Gente sou Querido Marcos, Não sei como começar. Nessa madrugada soube dizer-te mentalmente tudo o que sentia. Agora me custa, o nó na garganta, a dor na nuca e os dentes cerrados impedem a mão de deslizar >> 101 << sobre o papel. Mesmo assim, forçarei cérebro e vontade. Minhas Vilca Marlene Merizio entranhas revolvem-se querendo triturar o mal-estar que enegrece a minha alma. Olho o mar. Lá fora tudo é cinza e chumbo. Salvam- se algumas luzinhas piscando ao fundo deste nevoeiro mental que me atordoa. Os passarinhos já não cantam. O frio acorrenta os meus pés. Sábado, quatorze horas. Dispuseste-te amorosamente a entrar em sintonia mental comigo. Deixaste teus amigos no clube e ficaste sozinho no parque, encostado ao velho pessegueiro de onde tantas vezes extraímos o sumo de nossas conversas. Auscultador nos ouvidos, música relaxante, sabias o quanto era importante para nós que mergulhasses em ti mesmo, num estado de concentração total, completamente desprendido dos sentidos exteriores. Tudo era calma, silêncio e vontade. Exigias de ti mesmo a resposta que há mais de um ano eu vinha pedindo através de todos os meus gestos e atitudes. Havias me dito: “Solta-te”. “Não fiques presa a mim”. “Desprende-te de minhas mãos”. E isso uma
vez, duas, infindáveis vezes, mas continuavas a me acolher com o teu olhar nas tardes frias da ilha. Há muito, talvez desde o primeiro dia de nossa caminhada em direção ao norte, já tinhas previsto este fim. Sabias, de antemão, o que ia acontecer. Provavelmente, já acostumado a esse tipo de situação: o caçador solitário conhece a ladainha de cor. Soltar-me, Marcos, depois de ser, dia a dia, hora a hora, segundo a segundo, alma presa à tua? Como pensas que me sinto depois de cada passeio, de cada palavra tua? O teu jeito, o teu carinho, o tom da tua voz, as tuas tão ressoantes gargalhadas? Ó querido, se a ti é fácil atirar a flecha de candura que tu mesmo construíste, no sentido de prender para soltar, como te sentes depois que a presa, fraca e combalida, perde o rumo ao Sol? Como podes pensar que tudo vai voltar ao normal quando remexeste no fundo de mim mesma, devolvendo-me a esperança de tocar o infinito? Como pode o mundo, instantaneamente, perder o seu significado, a sua cor? O rosto fechar-se, o corpo murchar e o brilho do olhar perder-se...? >> 102 << Marcos, nessa madrugada, quando acabei de enviar-te, Açores: da memória à ficção conforme combinamos, a minha carta mental, ouvi tua voz ressoar aos meus ouvidos: distorcida, estridente, nervosa. Dizias- me: “Vim buscar a tua voz”. Somos sensitivos, Marquinhos, sensitivos ouvem, veem, sentem, intuem, interagem. Eu te ouço falar mesmo com o oceano entre nós. Não é desequilíbrio emocional. A carência que sinto não é responsável pelos fenômenos que me ocorrem. Pelo contrário, só acontecem quando a vibração do nosso pensamento está no seu mais alto nível de pureza espiritual. Portanto, uma coisa nada tem a ver com outra. É verdade que, ultimamente, tenho vivido mais em ti do que presente naquilo que faço. Mas é um sentimento bom, estimulador, capaz de me fazer vencer qualquer prova, com calma, paciência e compreensão... Amor existe em tudo o que faço. Não és tu mesmo que pregas a explosão da bomba de amor? Compreendo até a tua boa intenção, sugerindo-me que me abra a novas experiências. Isso é mesmo desprendimento da tua parte, enquanto da minha, sinto-me cada vez mais asfixiada
pela teimosia de querer ter-te comigo para ser feliz. Sinto-me enclausurada pela minha própria vontade já que, tolamente, insisto na crença de que para viver necessito da tua presença física. Estou fraca. Fechada. Morta. Sou pedra. Sou concha ferida que mais uma vez dissolveu a pérola porque, numa ignorância permitida, não quer fazer do limão uma limonada. O que fazer para que de novo eu possa entrever o brilho dos cristais que no teu olhar reflete o meu sorriso? Vem, diz-me! Gente, sou... Ainda! Mas, isso não basta... Volta! E voltarei novamente a crescer. >> 103 << Vilca Marlene Merizio
Azevinho
Amor e arte Vilca Marlene Merizio (À guisa de autobiografia) Se a arte pode ser considerada como caráter, produção, expressão ou concepção do que é belo, através da emoção humana acredito que desde muito cedo contei com a proteção dos anjos >> 107 << tutelares que velam os artesãos e os artistas. Penso assim por que, desde que me lembro de mim pequenininha, vejo-me gostando de pessoas e de coisas que faziam o meu coração acelerar de contentamento. Meu mundo infantil foi povoado de sonhos, embora, às vezes, a natureza me parecesse agreste e os adultos um pouco esquisitos. Tudo foi muito simples na minha vida de menina do interior, perdida em passeios solitários pelo quintal de uma casa antiga de bairro, local cheio de uma beleza que só não era maior porque não tinha mar, mas que era de total deslumbramento por seu frescor, cheiro e cor: muito cheiro de frutas plantadas pelo meu pai: muita cor de todas as flores que a minha mãe cultivava, e muito frescor vindo dos verdes que vestiam os pastos e as árvores dos morros que ladeavam o meu vale. E a fé alimentava o meu futuro. Lembro-me bem de gostar da umidade que entrava corpo a dentro quando, às escondidas, tirava o sapato e andava descalça pelo pomar para ouvir o barulhinho das folhas amareladas sob os meus pés. As mais secas faziam-me
Açores: da memória à ficçãocócegas, as tenrinhas faziam-me deslizar como se fossem cascas de bananas e as espinhosas faziam-me gritar de dor. O vento, balançando os galhos das laranjeiras, trazia um perfume que só na memória ainda sou capaz de vivenciar. Vezes sem conta eu cismava em varrer o quintal, só para sentir a correnteza do ar que fazia rodopiar folhas e galhos secos à minha frente, espalhando, muito mais do que limpando, todo o húmus que a própria natureza ofertava. Quase sempre, o trabalho ficava incompleto: as flores, tão singelas na sua complexidade de cores e formas, as árvores de perfis e personalidades tão diferentes – havia até aquelas que se deixavam penetrar pelo corpo-menino que subia pelos ramos mais fortes –, o capim molhado e cheiroso dos pastinhos sempre verdes à espera da roupa branca para quarar, o rastro de luz e espelho sobre as folhas orvalhadas das verduras, a terra, quente e escura, a exalar um odor de chuva de verão, tudo, tudo era motivo para que os dias da minha infância não contassem tempo. Era um presente que se fazia eterno. Não >> 108 << havia pressa. Também nos Açores não havia pressa. Até perguntaram para um dos meus filhos, quando lá chegamos: “por que andas tão ligeiro se a ilha termina logo ali?” Logo depois entendemos o que queriam nos dizer. Nos Açores, tudo parece estar no seu lugar, pertinho... Tudo tem de ser visto, apreciado, sentido. O tempo é outro. Quero dizer, parece-me que não há tempo. Tempo e espaço se confundem. Tudo é a mesma coisa (não fossem os compromissos...). E não é. A sensação que tenho, quando deixo o aeroporto da Ponta Delgada, é que estou num outro mundo onde o relógio perde a função. A dimensão dos sentidos é outra. O silêncio pesa, presentifica-se, é ouro. E a vontade de pisar, descalça, o chão leva-me a acreditar que ainda sou criança. A umidade dos Açores é bênção que me hidrata a alma. Lembro-me do último dezembro: cheguei à noite em Ponta Delgada e, da janela de um segundo andar, olhei o jardim da casa ao lado: tudo verde. Quando coloquei a cabeça no travesseiro, senti-me em casa, dona do mundo. A tranquilidade daquela casa centenária garantia-me um refúgio de paz e serenidade.
Choveu a noite inteira. Dia seguinte, abri as janelas de par em par. O sol ameno secava as telhas escurecidas pelos anos e fazia brilhar, ainda úmidas, as camélias brancas que haviam desabrochado durante a noite. Belíssimo o espetáculo. Divino! E uma benquerença angelical inundou o meu ser. As camélias brancas trouxeram da minha infância as nuvens, muito brancas, fofas, densas como só em poucos lugares existiam. As nuvens sempre geraram no meu imaginário um mundo sem fim, onde histórias, criadas e recriadas mil vezes, eram teatralizadas conforme as personagens exigiam. Nuvens em formas variadas, ricas, profusas, ainda desfilam no palco das minhas recordações. Só agora aprendi que essa capacidade ver rostos humanos em manchas, desenhos ou formas variadas se chama pareidolia. As imagens formavam-se a partir da dinâmica das nuvens vistas e sentidas, depois, tudo era passado para o caderno de desenho, aquele usado no ano anterior pelo meu irmão e do qual ainda sobravam algumas folhas em branco. Mas ninguém disso tomava conhecimento. As horas da invenção escrita e desenhada >> 109 << aconteciam no sótão, refúgio seguro para todos os mistérios da Vilca Marlene Merizio vida que começavam a desabrochar em ternura e esperança. Um dia disse para o meu pai que queria ser cigana. Queria vestir-me como elas: saias rodadas, com longos babados, seda colorida, esvoaçante... lenço na cabeça, dourado em volta... Muitos braceletes e correntes de ouro no pescoço... E dançar, dançar. Quase apanhei com um sarrafo comprido com que ele trabalhava, cobrindo as frestas das paredes de madeira daquela casa tão velha quanto a história da minha família. Mas continuei sonhando... A dança me arrebatava. Dentro de casa, andava na ponta dos pés, ensaiando passos de balé, que jamais havia visto nem mesmo sabido da existência. E cantava. Cantava. Só que, cada vez que minhas irmãs estavam por perto, faziam-me calar, chamando-me de gralha, de desafinada, de boca grande... Diziam até que o bem- te-vi viria me pegar. Aí não era porque eu cantava, não. Como eu gostava de andar sem roupa, e era só a calcinha que conseguia tirar, buscavam no pássaro o remédio (castigo) para o meu “mau
Açores: da memória à ficçãocostume de querer andar conforme vim ao mundo”. Ainda hoje sinto bem-te-vis rondando a minha memória. Quando regressamos dos Açores, ao voltar a ouvir os bem- te-vis da minha terra, perguntei à minha filha se ela também ouvia o pássaro repetir “bem-te-vi”. E eu cantava junto com ele para confirmar a audição. Ela achou graça, e disse não ouvir o mesmo som que eu dizia ouvir. Fiquei pesarosa. Pensei que ela também ouvisse o pássaro emitindo os sons do nome que o identifica. Mas sei que todos os catarinenses nativos ouvem o bem-te-vi cantar, dizendo “bem te vi”. Cresci. Com sete anos de idade fui para a escola. Foi outra “perdição”: descobri os livros, e a leitura me enfeitiçou. Das histórias lidas, eu criava um outro tanto de estórias, completando umas, invertendo outras, imaginando novas situações... E brincava de escolinha para poder contar aos passarinhos, galinhas, porcos, árvores, pedrinhas, cebolas, repolhos e frutas, todas as histórias que a minha cabeça fabricava. Não escrevia nenhuma. Só mais tarde, quando a lição de casa era a redação de um texto, as >> 110 << personagens na minha lembrança queriam viver tudo o que a minha mente criava (mas eu só podia ocupar vinte das vinte e duas linhas daquele caderno, e as minhas histórias ficavam sempre grudadas no meu estômago ou suspensas na minha garganta). Minha mãe falava dos meus ascendentes alemães e italianos: gente boa, de caráter... Imigrantes do século XVIII que deixaram a pátria, não em fuga, mas à procura de uma vida melhor, como muito bem esclareceu o meu tio-avô Max Steiner.3 com igual respeito me falava dos avós portugueses, vindos para o Brasil a serviço da Coroa Portuguesa, principalmente os Balthazar da Silveira, na época do império e, mais tarde, outros vindos das ilhas açorianas aquando da grande imigração do século XVIII. A história do passado glorioso da família Balthazar da Silveira, no conhecimento dela, ia somente até o meu trisavô que participou da Guerra do Paraguai. Não sabia ela, conforme agora 3 “A caminhada dos imigrantes não foi fuga, foi procura”, de Steiner, Carlos Eduardo, em Max. História e Genealogia da família Steiner do Westerwald ao Capivari. Porto Alegre: Sociedade Vicente Palotti, 2003, p. 89.
foi publicado pelo historiador Walter Piazza, casado com a minha prima Lurdes da Silveira, que um dos nossos antepassados– Dom João Fernandes da Silveira, doutor em Leis, era Chanceler-mor do rei Dom Afonso (de Portugal) e seu Escrivão de Puridade – foi o primeiro cidadão português a receber o título de 1o Barão de Alvito, “com a mercê de Dom, para si e seus descendentes”.4 O título foi-lhe conferido, em 6 de outubro de 1482. Que orgulho sentiria minha mãe ao saber disso! Sobre os avós açorianos os conhecimentos vão se acumulando. Só agora descobri que, do lado materno do meu avô, pai da minha mãe, vieram da Ilha Terceira José Rodrigues Costa, que se casou na antiga Desterro (hoje Florianópolis), a 9 de janeiro de 1775, com D. Antônia Inácia de Jesus, filha dos também imigrantes João de Sousa e D. Isabel Felícia. Da minha avó materna, pelo lado da sua mãe, herdei o sangue dos Pires Ferreira, vindos das Quatro Ribeiras, da ilha Terceira, nos meados do século XVIII. Queridos avós açorianos dos quais pouco ouvi falar, mas de quem, com certeza, muito herdamos em caráter, dignidade e fidelidade aos Açores e a Portugal. >> 111 << Com apenas dezoito anos de idade, ao morrer o seu pai, meu Vilca Marlene Merizio avô Ismael Oscar Balthazar da Silveira, minha mãe foi levando toda a família para o Limoeiro, localidade rural entre Busque e Itajaí, em Santa Catarina, designada pelo estado de Santa Catarina para lecionar como a primeira professora brasileira da região. Recém-formada pela escola complementar Lauro Muller, em Florianópolis, minha mãe inaugurou a escola nova, onde todos tinham de falar a língua portuguesa, em substituição à língua alemã, isso no final da segunda década do século XX. A minha mãe, lá em Brusque, já casada com o meu pai, ajudou a avó Lydia Etelvina Firmo de Oliveira, a criar seus irmãos, os meus tios que, depois de crescidos, voltaram a viver em Florianópolis. Estou juntando os registros escritos que comprovam ter nossos ancestrais residido na ilha do Pico, São Jorge, Faial e Terceira. Mas foi lá, na parte ocidental do arquipélago que mais 4 De Portugal para o Brasil. Trajetória de uma família. Florianópolis: Editora Lunardelli, 2003.
Açores: da memória à ficçãosenti vibrar a minha saudade por um tempo longínquo, sem rastros, mas em cujo eco minha vibração filial se ancorava. No Faial, no Vale dos Flamengos, foi grande a emoção que senti (sou capaz de garantir que algum dos meus antepassados ali residiu). No entanto, a certeza de um dejà-vu aconteceu nas 4 Ribeiras da Praia da Vitória, na ilha Terceira, principalmente quando meu primo, amigo e orientando, o psicólogo Ronaldo Augusto Pires, cantou Alleluia, e gravei. Ainda quando eu estava na escola fundamental, minha mãe gostava de me ajudar a fazer os deveres de casa, principalmente a redação: ela ia me dando ideias desde o pôr-do-sol, que eu jamais vira naquelas cores até as variantes cores do mar encarpelado pelo vento sul, isso enquanto arrumava a casa ou cozinhando. Lembro-me desse tempo: as janelas abertas desde cedinho, o frio entorpecendo os dedos, o sol tentando abrir passagem pela cerração carregada da manhã e ela a refazer as suas próprias memórias do tempo em que, menina e jovem normalista, vivia na ilha de Santa Catarina, onde podia apreciar o mar e as montanhas. >> 112 << O que eu gostava mesmo era de ficar imaginando os lugares que ela descrevia. As imagens eram muito nítidas e sempre o mar, às vezes ao anoitecer, às vezes. quando o dia amanhecia (e na minha cidade só existia rio...). Algumas das cores que ela me descrevia eram tão fantásticas que o meu cérebro não tinha como pintar: ocre, magenta, amarelo- dourado, chumbo, roxo brilhante... púrpura, azul turquesa, e outros tantos azuis e verdes... Violetas sem fim... Como distinguir tantos matizes nos meus dez anos de menina nascida num vale, onde os morros se comprimiam espigados até o céu? Mas com os lápis de cor, milagres aconteciam e a minha mãe me ensinava a ver, primeiro o arco-íris que, na minha cidade natal parecia estar muito distante da terra formando um arco fininho bem lá no alto céu, depois, o que só era possível imaginar segunda a sua descrição. Ela me fazia acreditar que sob a arcada inicial do arco-íris, lá onde ele começava, existia um poço de felicidade. E me dizia que quem visse a fonte de onde surgia o arco-íris jamais deixaria de amar e ser amado, o encantamento nunca mais seria quebrado.
Então, conservei sempre a esperança de um dia me deparar com Vilca Marlene Merizio esse céu de além-nuvens. Esse céu diferente que vai além do azul, do muito azul... Por coincidência ou não, foi numa das piscinas naturais da Lagoa, um balneário da ilha de São Miguel, que vi, pela primeira vez, um arco de luz colorido saindo de uma poça d’água, entre as pedras vulcânicas em direção ao céu por sobre o mar. Foi um espetáculo eletrizante! Uma surpresa que jamais, depois de adulta, imaginaria pudesse acontecer: vi nascer o arco-íris... Ali... Juntinho à ponte, quase sob os nossos pés. As luzes coloridas subiam em arco, sobre as nossas cabeças. Pronto, o encantamento prenunciado por mamãe se manifestava. Realmente, a partir daquela data, muito especialmente, jamais deixei de acreditar (embora já soubesse...) o quanto amar e ser nada é importante na vida. O céu da minha cidade natal, plantada num vale, à noite, era muito escuro, com incontáveis pontinhos brilhantes, lá no alto, muito alto. Longe... muito longe. Tão longe quanto hoje está aquele céu de lua cheia que iluminava a ruela deserta que nos conduzia à casa de Francisco, plantada entre flores e pedras >> 113 << vulcânicas. E naquela noite fria e amorosamente iluminada, perdi de estar com Pedro Luís, porque, não seguindo os meus instintos, mas obedecendo a voz da razão, deixei de o chamar. E a noite naquela parte da ilha convidava para encontros, para palavras ditas ao ouvido, para canções de amor. E as estrelas, mesmo poucas e próximas, estavam ali... pertinho, grandes, faiscantes. No Pico, foi diferente. Vi uma noite resplandecente. Uma poeira de estrelas. Um carreiro luminoso que cortava o céu, prendendo o olhar. Era a Via Láctea. Espetáculo magnífico! E volto ao tempo de aprendizagem quando o amor era o estopim que me levava ao alto, ao progresso, à evolução. Pena que, naquela época, a escola era tremendamente reprodutiva. Nos primeiros tempos do primário, aprendi a quadricular o papel e a ampliar ou a minimizar as figuras bonitas que conseguia arranjar, mas isso só para mim. As professoras das minhas séries iniciais do grupo escolar não gostavam que, se fugisse das tarefas dadas. Era preciso sempre desenhar: um patinho, um lago, um coqueiro, a casinha branca
Açores: da memória à ficçãocom janelas azuis, as montanhas ao longe... Próximo ao Natal, por mais que eu quisesse desenhar ou pintar o que eu imaginava que existisse para além da minha cidade, a professora mandava copiar do livro, ou do cartão postal, sempre a mesma figura das velas de Natal sobre ramos verdes de azevinho (Ilex aquifolium). E essa planta nem mesmo havia de verdade em Brusque, só fui conhecer o pé de azevinho, planta e flores, em Ponta Delgada, nos Açores, mais de trinta anos depois de pintar e bordar nos meus cadernos e nas toalhas do enxoval de casamento. Foi uma emoção muito forte quando reconheci aquelas folhas muito verdes, com bolinhas vermelhas: tentei apoderar- me de uns galhinhos (estava tão difícil de arrancar!)... quase cai estatelada dentro do jardim daquela casa desconhecida: o muro era alto e eu toda estava pendurada nele. As pessoas que estavam comigo, envergonhadas, nem sabiam o que dizer, quando o dono da casa veio saber por que o cão latia tanto. Aliás, ele já me havia visto pela vidraça... Adolescente, descobri, com minhas irmãs, o bordado, o >> 114 << crochê e o tricô, as receitas de bolo, e a costura, os bichinhos de feltro, as rendas, as almofadas e as almofadas de bilros... Livros, leituras (algumas expressamente proibidas como A Carne, de Júlio Ribeiro) e cartas. Cartas de amor, cartas de amizade, cartas para parentes. O diário. E mais bordados, mais crochês, mais tricôs, mais costuras, mais receitas. Agora vindo de outras bocas, de outros exemplos, de outras fontes. Depois: enxoval para o casamento, preparado desde os dez anos, mas intensamente cuidados após os treze anos das meninas: eram lençóis, toalhas de banho, rosto e mesa, camisolas, blusas de cambraia, tudo, bordado a mão, tudo enfeitado com rendas, trancelim e crochê. Aos 19 anos, veio o casamento. E oh, felicidade! A mudança para Florianópolis: o primeiro emprego, crianças lindas e mara- vilhosas, uma casa de madeira, o mar como quintal. E para sempre, o marido. O filho. O marido/filhos. A universidade/o trabalho – marido/filhos. O trabalho, o trabalho, o trabalho. O marido. Mais filhos. O marido. A filha. O neto. O marido. Mais estudo. Leitura. Leituras. Literatura. Escrita. Monografia. Dissertação. Marido/
filhos. Outros enxovais. Estudo. Marido. Os filhos. Trabalho. Vilca Marlene Merizio Trabalho. Trabalho. Viagem para o exterior (sem marido, só com os quatro filhos; o mais velho, casado, vai para o Rio de Janeiro fazer a residência médica). E a descoberta em terra nova: filhos grandes, o mundo interior vindo à tona numa ilha-paraíso do Arquipélago dos Açores. Na ilha de São Miguel, cinco anos de envolvimento com obras literárias. A poesia dos homens, a poesia da natureza, a poesia da alma. Marido junta-se à família. Tese. Doutoramento. Aposentadoria. Mais netos. Um amor novo por todas as coisas. O coração repleto de imagens. Poesia. Explosão de sentidos e sentimentos. De volta ao Brasil, a pintura e a literatura como necessidade de expressão. Primeiro o desenho, depois o pastel. A mão esquerda na pintura trabalhando mais que a direita (sou destra). E a obra se avolumando, centenas de telas a óleo onde os fantasmas emergem quando a mão esquerda comanda o pincel. Paisagens e pintura comportada com a mão direita. Cores em abundância com o trabalho feito com as duas mãos, sem o uso do pincel. Cores >> 115 << fortes. Clara, somente a pintura feminina, delicada, em óleo sobre papel fotográfico (projeto criado em 1994, em Ponta Delgada). A partir daí, os cursos de pintura se sucedem. Assim as exposições de pintura a óleo sobre tela. Em 2000, o deserto. A volta à cátedra universitária, aos projetos, às aulas, aos alunos, à escrita moderada. Em 2001, o início de uma nova missão: as práticas naturais da medicina vibracional, já iniciadas como autoaprendizagem em 1987 e os cursos de abordagem holística, sistematicamente frequentados desde 1993, dão abertura à vontade de graduar- me em naturologia. E tudo recomeça: novos amigos, novas lei- turas, novas aprendizagens, outros ensinamentos... Viagens. A literatura permanece: poesia, contos, novelas, romance, roman- ces inacabados. A pesquisa amadurece e o amor transborda por todas as comportas da alma. E, de tudo isso, resultam muitas certezas, mas a que mais se fortalece à medida que o tempo vai crescendo, é que a vida só vale a pena ser vivida se for plena de Amor e Arte.
Brusque, SC – 1940
O caso das joias achadas na porta de um bar Manhã de inverno. Chuva. Pés descalços para acompanhar a amiga que costumava ir assim para o Colégio, distante do nosso bairro uns cinco quilômetros de estrada barrenta, sujeita a enchentes e a deslizamentos. As ruas estavam desertas. >> 119 << No centro da cidade adormecida, à porta de um bar de Vilca Marlene Merizio má fama (íamos pelo lado proibido da calçada: o direito, onde se enfileiravam as casas noturnas), um pano escuro que parecia dobrado chamou-nos a atenção. Estirado obliquamente do único degrau da escada de pedra ao passeio molhado, a trouxa semiaberta deixava entrever um brilho para nós, meninas pobres, desconhecido. Marli e eu abaixamo-nos e, com receio, levantamos com os dedos trêmulos três pontas do pano negro ensopadas pela chuva que cobria parte do tesouro. E estarrecidas, deparamo-nos com joias e mais joias cujas pedrarias tremeluziam, agora, entre a cor negra do pano e a pele clara de nossas inocentes mãos, ainda presas aos ditames da educação severa dos descendentes europeus que colonizaram aquelas plagas (educação austera que não admitia que pegássemos qualquer coisa que não fosse de propriedade expressa da família). E as joias estavam ali... Sozinhas, abandonadas na chuva, sem nada a protegê-las.
Açores: da memória à ficçãoOlhamos para os lados, não havia ninguém por perto, ninguém naquela avenida central da cidade de Brusque, no interior de Santa Catarina, Brasil, a 33 km do litoral, costa catarinense onde há mais de 250 anos se instalaram os primeiros povoadores açorianos, junto com os nativos Carijós até a chegada, 100 anos depois, dos também imigrantes alemães e italianos, dos quais somos igualmente descendentes. Batemos fracamente à porta. Ninguém atendeu. O susto era grande. Parecia estarmos cometendo um grande pecado. O coração descompassado impedia qualquer sentimento além de saber que estávamos em perigo, que devíamos sair dali. Mas, todas aquelas joias ali, próximas ao nosso toque nos deixava tontas sem saber o que fazer. Fugir, deixando-as? Ou fechar o pacote e levá- las? Só que íamos para escola. Quem levaria? Os pensamentos quando vieram se contrapunham. Pegar? Levar, Fugir? Voltar para casa com aquele achado. Levaríamos uma surra dos nossos pais, com certeza. Quem acreditaria em nós duas? Pensamentos contraditórios deixaram-nos mais confusas. >> 120 << Nosso instinto feminino impunha-nos a admiração contida no gesto paralisado da fala; a mente dizia-nos não termos esse direito porque todo aquele brilho dourado não nos pertencia. Com certeza a surra seria grande... Mas nada disso foi verbalizado. Não sei de quem foi a ideia, mas a razão funcionou, foi mais forte do que a vontade de nos apossar do tesouro achado, e se pegássemos uma coisa só? E pegamos, cada uma de nós, Marli e eu, uma peça – uma peça só – daqueles mil pedacinhos de peças de ouro cheios de pedras preciosas que tremeluziam sob a chuva. Marli pegou um relógio feminino; eu, não sei por que razão – se estava mais à mão, porque fosse maior, ou talvez, porque fosse mais modesto que os diamantes, esmeraldas e rubis, pedras incrustadas em ouro que nos olhavam cheias de exuberância e cobiça – peguei um relógio masculino, pesado, de ouro amarelo. Ainda me lembro de ler, entre os números que o ponteiro marcava: Rolex. E deixando o resto no chão, corremos, corremos até o colégio das freiras onde deveríamos estar, impreterivelmente, às sete e trinta, ainda mal o sol apontava por de trás dos morros verdejantes que cercavam a cidade. Felizes ou medrosas? Onde escondemos durante todas as aulas do dia?
O período da manhã foi um sufoco, mesmo assim assistimos às cinco aulas previstas. Penso que não escutamos nada do que os professores diziam, agarradas cada uma à sua peça achada, agora escondida sob a blusa branca do uniforme escolar e presa pelas mãos ainda trêmulas e nervosas sob o casaco escolar. Da minha parte, não tinha como fazer parar o relógio... E ao tentar abafar o som que me parecia alto demais para o momento, imagens de figuras estranhas perturbavam o meu sossego. A minha consciência parecia um juiz pronto a me delatar. Em casa, fui direto para o quarto que dividia com minha irmã mais velha, a mais rigorosa da família. E escondi o relógio dentro do colchão de palha, único lugar seguro para guardar o meu segredo (poucos dias mais tarde, depois dessa aventura com o relógio, provoquei, entre as palhas do colchão, a perda de um anel de aro fininho que havia ganho no Natal e do qual eu não me sentia merecedora). Marli, mais corajosa e talvez mais sensata que eu, mostrou às irmãs o relógio que tinha achado e contou que eu também pegara um. No dia seguinte, as irmãs de Marli, amigas das minhas irmãs, contaram-lhes o fato. >> 121 << Foi um rebuliço lá em casa. Toda a família (e eram nove Vilca Marlene Merizio irmãos) ficou contra mim: eu deveria devolver o relógio. Papai e mamãe não poderiam saber do que estava acontecendo. Todos me olhavam e, decepcionados, cheios de reprimenda, e, ao relógio, pegavam-no com estranheza como se fosse um mal plasmado em joia. Um dos meus cunhados, mais compreensivo (ou mais afoito?) decidiu devolver o relógio. Levou-o ao bar, conforme indiquei. Ninguém sabia de nada: nem do perdido, nem do achado. Foi à polícia – nada registrado. E o Orlando ficou com o relógio; deu-me em troca um relógio feminino, delicado..., despertando a minha primeira paixão por joias. Na mesma semana, por coincidência, apareceu um fotógrafo no colégio para a fotografia comumente tirada a cada ano e fui orgulhosamente fotografada com o relógio bem à vista. Meus pais jamais souberam do ocorrido. (Menina obediente e temerosa, seguidora dos princípios éticos e morais da época, eu não sabia, naquele momento, que o tempo iria ser uma das grandes tensões da minha vida, principalmente enquanto estive presa ao torrão natal. As raízes
Açores: da memória à ficçãoque eu buscava, lá não nasciam, estavam além... Talvez numa Atlântida perdida.) Meses mais tarde, enquanto esperava uma colega, defronte a um hotel – o Hotel Centenário – ainda na mesma cidade, vi reluzir sob o banco em que me sentara à espera de Guiomar, mais uma peça de ouro: agora um bracelete – que pensei ser ouro – todo trabalhado em rosas em alto-relevo. Foi outra história fabulosa... Mas, dessa vez, a família acreditou em mim... E deixou que eu ficasse com a joia, porque, na verdade, não tendo encontrado o dono, nem qualquer referência que alguém houvesse perdido aquela pulseira, ela não era, na verdade, de ouro: era bijuteria. Para me auto justificar, perante minhas amigas – e quiçá para mim mesma – inventei que a pulseira havia pertencido à minha avó paterna. Que ficou para mim como herança. Guardei o bracelete. Não lembro de o ter usado, mas ainda o conservo. Cheguei mesmo a levá-lo a um ourives, que comprovou ser uma peça de boa qualidade, embora não fosse uma joia. E a partir de então, continuei a gostar de possuir algumas peças de ouro, mas que, >> 122 << infelizmente no meu país, devido à violência das ruas, é impossível usar com frequência. A consequência pior dessa aventura real é que, como sequela, eu continuo periodicamente a ter pesadelos com joias encontradas nos lugares mais incríveis: peças e mais peças que, quando pego numa, centenas de outras aparecem no seu lugar. Toco, reviro-as, admiro-as, sem, contudo, ficar com nenhuma. Me acordo aliviada por não ter escolhido alguma. Nem mesmo o desejo de possuí-las perturba a minha alma ou mente, depois do sonho. São tantas as joias nos meus sonhos noturnos, que aprendi com elas o desapego dos enfeites no meu corpo ou em qualquer aposento em que eu me instale.
Surfista
Encontro inesperado Juventino era pintor. E poeta. E professor de música da única escola do bairro. A poesia dita em voz sussurrada, as flores, o assunto de filmes e de livros discutidos – até as letras das músicas que ele usava como lição –, eram motivo para as mulheres desejarem a sua atenção. Quando passei a conhecer os seus hábitos, a preferência >> 125 << sobre os vinhos, a escolha das velas amarelas para a mesa do Vilca Marlene Merizio jantar, as cores coloridas de suas gravatas de seda, um amor novo desabrochou. Os passeios de mãos dadas, o afago das canções românticas ouvidas no carro, os passos delicados ao som dos boleros, ou mais excitados da valsa, do samba e do forró, aproximavam-nos a cada encontro. Tornamo-nos amigos e, mais um pouco de tempo, passamos a dividir a mesma cama. Meses depois, éramos uma família, embora cada um continuasse a habitar a sua casa. Os encontros quase diários, os finais de semana, as viagens curtas aos locais paradisíacos dos nossos sonhos, o convívio com três ou quatro amigos, os braços fortes a me aconchegarem sempre que eu chamava, deixavam- me em completa harmonia e felicidade. As minhas filhas faziam gosto de ver-nos juntos. Isso durou... Durou alguns anos. Três, na verdade, quando, por último, ele começou a aparecer menos e, por fim, a trabalhar numa cidade próxima, onde passou a ser bem remunerado, já que planejávamos ter um filho.
Mas, quis o destino que um enfarto fulminante, numa tarde de Corpus Christi, levasse Juventino para a pátria celeste. Chorei muito, inconformada, com a perda de um ente tão querido, amado e respeitado por quem o conhecia. No velório, uma mulher elegante e charmosa, chamou a atenção, não foi difícil descobrir: o professor, no último ano, sem eu ter conhecimento, casara-se com a dra. Emma, beleza belga que se mudara para a mesma cidade em que agora residia e, que, por coincidência, trabalhava na mesma escola que ele. Chorei. Chorei. Chorei. Regredi, voltei a molhar a cama. Tive de me tratar. Psicólogos. Psiquiatras. Casas espíritas. Até que resolvi voltar com as meninas para a minha cidade natal. O dono da transportadora da nossa mudança, muito afável e gentil, fez questão de cumprimentar os meus pais que ainda moravam na zona campesina. Ficamos amigos. Nas suas horas de folga na empresa, disse-me ele: era surfista profissional. Compreendi, então, o bronze daquela pele em que transparecia o leve esvoaçar dos pelos alourados. Lamego prometia... Quatro >> 126 << anos mais tarde, nasceram os gêmeos Priscila e Dante. Açores: da memória à ficção
Sete reis sem coroa O primeiro reinado E a boca disse: – Nossa, mas essa sou eu! >> 129 << – E as vozes, em uníssono: Vilca Marlene Merizio – Como? – É a minha história essa que estão narrando... – Não, não pode ser. Estás enganada. O caso trata do presente e de um passado de uma menina de dez anos. – Não, vocês não entendem. É a minha história repetida. Eu tive toxoplasmose. Perdi a visão. Primeiro o olho direito. Depois, o esquerdo. Sou mandona. Eu quero e faço tudo para que os outros ajam como digo e quero. Eu controlo. Mando. Digo quando está bom, quando tudo tem de parar ou ficar exatamente como está. É minha a palavra final. Sempre foi assim... Exatamente como essa menina relatou. – Mas... E as vozes se calaram. – Eu, meu Deus, eu... Agora estou vendo o lado que tanto escondia. Uma fatia do meu lado lunar. – Acudam, aqui, ó! (Duas vozes aflitas)
– Sou a rejeitada. Sou rejeitada. Sempre fui rejeitada. Sempre escondi que me sentia rejeitada. – Calma, Celeste! Não é bem assim... – Vocês não sabem, mas puxei aquela cegueira para mim. O médico disse: uveíte. Na verdade, eu não quis mais enxergar. Não podia enxergar. Não queria ver. Sentir... Paulinho estava longe, distante... Nossa filha, a quarta de um time de meninas encaracoladas ia chegar nos próximos dias e Paulinho... Bem, e Paulinho... Paulinho viajara. Fora tratar de negócios no norte do país. Saíra com pouca bagagem: afinal, voltaria em quatro dias. E traria dinheiro. As contas seriam pagas, o enxovalzinho do neném poderia ser concluído. Quinze dias. Vinte. Quarenta e cinco dias de lentidão, sempre à espera, a olhar a curva da estrada onde não apontava nenhuma viv’alma. Eis que, de repente, uma buzina intermitente – estranha, na verdade – acorda a meninada. Irmãs, primos e vizinho lançam-se para o portão da frente a saudar o caminhão >> 130 << novinho em folha, cor de café com leite, daquela F-350 da Ford Açores: da memória à ficção que se transformara, dali em diante, no divisor de águas da minha curta vida de casada: 4 anos, três filhas crescendo em escadinha e mais um filho quase a parir, naqueles meus 23 anos de idade. Alegria, espanto; contentamento, raiva. Qual dessas emoções desencadearam a revolta ao abraçar aquele marido jovem, belo, moreno de olhos verdes e um par de mãos que mais pareciam de anjo? Como aceitar na minha cama o ingrato que durante 45 dias não dera sinal de vida, nem sequer se preocupando em saber para quando estaria previsto o nascimento de nosso filho? Nenhum telegrama. Nenhum cartão postal. Nada. Tudo piorou naqueles três dias que antecederam o início do carnaval e o nascimento de Zildinha. Três dias de sofrimento, medo, ódio... Paulinho, junto com os pais, irmãs(os) e cunhados(as) dançou todas as noites da folia de momo. Durante o dia? Dormia para recuperar as forças e curar a ressaca. Na Quarta-feira de Cinzas não estava em casa, quando tive de pedir a um vizinho – o Celito – para me levar à maternidade da vila.
Minha quarta filha nasceu às cinco horas de uma madrugada Vilca Marlene Merizio enluarada. A menina era linda: morena, olhos azuis, cabelos tão lisos que mais parecia Iracema, aquela do José de Alencar (meus cabelos eram tão enroladinhos que mãe dizia serem molinhas de caneta esferográfica; hoje é que os tenho lisos e compridos graças ao progresso da estética). Zildinha: mais uma para completar o quarteto. Foi uma festa. Naquela época – hoje, com 46 anos de idade, Zildinha já é avó –, não havia na nossa região, e nem sei se no país havia, exame de ultrassonografia; portanto até o bebê nascer não se sabia se era menino ou menina que viria. Eu, mesmo querendo muito um menino (Paulinho iria adorar!), pressentira que chegaria uma menina. O nome: Rosário, assim como minha mãe, como minha avó. Meu marido sabia desse meu desejo, mas quando foi me visitar na maternidade já levou o registro de nascimento que ele próprio escolhera: Izilda, nome de sua primeira namorada. Mais um golpe na fragilidade em que agora se resumia a minha vida. Zildinha era um anjo; como anjos eram as outras três meninas. As quatro eram perfeitas. Com 28 dias de nascida, levei >> 131 << Zildinha (nunca consegui dizer I-zil-da) e as irmãs para um passeio no parque. O tempo mudara: o vento sul caíra inesperadamente como costuma acontecer nesta nossa ilha. Eu não contava com isso; estava desagasalhada. No momento em que Paulinho foi nos buscar no parque (ele havia esquecido), um raio de sol bateu no friso de metal do capô do carro (o tal caminhão novo) e o reflexo atingiu um dos meus olhos, fazendo-me cerrá-lo com força. Senti uma sensação estranha como se o olho tivesse crescido, um incômodo que durou a metade da semana, tempo suficiente para que a minha vista direita desencadeasse um processo inflamatório da úvea. Perdi a visão. Lembro que a comecei a recuperar, aos poucos, só cinco anos mais tarde. Zildinha estava no jardim de infância e sua irmãzinha caçula (Deus nos presenteara com mais uma menina) rezava de mãos postas, ajoelhadinha aos pés da cama. (Meu Deus, no momento que voltei a ver, nem me lembrava que havia gerado uma outra criança!). Fui submetida a uma cirurgia de amígdala. A teoria do médico fundamentava-se na hipótese de que minha
Açores: da memória à ficçãoamígdala havia se contraído tanto, em razão das pastilhas Valda que eu chupava para combater o mau hálito que me diziam ter, que o líquido próprio dela, da amígdala, havia se alijado nos olhos, provocando a inflamação. Como? Não sei bem. Nem sei também se outros casos corroboraram tal hipótese. No meu, deu certo. Minha família e algumas pessoas, principalmente mais avançadas na idade, diziam ser a minha cegueira provocada pelas sequelas de um resguardo mal-cuidado, teria sido recaída. Hoje minha médica garante que fui acometida de uma depressão pós- parto, estado que na época não era diagnosticado. A oftalmologista jovem a quem recentemente procurei garante ter sido um episódio de toxoplasmose, comprovado pelas cicatrizes que ainda marcam internamente a minha vista direita. Ao todo, foram cinco anos de cegueira, solidão e esquecimento. Em relação àqueles anos, minha mente está vazia. Lembro- me apenas, numa manhã bastante fria, ver o colarinho branco de um pescoço engravatado vir na direção do meu rosto. Era Paulinho que se despedia com um beijo. Eu estava num hospital e >> 132 << a enfermeira trocava o curativo dos meus olhos. Era um tampão, embora eu não tivesse sido operada das vistas. Recebi alta. De volta a casa, já no caminho, comecei a perceber que as ruas tinham mais casas do que eu me lembrava e o próprio bairro mostrava-se diferente com construções novas, árvores crescidas e praças onde antes não via. Ia surpresa... E muita mais fiquei quando avistei uma menina crescida, me aguardando na porta da garagem. Logo, apareceram mais três mocinhas, uma mais linda do que a outra. Correram a me abraçar todas de uma vez. E reagiram, meio que assustadas, com a força com que eu as apertava num abraço de saudades. Eu as via. Sentia- as. E entre lágrimas e sorrisos, perguntava o nome de cada uma. Eu tinha voltado. E nem sabia que havia gerado Gerda, a minha bela e encaracolada bebezinha que estava no colo da babá a quem também abracei e beijei com muito carinho. Assim, aos poucos, e agora, consciente das cinco crianças que tinha, voltava à minha vida de sempre, completamente dedicada ao lar. Só Paulinho não gostou. Voltou a viajar e nunca mais regressou. Deixei as meninas crescerem um pouco mais,
tornei-me artesã, depois comerciante até chegar a comercializar os meus próprios trabalhos artísticos. Foi um passo até me tornar a marchand da única galeria de arte da cidade. Com as pequenas crescendo e sem Paulinho, a vida foi mudando. O trabalho consumia as horas longe de casa. Havia ainda a administração doméstica, a educação das crianças e o curso que escolhi para aperfeiçoar meus conhecimentos em arte em cultura. Trabalhava muito e principalmente sentia saudades da proteção de um pai, da presença de um homem como eu sempre tivera na infância e adolescência no meu lar de solteira. – Celeste, o que houve? (Vozes próximas, sacudidelas pelo corpo...) – Não sei, preciso pensar. – Querida, precisas te desapegar dessa história. Começar tudo outra vez, não! Já estavas curada disso tudo. E a outra voz: – Então, e aquele estudo que te comprometeste a fazer? Soubemos que pegaste alguns livros na biblioteca. – Entendo que não segues o budismo, mas lê, os livros, >> 133 << tira as tuas conclusões e aproveita as mensagens. Sei que tens o Vilca Marlene Merizio espírito aberto. – Leste o Desapego: Caminho para a Libertação? Perguntou uma voz masculina. – Claro que li, e agradeço a todos vocês pelas recomendações, mas essa força que me deixa diminuída aos meus próprios olhos, que me faz achar que sou esquecida, não amada, me entorpece os sentidos. – E isso não te desvencilha das amarras desta vida. Te lembras? Foi assim que o yogue Khenpo Tsültrim Gyamtso Rinpoche, ensinou. – Como queres que eu me desapegue do que me fez mal, do que provocou todo o meu sofrimento e até mesmo a minha cegueira se não sei como fazer isso? Falar é fácil quando se tem a alma repleta de amor e compaixão. Quando se está só e a solidão nos invade trazendo à lembrança a memória das cousas tristes, quase sempre sufocadas, é que nos damos conta de que ainda estamos presos ao passado.
E novamente as vozes apaziguadoras: – Tens razão, é difícil não sentir tristeza quando se sabe que a pessoa amada aperta em seus braços um outro corpo... – Quando se tem de encarar a perda, a morte física ou mesmo a psicológica de uma pessoa que te ajudou a escrever a história da sua vida... E novamente a voz masculina: – Gyamtso dá o exemplo das abelhas. Achei magnífico o exemplo. E nós já conversamos sobre tal atitude. – Ó, Carlos, exiges demasiado de mim... – As abelhas constroem a colmeia com prestimoso labor e quando pronta, abandonam-na, não em más condições, mas viva e repleta de alimento. O mel fabricado que excede às suas necessidades é deixado sem preocupação com o destino que terá. Findo aquele ciclo, as abelhas batem asas em direção a uma nova morada sem ao menos olhar para trás. – E assim vão vivendo as suas vidas. – Sem jamais voltar à colmeia antiga. >> 134 << – Mas eu lutei para conservar Paulinho junto de mim e das Açores: da memória à ficção crianças. – Ouve o que diz o texto de Gyamtso a respeito da lição que podemos tirar da vida das abelhas: em geral, o homem constrói para si, pensando no valor da propriedade. Ele quer o que construiu para si, sofre e briga quando na iminência de perder o que lutou para adquirir, quer seja um bem material, quer seja um amor. Assim, não pode haver paz no íntimo da pessoa que se vitimiza, uma vez que seus pensamentos e sentimentos formam uma tela prendendo-a ao que julga sua propriedade (marido, namorado, filho, bens). Essa teia impede-a de alçar voo para novas moradas. E esse impedimento ocorre tanto em vida quanto após a morte, quando um pensamento egoísta é capaz de retê-la em uma etapa que já podia estar superada. E a pessoa fica aprisionada a um plano denso, perdendo oportunidades de experiências superiores. – Mas, voltemos às abelhas. (De novo, a voz masculina). Elas fabricam o próprio alimento sem nada destruir e, ainda, doam a maior parte dele. Esse é o verdadeiro espírito de doação.
– Como podes comparar a vida humana à vida de um inseto? Vilca Marlene Merizio – Estás sendo inconsequente, minha linda. E de uma voz ainda não ouvida: – As abelhas abandonam tudo o que levaram uma parte da vida para construir. E soltam a sua produção sem se importarem com quem vai ficar. Deixam o melhor que têm, seja para quem for– o que é muito diferente de doar o que não tem valor ou de dirigir a doação para alguém da nossa preferência. – Não é assim que fazem os jardineiros? Cultivam e deixam suas flores para quem as queira apreciar. Nem a flor tem consciência do esforço do jardineiro para que ela permaneça bela. O que importa para o jardineiro é que a flor seja exatamente quem ela é, com seu perfume, sua beleza e seu néctar de excelência. E, então, as abelhas poderão fazer o seu trabalho. – Tudo é uma teia. Como podes, minha irmã, te sentires rejeitada, diante do amor dos teus filhos e de nós próprios que estamos sempre contigo, te amando, compartilhando, aprendendo juntos? – Aceita, Celeste, aceita o que a vida te dá. E se te lembras >> 135 << agora do teu passado e, consciente ou não, jogas a culpa da tua doença no teu marido, desapega-te. Aceita a dor por que passaste e oferece-a ao universo como reparação do mal que tu própria criaste para ti em teu interior. E outra boca: – Se queres libertar-te do que te faz acreditar ser rejeitada, se queres ser livre, parando de sofrer com o que te aconteceu há tantos anos, deves abrigar em teu coração um único desejo: o da libertação. E, agora, um coração mais do que uma boca: – Se queres ser livre, Celeste, se queres deixar de te sentir rejeitada, participa, colabora contigo mesmo. Para de sofrer pelo que já vai longe e já não mais está contigo o homem que acusas em teus pensamentos e agora pela tua declaração. Lembra-te, nada e ninguém nos pertence. Viemos a este mundo sozinhos e quando deixarmos essa existência também iremos só. Não viemos ao mundo para ter, para ter pessoas aprisionadas a nós, para possuir coisas... Devemos soltá-las.
– Não alimentar a ilusão da perda, eis a questão. Outro coração esclareceu: – Assim como nos abrimos para um novo acontecimento assim devemos deixar partir quem amamos se essa for a sua vontade, se o nosso tempo passou, se o ciclo foi fechado. – Sejamos luz, e continuemos luz a iluminar outros companheiros de jornada. O apego é uma ilusão que nos afasta da missão que temos a cumprir. Hummm... Teria eu compreendido? Possivelmente, revista a mina via pregressa, em pequenas porções, fragmentados lembrados e relatados, ora aqui, ora ali, realmente não parecia que tenha sido rejeitada. Simplesmente queria guardar para mim, indevidamente, aquilo que já não possuía. Quando Paulinho não retornou, e depois nos deixou, é porque ele já não nos considerava responsabilidade sua, a sua família. E castigar-me por isso, porque ele foi ser feliz com outras pessoas, não deveria me causar tanto incómodo ao ponto de eu >> 136 << pro1pria sentir-me culpada. Isso não era justo Açores: da memória à ficção .Eu mesmo não fui capaz de, no meu coração, dar-lhe a liberdade da escolha. Queria-o para nós, não me importando com os sentimentos dele. Queria deixá-lo preso a nós. Não adotei nenhuma atitude de desapego; pelo contrário, sentindo-me vítima, acusava-o constantemente pela sua escolha. Egoisticamente, me considerava o centro do mundo, sem valorizar o esforço das pessoas que comigo conviviam. Tinha de soltá-las mesmo que o tempo já me afastara fisicamente delas. No meu interior, eu continuava hermeticamente presa e prendia o Paulinho. Com esses pensamentos, quando tudo voltou ao silêncio, algo se desprendeu de dentro da minha alma. Senti uma amplidão... Um alívio profundo... E como se tivesse cortado as cordas que prendiam um grande balão, deixei-me flutuar, universo afora. Ouvi ainda meu coração batendo mais forte: – O sofrimento – no caso, a cegueira – só aparece, quando nos fixamos doentiamente a algo ou a alguém. Era o meu, o meu coração liberto que me mandava mais uma mensagem.
E as palavras de Gyamtso calaram fundo no meu enten- dimento: O apego embaça o que deveria estar claro: por trás de uma pretensa perda está o ensinamento de que algo melhor para nosso crescimento precisa entrar. E se não abrimos mão do velho, como pode haver espaço para o novo? Era, enfim a libertação, a luz que me despertava para mais uma caminhada, embora soubesse que novos percalços me aguardavam. Tinha ainda muitos anos de vida pela frente. Nem esperei a sessão terminar. Levantei, ainda com um leve zumbido a rondar o meu cérebro. Dirigi-me ao ponto de ônibus. Chovia. Mas nada me impediria de fortalecer a luz que agora sabia existir dentro de mim. E bocas, coração e vozes, ajudados por mãos generosas aplaudiram. Sim, estava salva. Minha consciência exultou com a vitória do entendimento sobre o apego inútil a ressentimentos do passado >> 137 << Vilca Marlene Merizio
...Entre os destroços do avião, uma carta inacabada Já no Brasil, sobrevoando a Bahia, Quico, querido! São dezesseis horas do dia 20 de dezembro. >> 141 << Estou neste avião há quase dez horas. Nesse instante, vislumbro, pela janela recém-aberta, um pedaço do meu Brasil: areias Vilca Marlene Merizio brancas, uma terra de verde-cinzento (o que me dá uma ideia de extrema secura), lagoas incontáveis, nuvens em gigantescos flocos de algodão sobre um azul infinitamente sereno... Então, lembro- me de ti e do que te disse a respeito do entusiasmo de que se é tomado quando se avista um pedaço da terra brasileira. Uma alegria contagiante impregna os passageiros. Há uma leveza no ar, algo de muito sublime e santo. Quero tocar as nuvens com a ponta dos dedos e sorver o azul do céu, dissipando toda a bruma da distância, de todas as distâncias... Penso ter-te ao meu lado...Toco-te as mãos, sinto o teu respirar, vejo o teu sorriso e entro por ti adentro, através desse estrelado portal verde-esmeralda, olhos que se adoçam na recepção de todo o meu bem-querer... E tu, todinho, tomas conta desse estar... Grande, caloroso, aberto. Nós, almas irmãs... Corações em uníssono... Somos quietude. E me abraças. Do calor do abraço, a energia se propaga: tudo é luz, tudo é cor. Amor.
Açores: da memória à ficçãoAbro os olhos, que há instantes havia fechado para melhor conter-te dentro de mim. O passageiro do lado toca-me o braço, pedindo licença para passar: segura uma necessaire blue na mão direita e uma camisa polo na outra. Ainda ensonado, bamboleia na direção da toillete, ao fundo do corredor. Há uma turbulência íntima, uma inquietação no ar: crianças choram, adultos mexem- se sem lhes dar a devida atenção, estranhos se acotovelam nos corredores estreitos do avião, já agora sem os grossos pullôveres, mulheres de ombros e colos à mostra, olhos a esgueirarem-se janela a fora na procura do indizível. Há ânsia no sentar-se e no levantar-se, no riso nervoso, no abrir e fechar dos livros e jornais, quando não das maletas de mão e do fecho-éclair das bolsas femininas. A mistura de cheiros (perfume francês, desodorante e desinfetantes) entontece, o burburinho aumenta... Tudo se mexe e remexe nervosamente nesta aeronave, menos o meu espírito que teima em permanecer contigo, ancorado em cada momento da nossa história, levando-me às lágrimas ou ao sorriso matreiro, conforme a memória vai se alongando em retrospectiva desde o >> 142 << sábado passado. Chove. Chove torrencialmente. Já escureceu. Está frio, muito frio. A tua voz ao telefone não é a tua voz. Estás reticente, pesado... Não posso conter-me: pergunto a ti o que na minha alma é sufoco desde o nosso passeio à Praia Grande do Pópulo: tens algo a dizer- me? Por que não falas? Por que te escondes entre bocejos de sono e bufos de ansiedade? Espero, preciso que digas. E me falas, então, em leitos inadequados por onde não fluem os nossos encontros. Falas em energia estagnada, em fluxo congestionado... Finjo não entender; aliás, nego-me a entender, e te peço explicações. Foge- me a compreensão das tuas metáforas. Tenho medo... Medo de que me digas, de que te vás... Tenho medo de perder-te, de adivinhar o teu silêncio. Medo, enfim, de ouvir-te dizer que é grande demais a diferença de idade entre nós, que tudo foi um engano, que tens pena, que entendi mal, que imaginei em demasia, que sonhei... Que inventei... Que tudo reside única e exclusivamente na minha cabeça... Acontece a explosão: peremptório, decidido, ao telefone, tua voz induz-me a aceitar um encontro, não importa quão tarde
seja a hora. Temos de conversar, devemos nos ver com urgência, Vilca Marlene Merizio temos de sair, temos... Temos de falar sobre o que no último mês estrangulou a nossa relação (e eu que achava que não havia relação entre nós... Ah! Se disso eu me tivesse apercebido!!!). Deste-me minutos para que eu me arrumasse: não haveria tempo para banhar-me (os cabelos estavam pesados), não poderia enfeitar-me (eu estava sem meias)... Tinha de ser já. Quase saí naquele temporal de inverno rigoroso, sem me importar com a tempestade que assolava a ilha. Mas resolveste vir à casa em que eu me hospedava: que eu não saísse, que te esperasse naquele segundo andar da rua que eu sempre pensei ser da Esperança. E o fato de seres tu a enfrentar o vendaval, poupando-me, vi-te mais engrandecido no teu jeito já tão maravilhoso de ser. E mesmo com roupa de andar por casa, te esperei. Chegaste esbaforido. Te senti aborrecido quando te convidei a entrar. Teus olhos faiscavam. Tuas mãos, apertando uma à outra, prendiam talvez o que não pudesses me dar. Tua alma gritava por explicações e o teu corpo alto e magro seguia o giro. Inquieto, molhado da cabeça aos pés, parecias-me extremamente ansioso. >> 143 << E estavas. Também nervosa, extremamente nervosa e insegura, não me mexi, mesmo sendo propelida a buscar uma toalha para enxugar os teus cabelos em desalinho (vontade sentia eu de te aquecer), convidando-te apenas a sentar ali mesmo naquela antessala desconfortável, úmida e fria, porque pressentia a urgência (talvez o quase-desespero) com que querias me falar. E ali sentados, um frente ao outro (juro: teu olhar não era o mesmo que eu conhecia e com o qual sonhei por meses a fio), não sei o que primeiro dissemos. Lembro que o teu celular tocou. Que tu próprio falaste ao telefone, dizendo ao teu irmão que não ias demorar, e preveniste-me: tinhas compromisso ainda naquela noite. Lembro-me bem, e disso tenho certeza, de que me perguntaste, então, com um tom de muita seriedade o que eu sentia por ti. A pergunta deixou-me embaraçada. Não propriamente a pergunta, mas o tom com que a indagação foi feita. E embora minha alma gritasse que eu te amava, não sei se o medo de parecer ridícula ou se o constrangimento em ser interpelada assim de
Açores: da memória à ficçãosurpresa por alguém que, naquele momento, não me parecia o amigo de sempre, fez-me molemente dizer apenas “eu gosto de ti”. Acho que repeti algumas vezes a mesma expressão e, se repeti, a vibração deve ter soado novamente débil, fraca demais para te convencer. Na verdade, a minha expressão vocal daquele momento não era nem a sombra do que podia transmitir-te a respeito do amor que sentia (sinto) por ti. Eu tinha que gritar (não; agora é que tenho de gritar)... Lá, naquele momento, eu tinha que ter te abraçado... Dito, sussurrando brandamente ao teu ouvido o que me enchia o coração e a vida. Com leveza, com muita doçura, alma aberta, delicadeza do roçar de pétalas em face de criança, com o enlevo dos nossos corações batendo junto, com o calor da nossa alma em fogo: – Quico querido, eu te amo, eu te amo com todas as forças do meu ser. Naquela moleza do “eu gosto de ti”, onde se escondiam o meu entusiasmo, a minha alegria, o meu amor forte e transbordante? Em que malhas havia se enredado o meu bem-querer? Estava eu atônita, sem lembrança sequer de te devolver a pergunta, de saber >> 144 << também o que sentias (sentes) por mim. Infinitas vezes, no meu íntimo, e ainda na minha ilha/cidade, ensaiei respostas para essa pergunta. Infinitas vezes, vi-me aconchegada, muito abraçadinha a ti, repetindo eu te amo, eu te amo, beijando-te de leve os olhos, os lábios, a boca. E na mesma vibração, tua voz escutava baixinho, melodia de puro querer... Teus lábios roçavam-me a pele, teu hálito nos meus cabelos, tuas mãos a cobrir a pura nudez da minha alma. Mas lá, na tua cidade/ilha, a realidade era outra. E amoleci. Felizmente aceitaste a minha resposta, talvez porque já tinhas a certeza da sua veracidade. Aos poucos, fui te sentindo mais calmo, mais confiante, novamente o jovem conhecido, o moço amado, amoroso, olhos calmos maravilhosamente vibrantes e espertos, captando todo o movimento, todo o impulso reprimido, todo o envolvimento daquela nossa longa retrospectiva. E quiseste ter certeza de um quando. Só que este quando dificilmente poderia ser mapeado; ele se foi construindo paulatinamente, segundo a segundo, centímetro a centímetro, como se não fosse algo novo, mas renascido, gota a gota, face a face, num despertar risonho, faceiro, de muita ternura,
de afetos longínquos, presentes e futuros, tudo num emaranhar de arranhuras e docilidades, de cheiros e sons, de tons e toques, de mãos se abrindo-fechando, apertadas, mãos de (e em) apoio a, de (e em) segurança, de (e em) cuidados... De doação. Mãos em comunhão. Consagradas. Vinho e pão. Altar/Celebração. Ressurreição! Como foi lindo aquele nosso primeiro tempo. Março em Páscoa antecipada. Quanta ternura! Quanta beatitude nos sentimentos, na expressão do olhar, no calor da fala: pureza de criança dormindo, fofa, no abandono do lar... Mas agora, naquela segunda etapa do nosso encontro, o inverno queimava. De caneta em punho e papel a tremer-te nas mãos geladas, querias saber, querias desenhar como era o meu sentir. Talvez eu não tenha te feito entender nesse espaço de tempo que não nos vimos, mas no qual estivemos sempre juntos através de e-mails e de trocas de mensagens pela internet (prática até então desconhecida para mim), do conforto da minha alma, da alegria, da vibração, da frequência mais alta do meu amor, expandindo-se por todas as células do meu corpo, transcendendo, indo ao infinito... >> 145 << Quando, desligado o computador, eu deitava-me no sofá Vilca Marlene Merizio da sala, rememorando toda a palavra dita, todo o sentimento vertido em reticências, exclamações e figurinhas icônicas que trocávamos. E percebia o quanto eu estava leve e feliz, amando o mundo, amando a vida, amando o amor e, sobretudo, amando aquele menino comprido, que de tão longe gastava suas horas de serão, conversando comigo, discutindo, ensinando, mostrando... e, pensava eu: me amando com toda a força de seu amor maduro), o mesmo sentir que me motivou a dizer-te, naquele primeiro tempo em que passamos juntos na tua ilha, que me fazias santa. Agora, querias saber exatamente – e estavas de lápis e papel na mão – em que momento tudo teve início. Fico em dúvidas sobre o teu questionamento: estarias querendo saber o momento certo em que tocaste a minha alma com a tua sensibilidade ou, quando já tocada afetivamente pela flecha certeira, descobri-me apaixonada, fortemente magnetizada pela tua presença física? Me é consolador lembrar – como já te disse – das ocasiões em que, no inverno passado, ao tentar tirar as minhas mãos das
Açores: da memória à ficçãotuas, envolvias ambas com uma pressão mais forte, abaixando o polegar e não deixando que eu as retirasse; então sorrio... Mas, recordo também que, em outras ocasiões, quando eu tentava acariciar os teus pulsos, ou tocar um pouco acima deles, ou ainda acarinhar o teu braço, levantavas-te e te afastavas de mim, como a fugir. Lembras-te? Da última vez, apreciávamos a vista da cidade lá do alto do Outeiro. E isso ainda hoje me entristece. Por que fugias, quando tão próximo estávamos de nos entender, de assumirmos nós próprios o nosso amor? Para me confortar, busco na lembrança um certo friozinho no estômago, quando, no início, me cumprimentavas, e eu notava: era diferente o teu cumprimento em relação a tuas colegas e amigas, mesmo que com elas tivesses menos intimidade do que – suponho – tens comigo. Com elas parecias mais à vontade. Comigo te reprimias. E passavas a mão no braço da pessoa que estivesse conosco em demonstração de alguma técnica de massagem ou cura, mas no meu braço, não; no meu corpo não tocavas. Com exceção de um dia: estávamos sozinhos, era >> 146 << madrugada e ainda estudávamos a lição para o dia seguinte. O frio enregelava-me o corpo. Estávamos sentados um em frente do outro, em cadeiras comuns. Puxei uma outra cadeira, encolhi as pernas e acomodei-me; apoiaste, então, as tuas mãos sobre os meus pés, deixaste-as em volta dos meus tornozelos. Foi bom, muito bom... Quentinho! O calor enrubesceu-me. E um prazer leve, de muito carinho, de muito cuidado, cresceu... Quando meu corpo pedia mais, levantaste-te e, tirando da tua mochila uma manta, cobriste-me carinhosamente, colando ao meu corpo cada palmo daquele cobertor azul... Se até então não houvesses despertado nada em mim, tal gesto “abalaria todas as minhas defesas”... Sim, abalou. Possuíste-me, então, em nível de infinito... Energia pura, santificada... Teu sorriso, a luz irradiada de todo o teu ser, tudo em ti – em nós – falava de harmonia e de perfeição. E assim fomos, naquela noite gelada de confissões e desabafos, de chuva e frio, passo a passo, (re)compondo o nosso périplo dos trinta e dois dias de fevereiro/março do nosso primeiro tempo, quando eu ainda mal conhecia a tua ilha. Mesmo agora, revivo
aqueles dias com ternura e saudade: jamais senti tanta alegria e Vilca Marlene Merizio vontade de viver como naquele meu primeiro inverno europeu: o sol fizera morada no meu coração. Quanta diferença entre o meu estado de espírito daquela primeira ocasião e o da nossa segunda temporada, quando, seguindo impoluta decisão, não insisti, não avancei, não deixei que tu, por tua livre vontade, viesses até mim. E te cortei nos convites, te exclui das minhas páginas digitais, te evitei, enfim, até saber que me procuravas, que perguntavas por mim, e que me esperavas nos lugares públicos onde sabias que eu ia aparecer. Depois, é que fui me convencendo de que, o que é penoso para mim, talvez não seja para outras mulheres... E tu conheceste tantas mulheres de culturas tão diversas! Quiçá esperasses que a minha atitude em relação a ti fosse mais agressiva – no sentido de aproximação, de dar o primeiro passo –, mais expansiva, mais aberta, mais corajosa, mais ousada... Para mim, foi extremamente difícil qualquer ação ou reação frente à tua postura distante; foi impossível desrespeitar o teu querer, ir contra o que me expunhas, às vezes claramente, muitas das outras vezes de forma elegante, >> 147 << mas velada, mesmo que sentisse, como já te disse, a dor lancinante da vontade da entrega malograda, fel queimando todas as fibras do me ser. Peito, braços, mãos, baixo-ventre, decepados os gestos de ternura e de carinhos, caiam combalidos em inércia de desespero. Lembrei mais ainda. Dias antes, num domingo fatídico, fomos à Praia. Tudo estava tão propício! Pouca gente, o sol se pondo... Sentia-me, ao teu lado, um tanto temerosa (sobre isso tinhas razão quando falavas sobre “certo medo” que eu não conseguia esconder), se bem que alegre... Feliz mesmo. Nos primeiros momentos, já apreciando o mar, notando a tua inquietação (tua ansiedade deixava bem claro que beirávamos um conflito), eu temia que me dissesses que poderíamos ser amigos, mas que não havia da tua parte qualquer sentimento de amor mais profundo em relação a minha pessoa. Punha-me, então, no teu lugar, imaginando as vezes que eu própria tive de desfazer alguns equívocos em relação a determinados relacionamentos de amizade, confundidos pelas pessoas em questão como se fossem o começo de uma paixão. E me imaginei na tua pele, com toda a tua
Açores: da memória à ficçãosensibilidade e cuidado, tendo de me dizer que precisávamos pôr fim naquilo que só eu – e estou consciente disso – só eu alimentei, embora não houvesse criado tudo sozinha. E daí o nosso embaraço, os nossos silêncios, a busca da palavra certa, o olhar atravessado, os assuntos chochos a serem puxados quase a ferro. A minha vontade, naquele momento, era de ir até a beira do mar sentir a força de Iemanjá, o beijo gelado de espuma daquelas águas tão mansas, tão azuis, tudo tão poético... apelando para a vida ou para a morte. E não fui. Estavas inquieto, quase sufocado por uma ansiedade não disfarçada. Mil vezes pensei em tirar as meias e enterrar os pés naquela areia negra, grossa e fofa. Irias comigo, com certeza. E brincaríamos, talvez até corrêssemos... Ou não... Talvez nos sentássemos para conversar... Não, não, o mais certo seria caminharmos lentamente, olhando o mar, olhando o além, usufruindo todos os segundos daquele céu incandescente e mágico que contribuía para um cenário de entrega total. E juntos, desceríamos até a orla do mar e depositaríamos delicadamente sobre o manto púrpuro/cristalino a nossa devoção >> 148 << a Iemanjá, a nossa fé, a nossa crença num mundo de amor e de paz. E molharíamos os pés, e olhar-nos-íamos com ternura... Talvez não entendesses quando eu, mãos em concha, levasse o cristal daquela água até o topo da tua cabeça, espargindo-o pelo teu corpo em cerimônia de batismo de amor. Tu levantarias, também com mãos em concha, nova porção daquele precioso e salgado líquido azul, derramando-o desde o alto da minha cabeça, e, então, batizados no amor, abraçar-nos-íamos, completamente repletos de bênçãos, alegria e paz, num ato de plenitude completa. Voltaríamos para a cidade realizados, felizes, beatificados. Livres e inteiros... Assim, outro rumo teria tomado a nossa história. Mas, não, naquela tarde de domingo tudo pesava. Sentados no teu carro há mais de uma hora, ainda te conservavas atado ao cinto de segurança. Eu mal me mexia. Lembro-me de haver dito que não costumava tomar iniciativas (e por que não, meu Deus? O que me impedia de ser eu mesma?) e tu, recebeste uma mensagem pelo telemóvel. Novamente algo exterior a conduzir-te, a conduzir-nos... Dessa vez houve reação (da tua parte). Até então, não tínhamos dado atenção à música que tocava baixinho num
CD escolhido por ti. E a voz sensual de Leonard Cohen (havias me Vilca Marlene Merizio perguntado: “do Cd, qual a tua canção preferida?” Não tive dúvida: A Thousand Kisses Deep5) veio na hora certa, traduziste-me alguns versos, como se a música incitasse a menos palavras e mais ação; e fizeste a tua mão direita serpentear, numa coreografia imaginada, tentando dançar com a parte superior do corpo, embora o cinto de segurança o impedisse, apertando-te mais ao banco da frente do teu carro. Queria eu também volutear ao ritmo novo que me apresentavas e que a mim fazia gosto ouvir... E te animaste, criaste alma nova: contaste novidades, disseste-me – “hoje ajudei um amigo”. E te tornaste outro, ou melhor, voltaste a ser aquele que eu conhecia: alegre, vibrante, seguro. Mas, só isso. Voltamos; já era tarde. No caminho, a quase descontração, o riso solto, as explicações ainda não bem elaboradas, a tradução de In my secret love, também do Cohen. No salão de chá do hotel, a alegria de estarmos juntos, o desconcerto do garçom quando pedi um queijo quente. Mais risos, o lanche... a chegada dos outros colegas, a conversa mal-acabada, um cheque entre as folhas de >> 149 << um livro... A tua saída às pressas (“de que foges, meu amigo?” “Eu? Não, eu não fujo”). Também eu, parada. Do teu adeus apressado, o medo me paralisa e frusta. E agora, juntando outras lembranças, vêm-me à memória que, diante de ti. *** Semanas depois, a manchete do maior Jornal do país: Sem sobreviventes, entre os destroços do avião acidentado na Bahia, carta intacta. Da notícia, um trecho: “Dispersas, entre as fuselagens torcidas do avião vindo da Europa, na semana passada acidentado na Bahia, folhas manuscritas com tinta preta, foram encontradas. Quem teria sido a emitente? Se o leitor conhecer a letra de um dos passageiros, pode procurar a carta inacabada no [...].WW 5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iLScicF9akI.
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