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Contos Açores-ok

Published by Paroberto, 2023-08-03 12:49:56

Description: Contos Açores-ok

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["","","O reencontro da chama perdida O bangal\u00f4 estava \u00famido. As tralhas amontoavam-se entre o limo, a poeira, as teias de aranha e a putrefa\u00e7\u00e3o do que j\u00e1 fora comest\u00edvel. Mesmo assim, Fatinha entrou decidida: haveria de vasculhar todo aquele entulho. L\u00e1, dentro daquela massa informe e escurecida, deveria estar o que h\u00e1 anos procurava. >> 153 << Cidinha a seguia. Olhos curiosos, n\u00e3o fosse aquele cheiro Vilca Marlene Merizio a mofo e aquela poalhazinha que o sol, passando pela fresta da parede e pela porta agora escancarada, deixava entrar, emba\u00e7ando o ambiente, ela estava feliz. Afinal, iam saber se de verdade a av\u00f3 tinha tido o seu momento de fama. A maca aberta no meio da sala ainda trazia o velho cobertor marrom de listas azuis sobre os len\u00e7\u00f3is cor de vinho. As almofadas, com capa de listras em verde e roxo, pendiam da borda da maca, com manchas que indicavam as marcas de algum roedor que por ali houvesse passado e saciado a sua fome. As m\u00e3os de Fatinha, logo \u00e0 entrada, procuram as minhas, dando-me coragem. Havia muito o que se remexer. E outro tanto a remover. Encostadas \u00e0s paredes do fundo, as prateleiras do grande arm\u00e1rio de pinho deixavam \u00e0 mostra as lombadas dos livros empilhados uns sobre os outros, \u00e0 mistura com pedras de rio, cristais e outros objetos orientais. \u00c0 esquerda, uma estante mais nova, talvez de criptom\u00e9ria, carcomida pelos cupins, balan\u00e7ava ao leve toque de Cidinha que se distra\u00eda no vai e vem","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3odos berloques pendentes de um gancho preso na parte de cima da prateleira. Os p\u00e9s do m\u00f3vel n\u00e3o aguentaram a oscila\u00e7\u00e3o: todo um aparato de pap\u00e9is amarelados, revistas e jornais, velas usadas, pe\u00e7as de roupas \u00edntimas, pastas de pl\u00e1stico, fotos, canetas e pequenas imagens de santos vieram ao ch\u00e3o num arrastar arrepiante face \u00e0 secura dos objetos. E l\u00e1 ficaram. Mais um entulho sobre o qual as pernas magras de Cidinha tinham de galgar. A poeira entranhava na garganta. Comecei a me sentir mal. Um acesso de tosse fez-me inclinar o corpo quase tocando a beirada daquela maca f\u00e9tida. Precisava de ar. Dei meia volta e j\u00e1 procurava a sa\u00edda quando senti que mais algu\u00e9m entrara naquele recinto esquecido. Quando reconheci Eduardo, senti que, de vez, o ar me faltaria por completo. Mas F\u00e1tima, atenta, se aproxima e insiste para que eu me apoie nela; seu fr\u00e1gil corpo, por\u00e9m, n\u00e3o me d\u00e1 seguran\u00e7a. Sem pestanejar, Fatinha tirou o casaco, fez peso com uma das m\u00e3os sobre a superf\u00edcie empoeirada da maca e, esticando-o ao >> 154 << comprido fez-me deitar. Enquanto me olhava com cuidados, fez uma bola com o cobertor e os len\u00e7\u00f3is que se agarravam \u00e0 napa e jogou-a a um canto. Mais poeira levantou-se no ar. Deitei-me a custo. Cidinha ajudou, segurando-me pelas pernas at\u00e9 t\u00ea-las aplainado na posi\u00e7\u00e3o horizontal. Uma leve massagem nos meus p\u00e9s \u2013 como tantas vezes F\u00e1tima fizera \u2013 come\u00e7ou a me trazer o gosto pelo toque daquelas m\u00e3os quentes e leves. N\u00e3o queria dormir. Resisti. Naquele antro de lembran\u00e7as doloridas n\u00e3o havia como encontrar a paz. Cidinha vasculhava a sala, agora, sem nos dar aten\u00e7\u00e3o. Juntou umas espigas de trigo que se faziam ver sob a escaramu\u00e7a feita pela queda da estante, enfeixou-as e colocou-as dentro de um copo de vidro canelado j\u00e1 mais esfuma\u00e7ado pela cinza de cigarro que se acumulava no fundo do que transparente como fora um dia. Sorriu para mim. E continuou na sua busca. Um monte de cana seca enfeitava o canto direito do aposento, entre dois sof\u00e1s de veludo escarlate. Mais folhas secas no ch\u00e3o do que grudadas aos caules roli\u00e7os tamb\u00e9m secos pelo tempo. E ela as ia removendo uma a uma como se embaixo delas","se encontrasse a ponta do novelo que iria revelar-nos a hist\u00f3ria Vilca Marlene Merizio vivida por sua bisav\u00f3 Clarissa. Quando reabri os olhos, estava sozinha. Cambaleante, sa\u00ed daquela gruta imunda. Fora, sentada sobre um banquinho de pedra, Cidinha folheava as p\u00e1ginas de um velho \u00e1lbum. Ao seu lado, pastas fechadas com el\u00e1stico e, nas m\u00e3os de Cidinha, um grosso volume, em cuja lombada se lia o que fora escrito com pincel at\u00f4mico azul: SETE REIS SEM COROAS. No ch\u00e3o, do ba\u00fa cor-de- rosa, reflexos do sol a pino a dar nas dobradi\u00e7as escondiam o que l\u00e1 ainda pudesse existir. Mas o que parecia importar fora o achado. Agora eu poderia reencontrar a chama perdida: a vida da minha av\u00f3 materna, portuguesa de nascimento, que se transformara num mito nacional, embora suas verdades n\u00e3o constassem da Hist\u00f3ria reconhecida pelos vencedores. E pus-me a ler, esperan\u00e7osa, aquele roteiro de vida que, talvez, me apontasse para o verdadeiro territ\u00f3rio onde estava o tesouro enterrado. Mas, sem mapas, sem caminho, pensei: jamais o encontraria. Mesmo assim, prometi, enquanto as for\u00e7as n\u00e3o me >> 155 << abandonassem, continuar buscando o que para a fam\u00edlia Almeida Cruz e Brito era uma quest\u00e3o de honra.","","Capa do livro de romance","","As quarenta e nove qualidades do B. Vilca Marlene Merizio Naquele inverno, conheci o Monge. J\u00e1 hav\u00edamos feito algumas incurs\u00f5es pela regi\u00e3o, quando voltamos esbaforidos para a continua\u00e7\u00e3o do Curso. Passavam alguns minutos das quinze horas e n\u00e3o convinha faz\u00ea-los esperar. Minha alma era regozijo s\u00f3. Apeamos do cavalo, e mal deu tempo para que Ser\u00f4nio e >> 159 << Tereza pegassem as r\u00e9deas: na escadaria do antigo col\u00e9gio, olhos curiosos espreitavam a nossa alegria. Subimos de m\u00e3os dadas os tr\u00eas lances de pedra. No sal\u00e3o rosa, os alunos, at\u00e9 ent\u00e3o impacientes, acolheram-nos com um sorriso c\u00famplice. No centro do quadro negro, em letras desenhadas com capricho, um pensamento de Lausimar Laus, tirado de O Guarda-Roupa Alem\u00e3o, dava-nos as boas-vindas: \u201cA vida \u00e9 um imenso palco. Todos somos artistas. S\u00f3 os bons \u00e9 que fazem carreira. Outros, n\u00e3o passam do ensaio.\u201d E durante a tarde toda, trabalhamos, afincadamente, na prepara\u00e7\u00e3o do texto da pe\u00e7a de teatro que ia ser encenada durante o resto de nossas vidas. \u00c0s dezenove horas, voltamos a ficar sozinhos, o Monge e eu, agora no Sal\u00e3o Verde do Col\u00e9gio. De repente, sem que eu esperasse, ele dep\u00f4s umas folhas de papel em branco sobre a mesa, em cuja cabeceira eu havia me sentado \u00e0 espera de que ele fizesse o mesmo. Disse-me, com voz de comando: \u2013 Anda l\u00e1, anota a\u00ed as qualidades ou os estados de esp\u00edrito que mais aprecias no B. Fiquei at\u00f4nita. Como poderia ele, o Monge,","querer que eu listasse as qualidades do homem que eu amara por tanto tempo e que me trocara por uma jovem de vinte anos... Eu que estava ali para esquecer as mazelas de amor sofridas durante grande parte da minha vida? O Monge insistiu com o pedido. Mostrou-me a folha e os cinco travess\u00f5es que deveriam marcar a minha \u201ccriteriosa aprecia\u00e7\u00e3o\u201d (assim explicou ele o exerc\u00edcio a que me impunha fazer). \u2013 J\u00e1 dei in\u00edcio, marcando com travess\u00f5es o local onde dever\u00e1s escrever os primeiros cinco aspectos positivos que descrevam o B. Espero que continues a listagem. Pelo que me dizes dele, o n\u00famero de travess\u00f5es dever\u00e1 se estender. Provavelmente, deves mesmo ter muita coisa boa para apontar \u2013 resmungou o Monge, abaixando-se para olhar-me diretamente nos olhos, que eu conservava baixos. Eu estava at\u00f4nita: o Monge exigia demais do meu cora\u00e7\u00e3o cansado. Mas o olhar com que me abra\u00e7ou nesse momento fez- me capitular. Aos poucos, fui deixando o B. renascer em minha mem\u00f3ria. E, embora reclamasse, para ocupar o tempo em que o B. ia readquirindo forma no meu cora\u00e7\u00e3o, acrescentei, meio que >> 160 << aleatoriamente, mais dois travess\u00f5es \u00e0quela listagem que, para A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3o mim, seria curta e in\u00fatil. Imposs\u00edvel arrancar cinco qualidades de dentro de mim a favor do pai dos meus filhos, de quem estava divorciada h\u00e1 mais de dez anos e com quem eu vinha mantendo uma rela\u00e7\u00e3o de amor-e-\u00f3dio, principalmente nas \u00e9pocas em que ele retornava ao lar. No topo da folha, em letras de imprensa, o Monge escrevera \u00e0 guisa de t\u00edtulo: \u201cQualidades que aprecio no B.\u201d. O pavor me tomara. N\u00e3o me lembrava de nenhum gesto bom, de nenhuma d\u00e1diva, de nenhum bem querer. E o Monge ali, a me olhar, parecendo inquieto com tanta obstina\u00e7\u00e3o. Envergonhei-me. Baixei os olhos, entrei em minha alma e chorei. N\u00e3o, n\u00e3o havia nada mesmo que eu pudesse apontar de positivo. O tempo paralisara. O frio enrijecera-me o sangue. J\u00e1 quase em desespero, olhei-o de novo, pronta a desistir. Tinha vontade de contar-lhe todo o passado, a vergonha, as cal\u00fanias, a raiva, a viol\u00eancia, a loucura... Pacientemente, pressentindo o que me ia n\u2019alma, disse-me que n\u00e3o. N\u00e3o era para isso que est\u00e1vamos ali.","Urgia que fiz\u00e9ssemos um exerc\u00edcio para limpar as m\u00e1goas... era tempo de perd\u00e3o. \u2013 Este \u00e9 o momento certo para reiniciar um per\u00edodo de paz e harmonia. De liberta\u00e7\u00e3o \u2013 acrescentou, muito s\u00e9rio. Antes, por\u00e9m, de anotar qualquer coisa naquele papel, era preciso perdoar. E s\u00f3 se perdoa quando se apaga totalmente do cora\u00e7\u00e3o o mal, substituindo-o indefinidamente pelo bem. Eu precisava tentar, \u201cfazer das tripas cora\u00e7\u00e3o\u201d... E quase em pranto, com a mente bloqueada, ouvi o Monge cantarolar, novamente alheio \u00e0 minha presen\u00e7a. A melodia lenta, doce e quente preencheu os poros da minha ang\u00fastia. Acalmei-me, levantei os olhos e vi: sossegadamente, com um sorriso largo e amistoso, o Monge, sentado na cadeira de estofo amarelo, sorria para mim e... esperava. De repente, como se ali estivesse sozinha, caiu-me a primeira qualidade que apreciava no B. Veio outra, depois outra, mais outra. O espa\u00e7o dos tr\u00eas primeiros travess\u00f5es foi ligeiramente preenchido: \u2013 Generosidade (quando lhe apetece). >> 161 << \u2013 Simpatia. Vilca Marlene Merizio \u2013 Corre\u00e7\u00e3o e presteza. (Eu nem notara que j\u00e1 nesse terceiro travess\u00e3o escrevera um quarto aspecto positivo.) \u2013 Muito bem, disse-me ele com um sorriso na voz, j\u00e1 \u00e9 um come\u00e7o. Sei que tem mais. N\u00e3o h\u00e1 pressa. Eu espero. E sem me dizer mais nenhuma palavra, levantou-se, corpo ereto, olhar no infinito... E eu voltei ao B. ainda aquecida pela sua presen\u00e7a. \u2013 Alegria (capacidade de sentir-se alegre e de tornar as outras pessoas alegres). Venci os cinco travess\u00f5es, pensei. Mas eu pr\u00f3pria j\u00e1 grafara mais dois na sequ\u00eancia dos cinco primeiros. Ri, ent\u00e3o, quando me lembrei de uma coisa que sempre deu certo nos nossos trinta e nove anos de casamento: \u2013 Capacidade de o B. acordar sem rel\u00f3gio despertador, mesmo tendo deitado poucas horas antes. Lembrar da cama faz sempre vir \u00e0 cabe\u00e7a momentos bons de muita ternura e amor. Escrevi, ent\u00e3o:","\u2013 O B. tem um calor pessoal que me conforta e segura (foi isso mesmo que escrevi, \u201csegura\u201d; talvez agora, se o objetivo fosse fazer uma revis\u00e3o do texto, tivesse mudado para \u201ccalor pessoal que me conforta e me d\u00e1 seguran\u00e7a\u201d; o \u201csegura\u201d, neste momento, transmite-me a ideia de \u201cme prende\u201d: e aqui est\u00e1 um pouco de verdade). Fui al\u00e9m: \u2013 \u00c9 alto, bonito, cheiroso, gostoso, macio e suave. E n\u00e3o parei mais: \u2013 Possui m\u00e3os bonitas, seguras, m\u00e1gicas (quando quer). \u00c9 sens\u00edvel. Precavido, cauteloso; est\u00e1 alerta permanentemente. \u00c9 bom condutor. Gosto quando dirige, sinto-me segura e confiante. Assa um churrasco muito bom, que me delicia e favorece os contatos sociais. Exige unidade familiar: que filhos, noras, genro e netos ... todos os elementos da fam\u00edlia estejam sempre juntos nos finais de semana. Quando coloquei o ponto final na frase acima, o Monge olhou-me seriamente e pediu que eu lesse em voz alta o que havia >> 162 << escrito. Li. N\u00e3o satisfeito, quis que eu sopesasse o significado A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3o de duas palavras: \u201cexige\u201d e \u201csempre\u201d; que pensasse sobre a carga emotiva que lhes estava emprestando e sobre o impacto que estavam causando em toda a informa\u00e7\u00e3o contida no per\u00edodo. Reli o trecho, deixei repassar pela minha lembran\u00e7a momentos da minha vida familiar e, mais uma vez, senti que o Monge tinha raz\u00e3o. Com honestidade, mudei a reda\u00e7\u00e3o da frase anterior: \u2013 Empenha-se fortemente em sustentar a unidade familiar, fazendo com que filhos, noras, genro e netos, estejam juntos nos finais de semana (em vez do \u201cexige\u201d: \u201cempenha-se fortemente em sustentar a unidade familiar\u201d; tirei o \u201csempre\u201d. Na verdade, na primeira vez eu n\u00e3o estava sendo justa ... e nem percebia isso). N\u00e3o foi preciso dizer mais nada: sozinha, dei prossegui- mento \u00e0 lista e esqueci o Monge. \u2013 \u00c9 limpo e muito cuidadoso com a higiene pessoal. \u00c9 pontual. Provedor, traz constantemente \u201ccoisas deliciosas\u201d para a casa: queijos, p\u00e3es, carnes, doces, verduras vi\u00e7osas, vinhos bons, sucos deliciosos; vem sempre carregado...","\u2013 Chega sempre de leve, de mansinho, o que comecei a apreciar quando ele passou a ser o \u00faltimo a chegar em casa (antes era eu quem chegava). Preocupa-se sempre com que eu tenha um carro bom. O B., como ex-marido, faz-me falar mais nele (positivamente) do que as outras mulheres falam nos seus maridos. Sempre que o chamo, ele larga tudo e vem correndo, em qualquer situa\u00e7\u00e3o, em qualquer \u00e9poca, em qualquer hora do dia e da noite. \u00c9 respons\u00e1vel. \u00c9 forte. Mas est\u00e1 sempre... Volta o Monge e traz-me de volta aos aspectos positivos. Eu quis explicar, mas o Monge n\u00e3o permitiu. Pediu que continuasse. Continuei. E num desabafo, tamb\u00e9m de surpresa para mim, escrevi: \u2013 Adoro aquele homem grande, quente, terno. Agora l\u00e1grimas grossas rolavam pela minha face. N\u00e3o era mais de desespero que eu chorava, mas uma saudade grande invadia-me o peito. O sorriso do Monge iluminou a sala. \u2013 Tem l\u00e1bios bonitos. Tem cabelos macios. Pele bonita, macia, lisa... Gosto quando ele descansa aquela perna pesada sobre mim, mas gosto muito mais quando ele deixa que eu me derrame sobre ele. \u00c9 persistente, \u201cganha pelo cansa\u00e7o\u201d. Guerreiro incans\u00e1vel. Nos neg\u00f3cios, tem a arte de fazer os outros \u201ccomer na >> 163 << sua m\u00e3o\u201d. Vilca Marlene Merizio O Monge arregalou os olhos e lembrou-me que o exerc\u00edcio constava apenas dos aspectos que eu apreciava. Concordava eu com o mencionado anteriormente? N\u00e3o, n\u00e3o concordava. Tive ent\u00e3o de excluir a frase acima. Substitu\u00ed por: \u2013 Muito bom negociante. Sabe comprar e vender. E me senti orgulhosa dele. E o meu amigo continuou assentindo com o sorriso largo de monge franciscano. \u2013 Aprecio que seja pessoa que n\u00e3o fume e que bebe somente em ocasi\u00f5es especiais. A ora\u00e7\u00e3o final dessa frase custou-me a sair, o Monge deu- me uma \u201cm\u00e3ozinha\u201d. \u2013 \u00c9 culto. Gosta de arte. Instiga-me \u00e0 pesquisa, \u00e0s leituras, ao estudo. \u00c9 muito organizado. \u00c9 extremamente paciente na organiza\u00e7\u00e3o de coisas pequenas. \u00c9 jovial. \u2013 Aprecio quando me ajuda financeiramente. Gosto quando vai me buscar para ir \u00e0 praia ou para jantarmos fora.","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3oE o Monge foi fazendo gestos afirmativos com a cabe\u00e7a, sem olhar para o que eu escrevia. Adivinhava ele, pelo meu respirar, que o que eu pensava era extremamente bom. \u2013 Adoro dan\u00e7ar com ele. E sentir o seu cheiro... E abra\u00e7ar a sua barriga grande. Gosto muito quando faz o caf\u00e9 da manh\u00e3 (com mesa posta e tudo). Quando me faz o ch\u00e1 ou me traz \u00e1gua durante a noite (e n\u00e3o reconhe\u00e7o a sua bondade, irritando-me, \u00e0s vezes, quando me acorda). Ajuda sempre os necessitados. \u2013 Gosto quando vai aos cultos religiosos. Reza sempre e tem muitos santinhos espalhado por toda a casa... \u00c9 bom pai. Ajuda os filhos. Foi bom filho. \u00c9 bom irm\u00e3o. Adora a fam\u00edlia de origem. \u00c9 esperto. Astuto. Inteligente. E a\u00ed ent\u00e3o, comecei a falar no B. com orgulho e AMOR. Era isso que o Monge estava esperando. Era essa falta de coragem de olhar de frente o meu ex-marido e de dizer-lhe que o amo incondicionalmente que estava estragando as nossas vidas e, por extens\u00e3o, a dos nossos filhos e de toda a fam\u00edlia. Mesmo que esse amor n\u00e3o o traga de volta para casa, mesmo que compartilhemos, >> 164 << daqui para frente, a vida com outras pessoas, s\u00f3 agora compreendi a liberdade que o amor, aquele verdadeiramente limpo de todas as sequelas de uma separa\u00e7\u00e3o, \u00e9 capaz de promover, quando se \u00e9 capaz de perdoar. Dif\u00edcil, no entanto, \u00e9 se chegar ao perd\u00e3o sem a ajuda de um verdadeiro amigo que seja sens\u00edvel \u00e0 situa\u00e7\u00e3o. Enquanto pensava, n\u00e3o percebi que o Monge escrevia apressadamente. Certifiquei-me disso somente quando ele, com voz terna e calorosa, pediu-me que lhe dissesse ainda, o que despertara o meu amor pelo B. quando, h\u00e1 quarenta e quatro anos, come\u00e7amos a namorar (tinha eu quatorze anos e ele, vinte). Agora, para mim, nada parecia dif\u00edcil nesta rememora\u00e7\u00e3o: \u2013 T\u00ednhamos muita afinidade; de tudo o que ele gostava eu gostava tamb\u00e9m. Seus ideais eram nobres. Aspirava ao progresso e \u00e0 evolu\u00e7\u00e3o em todos os sentidos. Era aberto \u00e0s novidades. Din\u00e2mico. Lia muito. Apreciava arte. Escrevia poemas. Ofereceu- me como primeiro presente um livro de poesias do J.G. de Ara\u00fajo Jorge. Era alegre, divertido, gostava muito de dan\u00e7ar, de ir ao cinema, de conversar com idosos, mas tamb\u00e9m de brincar com crian\u00e7as. Visitava-me tr\u00eas vezes por semana, sempre com muita","alegria e boa disposi\u00e7\u00e3o. Era extremamente amoroso, gentil, amigo e educado. Olhos verdes. M\u00e3os bonitas. Tinha bom emprego... \u2013 Basta, basta, disse-me sorrindo. E voc\u00eas... \u2013 N\u00f3s nos am\u00e1vamos, completei. \u2013 Como \u00e9 que ele te chamava na intimidade? \u2013 Neni. E sem mais, o Monge entregou-me uma folha na qual estivera escrevendo nos \u00faltimos minutos. Foi ent\u00e3o, que mais ainda chorei: agora de alegria por ter alcan\u00e7ado realmente o perd\u00e3o. Neni... >> 165 << Que podiam ter-me dado os Deuses de mais grato...? Que podia eu desejar com maior ardor? Vilca Marlene Merizio Que tesouro me ofertaste: Singelo, sentido, belo... Comoveste-me. Abanei... de dentro... Senti um sismo emocional (Grau 7) Que me abalou... E feriu de morte as minhas muralhas. N\u00e3o pude resistir. Bem que fiz soar o clarim... chamando o ex\u00e9rcito... todas as minhas defesas, mas... foste t\u00e3o certeira... descreveste o meu ser t\u00e3o perfeitamente que, perante tal fa\u00e7anha (de in\u00edcio senti at\u00e9: \u2018ousadia\u2019), nem tive de instruir as tropas ao chegarem pois elas por si pr\u00f3prias dispersaram ao verem o meu estado prostrado... perante toda a minha emo\u00e7\u00e3o por constatar que ... AFINAL... tu consegues ver-me, consegues sentir-me, consegues ouvir-me, consegues amar-me, me aprecias, me valorizas at\u00e9 nas pequenas coisas. Sim, v\u00e3o-se embora tropas... desnecess\u00e1rias... Apercebo-me agora da sua desnecessidade. Nada h\u00e1 a combater. O inimigo rendeu-se. E eu agora... Que me resta sen\u00e3o aceitar a sua rendi\u00e7\u00e3o? Mudaram-me o jogo a que me habituara a jogar. Trocaram de lugar as pe\u00e7as. Mudaram o tabuleiro... Que me resta agora? Talvez... aprender as regras deste novo jogo. ...\u201cEU QUERO JOG\u00c1\u201d... ...\u201cMand\u2019\u00e0 bola\u201d!!!","*** O texto acima \u00e9 um misto de realidade e fic\u00e7\u00e3o. Cont\u00e9m fatos ver\u00eddicos e outros criados por minha imagina\u00e7\u00e3o. \u00c9 verdade que existiu a situa\u00e7\u00e3o mencionada. \u00c9 verdade que o perd\u00e3o foi concedido por ambas as partes, e que eu e o pai dos meus filhos, embora divorciados, vivemos agora em harmonia, num relacionamento de amizade onde o amor est\u00e1 presente de forma incondicional. \u00c9 verdade que a pr\u00e1tica do perd\u00e3o foi ideia de um grande Amigo (que quer se manter inc\u00f3gnito), assim como \u00e9 de sua autoria o poema \u201cNeni\u201d, como o qual encerro o relato, escrito como solu\u00e7\u00e3o de um conflito e n\u00e3o com a pretens\u00e3o de ser publicado. \u00c9 verdade que a emo\u00e7\u00e3o esteve presente durante as longas horas que durou o exerc\u00edcio do perd\u00e3o e que, na minha volta ao Brasil, quando entreguei ao A. a listagem das \u201cQuarenta e Nove Qualidades que aprecio no B.\u201d e o poema \u201cNeni\u201d, escrito pelo Monge como se fosse o pr\u00f3prio B. a ditar, o A. emocionou- se \u00e0s l\u00e1grimas, perdoando-me tamb\u00e9m. \u00c9 verdade que, em raz\u00e3o desse exerc\u00edcio, tudo na minha vida melhorou, melhorando tamb\u00e9m a situa\u00e7\u00e3o de toda a fam\u00edlia. \u00c9 verdade, igualmente, que tenho divulgado sempre que posso este aben\u00e7oado exerc\u00edcio do >> 166 << perd\u00e3o, porque acredito na sua efic\u00e1cia, podendo comprovar os A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3o seus benef\u00edcios. Tudo o mais \u00e9 inven\u00e7\u00e3o.","\u00d3leo sobre tela 40 x 50 cm, 2008 \u2013 Vilca M. Merizio","","Exerc\u00edcio do perd\u00e3o Duas pessoas sentam-se lado a lado, ou uma de frente para a outra. A que vai perdoar come\u00e7a a escrever, tendo como objetivo inicial registrar 49 (7x7) qualidades da pessoa a quem quer perdoar. A outra pessoa amiga, estimulando sempre com palavras de coragem, ajuda-a a lembrar-se de pormenores que possam preencher a sua lista. No final, a ajudante escreve o >> 169 << que lhe vai na alma, seguindo a sua intui\u00e7\u00e3o, como se fosse o Vilca Marlene Merizio sentimento da pessoa que est\u00e1 sendo perdoada ou escreve-lhe uma mensagem. A lista das 49 qualidades e a mensagem, ou o poema, poder\u00e3o ser entregues junto com o abra\u00e7o de perd\u00e3o. Se a pessoa n\u00e3o conseguir lembrar-se de 49 qualidades, poder\u00e1 repetir o exerc\u00edcio ou consider\u00e1-lo realizado assim mesmo, desde que v\u00e1 at\u00e9 o m\u00e1ximo que puder alcan\u00e7ar. Posso garantir que \u00e9 extremamente gratificante o resultado dessa pr\u00e1tica. Realizado com o Grupo de Mulheres do Curso Literatura e Pintura como Express\u00f5es da Alma, dentro do projeto Oficinas, promovido pelo Departamento de Pessoal \u2013 Recursos Humanos do Hospital Universit\u00e1rio (UFSC), e de outros tantos cursos hol\u00edsticos e integrativos da \u00e1rea da sa\u00fade mental e f\u00edsica, foi comum ouvir a auxiliar do exerc\u00edcio dizer a respeito da pessoa a ser perdoada: \u201cque pessoa maravilhosa \u00e9 o fulano de tal, estou quase me apaixonando por ele...\u201d quando, por exemplo, era o caso de um marido ou de um ex-. \u00c9 que, no momento que abrimos o nosso cora\u00e7\u00e3o para as coisas boas, alcan\u00e7amos um patamar de alegria interior e contagiamos quem est\u00e1 a nossa volta. Ouvir","algu\u00e9m repetir o que dizemos com sinceridade a respeito do nosso (hoje) desafeto, ontem alvo do mais profundo amor, faz-nos mergulhar profundamente em n\u00f3s mesmos para de l\u00e1 emergirmos completamente curados de todas as desventuras. E assim estou: agradecida ao Monge e curada, desejando que outras pessoas descubram a excel\u00eancia do perd\u00e3o. >> 170 << A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3o","","","Entre o meu cora\u00e7\u00e3o e o mar, as alamandas em flor [...] Neste dia 15 de dezembro de 2022, continuo a carta que te enviei h\u00e1 quinze dias, com as explica\u00e7\u00f5es que me pediste. Meu querido amigo, >> 173 << Minha liga\u00e7\u00e3o \u00e0 Iemanj\u00e1 \u00e9 muito antiga. N\u00e3o sei bem como, Vilca Marlene Merizio nem quando come\u00e7ou; mas ela existe h\u00e1 muito, muito tempo. Iemanj\u00e1 \u00e9 uma divindade africana, ou orix\u00e1 feminino, reverenciada pela Umbanda, religi\u00e3o de matriz africana nacio- nalmente reconhecida no Brasil, desde 1908. Umbanda, segundo o vocabul\u00e1rio quimbundo, de Angola, significa arte de cura. Seus preceitos, que se fundamentam em Luz, Caridade e Amor, constituem o sincretismo brasileiro que funde, numa s\u00f3, a cren\u00e7a religiosa de quatro tradi\u00e7\u00f5es distintas: a dos \u00edndios tupis e guaranis; (2) a dos negros escravizados no Brasil (que, proibidos de realizarem suas cerim\u00f4nias religiosas, passaram a usar imagens de santos da Igreja Cat\u00f3lica associados a entidades de sua religi\u00e3o), (3) a dos europeus, conforme o Espiritismo codificado por Allan Kardec, e (4) a dos europeus centrados no Catolicismo. O Candombl\u00e9 se assemelha, mas tem suas diferen\u00e7as espec\u00edficas. Na verdade, os escravizados africanos intimidados pelos castigos, frequentavam a religi\u00e3o cat\u00f3lica aparentemente, mas","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3omantinham a sua devo\u00e7\u00e3o e prestavam culto aos seus orix\u00e1s. Assim come\u00e7ou a identifica\u00e7\u00e3o entre os santos cat\u00f3licos e os orix\u00e1s com todos os rituais. Portanto, o sincretismo brasileiro, fundindo elementos culturais, religiosos e ideol\u00f3gicos de, pelo menos quatro tradi\u00e7\u00f5es de tr\u00eas continentes (africano, europeu e americano), forma uma cultura religiosa cujas express\u00f5es no Brasil acontecem desde a coloniza\u00e7\u00e3o do pa\u00eds, influindo consideravelmente na forma\u00e7\u00e3o do seu povo. No Brasil, \u00e9 comum, ainda hoje, as pessoas terem a sua religi\u00e3o oficial e frequentarem os terreiros de Umbanda para tratamento de sa\u00fade, ou mesmo pela f\u00e9 nas entidades, sem considerarem desrespeito \u00e0 sua pr\u00f3pria religi\u00e3o crist\u00e3. Oficialmente, o Brasil \u00e9 uma na\u00e7\u00e3o cat\u00f3lica. Pesquisa do IBGE de 2010 aponta como cat\u00f3licos, mais de 64% da popula\u00e7\u00e3o. Para os brasileiros que respeitam e acreditam em Nossa Senhora, a m\u00e3e de Jesus Cristo, Iemanj\u00e1 \u00e9 reverenciada como sendo a Nossa Senhora dos Navegantes, a Sant\u00edssima M\u00e3e de Jesus Cristo. H\u00e1 ainda quem A considere como a Nossa Senhora >> 174 << da Concei\u00e7\u00e3o, Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora da Luz e Nossa Senhora das Candeias. Iemanj\u00e1, a doce e meiga M\u00e3e Iemanj\u00e1, ou a Rainha do Mar, a Sereia das \u00c1guas, a M\u00e3e de todos os adultos e M\u00e3e de todos os outros orix\u00e1s, a Iara, Senhora das \u00c1guas, \u00e9 tamb\u00e9m a padroeira dos pescadores e Aquela que decide o destino de todos os que entram no mar. Tamb\u00e9m \u00e9 louvada como a deusa do amor, a Afrodite brasileira. Sua cor \u00e9 o azul claro e o branco. Suas festividades e rituais acontecem principalmente nos dias 1 de janeiro, 2 de fevereiro, 15 de agosto e 08 de dezembro, mas o Dia de Iemanj\u00e1 \u00e9 mesmo o dia 2 de fevereiro. Na passagem de cada ano, \u00e0 meia noite, quando dobram os sinos do Ano Novo, e no dia 2 de fevereiro, milhares de brasileiros v\u00e3o \u00e0s praias depositarem no mar, em em lugar pr\u00f3ximo \u00e0s \u00e1guas, oferendas tipicamente femininas \u00e0 Iemanj\u00e1, como flores, espelhos, colares, produtos de maquiagem, num gesto de amor e agradecimento por todas as gra\u00e7as obtidas atrav\u00e9s do Seu nome. Bem, eu tamb\u00e9m sou devota de Iemanj\u00e1, minha Nossa Senhora dos Navegantes, ou da Luz, ou da Candeias, como","chamam os a\u00e7orianos \u00e0 Virgem Maria, m\u00e3e de Jesus. E muito tenho a agradecer-Lhe. Vou te contar. Muitas pessoas que n\u00e3o conhecem o sincretismo brasileiro acham que estou inventando, e que tudo o que conto \u00e9 produto da minha imagina\u00e7\u00e3o. Mas, nem sempre \u00e9. Como sabes, nasci num vale verdejante de uma regi\u00e3o montanhosa, numa fam\u00edlia de tradi\u00e7\u00e3o cat\u00f3lica. Minha m\u00e3e, descendente direta de portugueses, n\u00e3o era muito ligada \u00e0 Igreja, o que me leva a acreditar que era de fam\u00edlia considerada crist\u00e3 nova, mas jamais tocou nesse assunto. S\u00f3 com idade mais avan\u00e7ada (l\u00e1 pelos 65 anos), \u00e9 que passou a frequentar dominicalmente a missa, acompanhando o meu pai, cat\u00f3lico praticante, filho de imigrantes da antiga regi\u00e3o da Pr\u00fassia e do norte da It\u00e1lia (Lombardia). Minha av\u00f3, dizia minha m\u00e3e, nasceu na travessia do Atl\u00e2ntico, em 1877, e foi registrada em Santa Catarina. Educada pelas minhas irm\u00e3s de sangue e pelas irm\u00e3s da Divina Provid\u00eancia (Col\u00e9gio Santo Ant\u00f4nio), segui a tradi\u00e7\u00e3o cat\u00f3lica at\u00e9 meados da minha vida nesta exist\u00eancia; e assim criei os filhos e convivi com netos e agora, bisnetos. Quando ainda era menina, minha av\u00f3 materna morava >> 175 << na capital do Estado. N\u00f3s, pai, m\u00e3e e irm\u00e3os, mor\u00e1vamos a 130 Vilca Marlene Merizio quil\u00f4metros, num vale, cuja beleza concentrava-se nas \u00e1guas profundas de um rio caudaloso e cheio de curvas mirabolantes. Era comum, naquela \u00e9poca, de tempos em tempos, minha m\u00e3e visitar a sua fam\u00edlia de origem que residia no litoral. Viaj\u00e1vamos quatro horas, pela serra, at\u00e9 encontrar o mar. Eu amava essas viagens. E achava a minha m\u00e3e a mulher mais s\u00e1bia do mundo: ela conhecia todos os lugares pelos quais pass\u00e1vamos e eu perguntava o nome. Ela, simplesmente, remexia-se no banco do \u00f4nibus \u2013 seu lugar era sempre o da janela \u2013, espigava o corpo e, depois de um tempo, que eu considerava longo demais, me dizia: \u2013 Estamos passando pelos Doze. Acabamos de passar por Canelinha. E ent\u00e3o, eu queria saber quem eram os Doze, por que o local se chamava Canelinha, Tijucas ou S\u00e3o Jo\u00e3o Batista. E ela me contava. Talvez nem lembrasse que no ano anterior a pergunta que eu lhe fizera era a mesma. Minha aten\u00e7\u00e3o era sempre a mesma, conferindo se algum aspecto seria ou n\u00e3o repetido.","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3oEm Brusque (cidade fundada e colonizada por alem\u00e3es, italianos e poloneses), o rio, em zigue-zague, corria rente \u00e0 minha casa; hoje no seu antigo leito, h\u00e1 somente um sulco profundo coberto de mato: as m\u00e1quinas curaram as curvas, desviando a sua rota. Por causa das enchentes, ao Rio Itaja\u00ed Mirim devo a origem dos pesadelos de muitas noites mal dormidas: nele morreram afogados muitos jovens (em cada ver\u00e3o morria algu\u00e9m naquele rio!) e muitos sonhos da minha juventude. Ainda hoje trago o rio \u00e0 lembran\u00e7a sempre que me deparo com algum fato de terror: a \u00e1gua lamacenta a escorrer violentamente pelo leito sinuoso do rio, as curvas do rio que escondiam o caminho, os rolos de detritos vorazmente engolidos pelos redemoinhos que se alargavam at\u00e9 as margens cheias de silva... Revejo o rio da minha mem\u00f3ria: onda parda de podrid\u00e3o, arrastando, tal qual serpente furiosa, volume imenso de \u00e1gua viscosa e ba\u00e7a. Que medo! Para respirar, preciso da beleza da ess\u00eancia do mar. Que lindeza o mar! Claro, brilhante, transparente, luz azul, rendada de branco! Sem enchentes, sem res\u00edduos, sem mortos (assim pensava >> 176 << eu). N\u00e3o podia mesmo ser diferente o roteiro da minha vida: ainda muito jovem apaixonei-me pelo mar. E ele se entregava aos meus sonhos... Eu s\u00f3 o via de longe e, ent\u00e3o, desconhecia, na verdade, a sua verdadeira hist\u00f3ria (saberei hoje qual \u00e9 a sua verdadeira hist\u00f3ria?). Um dia entrei nele, no mar. Molhei-me, fui batizada num ver\u00e3o da d\u00e9cada de cinquenta do s\u00e9culo passado na praia que existia pr\u00f3xima ao Mercado P\u00fablico de Florian\u00f3polis, bem onde hoje se localiza o Terminal Rodovi\u00e1rio dos Transportes Coletivos que fazem linha para o Continente Menor que as minhas primas, entre a mais velha e o meu tio, fui sendo levada mar a fora por duas m\u00e3os ferradas nos meus pulsos. Meu tio e Gessimira n\u00e3o perceberam que eu n\u00e3o dava mais p\u00e9: continuavam a ir, alegres, rindo e brincando comigo com a inten\u00e7\u00e3o de que perdesse o medo de \u00e1gua. N\u00e3o consegui faz\u00ea-los entender que me afogava (at\u00e9 hoje n\u00e3o grito quando o sal das l\u00e1grimas me impede de pensar...). At\u00e9 que o meu tio percebeu a minha afli\u00e7\u00e3o e ergueu-me em seus bra\u00e7os, gritando, ainda, comigo. \u2013 Qui \u00e9 isso menina?","Foi um \u201cdeus nos acuda\u201d! Vilca Marlene Merizio Mas o susto daquele dia n\u00e3o terminou a\u00ed. Minha prima L\u00eddia Maria, mais nova do que eu; portanto, pouco menor, quis mostrar-me a sua coragem e a sua intimidade com o mar: deitou-se numa boia de pneu de caminh\u00e3o e deixou-se levar pela correnteza. E foi... Tiveram que busc\u00e1-la quando da praia j\u00e1 nem se via a menina na boia. Foi horr\u00edvel v\u00ea-la sendo tragada pelas ondas; foi terr\u00edvel quando deixamos de v\u00ea-la e tio Alcy atirou-se na \u00e1gua com roupa, sapatos e tudo, em busca da filha. L\u00eddia Maria foi salva por alguns pescadores que traziam peixe para o mercado; eu \u00e9 que, acho, nunca mais me salvei do medo de \u00e1gua. Fiquei presa a alguma coisa muito grande, maior que a minha compreens\u00e3o. Durante muito tempo, n\u00e3o sabia bem a que ficara presa, s\u00f3 lembro que invoquei Nossa Senhora dos Navegantes, com toda a for\u00e7a da minha alma, para que trouxesse de volta a minha prima. E L\u00eddia Maria voltou. S\u00f3 n\u00e3o sabia naquela \u00e9poca nada sobre o sincretismo religioso brasileiro, que Iemanj\u00e1 era (e \u00e9) reverenciada como Nossa Senhora dos Navegantes (sempre tive uma atra\u00e7\u00e3o >> 177 << muito grande pela festa de Nossa Senhora dos Navegantes, comemorada em diversas comunidades do Brasil com prociss\u00e3o no mar, quando a imagem \u00e9 transportada em barcos enfeitados). Nos A\u00e7ores, reverenciam-na como Nossa Senhora da Luz, ou das Candeias. J\u00e1 casada, com dezenove anos de idade, vim morar na ilha de Santa Catarina. Foi angustiante escolher o local para a nossa resid\u00eancia. Uma sensa\u00e7\u00e3o esquisita me fazia optar pela parte continental da cidade. Gostava de Florian\u00f3polis, mas um medo inexplic\u00e1vel apontava a ilha como um lugar perigoso para morar. Num dado momento (isso em 1963), quando estava lecionando para os meus alunos da terceira s\u00e9rie do ensino fundamental do Col\u00e9gio Nossa Senhora de F\u00e1tima, ao tentar facilitar-lhes a compreens\u00e3o dos conceitos de geografia, percebi a origem do meu horror em rela\u00e7\u00e3o a morar na ilha. Sempre gostei de ensinar atrav\u00e9s de imagens, de desenhos ou de figuras, acho","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3oque as crian\u00e7as aprendem melhor quando podem vivenciar o conhecimento. Estava eu construindo com os meus aluninhos de nove anos, num espa\u00e7o do jardim do col\u00e9gio, uma maquete com os principais acidentes geogr\u00e1ficos (cabos, pen\u00ednsula, istmo, montanha etc.), quando me dei conta de que as defini\u00e7\u00f5es apresentadas nos livros did\u00e1ticos de geografia n\u00e3o est\u00e3o corretas, principalmente em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 conceitua\u00e7\u00e3o de ilha como um \u201cpeda\u00e7o de terra cercado de \u00e1gua por todos os lados\u201d. Para al\u00e9m de n\u00e3o ter \u00e1gua na parte superior, o que \u00e9 evidente; n\u00e3o tem \u00e1gua na parte inferior, o que tamb\u00e9m \u00e9 evidente, mas para mim, n\u00e3o era. Eu nunca parara para pensar nisso, e uma cren\u00e7a malformada estava dando cabo do meu estado emocional: inconscientemente, evitava morar na ilha com \u201cmedo de que ela \u2013 a ilha \u2013 virasse\u201d. E isso descobri s\u00f3 aos dezenove anos de idade (Hoje quando relato esse fato aos meus alunos, em cursos para professores, eles me perguntam se, ent\u00e3o, n\u00e3o havia livros ou outras imagens que ilustrassem o texto did\u00e1tico: n\u00e3o, n\u00e3o havia). >> 178 << Alguns anos mais tarde, mor\u00e1vamos em Capoeiras, parte continental de Florian\u00f3polis e tendo adquirido nosso primeiro autom\u00f3vel (de segunda m\u00e3o, um Ford 1927), para comemorar o feito, fomos \u2013 marido, m\u00e3e, filhos e duas amigas \u2013 dar uma volta na Praia da Joaquina, uma praia extensa, situada ao sul da ilha de Santa Catarina e, na \u00e9poca, completamente deserta. Ficamos catando tatu\u00edra at\u00e9 de madrugada. Minha m\u00e3e, j\u00e1 bem idosa (na \u00e9poca, quem tinha mais de 65 anos era muito, muito idosa), estava com o meu filho de tr\u00eas anos, acompanhando-nos pela praia, enquanto \u00edamos pegando pequenas tatu\u00edras, cada vez mais nos afastando da aldeia de pescadores. N\u00e3o havia telefone, nem qualquer meio de locomo\u00e7\u00e3o para sair daquele lugar a n\u00e3o ser o nosso autom\u00f3vel rec\u00e9m-adquirido. A madrugada ia alta quando demos falta do molho de chaves do carro (e n\u00e3o havia outras, nem em casa). Foi um alvoro\u00e7o: o desespero tomou conta de todo mundo. Lembro-me de ter aberto os bra\u00e7os em dire\u00e7\u00e3o ao mar e suplicado: \u201cse existes mesmo, Iemanj\u00e1, minha Rainha, devolve- nos as chaves do carro para que possamos ir embora\u201d.","Passaram-se alguns minutos e uma onda maior que todas Vilca Marlene Merizio as outras subiu at\u00e9 o alto da praia. Quando a \u00e1gua voltou para o mar, a amiga que estava conosco (professora de uma das escolas locais), viu alguma coisa brilhar dentro da \u00e1gua. Eram as chaves. Est\u00e1vamos salvos. Novamente Iemanj\u00e1 viera em nosso aux\u00edlio. A partir da\u00ed, n\u00e3o tive mais d\u00favidas, Iemanj\u00e1 existia. E em todas as vezes que me aproximava do mar, a Iemanj\u00e1 prestava a minha sauda\u00e7\u00e3o. Tempos se passaram. Meu filho mais novo (o quarto) j\u00e1 estava com doze anos e o mais velho com dezoito, e eu ainda nutria a esperan\u00e7a de ter uma filha. Sempre que estava sozinha, diante do mar, colocava os meus desejos, as minhas grandes aspira\u00e7\u00f5es... Desde \u00e0 v\u00e9spera quando sentira as primeiras dores do parto, pus-me a dan\u00e7ar na minha casa de s\u00edtio, ao som de m\u00fasica cl\u00e1ssica e da chuva de ver\u00e3o que deixava cair fios de prata por sobre as flores vermelhas do flamboyant que beirava a minha varanda. Tudo foi m\u00e1gico. Lindo! Lindo! Era a v\u00e9spera do nascimento da filha t\u00e3o aguardada. E entre muita alegria e muita \u00e1gua, Cib\u00e9li >> 179 << nasceu \u00e0s seis horas da manh\u00e3, num dia maravilhoso. O m\u00e9dico obstetra disse-me ter sido novamente batizado diante da explos\u00e3o de l\u00edquido placent\u00e1rio que a minha pequena fez derramar quando veio ao mundo. N\u00e3o sofri dor alguma, tendo apenas sentido uma \u00fanica contra\u00e7\u00e3o de expuls\u00e3o. Na segunda, a Cib\u00e9li nascia forte, corada, linda! Era o dia 02 de fevereiro de 1982, dia consagrado \u00e0 Nossa Senhora dos Navegantes pelos cat\u00f3licos, ou Nossa Senhora da Luz como a chamam os devotos portugueses, dia de Iemanj\u00e1, como festeja a Umbanda, religi\u00e3o nacional brasileira, conforme j\u00e1 te disse anteriormente. Minha menina ainda era beb\u00ea quando fomos passar uma temporada na Praia de Cambori\u00fa, no mesmo estado de Santa Catarina, longe da capital uns 80 quil\u00f4metros. Eu estava sentada numa cadeira \u00e0 beira do mar, apanhando sol, e a bab\u00e1, com minha filha ao colo, em v\u00e9spera da comemora\u00e7\u00e3o do seu primeiro ano de vida, molhava os p\u00e9s, rente ao mar. Uma onda inesperada veio,","derrubou a Tonha e a beb\u00ea caiu na \u00e1gua e rolou, sendo levada pelas ondas. O Bertinho, pai dela, vinha de dentro da \u00e1gua em dire\u00e7\u00e3o \u00e0 praia, j\u00e1 a uns tr\u00eas metros da beira do mar. Ele correu desesperadamente, levantou a pequena da \u00e1gua com um bra\u00e7o e socorreu a bab\u00e1 com o outro. Ambas ficaram bem. Eu mal tive tempo de correr at\u00e9 a \u00e1gua. Novamente me lembro de ter chamado Iemanj\u00e1. Ela veio, mais uma vez, em meu aux\u00edlio, trazendo-me de volta a vida. Mais alguns anos se passaram. A situa\u00e7\u00e3o financeira da fam\u00edlia, na d\u00e9cada de setenta, sofreu uma reviravolta. De muitos bens que hav\u00edamos angariado pelo trabalho incans\u00e1vel de todos, est\u00e1vamos a ponto de perder todo o patrim\u00f4nio. Meu marido, na \u00e9poca, procurou ajuda espiritual. Um grupo de casais da igreja Cat\u00f3lica ajudou-nos at\u00e9 certo ponto. A ajuda irrestrita veio de uma jovem m\u00e9dium que, entre outras entidades, recebia Iemanj\u00e1. Foi a\u00ed que A conheci de mais perto. Ela incorporava sempre em meio \u00e0 dan\u00e7a, \u00e0 m\u00fasica suave, rodopiando, com uma beleza sem >> 180 << par, suave, graciosa, e com muita emo\u00e7\u00e3o. As pessoas presentes A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3o choravam. Chorei muitas vezes (nem me lembrava mais disso, diante de tanta docilidade e ternura). Eu tinha medo de ir \u00e0s sess\u00f5es de cura. Bertinho insistia comigo porque a nossa situa\u00e7\u00e3o familiar n\u00e3o estava bem. Eu precisava ir, mesmo com medo, mesmo contra os preceitos da minha religi\u00e3o (era cat\u00f3lica praticante). E l\u00e1, na casa daqueles amigos caridosos, testemunhei muitos milagres de cura, muitos casos resolvidos. E outros anos foram vencendo o tempo. A trabalho\/estudo, com quatro dos meus cinco filhos, fui para a Ilha de S\u00e3o Miguel, nos A\u00e7ores, em Portugal. Mar por todos os lados, lagoas, chuva, umidade... natureza exuberante. Eu que tinha tanto medo de ilhas, finalmente senti estar no meu lugar de origem. Tranquila, alegre, feliz, completamente adaptada \u00e0 nova terra. A ilha me dava sustento energ\u00e9tico. Tudo era novo e belo. Havia paz. At\u00e9 que o mundo ruiu e um pedido de div\u00f3rcio abalou-me todas as estruturas. Foram mais quatro anos de desespero; s\u00f3 o que me","consolava era a irradi\u00e2ncia da ilha e os sonhos que aprendi a Vilca Marlene Merizio fabricar no intuito de poder sobreviver \u00e0quelas intemp\u00e9ries que, aos poucos, foram se apaziguando. Cheguei a Ponta Delgada a 08 de outubro de 1987. Na passagem de ano n\u00e3o pude prestar rever\u00eancia a Iemanj\u00e1 como \u00e9 costume no Brasil. No dia 1o de janeiro de 1988, depois do almo\u00e7o, fui com dois dos meus filhos levar flores a Iemanj\u00e1. Escolhemos a praia do Porto Formoso. Colhidas do meu jardim, eu levava uma bra\u00e7ada de cam\u00e9lias para depositar no mar, em oferenda a Iemanj\u00e1. Junto conosco foi uma brasileira, uma jornalista ga\u00facha, que estava em Ponta Delgada, realizando uma pesquisa. Ela ria de n\u00f3s, sem acreditar no que via e ouvia a respeito de Iemanj\u00e1. Na praia de Porto Formoso, a mar\u00e9 estava baixa. Deixei as flores perto do muro, no come\u00e7o da praia, bem em cima, a salvo das ondas. Lev\u00e1vamos, eu e as crian\u00e7as, de um a um, os galhos de cam\u00e9lia e deposit\u00e1vamos no mar, sempre com um pedido (ou um agradecimento a Iemanj\u00e1 e ao povo do mar). Minha amiga ria e mofava do nosso trabalho de devo\u00e7\u00e3o. De repente, quando menos >> 181 << esper\u00e1vamos, uma onda arrebentou sobre a areia, inundando toda a praia e levando, de uma s\u00f3 vez, todas as cam\u00e9lias que eu depositara bem no alto, ainda em bouquet. Eu e as crian\u00e7as conseguimos correr praia acima e n\u00e3o nos molhamos. A Rejane, que j\u00e1 estava quase no capim da orla superior da praia, l\u00e1 onde estavam as cam\u00e9lias, com o susto, caiu e ficou submersa pela \u00e1gua que subia praia acima. S\u00f3 se levantou quando a \u00e1gua voltou para o mar e, assim mesmo, com a ajuda do Josa. Era inverno, tivemos que voltar imediatamente para casa para que ela n\u00e3o adoecesse com a roupa toda encharcada. Hoje ainda comentamos o fato e ela ainda se assombra com tal acontecimento. Acho que tamb\u00e9m passou a respeitar Iemanj\u00e1. N\u00e3o que a entidade exija isso, mas os fatos a levaram a acreditar. Outro tanto de tempo passou. J\u00e1 com dez anos de idade, ainda nos A\u00e7ores, na Praia do P\u00f3pulo, mais uma vez, a minha filha \u00e9 levada pelas \u00e1guas. O pai estava presente e, novamente, salva das \u00e1guas a filha-menina. Est\u00e1vamos no meio da praia. Cib\u00e9li e Rhiannon, a sua amiga a\u00e7oriana, inglesa por parte da m\u00e3e,","estavam brincando no canto da praia, no lado esquerdo, onde se forma uma pequena ba\u00eda. Bertinho estava preocupado com as meninas, embora nada aparentasse perigo eminente. Fomos para l\u00e1. Encostei-me a uma pedra e ele se encaminhou em dire\u00e7\u00e3o \u00e0s duas, que n\u00e3o estavam longe, com a inten\u00e7\u00e3o de tir\u00e1-las da \u00e1gua. N\u00e3o houve tempo de chegar perto. Uma onda gigante, sa\u00edda n\u00e3o sei de onde, levou as duas crian\u00e7as de rold\u00e3o. Ele j\u00e1 com \u00e1gua pelos joelhos foi em dire\u00e7\u00e3o aos bracinhos delas que se agitavam na \u00e1gua revolta. Segurou as duas, debateram-se. Enquanto eu ia chamar os salva-vidas (nadadores-salvadores, como l\u00e1 dizem), que estavam instalados de prontid\u00e3o no meio da praia, os banhistas fizeram um cord\u00e3o de salvamento. Meu marido conseguiu entregar a Rhiannon a uma pessoa que estava sobre uma pedra grande. Ele e a Cib\u00e9li continuavam a ir para o fundo. O cord\u00e3o aumentou de tamanho pelas pessoas que acorreram para ajudar e ele, depois de muitas vezes ter ido ao fundo, conseguiu sair do redemoinho e entregar a minha pequena \u00e0 pessoa que estava na ponta do cord\u00e3o de salvamento e da\u00ed, passou >> 182 << de colo a colo at\u00e9 chegar \u00e0 praia. Ele voltou a ser tragado pelas A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3o ondas e foi levado pela correnteza mar a fora. Os salva-vidas, com muito custo, tiraram-no ainda com vida, embora completamente paralisado. Sorte nossa que um casal de m\u00e9dicos \u2013 Dr. Simas e a mulher \u2013 socorreram-no, levando-o \u00e0s pressas para o Hospital de Ponta Delgada. Mais uma vez, Iemanj\u00e1 viera em nosso aux\u00edlio. Do ocorrido, s\u00f3 a lembran\u00e7a e o reconhecimento \u00e0 ajuda recebida ficaram em nossos cora\u00e7\u00f5es. Novamente um milagre tinha se realizado. Mais tempo passou. Muitos os sofrimentos pessoais e familiares vividos nos A\u00e7ores. Veio o div\u00f3rcio e a consequente entrega ao sonho, \u00fanica maneira de continuar viva. Sonho quase realizado, novamente Iemanj\u00e1 entra em cena. Foi um ritual bel\u00edssimo. Uma nova passagem de ano. Talvez em 93 para 94. Uma rosa amarela e rubra levada \u00e0 Iemanj\u00e1, agora na Praia Pequena do P\u00f3pulo, e a promessa de um segundo matrim\u00f4nio. Tudo muito bonito, perfeito, completo. Mas a advert\u00eancia j\u00e1 fora dada: Iemanj\u00e1 n\u00e3o ret\u00e9m quando o caminho \u00e9 outro. E realmente n\u00e3o reteve. Ficou s\u00f3 a lembran\u00e7a do sonho.","E dessa data para c\u00e1, toda vez que do mar me aproximo, Vilca Marlene Merizio sa\u00fado Iemanj\u00e1, e levo o meu pensamento aos A\u00e7ores (era a\u00ed que estava o meu terceiro filho com a fam\u00edlia e algumas pessoas a quem eu quero muito bem), pedindo que Iemanj\u00e1 os protegesse. A \u00e1gua que banha a minha ilha (aqui, de Santa Catarina), tamb\u00e9m banha o arquip\u00e9lago a\u00e7oriano e por esse oceano estamos n\u00f3s, brasileiros e portugueses, ligados. E pensando nessa liga\u00e7\u00e3o, imaginava o quanto gostaria de encontrar algu\u00e9m (n\u00e3o necessariamente a\u00e7oriano) que pudesse partilhar comigo o privil\u00e9gio de contribuir para o bem da humanidade, aprendendo\/ensinado a li\u00e7\u00e3o que a vida nos trouxe. Voltei aos A\u00e7ores, agora, recentemente. Sepultei os \u00faltimos vest\u00edgios de uma vida de sonhos e de sofrimentos que h\u00e1 muito (em v\u00e3o) tentava extinguir. A alegria voltou: o mundo ficou outro, sou outra. Esqueci Iemanj\u00e1, esqueci o quanto lhe sou grata... Por isso mesmo acredito: ela fez-se lembrar. Bem, esse fato bem o conhecesses, vivemo-lo juntos, n\u00e3o h\u00e1 porque recontar. Em tempo \u2013 a raz\u00e3o do t\u00edtulo deste texto: \u201cEntre o meu >> 183 << cora\u00e7\u00e3o e o mar, as alamandas em flor\u201d. Da mesa em que escrevo vejo uma nesga do mar. H\u00e1 a cal\u00e7ada onde as pessoas fazem caminhada, a avenida, por onde trafegam incessantemente os carros e um carreiro de alamandas, amarelas em flor, que entendo como se ladeassem o meu caminho entre as duas vias. Se fossem as margens e o leito do nosso caminho formado apenas por alamandas amarelas, seria tranquilo e de muita beleza, mas mon\u00f3tono e tosco porque pobre de emo\u00e7\u00f5es. Quero flores tal qual o colorido do arco-\u00edris. Quando penso em cores m\u00faltiplas, a flor da vida se abre e mil projetos podem acontecer (Quando me falas que \u00e9s somente o caminho, a via, eu acredito, e queria que bem assim fosse. O perigo em te transformares em obst\u00e1culo at\u00e9 pode existir, mas n\u00e3o no meu cora\u00e7\u00e3o, nem na minha cabe\u00e7a. Logo, alivia-te dessa preocupa\u00e7\u00e3o!) Amo o mar com paix\u00e3o. Preciso dele para viver em paz. Sua beleza, sua for\u00e7a e sua magnitude me envolvem; sou incapaz, por\u00e9m, de nele entrar para al\u00e9m da sua beirada; banho-me at\u00e9","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3oonde a \u00e1gua n\u00e3o perturbe a minha tranquilidade nem a dos que me rodeiam. Nadar em mar alto sempre foi uma das minhas grandes aspira\u00e7\u00f5es; meu sonho dourado \u00e9 perder o medo e ir at\u00e9 as suas profundezas e de l\u00e1 extrair toda a beleza do mundo. Mas, de onde tirar tanta coragem se os que me assistem temem por mim? Preciso de algu\u00e9m que me escute, de quem me ensine, de quem eu possa trazer para a minha vida interior, cheio de coragem e de a\u00e7\u00f5es baseadas no amor universal. Repito: amo o mar com paix\u00e3o, mas a ele n\u00e3o me entrego para al\u00e9m do que posso dar. N\u00e3o que ache isso imposs\u00edvel. S\u00f3 me entregarei, no dia em que a confian\u00e7a for m\u00fatua e a necessidade tamb\u00e9m. Mas... por que, tu, L.? Onde te encaixas nisso tudo? \u00c9 o Monge? Seria o Monge, o Mentor das Matas, das \u00e1guas tranquilas, da Natureza viva, amorosa? O Mentor que me alivia, que me leva por plan\u00edcies de plenitude e paz, onde s\u00f3 o amor incondicional resiste a tudo? Estariam os dois, Iemanj\u00e1 e o Monge, nessa miss\u00e3o \u00e1rdua de me conduzirem para as \u00e1guas l\u00edmpidas e claras do meu >> 184 << para\u00edso interior de onde eu possa sair para completar o meu trabalho de cura em benef\u00edcio de nossos semelhantes? E seria por isso que, por duas vezes, a Entidade que incorporou durante a nossa \u00faltima reuni\u00e3o te pediu perd\u00e3o? Por te estar envolvendo no meu caso particular de vida? Quisera eu saber. Quisera eu que essa fosse a Verdade. N\u00e3o uma verdade virtual que apenas me levasse ao melhor de mim, mas uma verdade que me instigasse realmente a dar tudo de mim. Sei que posso e que devo. \u00c0s vezes, por mais que tente, perco- me no caminho (n\u00e3o por causa do Caminho!): as tenta\u00e7\u00f5es s\u00e3o tantas! E me distraio. E me afasto do que a mim foi determinado ou do que eu pr\u00f3pria a mim determinei. Portanto a leitura que fa\u00e7o do fato de Iemanj\u00e1 ter-se manifestado atrav\u00e9s da F. \u2013 ainda que possa incorrer em erro, tenho de te dizer \u2013 era uma resposta ao pedido que consciente e inconscientemente venho fazendo h\u00e1 alguns anos aos meus santos de devo\u00e7\u00e3o. Quantas vezes, estando em ora\u00e7\u00e3o, dirigi-me a Deus, pedindo que pudesse partilhar a minha vida \u00edntima (n\u00e3o de sexo, mas de alma), com uma pessoa que pudesse me compreender e","que n\u00e3o julgasse como errada a minha vontade de promover o Vilca Marlene Merizio al\u00edvio de outras pessoas, a minha necessidade de abra\u00e7\u00e1-las, de gastar com elas o tempo que fosse preciso para a sua recupera\u00e7\u00e3o. O B. \u00e9 bom, ajuda-me em muitas coisas, mas n\u00e3o aceita a minha maneira de ser, voltada para o outro. Quero \u00e0s vezes, content\u00e1-lo, mas a\u00ed \u00e9 a mim que contrario. N\u00e3o consigo entrar em equil\u00edbrio com o que quero e preciso fazer e com o que ele deixa ou n\u00e3o eu fazer. E a\u00ed surgem os \u201cremorsos\u201d, o peso da coisa feita \u201cquase \u00e0s escondidas\u201d, \u00e0s \u201cescapadelas\u201d, e novamente o sonho, \u00fanico ref\u00fagio, onde acredito posso encontrar a minha verdadeira identidade. Por que o L? Porque h\u00e1 o Monge. E o Monge sabe disso. L\u00ea a minha alma. Completa-a, sem julgamentos, sem recrimina\u00e7\u00f5es, sem exigir mais do que eu posso dar. Simplesmente ele \u00e9 e me deixa ser. O L., ainda n\u00e3o: quer me ajudar, tenta me ajudar, mas se esquece de que \u00e9 dif\u00edcil, de uma hora para outra, mudar as regras do jogo, enquanto o jogo est\u00e1 sendo jogado. Jogar fora os velhos paradigmas, sim! Mas o que de bom ainda se conserva do velho precisa ser mantido por algum tempo. O Monge me diz: tem calma. E eu tenho. Converso com >> 185 << o B. Tento lhe explicar. Mas ele continua querendo me manter sob as suas axilas, quase asfixiada, tendo possibilidade apenas de entreabrir os olhos para olhar s\u00f3 o que est\u00e1 a um palmo sob as minhas vistas. E isso n\u00e3o posso mais aceitar. Conquistei a duras penas uma certa liberdade. N\u00e3o quero magoar ningu\u00e9m, quero, contudo, ter o direito de poder escolher quem vai me acompanhar ou quem devo acompanhar nesse novo caminho (cheio de alamandas em flor), porque se for para ir s\u00f3, te garanto, L., n\u00e3o conseguirei chegar ao topo do meu destino. Ontem \u00e0 tarde, conversei longamente com o Zeferino (j\u00e1 te disse isso). Ele repetiu o que Pai Matias me disse: um canal novo abriu-se para mim e \u00e9 bom que eu esteja preparada para seguir o que me est\u00e1 sendo proposto. Muitas pessoas me ajudar\u00e3o nessa caminhada. Algumas j\u00e1 apareceram, outras vir\u00e3o, mas tenho de ter coragem de seguir em frente. Tenho de estar aberta para perdas e novos ganhos. Se, no final, eu puder colaborar para a constru\u00e7\u00e3o de um mundo melhor, construindo-me junto, ent\u00e3o tudo se cumpriu. Espero bem que o ca\u00e7ador, que n\u00e3o me parece t\u00e3o","solit\u00e1rio assim, mas acima de tudo, o Monge, que me parece sim, capaz disso, porque \u00e9 forte, terno e generoso, possam continuar me amparando. Noutro esperan\u00e7as! Um abra\u00e7o em correspond\u00eancia ao teu, daqueles aconche- gadinhos, na alma... A mesma >> 186 << A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3o","Pap\u00e9is de carta","","Nunca \u00e9 tarde para perdoar Vilca Marlene Merizio A prem\u00eancia de urinar f\u00ea-la levantar-se sem aqueles minutos de espera, quando as pernas balan\u00e7am da cama alta e o sangue volta a correr pelas veias no sentido vertical. Judite ancorou-se na mesinha de cabeceira. Titubeou ao sentir-se de p\u00e9. Amparou- se na parede, depois no guarda-roupa. E, mais uma vez, vacilou >> 189 << quando a porta de espelho deslizou para a direita, pressionada pelo contato da pele \u00famida do seu cotovelo arredondado e liso. No escuro ainda e, talvez at\u00e9 de olhos cerrados (nem se lembrara de acender as luzes das andarelas), deu uma arrancada pelo corredor estreito, dirigindo-se tropegamente ao banheiro, que ficava logo ali, ao lado do quarto de casal. N\u00e3o, o joelho n\u00e3o do\u00eda. Aliviada, voltou \u2013 p\u00e9 por p\u00e9 \u2013 para a cama. Dessa vez, conseguira reter a urina antes de chegar ao bacio, o que j\u00e1 foi uma vit\u00f3ria. A custo deitou-se novamente. A coberta, macia e leve, aconchegou o seu corpo fraco e cansado. Judite tentou lembrar- se das palavras de otimismo que o orador havia escolhido para orientar as poucas pessoas que ocupavam o grande sal\u00e3o de ora\u00e7\u00f5es, agora reorganizado para que nenhuma pessoa ficasse fisicamente muito pr\u00f3xima da outra \u2013 \u00e9 tempo de COVID \u2013 que n\u00e3o fosse numa dist\u00e2ncia de tr\u00eas poltronas, entre si e o companheiro de ora\u00e7\u00e3o. A pandemia instalada mundialmente exigia o distanciamento social. Tentava lembrar-se das exorta\u00e7\u00f5es do palestrante, mas seu pensamento insistia em trazer a imagem","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3ode Virg\u00ednia, que naquela hora lhe negava carinho. Ela queria aconchego, por isso, durante a sess\u00e3o, de vez em quando, mesmo atenta ao que o palestrante expunha, esticava seu bracinho magro na dire\u00e7\u00e3o da nora que, somente virada a cabe\u00e7a, sorria, sinalizando que n\u00e3o: n\u00e3o deveriam se tocar. Passou-lhe pela cabe\u00e7a que, se fosse a neta a lev\u00e1-la ao Centro, estariam as duas de m\u00e3os dadas, nem que fosse apenas tocando as pontas dos dedos. Sorriu. A imagem de Laurinha cresceu dentro dela. Sorriu mais uma vez e suspirou profundamente. A ternura da neta mais velha sempre a enternecera. Talvez tenha cochilado. Acordada novamente, o pensamento trazia-lhe agora, nesta noite fria de julho, o eco das palavras de Carmem, a nora que repousava no quarto cont\u00edguo, o velho quarto de visitas: \u201cpara o seu bem, minha sogra, a senhora deve perdoar, n\u00e3o pode guardar m\u00e1goa ou rancor de ningu\u00e9m, por pior que lhe tenham feito, se \u00e9 que lhe fizeram alguma coisa\u201d. Mais uma vez, o pensamento fugiu para Laurinha. Ela sim, teria lhe apaziguado: \u201ca senhora sempre pensou nos outros antes de pensar em si, v\u00f3; >> 190 << ent\u00e3o, est\u00e1 tudo bem\u201d. E Judite relaxou um pouco. Naquela noite, Laurinha tamb\u00e9m dissera: \u2013 \u201cV\u00f3, lembre apenas das alegrias que a senhora teve nesses seus 89 anos de exist\u00eancia. A senhora sempre foi boa\u201d. E a lembran\u00e7a da m\u00e3ozinha delicada de Laurinha, rescendendo a perfume da adolesc\u00eancia, sempre a segurar a sua, inebriou o cora\u00e7\u00e3o dorido de Judite, levando-a aos tempos da sua pr\u00f3pria juventude. Judite tentava conciliar o sono, fixando na sua consci\u00eancia a meiguice de Laurinha, mas a mem\u00f3ria caprichosa insistia em trazer-lhe dramas do passado despertos por Carmem ao falar-lhe da necessidade de perd\u00e3o, que lhe reacenderam o fogo da m\u00e1goa. Perdoar como, indignou-se Judite, se a lembran\u00e7a lhe trazia sempre, ou quase sempre, rasgos de uma vida de agress\u00f5es, improp\u00e9rios, bebedeiras e cal\u00fanias? Sim, estava divorciada de Carlitos Santiago, h\u00e1 41 anos; na verdade, o seu casamento durara 7 anos. Dos 70 anos que hoje distam do long\u00ednquo maio de 1951, quando tudo era sonho e esperan\u00e7a, a decep\u00e7\u00e3o, a m\u00e1goa e o rancor foram se acumulando, mesmo com todo o esfor\u00e7o para o cultivo da bondade no seu cora\u00e7\u00e3o puro e aberto e a obedi\u00eancia aos preceitos","religiosos a respeito do amor ao pr\u00f3ximo e das benesses do perd\u00e3o. Hoje, consolava-se Judite ao repetir baixinho: \u2013 \u201cdaquelas almas enamoradas, restava apenas o respeito pela maternidade\/ paternidade que souberam, apesar de tudo, conservar, muito mais pelos cinco filhos do que por eles pr\u00f3prios\u201d. E mais uma vez, a anci\u00e3 revirou-se na cama, totalmente desperta\u2013 as lembran\u00e7as n\u00e3o a deixavam voltar ao sono. Acendeu as luzes, buscou a manta azul, abriu a gaveta do criado mudo, procurou o l\u00e1pis que apontara na manh\u00e3 do dia anterior e o bloquinho de papel de cartas. Com tudo nas m\u00e3os, foi para o escrit\u00f3rio, agora n\u00e3o mais na ponta dos p\u00e9s, apenas cuidando para n\u00e3o arrastar o velho chinelo de l\u00e3 de carneiro. Sentou-se \u00e0 velha escrivaninha, cobriu as pernas e tirou o celofane que protegia o bloco de papel de carta. Talvez o que lhe trazia \u00e0 escrita n\u00e3o fosse a ins\u00f4nia, mas duas frases que ainda ribombavam na sua caixa de lembran\u00e7as: uma de seu filho mais velho, de h\u00e1 poucos dias, e outra, de Carmem, recentemente proferida. A primeira: \u201cm\u00e3e, hoje entendo que a senhora agiu sob press\u00e3o, e tomou decis\u00f5es que a levaram \u00e0 separa\u00e7\u00e3o do pai, coisa que s\u00f3 agora eu aceito\u201d. A outra, da nora: \u201co perd\u00e3o alivia...\u201d >> 191 << Um arrepio fez Judite decidir-se: deixaria escrito o seu Vilca Marlene Merizio \u00faltimo pensamento ao filho que s\u00f3 agora compreendia a raz\u00e3o do seu pedido de div\u00f3rcio. Precisamente, o que ela sempre lamentou foi o fato desse filho, o seu primog\u00eanito, o mais pr\u00f3ximo, o mais chegado ao seu cora\u00e7\u00e3o, o l\u00edder da casa, o que cuidou de todo o mundo a vida toda, o seu orgulho e o orgulho da fam\u00edlia, o que jamais decepcionou, pelo contr\u00e1rio, o que s\u00f3 alegrias trouxe, nunca se ter posicionado ao lado dela, naquilo que se referia \u00e0 separa\u00e7\u00e3o do seu pai. Ainda menino, ao v\u00ea-la trabalhando sempre, dias e dias a fio, mesmo nas f\u00e9rias ou durante as licen\u00e7as maternidade aquando do nascimento de seus quatro irm\u00e3os, em certa ocasi\u00e3o, perguntou-lhe: \u2013 \u201cM\u00e3e, por qu\u00ea? Por que a senhora tem de trabalhar tanto, estar fora de casa por tantas horas, aceitar trabalho aos fins de semana, estar sempre ocupada? Por que, m\u00e3e, a senhora n\u00e3o \u00e9 m\u00e3e como as m\u00e3es dos meus amigos?\u201d As respostas a essas perguntas, mesmo que respondidas centenas de vezes por Judite, jamais fizeram eco no cora\u00e7\u00e3ozinho do filho. Seus olhos eram tristes.","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3oA m\u00e3e, durante todos esses anos sentia a cobran\u00e7a muitas vezes inaudita por parte do filho mais velho. Uma vez, ainda quando Pedro era crian\u00e7a, indagou-lhe por que sempre ficava ao lado do pai, mesmo nas horas mais dif\u00edceis, quando as brigas eram dolorosas, e ele respondeu: \u2013 \u201cfico com quem mais precisa, com o lado fraco da fam\u00edlia\u201d. \u00c0s vezes ele pr\u00f3prio perguntava: \u2013 \u201cM\u00e3e, se o pai tivesse uma ferida exposta, um c\u00e2ncer, uma doen\u00e7a palp\u00e1vel a senhora o deixaria?\u201d E acrescentava: \u2013 \u201cA doen\u00e7a psicol\u00f3gica e mental a gente n\u00e3o v\u00ea, mas \u00e9 dolorida, tem que ter aten\u00e7\u00e3o, tem que ser tratada; a pessoa n\u00e3o pode ser abandonada, tem de ser respeitada na sua dor e cuidada\u201d. Judite tentava justificar a sua atitude... E se magoava pela falta de compreens\u00e3o do filho que sempre parecia estar contra ela. Da m\u00e1goa ao ressentimento; da incompreens\u00e3o ao rancor, \u00e0 culpa, ao afastamento interno, \u00e0 pouca demonstra\u00e7\u00e3o de amor. Agora Judite se d\u00e1 conta do que acontecera e do quanto ela deixara esse abismo se aprofundar. A culpa ro\u00eda-lhe a alma, n\u00e3o pelo div\u00f3rcio, mas pelas vezes que se ausentara de casa para ganhar >> 192 << o p\u00e3o de cada dia e porque nunca se colocou no lugar do filho. Nas \u00faltimas semanas, desde que come\u00e7ou o inverno, n\u00e3o conseguia dormir direito: os len\u00e7\u00f3is eram espinhos a lhe ferir corpo e alma; o cobertor aquecia o medo de partir sem revelar ao filho adorado o quanto o amava. Esse filho irm\u00e3o de caminhada, o assistente de todas as horas, o amigo incans\u00e1vel sempre presente nas tormentas da fam\u00edlia, ajudando, consolando, curando. Judite lembra-se do quanto ele era chamado pela fam\u00edlia para a resolu\u00e7\u00e3o de todos os males que aconteciam, de um simples resfriado aos piores casos de internamento hospitalar. Ele era m\u00e9dico. N\u00e3o s\u00f3 do corpo, mas da alma, principalmente. E o m\u00e9dico adoeceu seriamente nem tinha completado seus quarenta anos. Uma nova dor, uma nova afli\u00e7\u00e3o para o cora\u00e7\u00e3o de Judite. Ela escreveria sua mensagem de amor ao filho que havia, ao longo dos anos, se tornado seu pai, seu irm\u00e3o, seu amigo. Diria haver-se perdoado, que j\u00e1 n\u00e3o sentia culpa, que o milagre acontecera. Que o amava, que a gratid\u00e3o que sentia por Deus t\u00ea- la presenteado com t\u00e3o rico rebento seria compartilhada com o mundo inteiro e que, desde que reconhecera que precisava","se autoperdoar, sentia-se livre para tamb\u00e9m perdoar a quem a houvesse ofendido. E prometeria fazer as pazes com seus desafetos, chamando-os para junto de si, mostrando-lhes o quanto estava modificada desde o mais profundo do seu ser. Mas, \u00f3 decep\u00e7\u00e3o, a ponta do l\u00e1pis quebrou com o esfor\u00e7o da primeira letra a ser grafada naquela mensagem de reden\u00e7\u00e3o. E o \u201cQ\u201d, de \u201cQuerido filho\u201d, ficou borrado e incompleto. Assustou-se. Dois bra\u00e7os fortes e resolutos a ampararam naquele momento em que, mais uma vez, enfraquecia, sem que tivesse tempo de pensar ou dizer alguma coisa. E um olhar verde-esmeralda, jamais visto com tanto esplendor, animava-a a ouvir o que lhe era sussurrado ao ouvido:\u2013 \u201cm\u00e3e, ainda trabalhando? A senhora j\u00e1 n\u00e3o precisa mais escrever, seus livros j\u00e1 foram todos escritos. Fizeram sucesso e agora se empilham na prateleira. Vem, vamos para a cama. Laurinha est\u00e1 aqui\u201d. E Laurinha, na doce voz do amor, pegando-lhe as m\u00e3os geladas da av\u00f3, encostou-as ao peito e disse: \u2013 \u201cV\u00f3, vem, escolhi. um poema seu, de antigamente. Vou ler, ser\u00e1 que a senhora se lembra quando o escreveu? \u00c9 o meu favorito\u201d. E Laurinha leu, pausadamente: >> 193 << Quanto de n\u00f3s de perde na brancura informe de bruma? Vilca Marlene Merizio Quanto de n\u00f3s se esconde na lonjura do abra\u00e7o? \/ Quanto de n\u00f3s se procura na dist\u00e2ncia do olhar? \/Quanto de n\u00f3s ressuscita no afago escoado do aperto de m\u00e3o? Ah! Quanto de n\u00f3s se salva no desenho das palavras tecidas no sorriso? Ah! Quanto de n\u00f3s se salva?! Judite sorriu. Sim, lembrava, o t\u00edtulo escolhido para o poema fora Constata\u00e7\u00e3o. Devagarzinho, o filho mais novo conduziu-a para a cama. Beijou-lhe a fronte com carinho: \u2013 \u201cDorme bem, m\u00e3e! Mas, antes, me entrega, por favor, a foto da fam\u00edlia que a senhora traz abra\u00e7ada ao peito. Isso! At\u00e9 amanh\u00e3, querida! Sonha com os anjinhos!\u201d. E Judite, aconchegada, dormiu em paz. Silvio, Virg\u00ednia e Laurinha, tamb\u00e9m.","","Rosas","","No reino das plantas Vilca Marlene Merizio H\u00e1 70 anos atr\u00e1s, ainda menina, fiquei em casa com minha m\u00e3e, que sofria periodicamente de uns ataques dos nervos (era assim que eu ouvia as minhas irm\u00e3s referirem-se \u00e0s crises nervosas de mam\u00e3e). Lembro que as minhas irm\u00e3s lhe ofereciam sempre ch\u00e1 nessas ocasi\u00f5es. Nunca eu soube de qu\u00ea. S\u00f3 sei que pouco >> 197 << tempo depois de beber o ch\u00e1 que as minhas irm\u00e3s preparavam no fog\u00e3o a lenha, ela ia aos poucos se recuperando. Numa manh\u00e3, j\u00e1 n\u00e3o lembro se de ver\u00e3o ou inverno, ficando sozinha com mam\u00e3e e vendo-a contorcer-se de dor (tamb\u00e9m n\u00e3o me lembro em que \u00f3rg\u00e3o), fui ao quintal \u00e0 procura da tal planta milagrosa. N\u00e3o reconheci nenhuma. Nenhuma me dava sinal de ser milagrosa. Mas tinha que lhe fazer o ch\u00e1. A planta que mais me chamou a aten\u00e7\u00e3o (e que no meu ponto de vista de menina podia fazer bem para a sa\u00fade de mam\u00e3e porque era muito delicada e bonita) foi uma rosinha cor-de-rosa de uma roseira florida que se entrela\u00e7ava aos fios de arame esticados entre os moir\u00f5es da cerca que circundava as laterais do nosso jardim. Eram Rosas de Santa Terezinha. Tinham mais gosto que cheiro (provei-lhes, mordiscando as p\u00e9talas pequeninas). Escolhi as maiores, evitando os bot\u00f5ezinhos, e, das p\u00e9talas, fiz uma infus\u00e3o com \u00e1gua rec\u00e9m-tirada do po\u00e7o, que se coloriu de um rosa forte. Coei que eu considerava ch\u00e1, separando as petalinhas cozidas, e, ainda quente, ofereci aquele l\u00edquido cor-de-rosa para","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3oa minha m\u00e3e, numa caneca de barro. Ela tomou tudo. Sentei- me aos p\u00e9s da cama e fiquei \u00e0 espera do que pudesse acontecer. As dores passaram, ela soltou as m\u00e3os que estavam crispadas e adormeceu. Apalpei seus p\u00e9s para ver se continuavam frios. N\u00e3o, estavam relaxados e come\u00e7avam a perder a rigidez que antes me assustara. Acho que dormiu tamb\u00e9m. Horas depois, j\u00e1 com toda a fam\u00edlia em casa, minhas irm\u00e3s e o meu pai quiseram saber qual a planta eu colhera, pois mam\u00e3e havia pedido mais \u201cdaquele ch\u00e1 bom\u201d que a Nisca lhe dera. Fiquei com medo de dizer a verdade. Mas mam\u00e3e dizia que era um ch\u00e1 novo, que nunca havia tomado, e tive de confessar. Quase levei uma surra. Fui proibida de inventar qualquer rem\u00e9dio para quem quer que fosse: podia envenenar algu\u00e9m, explicavam eles (eu havia contado que, na volta, depois de haver colhido as rosas, vi uns p\u00e9s de copo-de-leite que me pareceram muito simp\u00e1ticos tamb\u00e9m). Nunca mais mexi em plantas para oferecer aos adultos, mas lembro que continuei fazendo \u201cch\u00e1 de matinho\u201d (grama) para as minhas amiguinhas que iam l\u00e1 em casa brincar. Quando >> 198 << na brincadeira, festej\u00e1vamos anivers\u00e1rios, eu escolhia flores de ab\u00f3bora e misturava com as de laranjeira. Felizmente tom\u00e1vamos em ch\u00e1venas pequenas (de lou\u00e7a de barro, levadas do mercado de Florian\u00f3polis para Brusque), em diminutas propor\u00e7\u00f5es. Nunca nos fez mal. Mas, hoje penso no perigo que corr\u00edamos se houvesse feito e bebido ch\u00e1 de plantas ornamentais tais como a comigo- ningu\u00e9m pode, flores de alamanda, altamente t\u00f3xicas, ou da palma-de-ramos, a palma cica, mortal, em caso de ingesta por animais. E, na minha vida, continuei amando as plantas, princi- palmente as rosas. Mas, eu n\u00e3o precisei mais inventar os ingre- dientes para ch\u00e1s porque as plantas fitoter\u00e1picas passaram a ser vendidas pelas casas comerciais da minha cidade. Anos mais tarde, quando estava passando por grande dificuldade familiar, fiz uma novena \u00e0 Santa Terezinha do Menino Jesus, pr\u00e1tica muito difundida entre os cat\u00f3licos. Como resultado, esperei que no final da novena (rezava-se ora\u00e7\u00f5es espec\u00edficas durante nove dias, seguindo o missal) fosse me oferecida uma","rosa, como prova de que meu pedido fora aceito. Bem, acabei justamente a novena numa ter\u00e7a-feira em que desembarquei na Ilha das Flores, no Arquip\u00e9lago dos A\u00e7ores. Isso em 1988. Havia l\u00e1 imensos campos de hort\u00eansias. Uma profus\u00e3o de novel\u00f5es azuis por toda a ilha, dos precip\u00edcios \u00e0s mais altas montanhas. Tudo era azul e verde. Pensei: aqui, n\u00e3o tenho possibilidade nenhuma de saber se o meu pedido atrav\u00e9s da novena foi aceito ou n\u00e3o. E n\u00e3o me preocupei mais. Era poss\u00edvel que, sim, em Ponta Delgada, houvesse um jardim com rosas. No entanto, na tarde do mesmo dia, quando d\u00e1vamos uma volta tur\u00edstica pela ilha, sem esperarmos, o motorista parou o carro e, sem dizer uma palavra, lan\u00e7ou-se em dire\u00e7\u00e3o ao mar por um barranco que, verticalmente, acabava num grot\u00e3o de pedras, onde as ondas vinham quebrar com toda a f\u00faria do cost\u00e3o atl\u00e2ntico. Assust\u00e1mo-nos. Ele desapareceu l\u00e1 embaixo. Sa\u00edmos do carro e, aflitos, esper\u00e1vamos que passasse alguma pessoa por aquela estrada completamente azul, florida, lind\u00edssima, mas completamente deserta. Foi quando ele reapareceu, ofegante, com uma rosinha na m\u00e3o. >> 199 << Vilca Marlene Merizio \u2013 Senhora, trouxe-lhe um presente. Era um galhinho com diversas rosas de Santa Terezinha. Incr\u00edvel haver naquela ilha, na ilha das Flores, a mesma flor que cultiv\u00e1vamos em Santa Catarina e no Vale do Itaja\u00ed, l\u00e1 pelos idos","A\u00e7ores: da mem\u00f3ria \u00e0 fic\u00e7\u00e3ode 40 e 50 do s\u00e9culo passado, quando eram bastante comuns. Na d\u00e9cada de oitenta, haviam ca\u00eddo em desuso. Meu pedido tinha sido aceito pela Santa. Chorei de alegria. E realmente fui atendida. Quase vinte anos depois, em 2007, pedi para Sandra Prosd\u00f3cimo, criar uma logomarca para o programa Miss\u00e3o A\u00e7ores, projeto que estaria levando aos A\u00e7ores 23 estudantes e profissionais das \u00e1reas de educa\u00e7\u00e3o, sa\u00fade e arte, para participarem dos encontros internacionais de Lusofonia e em outras atividades culturais, representando o Estado de Santa Catarina em tr\u00eas ilhas do arquip\u00e9lago a\u00e7oriano (S\u00e3o Miguel, Pico e Graciosa). Auxiliada por uma amiga, Sandra, sem conhecer e minha prefer\u00eancia por rosas, desenhou: >> 200 << Quando, em maio de 2008, a Delega\u00e7\u00e3o Catarinense, formada por oito brasileiros, inclusive a Sandra, passeava pela Vila Franca do Campo, na ilha de S\u00e3o Miguel, nos A\u00e7ores, e ia em dire\u00e7\u00e3o \u00e0 C\u00e2mara Municipal, visitar o seu Presidente, todos ficaram surpreendidos quando avistaram uma placa indicativa do Herban\u00e1rio Santa Isabel. L\u00e1 estava a estampa de uma rosa semelhante \u00e0 nossa logomarca. Foi ent\u00e3o que voltou \u00e0 minha mente (e ao cora\u00e7\u00e3o) a hist\u00f3ria da Rainha Santa Isabel, de Portugal e contei ao grupo que n\u00e3o a conhecia. Princesa de Arag\u00e3o, ou Rainha da Paz, como tamb\u00e9m ficou sendo conhecida, Isabel (1271-1336) era filha do Rei de Arag\u00e3o e esposa d\u2019El-Rey D. Dinis, o rei-poeta de Portugal. Conta a lenda da Rainha as Rosas que, no ano de 1333, em Portugal, para aliviar a situa\u00e7\u00e3o de pen\u00faria em que vivia a popula\u00e7\u00e3o, a Rainha Isabel empenhou suas joias e, com o dinheiro, mandava fazer p\u00e3es que distribu\u00eda aos pobres. Num desses dias, apareceu inesperadamente o Rei D. Diniz e a Rainha, temerosa de uma reprimenda, escondeu os p\u00e3es no avental. O Rei, percebendo o gesto, perguntou-lhe:"]


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