– Que tendes em seu regaço, minha Rainha? Vilca Marlene Merizio A rainha respondeu-lhe: – São rosas, senhor. O rei replicou: – Rosas em janeiro? Deixai que as veja e aspire seu perfume. >> 201 << Santa Isabel deixou cair as pontas do avental e no chão caíram rosas. O Rei D. Diniz não se conteve e beijou as mãos da esposa, retirando-se enquanto os pobres gritavam: milagre, milagre!
Açores: da memória à ficçãoApós a morte do Rei, a Rainha Santa Isabel passou a viver no Convento das Religiosas de Santa Clara, em Coimbra, onde viveu o resto da vida em pobreza voluntária, dedicada aos exercícios de piedade, peregrinações e mortificações. Morreu aos 65 anos de idade. Trezentos anos depois da morte, o seu corpo conservava- se em perfeito estado, exalando suave perfume. Foi canonizada pelo Papa Urbano VIII, no ano de 1625.6 Daí surgiu a tradicional devoção das festas do Divino Espírito Santo, em Portugal, e muito mais, nos Açores, onde lhe foram acrescidos outros elementos. Um ano mais tarde, em seu programa de estudos e trabalho nos Açores, outro grupo de catarinenses do Projeto Missão Açores, visitou a ilha Graciosa. Para surpresa nossa, lá chegando, deparamo-nos com grande quantidade de roseiras, dessa vez brancas. Segundo informações de pessoas lá nascidas, Graciosa é considerada a Ilha Branca porque, quando foi descoberta, estava completamente coberta de rosas alvíssimas e muito perfumadas. Hoje, muitos moradores ainda conservam como cerca-viva >> 202 << roseirais que florescem em grande profusão. Assim, em 2008, o Projeto Missão aos Açores II fez-se representar na Graciosa, e mais uma vez, a graciosense professora Maria José declamou a lenda das rosas para o grupo que se hospedava no Corpo de Bombeiros Voluntários da Graciosa, por especial gentileza do Dr. Jorge Cunha e presenteou-nos com rosas e com lendas sobre a descoberta e a povoação da Graciosa. 6 Adaptado do artigo Rainha Santa Isabel. Disponível em: http://real- abranches.blogspot.com/2008/07/rainha-santa-isabel-rainha-da-paz.html. Acesso em: 6 agosto 2008.
roxas. Dessa vez, rosas de um perfume inigualável: rosas quase Infelizmente, o tempo fez com que se perdesse a correspondência de Maria José onde ela relatava por escrito a lenda da fundação da ilha, lá por volta do ano de 1450, e o poema que um autor local havia escrito. Ainda havemos de recuperar tais >> 203 << documentos, assim como a foto da imagem da Nossa Senhora Vilca Marlene Merizio das Rosas, hoje peça rara exposta no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, nos Açores.
Bandeira dos Açores Bandeira de Santa Catarina
Nossa história de amor Vilca Marlene Merizio Peça em três atos Sinopse do 1o ato Não é a felicidade que ensina os amantes a conhecerem-se: são as desavenças. Paul Léautaud >> 207 << Rosamar Ferreira, mulher de 52 anos, está às voltas com um computador. Esforça-se por operá-lo. Chama de vez em quando o neto para que a ajude a salvar as mensagens que recebe do seu correspondente português, jovem de 40 anos, sadio, desportista e alegre que a admira pela sua jovialidade, pela sua força de vontade e pelo conhecimento que demonstra ter a respeito da espiritualidade, assunto que o fascina desde criança, mas do qual há algum tempo se afastara. Ela ouve Amália. Tenta novamente entrar em linha direta (on-line) com o amigo, e, mais uma vez, o PC emperra. Chama o neto que já não está mais em casa. Ela está só. Suspira. Bate levemente com as mãos sobre a escrivaninha. Suspira outra vez. Do lugar onde está, escolhe um Cd, troca-o pelo que já está no aparelho (PC) e passa a ouvir Bethânia. Com o computador ligado, levanta-se lentamente da cadeira e dança. Olha de vez em quando para o écran: espera aviso de que o amigo esteja em contato. Suspira novamente, com ar cansado. Volta a dançar. Reanima-se.
Ao lado do computador, duas bandeiras: a dos Açores e a de Santa Catarina. Alisa a bandeira açoriana. Volta ao computador. Vai à caixa de mensagens. Suspira. Chama mais uma vez o neto (que não aparece). Escolhe outro Cd. Desta vez, Leonard Cohen (faixa 2). Pega um porta-retrato em cuja fotografia ela e o amigo estão abraçados e dança amorosamente, agora esquecida do computador. No fundo do palco, uma foto gigante das Sete Cidades, Açores, Portugal. Ela rodopia, feliz. Joga-se então sobre uma poltrona e recosta-se. Relaxa. Dorme. ...(continua deitada). A luz diminui. A música para. Troca o cenário e, ao fundo, aparece a imagem de uma rua de Florianópolis. Gente andando, muita gente no calçadão da Felipe Schmidt. Risos, conversas, barulho, tumulto. Uma mulher quinze anos mais jovem está no centro do palco. Imóvel. Colado ao peito, um porta-retratos. Tem medo. A luz vai amortecendo. Escurece de todo. Um foco de luz >> 208 << acompanha a entrada de um homem aparentando mais de 30 Açores: da memória à ficção anos. É o marido. Ela esconde a foto sob o braço esquerdo. (Só a luz do foco, o resto às escuras.) Inicia outra música: Agostinho dos Santos (o painel do fundo é mudado e aparece a mesma rua Felipe Schmidt de 20 anos atrás). O homem alto e loiro a rodeia, galanteador. Ela se esquiva, ele insiste. Puxa-a pela mão. Abraça-a. Ela se retrai. Ele volta a insistir. Ela cede. Começam a dançar. Ela, a custo, se entrega. Ele se esfrega. Dançam de rosto colado. Ela se aflige e deixa cair a foto. O homem junta. Entrega- lhe sem olhar. Ela encosta a fotografia ao peito, com carinho. Ele desconfia, puxa-lhe a foto, ela agarra o porta retrato com as duas mãos. Ele reage e arranca-o num gesto violento, atirando o porta- retrato ao chão, com força. Estilhaços de vidro machucam-na no rosto e no braço. Sangra. Ele a esbofeteia descontroladamente. Ela cai. Tenta levantar-se, mas o máximo que consegue é ficar de cócoras com a cabeça enterrada entre as pernas. Ele sai majestosamente. Ela ainda faz um gesto minguado. O braço lhe cai. As luzes todas se acendem. A mulher continua ali, abaixada, semiviva. Outro homem, pouco mais novo que o primeiro, bem-
vestido e portando uma mala, aproxima-se dela. Com carinho, ajuda-a a levantar-se. Ela se apruma. Conversam. Uma criada serve um café. Ela sai, deixando-o sozinho. Ele se encaminha para a biblioteca, tira um livro de sobre a mesa e lê um poema em voz alta. Acha um pacote de cartas recém-mexido. Escolhe algumas. Lê, também em voz alta alguns trechos. Monologa sobre o amor. Uma menina de uns 6 anos de idade aparece. Conversam. A menina brinca com algumas cartas. Quando a mãe chega, ela sai levando três envelopes. Rosemar retorna, airosa, com uma flor no cabelo. Ela e o homem olham-se ternamente. Ele pergunta por certa obra. Ele: Onde estão os livros de Literatura Portuguesa? Ela aponta meio sem-jeito para o alto da prateleira. Ele pega a mão que está no alto, apontando para o livro de capa azul; pega a outra mão, beija-as e encosta a sua testa na testa dela (com muito carinho). Inesperadamente, mostra-lhe, então, a gravata, e pergunta-lhe se gostou. Ele: Escolhi-a especialmente para ti. Gostas? >> 209 << Ela (pegando levemente na ponta da gravata): Muito. Vilca Marlene Merizio (Encostando o rosto na gravata e no peito do amante:) É macia. Tu também és macio. Encosta-se toda. Os dois se abraçam ternamente. Ele a embala. Ela sorri, languerosa. Saem os dois abraçados (música) até a boca lateral do palco. Daí voltam, freneticamente, a dançar um tango (muita sensualidade). Depois da dança, despedem-se com um beijo na boca (dando a entender que ele vai para longe). Ele pega a mala e sai bruscamente. Ela chora, parada, braços caídos ao longo do corpo. A luz vai amortecendo até a escuridão completa (alguns segundos). Lentamente volta a claridade (luz rosa) e Rosemar está no quarto, recostada na cabeceira da cama, acompanhada por uma amiga. Conversam sobre José, sobre a situação de não se verem há 10 anos, sobre os conflitos dela em receber de volta o marido. Relembram o que os búzios haviam dito e o que o pai de santo havia confirmado: ela não ficaria com o marido nem com o
Açores: da memória à ficçãoamor ausente. Ela demonstra intenção de voltar aos Açores. Retira do pacote de cartas (que está sobre a cama) a última recebida. Lê alguns trechos. Fala que está se preparando para ir embora já que o divórcio fora-lhes concedido. Chegam mais duas amigas e um colega de trabalho. Vão para a sala. As cartas ficam sobre a cama. A filha, já com 12 anos, pega a última carta e lê. Na sala é servido o chá de Amor Ardente. Enquanto serve o chá, com todo o ritual, Rosemar dá a receita e diz como a recebeu através de uma médium conhecida. Decidida, depois de uns goles de chá, anuncia que vai aceitar o novo casamento. Voltará para Portugal. – Irrevogável: irei. Ela, então, confessa o seu amor por X. Os amigos levam um choque. Conta-lhes em resumo a sua apreensão em deixar os outros filhos. Irá somente com os dois mais novos. Chama as crianças e comunica-lhes a decisão de voltarem aos Açores. Os dois se recusam a ir. A menina chora (completamente fora de si) e chama o pai, por telefone. O ex-marido volta e pede para que >> 210 << ela não vá, em nome das crianças. Discutem. A menina grita; o rapaz (adolescente) senta-se ao chão com a cabeça entre as mãos. A menina aparece com um revólver e diz que vai atirar. Ela emudece. Diz que fica. O ex-marido pega-a pela mão e puxa-a para o quarto. Os filhos se retiram. O palco escurece. Novamente na sala, seis anos depois. Rosemar está com a mesma amiga confidente. Falam sobre a próxima viagem dela a Portugal. Pede-lhe para guardar o pacote de cartas. Falam sobre o amor que ficou para trás sem se haver consumado: a recusa dos filhos de a acompanharem há seis anos, da sua renúncia, dos namoros do ex-marido, das voltas dele para casa, da sua solidão. Entra a filha, agora uma mocinha de dezoito anos. Vê o pacote de cartas. Empalidece. – Mãe, outra vez, não! – Não, o quê? – Essas cartas... vai começar tudo de novo? Ele escreveu outra vez? A senhora ainda pensa em se casar com ele?
– Começar o quê? Estas cartas são minhas. Como tu sabes quem escreveu estas cartas? O que sabes sobre isso? – Eu li três delas. Há muito tempo... Ele queria casar-se com a senhora... Mãe e filha encaram-se, face-a-face. A mãe chora. A filha estremece. – Mãe! (abraçam-se) Não vai, mãe! A senhora tem tido notícias dele nesses últimos anos? – Não, há mais de seis anos não sei dele. A última vez que me telefonou foi num Natal. Leu-me um poema, chorou... Nunca mais ligou nem escreveu. Nem sei se está vivo ou morto. Quero voltar para lá para rever os amigos. Não é por causa dele. – Fica, Mãe! Já houve muita desgraça na nossa família por causa disso. Ele já deve ter casado com outra... – Não, querida, dessa vez eu vou. Não adianta insistires. Eu irei, nem que seja a última vez. Preciso ir. (Começa a arrumar a mala, mas a filha puxa-a pelo braço, levando-a para a sala. No entanto, param quando ouvem vozes (masculinas) alteradas. No outro lado do palco, o foco ilumina o pai (agora já >> 211 << grisalho) e três filhos moços, conversando com o médico da Vilca Marlene Merizio família. Falam em cirurgia cardíaca, em urgência, em necessidade de arranjar vaga no Hospital. Mãe e filha entram (abraçadas). Toca o telefone. É da agência de viagens confirmando a reserva para daqui a seis dias. Ela exulta e dá a notícia aos filhos. Um deles (o mais velho) mostra-lhe o resultado dos exames e o médico conta-lhe a verdade sobre o seu estado de saúde. Ela tomba sobre a cadeira: – Mais uma vez, não! Meu Deus, uma vez aceitei, renunciei em nome dos meus filhos. E agora em nome de quem devo renunciar? Eu vou, nem que seja morta! Minha alma morrerá antes do meu corpo, se fico. Duas vezes, não! Não posso aceitar. Não quero aceitar. Meu Deus, meu Deus, me ajuda! O pano caiu: encerrado o primeiro ato.
Praia do Luz, Imbituba, SC
Milagre na Praia do Luz Vilca Marlene Merizio Henrique e Lurdinha chegaram sem nos avisar. Vinham de Santana do Livramento, RS, com os dois filhos menores, Juninho, de 12 anos, e Martinha, de 9. Sentiam muitas saudades das nossas crianças desde que nos mudáramos de Gravataí, há três anos, para Ibiraquera, em Santa Catarina. Recentemente, haviam ido para a >> 215 << fronteira Brasil-Uruguai, em atendimento ao trabalho de Henrique, um militar médico abnegado, que cumpria religiosamente as suas obrigações enquanto profissional e pai de família. Agora, no final das férias de verão, nos surpreendiam com essa visita inesperada. Vinham passar uns dias conosco e visitar os parentes e amigos, deixados, anos antes, em Vila Nova, em Imbituba. Lurdinha era filha do falecido Antônio Amaral de Matos, um velho estivador do Porto de Imbituba, conhecido por todos como Totonho da Viola. Sua mãe, também já falecida, tinha ajudado a trazer ao mundo muitas crianças da cidade: era parteira respeitada por todas as mulheres que dela haviam precisado. Totonho e Isabel, convidados muitas vezes para padrinhos das crianças, eram pessoas muito bem-quistas pela sociedade vilanovense. Henrique era mineiro, nascido em Monte Alegre de Minas, e pouco sabíamos sobre a sua família, a não ser o sobrenome: Villas Boas, e que havia sido filho único de pais separados. Pensei logo no que fazer para o almoço, porque não está- vamos preparados para a visita, e, perto da nossa residência, não
havia casa comercial de secos e molhados, nem restaurantes. Henrique me tranquilizou: – Vanda, hoje sou eu que cozinho. Só me diz onde guardas as panelas e os ingredientes. As crianças estão loucas para ir à praia. E desempacotando um embrulho grande que tirara de dentro de uma sacola de plástico amarela, continuou a argumentação: – Trouxe uns camarões e uns peixinhos de Laguna. Enquanto vocês levam as crianças para o banho de mar, eu descasco os camarões, arranjo os peixes e, depois, quando chegarem, vamos todos para a cozinha. Quero matar a saudade de um caldo de peixe com a farinha de mandioca feita pelos açorianos de Ibira, a melhor farinha da região. E acrescentou: Estou louco também por um pirãozinho d’água e um peixe frito na hora. Hoje vou me consolar. Não gosto de areia, então me divirto aqui, deixando tudo preparado, até os temperinhos picados. Tens uma horta? Preciso de cebolinha, salsa e manjericão. – Deixa isso para lá, homem! Vamos todos juntos à praia, e, >> 216 << na volta, preparamos o almoço. Açores: da memória à ficção – Ó, Paulo, não lembras que não gosto de areia? Tu vais com as crianças e as mulheres, e perto do meio-dia – são nove horas agora–, avisas a Vanda e a Lurdinha que são horas de voltar. Antes das três, estaremos com o almoço pronto e a cozinha arrumada. Quero ainda passar hoje na casa do Tio Venâncio. A Vó Cotinha esteve com Covid. Passou mal, coitada! – e acrescentou: – Ah, é bom controlares o horário, porque sei que, quando Vanda e Lurdinha começam a conversar, se esquecem do mundo. Dito e feito. Quando ouviram falar em praia, ninguém quis sentar-se à mesa para tomar café. Aninha e Rubens já haviam feito o lanche da manhã, e os dois visitantes, Juninho e Marta, disseram que haviam comido muita bolachinha durante a viagem. Ajeitadas as malas nos quartos e com o carro já descarregado, arrumamo-nos rapidinho. Pegamos chapéu de sol, umas frutas, água e o protetor solar e, num instantinho, estávamos com a bolsa pronta para sair, enquanto o meu marido tirava o carro da garagem. Nem mesmo tínhamos planejado em que praia iríamos. Por sugestão de Paulo, fomos para a Praia do Luz, nossa velha
conhecida e a mais próxima da nossa casa, às margens da Lagoa de Ibiraquera. Queríamos sossego para conversar e lá sabíamos que íamos estar longe da turbulência das praias tops, aquelas mais movimentadas da região. A estrada, mais esburacada do que nunca, fazia as crianças rirem a cada sacudidela do carro. – Ih... tem um buraco dentro do outro, exclamou Juninho, não acostumado com aquela estreita estrada de barro, ladeada mais por plantas nativas do que por casas residenciais. – Não é sempre assim, defendeu Aninha, a minha filha caçula. E Rubens, o irmão mais velho, logo explicou: – A Prefeitura sempre manda passar a máquina, mas a chuva da semana passada foi muito forte. E só ontem que passou. – Meu estômago está saindo pela boca – retrucou Marta, colocando as duas mãos na barriga. – Calma gente, já estamos quase chegando. Mais uns solavancos e chegaremos lá. Aguentem-se, crianças que existem coisas piores. Olhem as flores do mato. São tão lindas – tentei >> 217 << desviar a atenção deles para a beirada do caminho. Vilca Marlene Merizio Quanto mais chegávamos perto da entrada da praia, mais o trânsito ficava difícil. Muitos surfistas haviam deixado o carro à beira da estrada e seguiam a pé, com a prancha embaixo do braço ou sobre a cabeça. Paulo conduzia com cuidado. Fez questão de nos deixar o mais perto da água possível, indo até a praia com o jipe, não sei se por vaidade, já que era novo, ou mesmo por precaução, depois daquela semanada de chuva que, às vezes, transformava a estrava de chão batido num verdadeiro lamaçal. E ainda tinha de atravessar aquela parte onde a areia era mole e, podia, se o carro não fosse potente, ficar atolado. O jipe deu conta de passar pela lama e pelo areal da entrada da praia. Paulo estacionou o carro bem no começo da praia, onde a areia estava mais concentrada e dura, para que pudéssemos aproveitar o dia, começando por uma caminhada na direção do costão à esquerda, onde começava a trilha para o sul da Praia do Rosa.
Avisados sobre os perigos do mar, os meninos quiseram ir para à direita até a pedreira que dá início à Praia de Ibiraquera. Prometeram não passar dali e logo voltar para se encontrarem com as irmãs mais novas e, se houvesse tempo, ver as baleias lá do alto da trilha. Talvez tivessem sorte de ver, ao longe, as baleias francas. Ventava com muita intensidade. Nem parecia março. Guar- daram as bolinhas e as raquetes: não poderiam jogar frescobol naquela ventania. Nós cinco, Paulo, Lurdinha e eu, e as duas meninas, apesar do vento que nos trazia areia aos olhos, as mulheres protegidas com as cangas, fomos caminhando lentamente, rindo, conversando, observando o mar agitado que respingava água limpa, mas gelada, e nos desviando das águas-vivas que, mortas, enfeitavam a praia de ponta a ponta. Pareciam cristais trazidos pelo vento para enfeitar toda a orla daquela parte do litoral sul-catarinense, tão puro quanto a natureza intocada de toda a região dos lagos. Fomos até o costão, subimos uma parte do morrinho que dá paras trilhas e voltamos, sempre chamando a atenção das meninas, >> 218 << mostrando-lhes as bandeiras vermelhas que sinalizavam o local Açores: da memória à ficção proibido para banho, e explicando-lhes por que seria perigoso entrar na água naquele dia tão ventoso. Na volta da caminhada, estranhando que os meninos ainda não tivessem vindo ao nosso encontro, paramos para descansar um pouco. Sentamo-nos na areia molhada, mas pelo desconforto que logo sentiu minha amiga Lurdinha, procuramos um lugar mais seco, quase beirando o matinho verde, e onde o vento não batia tão forte. E conversamos, conversamos. Era muita a saudade. Eram muitas as novidades... Choro e riso se misturavam... De repente, um alvoroço tirou-nos daquele bate-papo gostoso. Gritos por socorro, um tumulto, pessoas correndo, homens gritando: – Duas meninas estão na água! Chamem os salva-vidas! Elas estão sendo levadas mar adentro. Corremos desesperados. Paulo na frente. Aflitas, sem ver Marta e Aninha, vimos Paulo atirar-se ao mar, na direção do que os braços agitados indicavam.
– Lá! Lá!... Socorro! Busquem os salva-vidas! Chamem uma ambulância! E dois jovens passaram por nós como uma flecha. Na água não tinha nenhuma embarcação oficial para socorro em caso de afogamento. E corremos mais, já desesperadas, com peito arfando, sem saber o que fazer. Uma mulher com sotaque argentino gritou: – Andem, andem, vamos dar as mãos. Fazer uma corrente humana até chegar nas crianças. Dois salva-vidas entraram na água revolta que se debatia desesperadamente nas pedras, ao bater de cada onda que parecia ter se agigantado em questões de minutos, mal o vento virara. – Depressa, vamos nos dar as mãos! Fazer uma corrente. Viva. Outra voz gritou de cima de uma pedra. – Uma das meninas está no colo de um homem. A outra está sendo levada pela correnteza. O homem está afundando, mas ainda tem a criança no colo. >> 219 << Uma pessoa corria desesperada para a água, gritando, ao Vilca Marlene Merizio mesmo tempo: – Tragam a criança, tragam o homem! Salvem pelo menos uma! E eu vi os dois salva-vidas, carregando o homem, semi- desfalecido, todo duro, encarangado. E o homem estava sem a criança. – Deitem o homem aqui. Alguém traz tolhas de banho, cangas, mantas, o que tiverem! Tragam algum refrigerante ou doce! Na hora me lembrei que tinha no carro, toalhas de banho e alguns lençóis que deveriam ir para a lavanderia naquela final de semana. Eu tinha toalhas no carro e lençóis. Eu tinha de ir buscar porque com o vento, a temperatura havia arrefecido e os corpos tinham de ser aquecidos. Não pensei noutra coisa e me pus a correr até o carro que estava a uns 500 metros de distância.
Fui pegar as chaves na bolsa que eu havia deixado no momento do aviso do acidente no local em que conversávamos. Voei até o carro, e voltei mais rápido ainda. A dor no lado era lancinante, mas eu tinha de ser rápida. Não ouvia mais nada, nem via ninguém. Quase tropeçando nas pontas das toalhas que se arrastavam pela areia, e carregando a sacola com os seis lençóis de cama, parei somente quando pessoas estranhas arrancavam da minha mão o que trazia tão firmemente como se fosse uma tábua de salvação. Já não podendo mais correr, dirigi-me para a multidão que, de pé, rodeava uma das pessoas que havia sido salva. Deitado o corpo, percebi apenas dois pés esticados. Roxo. Vozes repetiam: – É o avô... Morreu, coitado! – Mais toalhas! Me deem os lençóis. Temos que aquecê-lo! Quem tem guaraná, fanta ou qualquer refrigerante? Depressa! Ele precisa ingerir alguma bebida doce – uma mulher pedia bem alto. – E as meninas? – perguntei, entregando uma última tolha >> 220 << para um jovem que vinha ao meu encontro. Açores: da memória à ficção – Graças a Deus! Graças ao Divino Espírito Santo! – rezava uma senhora de mais idade, com as mãos postas paro alto. As meninas se salvaram. Já foram levadas pelo meu filho, o Jacaré da Dinda, filho do seu Tito da venda. – Foi um milagre. Aquele surfista ali saiu do nada e conseguiu salvar uma delas – disse outra gaúcha mais novinha. – E a outra? Conseguiu se salvar? – Sim, o avô conseguiu pegá-la ao colo. Mas não conseguia sair da arrebentação. Quando bateu na pedra, por sorte, tinha alguém lá que agarrou a criança pelos cabelos, quase caindo também no mar. – E a outra, como foi mesmo? – A outra, não sei bem como foi. Estão dizendo que aquele surfista ali – e apontou para um jovem de costas – apareceu do nada e pegou ela. Conseguiu salvar. Graças a Deus! – Ah!... Ele está indo embora! – exclamou a outra jovem de biquíni vermelho.
– E onde elas estão? – Já foram tiradas daqui. Parece que já chamaram o helicóptero do Corpo de Bombeiros, que vem buscá-las! – Não, elas já foram com a camionete do meu filho, disse outra vez a velhinha. – Meu Deus, quem seriam essas crianças? E os pais onde estão? Será que vieram sozinhas para a praia? E a velhinha mais conversadeira, a mãe do Jacaré da Dinda: – Não, sozinha não, que aqui não é praia pra gente da cidade vir sozinha. Ainda mais criança! – E as nossas meninas, onde estão? – Olhei em volta, e não vi ninguém dos meus. Preocupada, procurei com o olhar, já meio que em desespero, a Lurdinha. Fui mais para frente, na direção da multidão que rodeava o afogado. Quis achar o Paulo. Nada. Me aproximei, já sem as tolhas que me haviam sido arrancadas da mão, e vi o “morto”, de que, antes, apenas avistar os pés. – Meu Divino Espírito Santo, me ajude! É o Paulo. Onde >> 221 << estão as crianças? Vilca Marlene Merizio Os dois meninos, Juninho e Rubens, empurrando as pessoas que, paradas, apenas olhavam para os movimentos dos médicos que tentavam fazer Paulo tomar o refrigerante, sem poderem fazer mais nada, se agarraram nas minhas pernas. E choravam. – Mãe, a gente não sabia. Estávamos lá do outro lado da praia. Viemos correndo quando avistamos pessoas correndo para o canto da praia. A tia Lurdinha está ali. E Rubens conseguiu apontar para a pedra, quase escondida pelas touceiras de mato e pés de silva, perto de onde as mulheres deixaram Lurdinha, semidesmaiada. – Vem mãe, vamos acudir a tia! As mulheres estão chamando. Ali, bem atrás dos espinheiros. Ali atrás. – Meu Santo Anjo, valei-me! Meu Divino Espírito Santo, socorrei-me! – Era o que eu conseguia dizer, sem saber se ia primeiro ver o corpo do Paulo, ou se ia me abraçar a Lurdinha. – Calma, Rubens, vamos primeiro ver o teu pai.
– Paulo, Paulo! – corri, jogando-me sobre um monte de toalhas. – Calma senhora, seu pai, está se recuperando. E vai ser levado para o hospital. Foram buscar socorro. – Ele é o meu marido, não é meu pai. Tem cabelo grisalho, mas é novo! – Então, meu Deus, a senhora é mãe das meninas? Um punhal atravessou meu coração; – Das meninas? Aninha? Marta? Onde está a minha filha, onde estão as nossas meninas? – consegui gritar. Um abraço impediu que eu caísse. Lurdinha, apoiada nas mulheres da praia, ainda tremendo, e soluçando convulsamente, dizia, aos prantos: – Aninha e Marta entraram no mar, não viram o perigo, foram levadas pelas ondas, mas graças a Deus e a Santa Ana, aconteceu o milagre: o Paulo conseguiu alcançar a minha filha. Marta estava mais próxima. Aninha foi carregada para trás do costão e, se não aparecesse aquele surfista abençoado, que nem >> 222 << sei quem é e nem onde está, ela teria se afogado. Bendito seja ele, Açores: da memória à ficção e bendito o homem que salvou a minha Aninha, e que quase foi tragado também pelas águas revoltas. Abraçamo-nos forte, com os meninos agarrados a nós. E assim fomos ver Paulo, que, ainda esticado na areia, aguardava que chegasse condução para transportá-lo ao hospital. Um casal tentava reanimá-lo. Depois ficamos sabendo, eram médicos gaúchos em férias. A camionete chegou. Levaram Paulo até onde o helicóptero havia pousado. Lurdinha o acompanhou. Eu levei os meninos, ainda assustados para o carro, e fomos para casa. Henrique ao nos ver, ainda bastante estremunhados, ao saber do que ocorrera, quase não acreditando no que ouvia, ainda mais porque nossas três vozes queriam contar ao mesmo tempo, perguntava: – E vocês, estão bem? E onde eles estão? Estão vivos mesmo? Depois de um acesso de choro, que todos nós acom- panhamos, ainda com as lágrimas caindo-lhe pelo rosto que havia envelhecido em segundos, perguntou mais uma vez?
Eles foram socorridos? Estão vivos? Depois de um silêncio que pareceu nunca mais acabar, disse, decidiu: – Em julho, viremos a Vila Nova. Vamos agradecer ao Divino. E no próximo ano, quero ser o festeiro da festa do Divino Espírito Santo e de Santa Ana e cumprir minha promessa. As duas meninas e o Paulo vão ficar bem. – Eu acredito. E prometo. – Nós também! O alívio nos nossos corações levou-nos a um abraço coletivo. – Crianças, já para o banho! Depois do almoço, iremos ao hospital. E nem nos lembrávamos que, no fogão, quentinhos, nos esperavam um delicioso caldo de camarão da laguna, um pirão d’água e peixe frito na banha. – Benza Deus! Foi um dia e tanto, ainda consegui dizer, subindo as escadas para ver como estavam as crianças no piso de cima. >> 223 << Vilca Marlene Merizio
Caixa de sabonetes
O guardar da caixa Vilca Marlene Merizio Saltei do automóvel numa rua invadida pela água da enchente. Suja, com vestígios de algas e cavacos de madeira boiando. Olhei a casa em frente. De madeira antiga, cinza, quase preta, espremida entre arranha-céus. Parecia só fachada. Se olhasse bem, estava torta, com a cumeeira tombando para a direita, como >> 227 << se escorada pelo prédio ao lado. Entrei, entramos na casa de madeira cinza, quase preta, riscas verticais, sem porta na frente, sem janelas laterais. Minha irmã, sentando no canto esquerdo da sala escura, não sorriu. Ofereceu-me uma bacia de alumínio com água fervente. Saiu. Voltou com uma caneca grande, as duas mãos em cálice. Despejou água fria. – Pronto, lava essas penas. – Penas? – Pernas! Lavei os pés. Das pernas não saía a sujeira preta, colante, a gosma aumentando na proporção do esfrega-esfrega. Minhas mãos impediam que a espuma malcheirosa subisse às coxas: já estava nos joelhos.
Voz de alguém: – Sabão! Precisam de sabão! Gordura só sai com gordura! Da gaveta pesada da cristaleira escura, Diva pegou a caixa azul com sabonetes: Alma de Flores. Rasgou o celofane, com os dentes. A orquídea da embalagem perdeu o brilho. A mulher bonita também. A espuma fétida já subia pelos meus braços. Relutei em aceitar o sabonete já fora da caixa e sem o papel de seda. Na ponta dos dedos, Diva passou-me às mãos um tablete do sabão com cheiro de flor. – Anda, pega, antes que isso grude mais ainda em ti. A caixa foi presente, guardo há anos. Para uma necessidade. – Não, não quero, obrigada. Darei um jeito. – Não, não darás jeito sem minha ajuda. Anda, pega e te esfrega, com força, vai limpar. Vai sair tudo. – Mas foi presente... Não vou usar. O sabonete é teu. >> 228 << – Foi presente, sim: teu. Açores: da memória à ficção – Meu? Eu te dei essa caixa de sabonetes? – Deste, me deste quando o Fernando partiu... A gosma nojenta desprendeu-se. Pernas desinchadas. Alívio no corpo e na alma. Diva desapareceu. Partiu sem me revelar a verdade. Teria mesmo algo a me dizer? Ou tudo foi fantasia da cabeça de uma menina carente? Sem respostas que me satisfaçam, sigo a jornada.
Praia de Ponta das Canas, Ilha de Santa Catarina, Florianópolis-SC
Nicanor: sim, eu já o conhecia Vilca Marlene Merizio Madalena, na sua brejeirice de caloura do Curso de Artes, me encontrou no corredor apinhado de estudantes naquela semana de simpósio e congressos do nosso Centro de Pesquisas Novas Linguagens. – Então, professora, já conheceu o novo marido de aluguel >> 231 << de nosso condomínio (... e um sorriso amplo iluminou a sua face...)? Ele deixou uns cartões de visita. É novo na praça, vou ajudá-lo a distribuir os cards. Passo logo à noite na sua casa – disse ela, falando de costas, sem parar para conversar, exalando por todos os poros à flor da pele ruiva a energia de universitária recém-chegada ao seu mundo de sonhos. Era visível a sua pressa, mas ainda levantou a mão para dar um “tchau, fê!”. Sim, eu o conhecia. Nicanor. Como poderia esquecer tal figura? Nicanor é imagem que se impregna no corpo e na alma. – Encantado, minha senhora! Sou o Nicanor – me disse o jovem simpático, apressando-se a chamar o elevador e me dando passagem com uma mesura desmedida para aquele momento e local. A síndica do condomínio que o acompanhava passos atrás sorriu, deu-me uma piscadela sem que ele visse, e o apresentou. – Professora Felícia, este é Nicanor. Contratamo-lo há dois dias. Avise-nos se precisar de conserto em algum cômodo do seu apartamento. Nas horas de folga, Nicanor atende pedidos
Açores: da memória à ficçãoparticulares de todo o tipo de necessidades domésticas, da troca de lâmpadas a uma pintura de parede. E ele, atraindo a minha atenção, não sei se pelo sotaque ou se pelo belo visual, longilíneo, sem barba, sem bigode, passava a mão esquerda pelos cabelos exageradamente negros, meio que esvoaçantes ao caírem teimosamente ao longo da testa. A mão direita, espalmada na minha direção, antecipava o aperto que, sem ser forte em demasia, pareceu-me ser extremamente confortável, fofinho. Eu diria mesmo, de uma boa energia... E isso me deixou um tanto perturbada. – Cheguei do Nordeste há uns dias e vim direto trabalhar aqui. Não, não sou do Nordeste. Nasci no litoral paulista. Estava em Maceió, mas me falaram que no Sul encontraria melhores condições de trabalho. Sou amigo do marido de Bernadete – e a síndica confirmou com a cabeça. – Faço de tudo um pouco. Dos pequenos consertos a trabalhos de eletricidade, encanador, desentupidor de vaso sanitário e pia, montador e desmontador de móveis, instalações de eletrodomésticos, enfim, faço de tudo... e >> 232 << um pouco mais. Só não trabalho com o computador, porque isso é o meu primo que atende. E um sorriso largo mostrou dentes cuidadosamente emparelhados, brancos. Seus olhos muito negros sorriram como a me dizer que sim, podia confiar, que ele dominava muitos assun- tos, para além daqueles triviais que toda a dona de casa enfrenta quando tem uma casa para administrar, e nenhum homem por perto, ou mulher que possa resolver tais questões. Aberta a porta do elevador, esperou que eu entrasse e fez nova mesura, antes de perguntar “aperto onde?”, ainda sorrindo, mas com os olhos literalmente presos aos meus (ou os meus presos nos dele?). Vacilou, um pé atrás... pensei que fosse sair, continuando a vistoria do prédio com Bernadete. Mas, não, desculpou-se e explicou ter-se lembrado de atender ao inquilino da cobertura. Reentrou no elevador. Só nós dois naquele cubículo espelhado, que passou a se movimentar lentamente. Houve um silêncio incomodativo e um constrangimento pairou no ar. O elevador parou no quarto andar, e eu... presa ao chão, demorei alguns segundos a olhar para ele. Nicanor com a mão esquerda
impediu que a porta fechasse e voltou a me encarar. Estendi a mão para ele, e saí sem dizer mais nada, ainda envolvida por um élan misterioso. Dias se passaram. Sempre saio de casa às 7 horas. Era sexta- feira chuvosa. Bem ao lado do meu carro, na garagem, uma escada alta bloqueava o caminho. Lá no alto, quem estava? Nicanor, com uma lâmpada na mão esquerda, com um largo sorriso e o cabelo mais revolto que no outro dia. – Bom-dia, professora Felícia. Está levando um casaquinho? Parece que vem uma frente fria. Não acreditei na profecia; um calor inesperado afogueou- me o rosto. Só consegui lhe devolver o sorriso com um – “sim. Saio sempre prevenida!”. – Já me disseram que, aqui, no outono, esfria muito de repente, e o vento sul às vezes vem para ficar – ainda o ouvi dizer, embora já estivesse dando partida ao veículo. Pelo retrovisor, vi-o ainda no topo da escada, equilibrando-se para destorcer a lâmpada do teto alto. Realmente, a aragem fresca que vinha do mar indicava chuva, aumentando a sensação de umidade. >> 233 << Ao final do dia, guardei o carro já com o espaço da garagem Vilca Marlene Merizio iluminado. Olhei para cima: lâmpada de led. “Bom trabalho”, pensei. E me lembrei do que ele havia dito pela manhã, ainda quando eu não abrira a porta do carro: – Então, dona Felícia, mais tarde vou olhar a prumada A do quarto do seu filho; ele me falou que parece haver infiltração. A senhora estará por volta das dezesseis horas, em casa? – “Não”, eu lhe dissera, naquele dia, os compromissos me prenderiam no trabalho até tarde da noite. No dia seguinte, mal dera 9 horas, Nicanor foi ver a prumada A, acompanhando a síndica e o engenheiro do prédio. Sim, havia reparos a fazer. E já que estava lá, ia passar os olhos pelo apartamento todo para ver se tudo estava bem. Tirou a agenda e anotou o que ia observando: uma das lâmpadas do varandão piscava ao ser ligada, a torneira de água fria da pia do banheiro principal estava pingando, o autoclismo do banheiro de trás talvez precisasse de uma peça nova... Os cordões do varal estavam gastos... E, assim, de reparos em reparos, conheci Nicanor, na sua
Açores: da memória à ficçãotarefa primordial de fazer o que toda dona de casa almejava que seu homem fizesse. E eu não tenho marido, só um filho musicista que vive para o seu trabalho. Nicanor sempre aparecia com pressa, deixando para o outro dia o término dos consertos de que o meu apartamento precisava. Até que, sabendo dos dias que eu chegava às 17 horas, hora em que ele terminava o trabalho rotineiro do condomínio, acostumou-se a bater à porta para saber se eu precisava de alguma coisa. E como, quase sempre, aquela era a hora em que costumávamos tomar o lanche da tarde, ele aceitava um cafezinho, a princípio de pé, depois, sentado para experimentar aquela torta ou aquele pão de casa que havia recém-tirado do forno e cujo cheirinho chegava até a garagem. E seu eu não fosse sair, era aquela a hora preferida dele para começar a reparar o que ainda havia para consertar daquela sua longa lista de consertos que fizera na sua primeira visita a trabalho ao meu apartamento. Claro, e eu sempre a lhe oferecer um cafezinho, que logo passou a ser um pingadinho com conduto, até a cuca de banana que lhe apetecia provar porque “há muito >> 234 << estava com água na boca”. – Ô, senhora, este cheiro de cuca alemã me fez subir escada acima à procura de onde vinha. Bem logo imaginei que fosse daqui. Mas a senhora não é de origem italiana? O seu nome... Daí foi um passo rápido para a conversa se esticar. Sentava- se à mesa, deliciava-se com a cuca, não importava se fosse de banana, queijinho, maçã ou carambola; queria a receita, aceitava um pedacinho para o café da manhã seguinte; que “morava sozinho, era muito grande a falta que sentia da filha adolescente”... Não, não tinha filhos homens. Nas semanas seguintes, a conversa daquelas tarde pre- guiçosas, melhor dizendo, daqueles finais de tardes, ia ficando dolente, com uma pergunta a mais aqui, uma observação ali... Finalmente, a questão: – Soube que a senhora vai para Portugal. Me conta isso. Tem parentes lá? Vai ficar quanto tempo? Em que cidade? Amo viajar. Ah... para os Açores? Quero conhecer os Açores. Quem sabe mesmo, trabalhar lá por uns tempos. Fazer um pé de meia. Não que aqui me falte serviço!
Pronto. Eu sabia, alguma coisa havia. Não deu outra. Dia seguinte, lá vinha Nicanor me dizer que a ex-mulher escrevera marcando a data para a assinatura do divórcio. Ele se ausentaria por uns dias. Que eu não levasse a mal por não haver terminado o serviço completamente. – “Volto, sim, pode me esperar. Vou lhe trazer um mimo da minha terra”. E assim, o condomínio perdeu a graça. E eu o meu companheiro do final de três tardes por semana. Foi embora o Nicanor, e o café, a cuca, o pão, o bolo... tudo perdeu a graça. Quase um mês depois, num sábado pela manhã, saí para as compras. Mal deixei o portão lateral do prédio, quem vi, ao lado de uma camionete prata? O Nicanor. Novo corte de cabelo, bem- vestido, tudo a indicar vida nova. Parei o carro, encostando-o à calçada, mas não desem- barquei. Abri a janela e ele veio até mim. O sorriso radiante chegou primeiro. – Então, Felícia, soube que estás deixando o condomínio. – Sim, vou para o Turquesa, no continente. – Ah, sei onde é. Tenho uns clientes lá. Em qual torre? >> 235 << Eu lhe disse, me queixando da falta de profissionais Vilca Marlene Merizio comprometidos com o trabalho. Havia ainda muita coisa para completar no apartamento recém-adquirido. A construtora, que parecia correta, não entregara o imóvel como deveria ser. Eu estava me incomodando, inclusive com o setor jurídico pelo não cumprimento dos prazos afiançados no contrato. – Na segunda-feira, apareço lá para dar uma olhada. Quem sabe minha empresa pode ajudar. Vou hoje assinar minha demissão aqui no Itaguera. Trabalho por conta agora. Esticou o pescoço na minha direção, deu-me um beijinho rápido na bochecha esquerda: – “até segunda!”. Meu coração deu uma sacudidela. E assim, Nicanor começou a ser o chefe que supervisionava os últimos preparativos para a minha mudança para a cobertura do Turquesa. Dei-lhe a chave e carta branca para resolver o que precisava com os fornecedores. Só não dei o cheque nem o cartão de crédito, mas sua conta no final do mês vinha sempre repleta de zeros à direita.
Açores: da memória à ficçãoEu andava cansadíssima, esgotada. Os obreiros demoravam a encontrar certos defeitos que a construtora deixara ainda para resolver. Os carpinteiros e os eletricistas não acabavam nunca no tempo previsto. A hidráulica também estava apresentando problemas. Houve vazamento na lavanderia, e a internet ainda não fora instalada. E o Nicanor, à frente de tudo, telefonando, indo aos fornecedores, resolvendo tudo da melhor maneira possível. Até que os eletrodomésticos começaram a chegar, faltava apenas montar as camas dos dois quartos de dormir. Na época, eu estava hospedada na casa do meu filho, num condomínio fronteiriço ao meu, e já havia levado para o apartamento novo algumas malas com peças de roupa pessoal, de cama e mesa, utensílios de cozinha e os objetos mais valiosos. Os móveis ainda estavam para serem colocados no lugar. Era quinta-feira. Arrumei o que tinha para arrumar de mais leve, e já estava dando por encerrada a tarefa do dia, quando Nicanor me chamou para a sala onde funcionaria a biblioteca e o >> 236 << meu escritório e, arrumando duas poltronas, colocou-as frente a frente, separando-as com uma mesinha de centro. – Ah, estive guardando teus vinhos. Já precisas de uma adega. Amanhã vou providenciar uma. Tens vinhos de excelente qualidade! Que tal, provarmos esse Dão português? Os emprega- dos deixaram umas fatias de pão e sobrou queijo e salame. Vamos brindar! Quando vi, entre os móveis amontoados, Nicanor havia criado um espaço para sentarmo-nos confortavelmente e, como ele informou, vamos bater um “papo-cabeça” sobre vinhos e outras bem-querenças. E aí de vinhos, música, viagens e sonhos, foi um passo. Telefones desligados, a chuva grossa escorrendo e o tempo passando rapidamente... De repente, o telefone fixo, que já estava ligado, tirou-nos daquele envolvimento sadio: – Sim, querido. Já estou indo. Chego em minutos. Está tudo bem. Era meu filho. Não demorou muito, Nicanor, tirava a sua jaqueta para que eu a pusesse sobre a cabeça. Ainda chovia a cântaros. Mas, ele havia parado a camionete a poucos passos
da entrada do portão do Edifício Rosa. Entrei com uma doce Vilca Marlene Merizio vermelhidão aflorada à pele. Felipe, meu filho primogênito, teve a gentileza de ir para o quarto antes de eu entrar no apartamento dele, onde eu ocupava o quarto de hóspedes. No dia seguinte, a tarde daquele princípio de março estava muito quente. Aproveitei para relaxar indo a uma sessão de aromaterapia e aproveitando para receber uma massagem de Ema, a uruguaia amiga de longa data que sabia exatamente quais os pontos cruciais do meu corpo que mereciam mais a atenção de suas laboriosas mãos de naturóloga. Aliviada depois da massagem, quase tocando as nuvens, vim direto da Ponta das Canas, no norte da ilha, para meu novo apartamento no continente, achando que naquelas últimas horas do dia, prestes a desencadear uma nova tempestade tal qual a do dia anterior, não haveria mais ninguém no condomínio ainda não inaugurado. Ledo engano. Lá, no oitavo andar, estava Nicanor às contas com os dois colchões de casal que ainda precisavam ser acoplados aos respectivos baús a que serviam de base. – Estou a terminar, me disse ele ao pressentir passos no >> 237 << corredor, logo após o barulho da chave roçando a maçaneta levemente lubrificada. E, do quarto principal rodando o colchão king – havia errado ao colocá-lo de ponta cabeça sobre o baú de apoio, resmungou ele numa voz sumida que mais me pareceu um gemido: – Pesado, este colchão! Fui espiar. Estava já para fechar completamente a porta do quarto – eu não queria que ele me visse melada de tanto óleo, com o cabelo untado e com uma roupa que não favorecia a minha aparência sexalescente (Credo, eu mesma havia rejeitado esse neologismo e, agora, em meu pensamento, ousava me sentir como uma adolescente embora os meus sessenta e seis anos já completados não fazia um mês.) Mas... o perfume que veio dele deteve-me por mais um segundo com a porta entreaberta, o tanto de pressentir um olhar maroto lampejando na minha direção: – Posso esticar os lençóis? Escolhi este jogo, vê se aprovas. – Mal olhei. Meio que envergonhada: – Sim, pode ser. Já volto.
Abri a geladeira, vazia. – Ah... Me apressei a pedir uma jantinha. Achei que virias aqui ainda. A mesa está posta, me disse – acompanhando o gesto brusco de levantar a toalha improvisada a cobrir os pratos, talheres e taças. – Consegui um vinho verde. Te apetece? Com este bacalhau creio que vem a calhar. Rimos os dois juntos, ele estava tentando imitar o sotaque açoriano. Não sei quanto tempo levamos a saborear o delicioso bacalhau. E do vinho verde, veio o tinto e do tinto, o vinho do porto. Já estávamos meio grogues. Fui para a sala de visitas. Ele atrás. Tirei as almofadas que se avolumavam no sofá ainda de todo não montado. Sentamo-nos afastados um do outro. Ele tirou os sapatos: – Posso ficar à vontade? Este tapete convida... – Sim, pode, também prefiro ficar descalça. – Que pés fofinhos! Dá vontade de massagear. >> 238 << – ... então, fica à vontade... – respondi, já buscando umas Açores: da memória à ficção almofadas do chão e me recostando no braço direito do sofá, com as pernas esticadas na direção dele que, virando-se de frente para mim, também me ofereceu os dele, ainda com as meias, para um toque “gostoso”: – “amo que toquem nos meus pés”, confessou. – ... meia meia ou nove nove? – perguntou ele, novamente com aquele olhar maroto. – Humm? ... Como? – Posso tirar as meias? Já com a com a mão esquerda, jogando-as para longe, mas voltando rapidamente para a posição anterior. – Sim, melhor assim... – balbuciei, ao mesmo tempo em que ouvia alguma coisa como “tântrica”, e via o meu amigo rolar sofá abaixo, no exato momento em que o braço esquerdo do sofá se desprendia de todo o resto, já que estava apenas encostado, esperando que o montador finalizasse o trabalho de montagem. Sem tempo para me refazer e apoio em que me segurasse, rolei também sobre ele que se espatifara ao longo do tapete e me puxara para junto do seu peito cheiroso, macio e forte como quê!
– E agora? – sussurrou-me ele ao ouvido, com os braços Vilca Marlene Merizio deliciosamente me envolvendo, e eu toda deitada sobre o seu corpo. Meio que assustada, mas querendo mais, embora tentasse me levantar, respondi: – Não sei tu, mas vou tomar um banho... – E me levantei sem olhar para baixo e para trás. Já com a água escorrendo pelo meu corpo lembrei que não havia toalha de banho no banheiro, mas nem precisei falar. Nicanor, envolto numa toalha branca gigante da Artex, amarrada na cintura, trazia uma outra na mão e colocava na beirada do aparador da pia. – Serve essa? Minha nossa! Um Apolo no meu banheiro! Que peitoral! E quando a toalha caiu, e aquela perna sarada entrou no box, fiquei sem respirar. Saí apressada, mal tendo tempo de pegar a toalha que ele me trouxera. Sequei-me já no quarto. E agora? Que lingerie vestir? Eu não havia trazido ainda minhas peças íntimas novas, nas gavetas não havia nada e ele acabara de desligar o chuveiro. Dessa vez, veio, corpo ainda molhado, sem tolha. Nossa! >> 239 << Será que olho? Será que me deito e me cubro? O que digo, o que faço? A toalha com que me enxugo não é muito grande... E ele se aproxima, doce, sorrindo..., pega-me pelas mãos, os braços me envolvem, os olhos cintilantemente negros nos meus... A toalha cai. Capitulei. Lindo o meu Apolo! Esbelto! Tronco tanquinho, forte. Sabia o que queria e o que fazia. Já quando eu, embevecida, me deixava levar por aquele embalo há muito esquecido, pelas palavras doces nunca mais sussurradas ao meu ouvido, deitada gentilmente por ele, senti um estalar de tapas seguidos (e dolo- ridos) na minha nádega direita. Foi como um tiro certeiro. – Como? O que é isso? O que estás fazendo? – Carinho, amor! – O quê? Carinho? Violência, sim! Sai, me deixa! Te levanta! Te veste! Não quero mais! – É carinho, amor! Entende! As mulheres gostam. – Não! Não, nunca mais, Nicanor! Ainda mais que não usas camisinha!
E Nicanor, vestido às pressas, saiu da cobertura do Torre Turquesa, camisa desabotoada, ainda levantando o zíper da calça. – Não, nunca mais, Nicanor! >> 240 << Açores: da memória à ficção
Do sétimo andar Vilca Marlene Merizio Ela estava ali, na minha frente. Olhos negros penetrantes. O cabelo puxado todo para trás deixava-lhe a testa largamente à mostra. A boca era pequena: dela, porém, pausadamente, escorregava uma torrente de episódios que nem minha memória ousara revelar, mas que, contudo, confirmava pelos detalhes que >> 243 << a mulher, pacientemente, ia recompondo. Era a cartomante que Luciana havia me indicado Primeiro, ela trouxe a imagem do meu pai. Azul... azul no olhar. Cabelos grisalhos, ralos. Pele queimada do sol, mão de agricultor. Muito alto, agasalhava-me com sua ternura costumeira. Depois, a do meu falecido marido. Sua força de vontade, sua energia, sua vibração... tudo ainda vivia em mim. Agora, a mulher de turbante branco perguntava-me sobre o amigo de longe: olhos verdes, marejados... E a pergunta, de chofre: – E, então, o que aconteceu no aeroporto? Eu sabia o que acontecera. Mas, como contar para aquela mulher de sonho, o que eu procurava naquele longínquo dezembro? – Você ainda traz a energia dele. É por isso que espanta os seus namorados. Seu pai a protege. Seu falecido marido deixa-a em paz, mas esse outro, por amar você com um amor que extrapola todo o entendimento humano – já que não há, nem houve, entre
vocês qualquer envolvimento carnal – ainda está aí, preso à sua pessoa, vivendo no seu coração, impedindo que você encontre outro homem com quem possa compartilhar a vida que ainda lhe cabe neste planeta. – É preciso quebrar as amarras – advertiu a mulher de vestido azul esvoaçante. E não satisfeita, continuou: – Seu campo áurico abriga também a energia de um outro ser: moreno, alto, cabelos muito lisos, mãos de quem está acostumado a amparar. Um cigano de olhos da cor do mar... Era dele, do Antônio, que Mamãe Mafalda falava. – Sua história com ele ainda nem começou, mas terá muito bem definidos um começo, um meio e um fim. Não se assuste. Ele a espreita há algum tempo e mesmo que você não o tenha percebido; de há muito, ele se entrega ao seu encanto. Não me surpreendi, nem me assustei. Eu mesma sentia- me atraída por Antônio. Seus ombros largos, seu peito forte, seu escasso sorriso chamaram a minha atenção desde o momento em >> 244 << que o vi, socorrendo as vítimas da enchente. Seu porte altivo... Os Açores: da memória à ficção longos cílios negros a emoldurarem aquele olhar cinzento/azul/ esverdeado... Tudo nele exaltava um ar de cativante mistério. – Ele virá logo. E ficará por muitos anos. Aproveite. Tudo passará sem grandes devastações. Viva o que o universo lhe dá. Já na rua, voltei a pensar em Antônio, na sua figura marcante, no seu jeito desportivo, no seu afã de esquivar-se sempre das rodinhas de amigos. na pressa de deixar o trabalho para visitar os necessitados. no seu excessivo interesse em explicar o amor que sentia pela natureza. Assim era Antônio. Uma joia rara. Não bebia, não fumava. Envolvia-se em campanhas comunitárias em benefício da saúde alheia e do planeta Terra: as mulheres deveriam usar, sempre que possível, sapatos baixos para não forçar os músculos da perna e manter a postura: a alimentação deveria ser a mais natural possível, a caminhada deveria ser exercício tão rotineiro quanto o alimentar-se diário: o prazer deveria fazer parte integrante da
vida do ser humano. Antônio respirava amor e facilitava a quem o Vilca Marlene Merizio acompanhasse a entregar-se à filantropia. E assim Antônio ia conquistando amigos, e sua namorada, rivais. No trabalho, muitas eram as mulheres apaixonadas por Antônio. Mas ele amava Nilva, a gauchinha ruiva que o levava sempre em pequenas viagens ao interior da ilha. E quantas mais amaria Antônio? E com quantas mais já viveu Antônio? E era esse Antônio (quase um desconhecido) que eu deveria aguardar. Ele era bom, mas seus quase setenta anos deixavam-me um pouco apreensiva. Eu ainda não chegara aos trinta... A ideia entonteceu-me: quarenta e um anos de diferença? Não seria muito? Será que ele vai viver muito? Quando eu tiver sessenta... De repente, um empurrão... uma queda brusca... meus joelhos e mãos sangrando. Um pedido de desculpas. Um sorriso aberto de dentes claros e brilhantes, uma mão estendida e um olhar de anjo ajudaram-me a levantar: não fosse a destreza do ciclista desconhecido, eu teria me machucado mais, talvez até morrido sob aquele carro possante do qual escapara por um triz. >> 245 << – Valha-me, Deus! Que belo rapaz! – Então, machucou-se? Vamos lá ver isso! Não precisei responder. Um contentamento invadiu-me a alma. Mamãe Mafalda precisava saber: eu encontrara Pedro, o meu vizinho do sétimo andar. Como ela profetizou: na minha velhice não estaria sozinha! Chegara, o presente que veio do Alto. E eu me senti abençoada.
https://vilcaedicoes.com.br Este livro foi diagramado com as fontes Minion Pro e Futura Bk BT. Publicado on-line pela Editora Arte & Livros em agosto de 2023.
De tudo, só a saudade Saudade dos passos, soando irmãos no basalto ardente. Saudade da boca, saciando a sede dos verdes cristalinos. Saudade do hálito, poeta na espessura da pele. Saudade da mão quente na dobra da fala. Saudade das pernas, abraço de vida. Saudade das nossas cabeças juntas ao som da mesma balada, almas gêmeas no dissecar do mesmo tecido. Saudade do nosso canto, a bailar no mesmo vento... Saudade das noites de lua... Do estalido das criptomérias, dos serões bordados à viola... Das janelas de bruma, esconde-escondendo a Lagoa das Sete Cidades. Saudade de ti... Canção, vinho, porto. Saudade enfim... da penumbra das acácias de onde o que era fogo renasceu. E o priolo, raio rente ao chão, é agora seta de novo caminho. Saudades... se já foram lágrimas no meu pensamento, hoje são consolo no meu existir. 9 786588 719213
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