? Carinho feito fala. Coitada da mãe! Só tinha uma ouvinte! Mas logo de manhã, todo o sítio, brilhando ainda de sereno ou engomado pela geada, ouvia a voz-menina gravando, nos raios do sol ou na prata da chuva, as aventuras da noite. É pena... As bananeiras não mais existem, não podem testemunhar... O pinho da casa foi lambido pelas labaredas de São João e os passarinhos naquela chácara já não têm nem pouso nem ninho. Quem sabe, lá pelas esplanadas da serra... ... 148 ...
Vilca Marlene Merizio À noite, a mãe era bonita. De dia, vestia-se de negro. Sem xaile, mas de negro. Cresci ouvindo-a falar nos mortos: eles voltam! Acreditei. Voltam, não. Aparecem. Eu os via; não tinha medo deles. Não me falavam. Só me olhavam. Sempre me olharam. E agora, em outra terra – ou na mesma ilha? – reencontro-os, são amigos. Gente de carne e osso. Lembro de um... especial, loiro, muito loiro, levava-me ao colo, durante o sonho. Para onde? Nem eu sabia. Seus braços eram fortes, macios... Aos nossos pés, águas quentes borbulhavam: estreitávamo-nos, então, num abraço mais apertado e o lodo branco virava chama, calor, amor. A água ficou verde, ficou azul. Minha mãe acreditava: pouco antes da hora da passagem, algumas pessoas mandam sinal para os parentes de longe (e eu sempre morei longe): sinal de sangue no lençol e, no travesseiro de paina, prego enferrujado, coroas de flores murchas... No colchão de palha de milho, as tranças: fitas vermelhas e pretas enroscadas em cabelo e pena. O feitiço. ... 149 ...
Quase... de corpo inteiro E a minha mãe vestia-se de negro. Odeio roupa preta. Odeio. Odeio preguiça. Odeio mentira. Odeio brigas. Odeio acusações. Odeio mortes. Até hoje não sei virar a mesa. Mesmo em guerra, protelo. Sofro. Fujo. Atravesso sozinha um trilho no mato entre o morro e o rio (ainda hei de me livrar desta história), albergo-me no perfume das flores e dos frutos. Odeio ver a minha mãe chorar porque alguém, que-eu-não-sei-quem, morreu. Odeio ver a minha chorar enquanto descasca, na bacia polida de alumínio, a raiz branca do aipim. A casca grossa, escura, castanha por fora, branca por dentro, amontoa-se ao lado, em cascata. As cascas da mandioca (repulsa-me o marrom), embebidas de lágrimas, transformam o barro em lama e sujam as mãos, o avental, a faca, a água. O choro pela morte de não-sei-quem Impede-me de ver a avenca verdinha entre as pedras do poço, nem sentir o barulho do balde afundando na água fresca e mole do fundo. Só ouço rosnar o bulinete e me lembro do sapo que mora lá embaixo: sapo grande, olhos saltados; lombo preto, riscas tortas de branco leitoso. ... 150 ...
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