Vilca Marlene Merizio Uma vez, os soluços foram mais compridos que os outros. Debrucei-me no poço. O sapo furou o espelho negro e vi a água gritar por socorro, debatendo-se furiosa entre os tijolos verdes de limo. Nunca mais passou a minha sede. A farinha não sacia a minha fome. Só o frescor de quem trata a raiz do aipim, torna-o comestível. Se não... vira perigosa mandioca. Tenho horror aos répteis da minha infância! Coaxam dia e noite quando meus pés estão frios. Xixi de sapo cega! Se a perereca pegar na gente, só desgruda quando chove. E a gente a gostar de chuva. Com chuva a perereca desgruda. E os meninos da minha rua (detesto os meninos da minha rua), brincavam com os sapos, os meninos da minha rua. Braços esticados... não havia mão, não havia dedos... só sapos... de banda... esbugalhados... a estrebuchar. ... 151 ...
Quase... de corpo inteiro E morriam de muitas mortes, os sapos. (E viviam de muito medo, os sapos...) Pobre sapo, engolia a brasa, isca no arame preso à ponta do bambu. Morto, ali ficava: o couro esturricado, as entranhas... Na estrada de barro, banquete dos urubus. As manchas na terra eram tragadas pela enchente que vento forte não varria os despojos. Vento forte não havia. A cidade escondia-se num vale verdejante entre o rio e as colinas que a menina da mamã pintava de azul. ... 152 ...
Vilca Marlene Merizio Lembranças para as minhas irmãs No país do café, chá de folhas de laranjeira e pão com banana frita (banana crua no pão escurece) sustentavam minhas quatro irmãs. No setor de fiação da fábrica de tecidos, das cinco às treze e trinta horas, os fios de algodão sugavam-lhes a pele, os ossos, o espírito. Com o ordenado, o pai ficava (naquele tempo pagava-se a “boia”). Uma vez ou outra, lá se ia o magro envelope, escondidinho, para debaixo do colchão. Parcos trocados: esperança de um enxoval a crescer nos baús, herança da imigração bicentenária, ou nas prateleiras do guarda-roupa verde (eu sonhava com um de verniz, quase alcançando o teto roído pela umidade; espelho? Um luxo!) Salário de fome. Fome... não fossem a plantação de tomates, as frutas do quintal, os lírios dos sábados chorados, os bordados a mão, a costura das sacas de trigo da fecularia de mandioca. ... 153 ...
Quase... de corpo inteiro Cadê a abastança de antes da guerra? As terras, paisagem verde a perder de vista, a roça, a cana-de-açúcar? O engenho, o açúcar e farinha de mandioca; o alambique, a cachaça, o sassafrás? Que pele vestiam os delatores Das famílias acostumadas à limpeza geral às sextas-feiras, varriam a sujeira da casa de dentro até a porta de trás, e os filhos contavam estrelas? (“...quem aponta o dedo para uma estrela ganha verruga no nariz...”) Onde se escondiam para espiar sorrateiramente os que não comiam carne de porco, embora, como toda a comunidade, matassem esses animais, segundo a tradição e dividissem os produtos com a vizinhança? Onde se escondiam os maus vizinhos, ou os hóspedes pintados de falsa amizade, que só apareciam para levantar indícios e depois prestarem falsos testemunhos junto às autoridades eclesiásticas e políticas? A história diz, e a memória ainda turva por medo por receio das sanções sofridas: o enquadramento no xadrez, as multas... a desapropriação, a dor, a mudança. Sofrimento e injustiça! ... 154 ...
Vilca Marlene Merizio Tempos de guerra e de pós-guerra, pouca importância à dignidade das famílias brasileiras, só porque descendiam de imigrantes europeus? Bloqueios na linguagem falada dos não-nativos; isto é, dos ascendentes dos brasileiros que falavam a língua dos pais e avós, trabalhadores que ajudavam a construir o Brasil? Naquele tempo a que se chamou Estado Novo, era permitida apenas a língua nacional, sob risco de prisão. Os imigrantes e os seus descendentes eram fiéis, mas os pelegos não acreditavam nisso não. Viva Getúlio! O povo gritava. Verdade. Getúlio via os operários. Operário começou a ter direitos: férias, quarenta e oito horas semanais... E o ordenado como era? Salário pouco. Serões em dobro. Assistência médica? Um ou outro médico, sim. Remédio? Hortelã, sabugueiro, marcela galega, erva cidreira, losna, boldo, amargosa e ... benzedura. Arca caída, febre de estômago, erisipela, carne rasgada, nervo torto, insolação, trisa, ataque de bicha, doença-de-sete-pés, quebranto, mal olhado, trabalho feito. Para pianço não tinha benzimento: só xarope de agrião e mel. As folhas do boa-noite puxavam furúnculos e panarícios. ... 155 ...
Quase... de corpo inteiro Assim, contavam as quatro irmãs: todos votaram no candidato do patrão. E meu pai, minha mãe, bem baixo porque “as paredes tinham ouvido”: – Nossa filha mais nova, ainda não. E as mais velhas casaram-se. Bons rapazes. Elas deixaram a fábrica. As crianças nasciam... Ainda agora são minhas mães/irmãs. E meus sobrinhos? Muito mais irmãos do que... As quatro meninas saiam de casa às quatro. Sem leite, pão dividido. Léguas a comer o pó da estrada, a amargar o silêncio da madrugada, caminhada lenta pelo enrijecimento das pernas quase congeladas pelo frio. E a mais nova, o terçolinho, a temporã, A irmã dos seus sobrinhos e filha de suas irmãs, despertada pelo despertador matutino das lâmpadas acesas pelas manas operárias a fazerem o fogo no fogão a lenha, a menina caçula, nem se lembrava de agradecer o bem-bom de sua cama quentinha: escondia a cabeça na coberta de pena, punha rodas na velha casa de madeira e criava um mundo só seu, de paz e humanidade. Imersa na imaginação fértil, criativa, mas totalmente infantil, ia conhecer o mundo sem saber o truque de fabricar os sonhos: aflição pela estrada estreita por onde fazia deslizar sua velha casa por entre as curvas e os precipícios da serra acima rumo ao planalto. ... 156 ...
Vilca Marlene Merizio A menina sardenta mal sabia a força do sonho e a volubilidade do sonhado. Ingênua até mais não poder, era incapaz de construir veredas novas para nova casa, ou de pensar noutra casa para um caminho novo. Na sua vida cotidiana de aluna do primário, antes de conhecer a cidade mais próxima da sua, apaixonou-se pela vastidão escaldante do deserto do Saara, uma das poucas ilustrações do seu livro de geografia da quarta série. Desde o grupo escolar tinha acontecido: eu descobrira o livro e adorava ler. E não entendia por que razão a leitura era proibida, assim como era pecado não gostar de lavar a louça e vergonhoso não ter um emprego fixo mal completados os quatorze anos de idade. A salvação é que existia a escola. E lá, com a professora (quantas vezes? três? quatro?), antes do exame final, todos os alunos iam à biblioteca em grupos pequenos. Descalços. Os sapatos esperavam-nos no corredor. A sala sempre estava às escuras e lá fazia frio. Cortinas pesadas. Cheiro esquisito. Chão escorreguento. Paredes altas de armários fechados à chave. Atrás dos vidros, parados, enfileirados, de uniforme, todos de pardo, jaziam os livros, soldados da mesma arma (lembro-me dos livros de Saramago, os primeiros em edição, sempre com capa bege; será por isso que ainda não os li?). Silêncio de igreja. Ponta de pés. Professora séria. Cara fechada. Parada, só olhando para os alunos que abaixavam a cabeça, envergonhados (Não nos passava a ideia de que ela estivesse ali pronta para ajudar). No ar, peso e ranço. ... 157 ...
Quase... de corpo inteiro Na época do meu grupo escolar, duas coisas eu não entendia, entre tantas que queria compreender: o mistério do livro (qual o motivo de tanta cerimônia, tanto ritual no dia de leitura quando prestávamos o exame de final de ano, e a missa em latim?). E as minhas irmãs, com resposta para tudo, ensinando mesmo o que eu não queria aprender (como fazer o fogo no fogão a lenha), não sabiam, não podiam me explicar. A elas cabia somente trabalhar. Tempo sem medida o da biblioteca escolar na década de cinquenta do século XX, mais precisamente de 1951 a 1955, na minha bela e pacata cidade do Vale do Itajaí, fundada entre montanhas e o rio. O livro, os livros estavam ali. Montes deles. Cada aluno, na sua vez, quando lido o texto assinalado entre duas cruzinhas, e interpretado segundo as perguntas da professora, podia trocar de exemplar, folhear um outro, com cuidado, delicadeza e ate1 uma certa reverência. E, assim, ao acaso, podíamos ler mais um trechinho no livro novo sem conhecer o contexto em que a história estava inserida. Nossa literatura não tinha começo nem fim. Apareciam diálogos e trechos descritivos. Se tivéssemos sorte, poderíamos pegar bons exemplares com imagens (e o que seria um livro bom?). Não tínhamos ideia da capa original, já que estavam encapados com papel pardo. Felizes ficávamos, quando o livro era de poesia, versos curtos e enredo completo, embora não reconhecêssemos a diferença entre prosa e poesia. ... 158 ...
Vilca Marlene Merizio Mas o que ler? por que ler? o que lemos? (Por que ajoelhar, sentar, levantar tantas vezes na mesma missa? Só a Julita conhecia o mistério.) No dia fatal do exame (seríamos aprovados ou a viria com certeza), lá estávamos diante da banca para a prova de leitura (muito bom se fosse o mesmo livro da véspera!): novamente duas cruzinhas limitavamotrechoaserlidoerepetido.Frionoestômago. Tremor no corpo inteiro. Vazio na cabeça. Medo de esquecer as palavras apenas vistas, sem tempo de serem assimiladas. Vontade de adivinhar a história não lida por inteiro. No exame, a memória e um pouquinho de audácia: imaginação ganhando corpo socorria a gente: no boletim a mancha era sempre azul (a nota em tinta vermelha simbolizava erro no caderno e reprovação no boletim). E as quatro irmãs em casa, sossegadinhas, nem se davam conta de que a escola de cinquenta cultivava mais a repetição do que o raciocínio. Nas tardes de domingo, num tempo tão comprido como um dia de verão, a irmã das quatro irmãs, joelhos grandes de menina magrela, encompridava-se no sótão. O corpo no colchão de crina da cama de ferro e o espírito a vagar pelas duas janelas: a do caderno fininho transformado em diário e a da velha casa de madeira que lhe oferecia, no azul do firmamento, o mar de todos os sonhos. Gata ao sol, lia e escrevia às escondidas (só a mãe sabia), com uma das mãos tapando os ouvidos para não lhe doerem as recriminações: Guria-de-hem com essas porcarias na mão! Já tem doze anos, pra que perder tempo escrevendo tanto? Precisa é aprender a fazer o fogo, a cuidar da casa, a engomar a roupa. Já se escapou da fábrica, está no colégio das freiras e, ainda por cima, quer ler... É muito desaforo! Tem muita ganja esta menina! ... 159 ...
Quase... de corpo inteiro E a menina-pele-e-osso só tirava os olhos do livro (quais? não deviam ser importantes, não lembro... não deixaram marcas) para galopar nas branquíssimas nuvens pelo céu estonteantemente azul: rostos de anjo, homens com barba, rebanho de ovelhas, cavalos, cachorros, sempre passando, seguindo em frente, indo para longe. Da janela do sótão do casarão de madeira, as nuvens algodão e leite enchiam-me os olhos e a alma com personagens sem histórias. O cenário era sempre muito azul, fixo, eterno, definitivo. De quando em quando, lá pelo final da tarde, a roupa dos meus heróis passageiros enegrecia e de anjos a monstros a máscara exigia apenas o tempo de um relâmpago. A descarga eletrizava- me também. Descia a escada do sótão aos pulos antes do primeiro trovão! A repetição do meu nome, entoado por mil vozes, mandava-me cobrir os espelhos, recolher a lenha picada, fechar as janelas de madeira pesada. O ritual de sempre: afastar-me das agulhas e das tesouras, largar a faca, não comer, ficar longe das outras pessoas. Nem mesmo o cheiro da palha benta, misturada com a invocação “Santa Bárbara! São Jerônimo!”, impedia que a claridade me fizesse blindar as orelhas com as mãos. O raio atorara uma árvore ou caíra no descampado. Às vezes, uma fagulha descia pelo fio da antena do rádio e, se batesse em alguém, deixá-lo-ia tolo ou com uma cicatriz na cabeça como ficou a Wanda, que nunca mais voltou para a escola complementar. ... 160 ...
Vilca Marlene Merizio Eu gostava mesmo era da trovoada de verão. Quase todo o dia, no meio da tarde, as nuvens de luto fugiam rápidas, em bando, tão juntinhas que pareciam uma massa só. Nem dava tempo para viajar com elas; novamente os berros, as janelas para fechar, a roupa a ser tirada do varal. Só com a chuva de pedra voltava o encanto. A cócega do gelo trincado entre os dentes, o gosto de nada na boca fresquinha. A chuva grossa a machucar a pele, a chamar para as poças do pastinho inundado. Enquanto os olhos das minhas irmãs se distraiam, em pé, sobre uma cadeira, com a metade do corpo para fora da janela, eu ia, até onde o braço alcançasse, em direção ao vidro em fio que nascia do telhado. Deliciava-me o som da água resvalando da caneca, o único instrumento musical da minha infância. Rápida, deslizava a mão por entre a parede de cristal que se despencava do beirado da casa como se cada goteira fosse a tecla de um piano. E tudo era água e transparência. Nas nuvens não existiam sapos. Estiava. Embriagada pelo cheiro da terra molhada, eu rodopiava entre margaridas e arco-íris, perdia o chinelo e inundava a alma de paz. Quando retornava a casa, meu corpo gelado era sacudido pelo roçar enérgico da toalha felpuda que dançava nas mãos das minhas irmãs, muito mães, enquanto minha mãe, mais avó que mãe, acabava de me enxugar os cabelos em sonolenta massagem. No fogão pintado de vermelho-grená (ó como eu gostava dessa cor), ardiam as achas de lenha verde sob a frigideira negra. Os bolinhos de banana agasalhavam à mesa; hoje, saciam a saudade. Noites sem conta, vozes angustiadas entrecortavam nosso sono quando a chuva teimava cair em tromba d’água. Do rio, palmo a palmo, medido pela ansiedade dos vizinhos, brotava o ... 161 ...
Quase... de corpo inteiro terror: a correnteza barrenta arrastava casas em pedaços e animais de barriga para cima e pernas para o ar. O pavor de ser engolida pelo rio grudava-me, sozinha, à janela do sótão. O peso ocre das águas barulhentas nas noites compridas em que não tenho a certeza de uma montanha no parapeito da minha janela continua sendo a matéria dos meus pesadelos. Na enchente parda de lama enfeitada de répteis, apoiei em lanças o braço que me alçou ao planalto de todas as realizações onde água não é rio. E minhas irmãs conhecem o rio e todas as suas águas. Elas aprenderam a vencer as suas margens. São felizes. Felicidade consentida. Merecida. Lembrança para minhas irmãs! ... 162 ...
Vilca Marlene Merizio Desejo em azul e branco Quero as férias do verão azul e branco. Quero o frescor dos vales verdes de Itajaí. Quero apreciar do Cambirela a mansidão ondulante das serras, a geada envelhecendo os pastos e a neve em São Joaquim. Quero ir a Brusque pagar promessa, fazer compras e andar de bicicleta. Beber saudade e cerveja no Koehler e um marreco na “Fenarreco” saborear. Jogar vôlei no Bandeirante, pescar no Brilhante e bailar no Paissandu. Por lei, quero vestir a camisa do Brusquense, torcer pelo Figueirense e vibrar com o Avaí. Passear na Beira-Mar Norte... e com amigos nas praias me encontrar. Conduzir meu carro a álcool e do bulício do trânsito ser mais uma a reclamar. Preciso espiar a Terceira Ponte e da Ponte Nova a Hercílio Luz admirar. ... 163 ...
Quase... de corpo inteiro Na casa azul: fazer cuca, chucrute e goiabada. Comer queijinho com polenta, alfavaca no caldo da tainha, carne seca na feijoada e degustar com um bom vinho o pão de taiá. Fazer pirão com farinha de mandioca, Sopa de siri e ensopado de camarão. Como tudo isso é bom, meu irmão! Preciso pôr bandeirinhas na janela e lenha no fogão. Remexer com água fervente um pirão na tigela, passar o aipim no melado, servir com pernil assado e mastigar, num tempo desapressado, a cana e o pinhão. Sem dúvida, preciso sentir o gosto da manga, da pitanga e da jabuticaba, da garapa descendo gelada, da caipirinha em noite enluarada, do licor de butiá e de um bom café. Quero sentir a vibração do samba na alma e no pé. Desejo mesmo novamente ser gente em ritmo quente areia colorida de Camboriú. E os outros? E o resto? E tudo? Ai seria o mundo. Prelúdio. Recomeço eterno do sem-fim. ... 164 ...
PARTE V Redenção Entre choro e riso desejo ser vento para dançar contigo e não me molhar Patrícia Branco
Vilca Marlene Merizio Corpo quase inteiro Calar a boca onde pulsam milagres de amor... Como?! ... 167 ...
Quase... de corpo inteiro Ainda a indecisão A lembrança adensa a vontade da carne apertada colada à pele recendendo a amor E o corpo não se move ... 168 ...
Vilca Marlene Merizio Vazio Visto-me de bruma, enlaço a ilha, respiro... flores! Voo na cabeleira das ondas e não me livro da angústia terrível de estar só. ... 169 ...
Quase... de corpo inteiro Em vão tento encontrar Em vão tento encontrar a porta do teu castelo. A chave que trago não alcança o fundo dos teus olhos. Seu eu conseguisse encontrar a porta do teu castelo, o chão movediço, as costas arqueadas e a vontade de zinco e ferro esconderiam a vertigem da posse. E líquidas labaredas, clareiras rubras, lavas incandescentes, frutos verdes de futuro, seriam as testemunhas do eterno laço, cedro eternizado, universo sem retorno. Não mais seríamos um eu e um tu. Em vez de nuvens, teríamos músculos, nervos, sangue e alma conjugados Nós seríamos um. E, no cerne de todas as civilizações, idealizaríamos nosso paraíso futuro. ... 170 ...
Vilca Marlene Merizio Esperança em primavera Entrego nas tuas mãos de verão meu coração encharcado sangue e lágrimas. Brinca com ele como o vento brincou nos teus caracóis de sonho. Anda, encosta tua face à minha. Suor, lágrimas, umidade, o que importa? Mais quente e doce é o hálito da nossa ansiedade. Anda, vamos lá... Encosta tua face na minha. Não sintas vergonha. Vem. No aconchego do tambá, brilharemos em maresia e flor. Por favor... Não me olhes de cima. Abre-me a porta. Do alto, não vês o meu tamanho. Deixa-me ser novamente o gesto com que desenhavas na areia tuas esperanças de guri. E do outono, faremos primavera. ... 171 ...
Quase... de corpo inteiro Ciranda de arco-íris Senhor dos teus gestos, agora também és dono dos meus. Ciranda de arco-íris! O pasmo do azul dos teus olhos, sem óculos, a prender-se aos meus, brilhou em coroas de angelicais e infinitas vozes multiplicadas pelo vento. Foi um instante só, mas valeu por mil promessas de amor. Agora sou eu a escrava, e tu o senhor. ... 172 ...
Quase... de corpo inteiro Tua mão direita Naquele dia, qual detalhe de fotografia, tua mão direita poisou noutro braço que não o meu. Também durou um instante, e um bisturi de aço rasgou o meu sentir. Do vale de sangue que daí jorrou, vou recolher duas gotas e em diadema oferecer ao deus do amor. Esperarei então que ele te faça compreender que o que primeiro viste cintilar – quando sem óculos me olhaste – não foi o reflexo do sol no mar, mas o brilho do meu olhar no teu a se espalhar Espelho, mão e contramão... Búzios dourados... Sonhos vão (s). ... 174 ...
Vilca Marlene Merizio Coração Para Diva Zandomenego No muro, hera e cal espiavam o coração traçado em diagonal. O coração a carvão seria o teu ou o meu? Pelas manchas tristes, reconheço ser o meu. Pela luz, tenho certeza: é o teu. Mas as abas do moinho de vento tragaram o coração. ... 175 ...
Quase... de corpo inteiro Melodia azul Para Aníbal Raposo E os novelões, Acotovelados à beira do caminho, hortênsias em flor acolhidas pelos plátanos, entre Ribeira Grande e Nordeste, se desfiavam em ondas de amizade e luz. ... 176 ...
Vilca Marlene Merizio Irei em coche carmesim Sorriso na alma e no gesto. Sorriso sem máscara, ternura recuperada da ternura roubada no último vendaval. Outrora ternura perdida sem possibilidade de reconstrução. Sorriso brejeiro, bem brasileiro, de Vinicius, Gal e Caetano. Beijinho papel camurça, coração de pelúcia, voz de piano. Sorriso na pele, no cheiro e no gosto, nos dentes multiplicados para o apagar da vela e o acender de todos os sinais. Luz e calor etéreos – por dentro e por fora – luz e calor no meu universo. Tal folia me chama. Irei em coche carmesim. ... 177 ...
PARTE VI Rosto sem medo Amar! Mas dum amor que tenha vida. Nem visão, nem real: amor! Amor somente! Antero de Quental
Vilca Marlene Merizio Retrato II Mais uma vez a voz do poeta: se não puderes ser do arbusto raiz ou ramos, sê a sombra. Eu toda grito: sou a seiva! ... 181 ...
Quase... de corpo inteiro Lápis lilás Para A. Ferreira-Pinto e Ivone O lápis lilás, às vezes castanho, às vezes negro como breu, não dizia, não contava todos os anseios meus. Por isso, desafogo o susto de conhecer a minha verdade, lavando a alma com o lápis lilás. ... 182 ...
Vilca Marlene Merizio Balada Para Adelaide Baptista A gaivota dourada não era gaivota. Era, da árvore, a folha em outono, abraçada ao vento. E leve, gentil, passarinho, a folha abandou o ninho para renascer primavera na lucidez do caminho. ... 183 ...
Quase... de corpo inteiro Forças Para Maria Conceição Vilhena Quis tanto este momento E agora... tudo quieto. Pardo, folhas em repouso. Nem ligo ao vento, outrora pesadelo, hoje poema em surdina. Tudo aconteceu. Rota apagada. A força de Teseu fez Sansão esquecer Dalila? Findou a festa no mar. Recolheram-se bandolins e curiós. Os silvos não mais lembram sílfides, são apenas apitos de velhas baterias, perdidos nas algibeiras dos quase aposentados policiais que, de azul, só trazem a farda, e, dos gestos, apenas o jeito mecânico de gesticular. Paralisada a comoção. Desfeito o tremor das raízes. Salgada a água na boca, no seio, no ventre, no eixo da minha aflição. Não mais tangem os sinos avessos da minha pupila. Não mais dançam no meu estômago medusas e fantasmas. ... 184 ...
Vilca Marlene Merizio Não sei mais a cor das cordas, das correntes, dos grilhões. Estão por terra lanças e alianças. Torres, satélites e pontilhões. Nada mais a consumir as cortinas cerradas. Posso tecer a colcha, içar a âncora. Longe de mim o caruncho fétido! A coragem lá no fundo remove os resquícios, lixo em espaço sagrado, tão fechado que, nem mesmo eu sabia, continha todo o preconceito do pecado, enrodilhado, feixe enfaixado em pavores enraizados, eternizados no âmago da minha covardia. Neste instante cuido da voltagem, das ligações, dos fios-terra, da energia, força da minha força multiplicada. Trato de não trocar a rede paralítica por outra de segunda-mão. E a força que ainda é minha – não a pude trocar –, mas já sei onde está a lesão, mais se consome por não poder levantar a chave de nervos que interrompe os meus fios de alta tensão. ... 185 ...
Quase... de corpo inteiro Manhã de chuva em ponta delgada Para Paulo Meneses Os joelhos molhados curvados pela unidade impulsionam meu cérebro Mas a vontade de aço estacionou no livro ensopado de nicotina... e afeto O verde está parado quase morto de frio Não há vento que o leve As unhas do mar sorveram o óleo de todas as baleias Gerações inteiras degustam em mãos de soda o sabor gelado das estrelas E o verde torna-se mais escuro na minha saudade ... 186 ...
Vilca Marlene Merizio Outono em São Miguel Para Maria Margarida Maia Gouvêia Não... não. não quero ver o sol, não quero ver a lua. Quero mastigar o chumbo do céu e do mar e lá no fundo de mim plantar já enegrecidos os plátanos amantes na desesperada tentativa de conservarem presas as folhas... rebeldes, maduras. Louco! O baile da despedida. ... 187 ...
Quase... de corpo inteiro Lagoa do congro, em julho Para Licínia Corrêa e Sílvio Conde Há dor... Há mágoa... Mão analfabeta! Há milagres... Não importa se em ti ou em mim Nus ou na chuva De bruços ou no altivo chão de azul bordado... Não importa... Do nenúfar já um botão floresce Importa a alma limpa... No espelho negro da lagoa o verde enrubesce... Apaga-se o preconceito. Das selvas, foge a idade da pedra. Fora a convenção da escrita! O selo. O cartão postal. O tratamento suntuoso. Coragem! Impossível não é... As diferenças... Ah! as diferenças! Joguemo-las fora. Salvemo-nos. Não turvemos a calma fluorescente das folhas que beijam a lagoa. ... 188 ...
Vilca Marlene Merizio O céu na água espreita nossos sentimentos, As estrelas, todas as estrelas cobrem o corpo de Iara. As estrelas, todas as estrelas, no tafetá verde vêm... Rodeiam-nos. Aquecem nossos pés. Translúcidos ficamos. ... 189 ...
Quase... de corpo inteiro Só Ao Gabriel-Jorge Costa In memoriam Formigam minhas mãos no calor da voz que a lembrança embrulha em vulto Faíscam minhas mãos à procura da pele faminta rubi moreno negro algodão Correm minhas mãos pela sombra dos cabelos na correnteza das veias artérias em flauta Arrebentam minhas mãos em granada Cavalgam ombros joelhos Túneis cavernas veludos Plumas paetês surdos (Apitos Vozerio Maldade) Caem minhas mãos decepadas pelo preconceito Rosna no canto melodia de cinzas Madrasto desespero sem regaço ... 190 ...
Vilca Marlene Merizio E o melro sozinho no fio frio de muitas marés espanta-se: há espuma em suas asas ... 191 ...
Quase... de corpo inteiro Amigo Como podem ser os mesmos esses olhos úmidos que antes continham a alegria do ver em constante cantiga de amor? Como podem ser os mesmos esses cabelos escorridos levemente grisalhos eles que já foram asas revoltas no meu bem-querer? Como podem ser os mesmos esses fios de barba cujas pontas hoje mal se veem e que já foram caracóis de noite nas insônias do meu outono? Como podem bagas de suor esconderem a meiguice que antes acentuava um caráter forte de amorosa ternura? Como podem estar geladas essas mãos que ontem, amigas, guardavam todo o afeto do mundo? ... 192 ...
Vilca Marlene Merizio Onde a tua voz? Os teus silêncios...? O teu jeito tão amigo de ser? Onde jaz perdida a tua alma de poeta? Onde se esconde teu espírito cantor? Onde, Gabriel, onde estás tu? Meu amigo. ... 193 ...
Quase... de corpo inteiro Poema Para José Martins Garcia In memoriam Enquanto meu irmão morre os gritos dos passarinhos alvejam-me de insultos Enquanto meu irmão morre o sangue das palavras escorre sem poder fazer a argamassa para soldar o muro Enquanto meu irmão morre os soluços se esfiapam pelo pedrado vulcânico Enquanto meu irmão morre bocas vermelhas consomem o jantar dos deuses e demônios ruivos de olhos pintados de azul consomem a última moeda Enquanto meu irmão morre ouço valsas de Strauss e danço o Danúbio Azul (distante o Cruzeiro do Sul) Enquanto meu irmão morre ouço o copo estilhaçado à parede da minha indecisão e vejo as ondas do meu egoísmo alongarem-se lagoa adentro ... 194 ...
Vilca Marlene Merizio A pedrinha que motivou o redemoinho na tua jornada jaz enforcada entre os cornos de um caracol e as guelras de uma tainha Enquanto meu irmão morre passam as bandas e as garças levam ao bico o perfume daquele princípio de noite – noite divina – que perdurará infinitamente na memória revivida Enquanto meu irmão morre o coração pede consolo a pele em desassossego clama por perdão Os olhos são lamento na solidão E a pedrinha estava ali pedindo para ser atirada ao rio: as águas receberam-na quente redonda Engoliram-na abafando para sempre o seu grito por socorro No cais os homens não ouviram os gritos Estão mortos também O vento Ele sim aspergiu a dor e semeou esperança na duna ainda virgem ... 195 ...
Quase... de corpo inteiro Por isso ouço Amália E revivo a dor da saudade Gaivotas de Alexandre O’Neil Se uma gaivota viesse Trazer-me o céu de Lisboa No desenho que fizesse Nesse céu onde o olhar É uma asa que não voa Esmorece e cai no mar Que perfeito coração No meu peito bateria Meu amor na tua mão Nessa mão onde cabia Perfeito o meu coração Se um português marinheiro Dos sete mares andarilho Fosse quem sabe o primeiro A contar-me o que inventasse Se um olhar de novo brilho No meu olhar se enlaçasse Que perfeito coração No meu peito bateria Meu amor na tua mão Nessa mão onde cabia Perfeito o meu coração Se ao dizer adeus à vida As aves todas do céu Me dessem a despedida O teu olhar derradeiro Esse olhar que era só teu Amor que foste o primeiro ... 196 ...
Vilca Marlene Merizio Que perfeito coração Morreria no meu peito Meu amor na tua mão Nessa mão onde cabia Perfeito o meu coração Meu amor na tua mão Nessa mão onde perfeito Bateu o meu coração Composição de Alain Oulman e Alexandre O\\’Neill. https://www.letras.mus.br/amalia-rodrigues/227526/1 ... 197 ...
Quase... de corpo inteiro Apatia Ardo em anseio de movimento. Tremo no vislumbre da conquista. Regatos mansos, terra firme, negrume de adegas não mais alimentam minha epopeia. Remexo o pó das incertezas. Busco ser luz de quantos, amordaçados, quase finados, não alcançam do futuro o milagre do porvir. E muito mais que a saudade, rói-me o amor por este mar, espelho de lágrimas prateado que não me alivia do pecado de apenas – e tão somente – muito haver vagado. ... 198 ...
Vilca Marlene Merizio Trabalho Não preciso de passeio. Careço de trabalho. Não trabalho quieto, de cariz alheio. Preciso de coisa minha, saidinha de nova, pão fumegante, com muita prosa. Preciso de meta grande, alta, difícil de alcançar. Objetivos traçados, caminhos delineados, força a decepar os empecilhos, limpar os trilhos, tudo alvejar. E o projeto em execução-executado, mil vidas a movimentar. Aí seria feliz. Poderia rir e gozar. Quem sabe, até mesmo... voltar. ... 199 ...
Quase... de corpo inteiro Opacidade Enquanto estrelas não fizerem morada em minha alma não terei sossego para criar. ... 200 ...
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