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Contos Açores-ok

Published by Paroberto, 2023-08-03 12:49:56

Description: Contos Açores-ok

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lado, veio em minha direção, parando a poucos metros – dois Vilca Marlene Merizio talvez, de onde eu estava. Olhei atentamente e já não havia mais ninguém a bordo. Estacionada, a embarcação continuava ali, aos meus pés. Pensei, já voltando à realidade: o que esse barco traz para mim, traz para nós? Abri os olhos e vi o meu preparador físico lá atrás, longe de mim, sentado no muro de pedra, em silêncio, respeitando o meu exercício físico e mental. Aproximei-me e pedi- lhe que ficássemos naquele pedaço do paraíso mais um instante. Eu estava emocionada. Contei-lhe a minha visualização e ensinei- lhe como também poderia tentar ver alguma coisa na sua tela mental. Ele estava de óculos escuros. Nada viu. Mas queria ver... Pensei em pedir-lhe para que tirasse os óculos; não fiz. Enquanto ele tentava entrar na nova dimensão, sentada também no muro, ao seu lado, fechei mais uma vez os olhos e, entregando-me ao momento, tornei a visualizar a água da lagoa, agora de uma cor outonal, e assustei-me com uma mão máscula, saída de repente daquela água em fogo, acenando em gesto de pedir socorro. Acolhi aquela mão em desespero e trazia-a para junto de meu >> 51 << peito quando, antes de abrir os olhos, e ainda sem saber o que fazer com aquelas revelações, ouvi o meu amigo, que já estava em pé, próximo ao muro em que nos sentáramos, dizer: “vi uma criança sendo levada pela mão”. Minha resposta foi imediata, já esquecida da minha própria visualização: – Viste a tua criança interior. Penso que expliquei: – Cada pessoa tem de ser capaz de decifrar a sua visualização; não pode uma terceira pessoa tentar adivinhar o significado. Mesmo quando assim falava, eu ainda estava no meu pro- cesso, naquela dimensão em que a razão pede tempo para a restauração das imagens ou, pelo menos, para a sua interpretação. Revestia-se o momento de seriedade, mas também de expectativa. Eu continuava emocionada. Queria ficar por mais tempo ali, entrando em conexão também com as aflições do meu instrutor (se as tivesse!), para que, juntos, pudéssemos encontrar a melhor solução. O instante era de enlevo e eu precisava entender o que estava se passando conosco. Mas os olhos dele, cobertos com

Açores: da memória à ficçãoa lente escura não me deram o sinal, a luz de uma verdade que devia ser dita para que o encanto exorcizasse o encadeamento de possibilidades abortadas. Não sei se pelo inusitado do acontecimento ou se pela pressa do ofício, já estava meu personal trainer, aliás, como é jeito dele, uns passos diante de mim, seguindo em frente. Reclamei, pedi ajuda. O muro era alto para minhas pernas curtas. Ele voltou, estendeu a mão para que me apoiasse e vencesse aquele degrau maior do que a abertura de minha perna podia suportar (ou era a vontade de ficar um pouco mais que dificultava a minha volta à caminhada?). Então, já na calçada, e caminhando ao seu lado, não me furtei a uma ironiazinha disfarçada em ensinamento ou conselho. (Pontinha de ciúme, julgo eu agora, depois de haver meditado durante horas seguidas para compreender a onda negativa que se apoderou de nós a partir daquele momento. No instante do acontecido, eu estava sendo sincera, amiga; minha intenção era ajudar. Realmente, a de ajudar.) Então, sem que ninguém esperasse (nem eu mesma), >> 52 << surtei, metendo-me no que não era de minha conta: falei para o meu amigo cuidar-se em relação a uma possibilidade de ser pai. Absurdo, mas foi isso mesmo. E, para surpresa, numa voz mais de reclamação pela minha invasão do que, talvez, pela aceitação da ideia, ele respondeu que se a Natureza assim o quisesse, ele nada poderia fazer. (É incrível como não consigo lembrar exatamente as palavras que usei para falar-lhe sobre o cuidado a ter para evitar uma possível gestação da namorada, muito mais nova do que ele, quase uma criança, que, no meu entender daquele instante, viria em momento impróprio – impróprio para quem, meu Deus?). Mas me lembro exatamente o tom da resposta, a reverberação por todo o meu corpo, por toda a minha alma. Foi como se um rolo compressor me espremesse, empurrando para a garganta todo um palavreado inconveniente e desnecessário. Algo se desprendeu do fundo do meu ser e, então, falei de mim. Do quanto era mimada desde a casa dos meus pais e do quanto, já adulta, a constatação dessa característica apontada por dois amigos – grandes amigos – obrigada Luís e Ernestina! – doeu. O que era ser mimada? Na hora, não consegui entender,

mas pressentia a presença de algo indesejável nessa conduta que, segundo ele, eu deixava transparecer. Como? Não sei. Até aquela época, parecia-me que ser mimada era a mesma coisa do que ser amada. E eu sempre amei muito para muito ser amada. – Mimada, sempre fui. (Não houve resposta, começava o solilóquio.) – Desde pequeninha todos me tratavam muito bem. (Meu companheiro de jornada continuava mudo). – Desde sempre fui mimada. (Nada, o silêncio só era quebrado pelo ruído dos pneus no asfalto dos carros apressados.) De verdade, sempre fui mimada: meus pais, meus primos, alguns amigos, todos me mimavam. Da infância à maturidade. Até certa época da minha vida tudo, mas exatamente tudo o que eu quis, consegui. Mandava e era obedecida sem restrições. Até o momento em que a vida me mostrou o outro lado, aquele em que o trabalho pessoal e íntimo leva em consideração também o querer e o bem-estar do outro. Reconhecia o quanto modifiquei a minha vida depois da >> 53 << observação dos meus amigos açorianos (e talvez tenha expressado Vilca Marlene Merizio esse sentimento em voz alta). Muito tempo se passara desde então e, agora, tudo se revolvia dentro de mim numa velocidade comparável a de um redemoinho. Abrira um canal por onde desfilaram pensamentos brotados de estudos espirituais que se misturavam a fatos do meu passado, principalmente no muito que perdi na trajetória dos últimos anos. Por mais que o meu instrutor apresasse o passo, começava a compreender que uma das coisas que parecia me confortar era, na verdade, a constatação, não do quanto eu fora amada, mas da intensidade de amor que eu desencadeara nos que amava. E avultou a pequenez dos meus desejos frente às necessidades dos que compartilhavam a vida comigo. Deveria existir a troca, sim, mas eu não poderia forçar ninguém a me querer. E enquanto discursava, ao lado do silencioso instrutor, tirando do inconsciente todo o juízo pré-concebido, foi me clareando a ideia de que para o meu egoísmo de criatura mimada

faltava uma dose agigantada não só de humildade, mas, sobretudo de... E a palavra custou a vir, mas veio, em meio àquela alucinação verbal: renúncia! Certamente, minha consciência parecia despertar. Entre- tanto, a razão, inflexível, não me permitia usar de um raciocínio lógico – cada vez mais me sentia num turbilhão, enquanto os passos iam naturalmente diminuindo da aceleração até então mantida naquele treino matinal. Ao subir um leve aclive até o estacionamento do carro, sabendo que meu mestre me seguia – em silêncio continuado –, pelo passeio estreito, como se ele fosse capaz de acompanhar as deduções geradas pelo meu consciente desperto, assim como se estivesse em plena conexão comigo, entendendo o meu raciocínio (agora me dá vontade de rir ao pensar em tal absurdo, nessa presunção da minha parte), desde a criança mimada que eu fora até chegar à renúncia de uma anciã infeliz, disparei: – A morte tem cinco fases: a perda, a negação, a raiva, a aceitação e a transformação. (Esse poderia ter sido o princípio de >> 54 << um discurso anunciado sobre o desprendimento, a abnegação, Açores: da memória à ficção naquele momento, totalmente fora de propósito.) E o meu amigo instrutor não suportou mais: – Morte? Por que falar na morte, quando é de alegria, de vida que necessitamos? Uma vibração baixa estabeleceu-se entre nós a partir daquele instante. Perdi-o. Mesmo no carro, eu continuava a falar, tentando minorar a sensação de afastamento. Meu amigo respondia, de quando em quando, mais por educação, acredito agora, do que por interesse nos assuntos que eu me forçava a engendrar. E assim voltamos até a Baixa, num esforço enorme da minha parte para que o meu personal saísse do que eu considerava um baixo astral (nem por um segundo pensei numa outra hipótese). Em casa, continuando o ar cada vez mais denso entre nós, ouço o que, francamente, não esperava, já que considerava que a energia negativa que nos fazia estranhos havia sido atraída pelo meu treinador em dado momento do trajeto. Eu não sabia exatamente onde. Na verdade, eu o culpava por aquele estremecimento

negativo. E ele, sentindo a tempestade que se aproximava, defendeu-se: – Tu é que puxaste essa energia negativa. Surpreendi-me. Fiquei ofendida. No meu pensamento, havia me esforçado ao máximo para manter a conversação e o clima descontraído e, agora, ele, o meu amigo e instrutor, tirava o corpo fora, levantando a voz, com com uma firmeza que me chocou. Subimos até o meu apartamento. Ofereci-lhe um café. Na despedida, mais uma surpresa: – Relaxa, me disse ele, ainda dentro da minha casa. Que recomendação sem propósito, pensei. Nem me lembrei que na hora de servir-lhe, minhas mãos tremeram a ponto de derramar o líquido quente não só no pires, mas também sobre suas pernas, sujando-lhe a roupa. Com um olhar triste, o instrutor se foi. Penso que me tentava fazer compreender através do seu silêncio. O começo da tarde foi difícil. Mesmo tendo parado para pensar no acontecido, minha alma estava perturbada. Isolei-me >> 55 << a fim de meditar. Tentei rever cada momento da nossa trajetória Vilca Marlene Merizio naquela manhã: haveria de existir, e eu o encontraria, o ponto em que a energia começara a mudar, aquele mal-estar provocado pela queda de tensão interna do meu treinador (triste quando não vemos o argueiro que nos cega!). Peguei papel para desenho, giz pastel e lápis cera: iria rabiscar; pelo desenho de cada estação do nosso trajeto, eu descobriria a falha, o momento certo em que, entre nós, caíra a energia que, até então, como era de costume, se mostrava altamente positiva. E comecei o trabalho de garimpo mental e artístico: era preciso descobrir o quê e o quando daquela troca de humor. Haveria de encontrar uma explicação para tanto silêncio por parte dele. Fiquei horas nessa labuta interna até ser interrompida por uma cliente que vinha para um trabalho de revisão textual exatamente sobre uma pesquisa a respeito dos benefícios da prática do Lian Kong. Depois de uma hora de trabalho, não me contive e falei-lhe do que me angustiava, do que vinha me preocupando desde o período matutino. Claro que não entrei

em detalhes, mas quando mencionei o sentido de renúncia a que chegara diante da minha vida pregressa, Lia, que me conhece há algum tempo, pegou um lápis e, mostrando-o, disse-me, com firmeza: – Digamos que tu gostas muito, mas muito mesmo, deste lápis e que alguém de quem também gostas muito, queira-o para satisfazer uma necessidade vital. Qual a tua reação? Como vais resolver o impasse sem sofrer a perda? Bem, se eu gostasse de quem queria meu lápis preferido, eu lhe daria, sem dúvida alguma, pensei. Mas Lia continuou: – Imagina que para ti, a posse do lápis representa a felicidade e tu o queres manter junto a ti porque, se o perderes, a vida não mais terá razão de ser. Aí a situação começou a piorar. Por outro lado, também deste lápis depende a felicidade da pessoa que mais amas no mundo que quer o lápis para oferecê-lo a uma terceira pessoa a quem ele escolheu e a quem vai fazer muito feliz presenteando com o lápis, por isso que também o quer. Me >> 56 << diz, o que farás? Ficarás com o lápis ou vais passar à mão do teu Açores: da memória à ficção amado para que ele presenteie a pessoa que mais ama? Da boca para fora eu sabia qual a resposta dar. Ela, porém, me impediu de responder. – Pensa! Se insistires que o lápis/pessoa amada permaneça contigo perderás o seu amor; portanto, mesmo que ele fisicamente esteja contigo, perdê-lo-ás, visto que ama mais a terceira pessoa, ou ama de outra forma. Mas se o cederes, querendo-a ainda, sofrerás muitíssimo. De nada te adiantará cederes o teu amor se continuares a querê-lo/amá-lo, porque a tua energia ficará impregnada nele para sempre, impedindo-o que se cumpra conforme a sua missão, isto é, negando-lhe a possibilidade de ser feliz. Se renunciares simplesmente pela renúncia, pelo que a ética te indica, todos serão infelizes. Portanto, era fatal entender: para renunciar ao meu desejo (de ficar com o lápis/instrutor) seria preciso um esforço desmesurado grande, quase intransponível naquele momento. Desapegar-me do meu lápis imaginário, daquilo que tão veemente quero seria ir além da abnegação e do despojamento total do querer.

Como é difícil morrer para que outro tenha vida! A morte de um apego significa despir-se de verdade de qualquer e todo sentido de posse, quer seja de pessoa ou de objeto. É..., num dia chuvoso de inverno, doar a sua roupa, ficando completamente nu, vencendo o frio do momento, com a temperatura climática abaixo de zero, se a roupa for aquecer tanto o meu amor quanto uma terceira pessoa, será que me disporia a tanto? Doar tudo o que se tem de necessário, é não pensar em si mesmo; é desapegar-se; é importar-se verdadeiramente mais com o outro do que consigo. E, então, pensei: desapegar-me de quê? Havia alguém ou alguma coisa de que eu deveria desapegar-me? Seria esse o problema? Pensei mais um pouco e me convenci: a minha renúncia, aquela sobre a qual eu tentara falar para o treinador nada tinha com o que a minha amiga naturóloga estava tentando me dizer. Será que não tinha? A aluna despediu-se. Fiquei sozinha. A dor na nuca au- mentara. Uma cólica esquisita apertava o meu ventre. Meu >> 57 << segundo chakra estava em polvorosa. Deitei-me para descansar. Vilca Marlene Merizio Acordei-me cinco horas depois e fui direto ao computador. Precisava escrever. O material de pintura estava de prontidão, era só esticar o braço. Mas, antes de ligar o computador à tomada, meus olhos se depararam com a obra de Francisco do Espírito Santo Neto, ditada por Hammed, As dores da alma, de 2003. Exultei: naquele livro psicografado haveria de encontrar um lenitivo. Realmente, muito do que Lia havia me ensinado, ali estava escancaradamente explícito: “não adianta fecharmos as cortinas da janela da alma”, agirmos só porque é assim que nos manda a consciência; isso é um “desapego defensivo”, apenas uma fuga da realidade, uma “resignação neurótica” e não uma atitude ponderada capaz de gerar alívio e felicidade para quem quer que seja. Esse medo de amar imposto pelo conceito de que a vida é resignação enfraquece as pessoas se elas continuam querendo aquilo que deixam fugir de suas mãos por falta de dedicação e

Açores: da memória à ficçãocuidado. Se a gente ama, tem de dizer, de falar sobre o assunto, de expressar esse sentimento. Todos podem conquistar o direito de estar com quem querem estar, desde que a recíproca seja verdadeira. Impossível conter os sentimentos, fazer de conta que tudo está bem. Não dá para fingir, para esconder. Negar o amor é o mesmo que sangrar o próprio coração. Tem que espernear, gritar, chamar pelo ente amado... E compreender se ele não vier. Mente quando o renunciante diz que não se importa, que amanhã estará tudo esquecido, que ninguém é insubstituível, que isso e aquilo. Mente quando, friamente esboça um sorriso de pouco caso, mascarando a terrível dor que lhe consome o âmago. Mente para não se sentir frustrado, à mercê da piedade alheia (ó, isso é monstruoso!). Bloqueia seus sentimentos quando não consegue expressá-los pela emoção, pensando que assim estará se protegendo dos conflitos, porque supõe que renunciou verdadeiramente, quando, na verdade, apenas desistiu “do anseio, da vontade, da satisfação” de estar com a pessoa amada e da sua realização como pessoa; quer dizer, restringe e mutila a sua vida >> 58 << ativa, numa atmosfera de falsa renúncia e altruísmo. Uma atitude autoimposta de alheamento quando o coração está em chamas por um bem perdido agride, afasta-nos do “caminho natural e nos desvia do dinamismo evolutivo da Vida Providencial”. É inútil “fecharmos as cortinas da janela da alma”, como escreveu Espírito Santo Neto, escondendo a dor da renúncia induzida. Corre-se o risco, nesse caso, de abandonar a conexão consigo mesmo, perdendo a dignidade enquanto indivíduo. Aquele que renuncia falsamente torna-se um morto-vivo sem saber o que verdadeiramente quer para si: “não mais navega os mares nem desbrava os continentes de seu reino interior”, desviado que está de sua rota existencial. Se a pessoa quiser realmente renunciar, se essa for mesmo a decisão, há de ter a consciência de que é para sempre, que não haverá jamais dor e arrependimento: “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto”. Quer dizer, para verdadeiramente o desapego ser válido, há que o apreço pelo indivíduo ou objeto amado seja transmutado, só assim será possível a libertação do sofrimento pela perda.

Vilca Marlene MerizioLibertar-se de um sentimento é um processo de contínua renovação na direção oposta ao sofrimento: a que nos leva à alegria de viver, construída e mantida constantemente. É olhar a colheita com olhos de ver o trigo que generoso se oferece em nutrição. É aceitar a efemeridade das coisas e a sua impermanência nesta existência. É lembrar-se de que a alma permanece. E se agora tudo passa, e é consumido pelo tempo cronológico, o amor, quando verdadeiro, se perpetuará em todo tempo/espaço, expandindo-se pelo universo. E porque muito amei, não poderia deixar aquela visua- lização à beira da água sem que restaurasse a sua imagem. E nesta nova imagem que agora lucidamente vejo, está o treinador, à proa de uma lancha, corcoveando pelas águas azuis da Lagoa, entusiasmado diante da tarefa a desempenhar: seus atletas dos outros barcos aguardam a orientação precisa para que a regata se inicie. E eu, na praia, sorrio: em breve a lancha retornará para que, pela primeira vez, eu embarque no meu sonho e deslize lagoa adentro, e mar afora, sentindo no rosto o suave perfume do vento enquanto as mãos, roçando o espelho d’água recebem a bênção de >> 59 << Yara e de Yemanjá, a Nossa Senhora dos Navegantes.



Parque Terra Nostra, Furnas, Ilha de São Miguel, Açores, Portugal



Amor de outono Vilca Marlene Merizio Amassou o papel com força. Não podia compreender como, há pouco mais de seis meses, fora capaz de escrever tamanha tolice. Culpou-se. Culpou-se mais. Não deveria ter-se apaixonado de novo; não poderia permitir que o filme a ser iniciado seguisse o mesmo roteiro dos dois anteriores. Culpou-se mais uma vez: >> 63 << pela ingenuidade, pela fraqueza emocional, pela carência a que se deixara arrastar, pelo vexame a que se tinha exposto com aquele amor fora de época, um amor de outono. E culpou o outro. E os outros. E novamente a si mesma. Quente, nas suas mãos, a folha amassada arranhava a sua dignidade. Emocionalmente ferida, as lembranças alternavam-se entre a sensualidade reprimida e o desejo de que se fizesse justiça. Quis jogar a bola de papel no lixo, mas sua mão não abriu. Aliás, seus braços não se abriram. Estavam cruzados sobre o peito, a bola de papel colada ao seio. Acalmou-se, precisava acalmar-se. Num esforço supremo, descruzou os braços, alisou o papel e, com os olhos marejados, leu mais uma vez o seu infortúnio, olhando-se no espelho da memória, mirou-se num tempo em que (pensava) fora feliz: O peito borbulha em chama aflitiva. A mão treme, o braço mal consegue orientar o gesto de dizer o que da alma brota opaco, espesso, à procura da luz cristalina que refrigera, nutre, conduz...

A noite insone foi testemunha do desejo premente de ter-te travesseiro junto ao meu. Mãos grandes, vivas, macias, veludo que só minha mãe me garantiu vida afora. Colo de ouro, fofo, côncavo, abraço do ventre ao feto. Perfumada, tua pulsação expulsou os demônios do medo revestido em remorso e apreensão. E o sangue, renovando-se aos borbotões, jorra em trajeto tão curto: corpo antigo, quase morto, revigora-se nas batidas uníssonas dos nossos corações maravilhadamente abertos para o mundo novo. Esperança. Amor. Onde buscar lenitivo maior para um castelo em ruínas, para um passado cujo aroma perdeu-se nas brumas do arquipélago ainda em labaredas no meu coração? Amo, meu Deus! Amo novamente e não quero perder o rumo desta paixão. Olhar marinho, água santa a refrescar todo o meu ser! Meu avesso abre-se em flor para receber a candura do teu abraço, o calor dos teus beijos, a ternura do teu respirar. Amo, meu Deus, e estou infinitamente feliz com tamanha aflição: a ansiedade de ver-te, que >> 64 << a todo dia se renova, o desejo de estirar meu corpo colado ao teu pelas ondas dos nossos sonhos, o medo de perder-te, o susto de te Açores: da memória à ficção saber vindo em minha direção... Assim quero. Assim será (se for para ser). O eco da leitura pesava. Camile mesmo percebeu que também no momento da escrita o sentimento não era todo de felicidade. Havia, sim, e agora tinha certeza, uma alteração, um elemento novo a turbar a paz de uma vida que se extinguia sem um amor físico. Com o papel entre os dedos frouxamente pousados no colo, reviu-se oito meses atrás, com o calor a subir- lhe costas acima, o peito a arfar, o coração a sair-lhe boca afora... E a imagem daquele corpo másculo, quente, redondo, cresceu. A ternura transbordou. Perdeu-se Camile entre vales e montanhas... Passos no corredor trouxeram-na de volta. Sobressaltou-se. Pensou ser ele. Olhou em volta, mas tudo continuava vazio. Voltou ao texto esquecido entre as mãos caídas. Releu-o pacientemente. Estava fria, crítica, parando em cada palavra, espreitando cada sentimento. E não seriam medo, remorso e apreensão que perturbavam aquela alma aflita, borbulhando por uma presença

masculina cheia de hormônios e orgasmos? Que amor seria esse Vilca Marlene Merizio que esperava, mas em quem não confiava? Que tipo de amor seria esse tal sentimento emergido de tão pouco contato físico? Ou seria a imaginação a construir novo castelo em areia movediça? Não, não queria pensar assim. Estava sendo rigorosa demais consigo mesma. E injusta. Ela tinha certeza de que o amava. Afinal, foram oito meses de flerte (e hoje os jovens nem sabem bem o que é isso) e trinta dias de namoro (que parecia) sério. E os últimos três, como poderiam ser classificados? Tempo de espera do tempo em que se pede tempo. E um dos dois – aquele que não pediu – se perde na confusão dos novos conceitos, entre a cruel realidade e a também a dolorosa ilusão de que o tempo não acabe. Mas a experiência lhe sussurra que amanhã será outro dia, um novo dia em que talvez se esgote o tal tempo pedido e a verdade aparecerá: a da negação ou a da continuidade em que a esperança renasce, em que tudo recomece, sem mágoas, sem cobranças... O renovo do amor novamente se fortalecendo. Sentir pena de si mesma é o que Camile não queria. Mais oportuno seria lembrar o verde daquele olhar tão expressivo... >> 65 << Recordar a leveza com que ele tocava a sua pele, embriagar- se de novo com a melodia da sua voz. Sim, amava novamente, sim! E estava sendo amada também. Impossível que o interesse demonstrado fosse apenas de fachada. O que ela, mulher já na segunda metade da vida, solteira e sem filhos, poderia oferecer a um homem senão todo o seu amor? Amor único. Exclusivo. Sim, amava novamente. Aliás, amava esse homem de corpo perfeito como jamais amara algum outro. As pernas lhe tremiam, sua vontade ardia em febre pelo desejo pulsando no ventre, no estômago, nos rins e no coração. Ele viria, viria sim: o último e-mail garantia-lhe isso. E se ele não viesse? Pegou da pasta aberta em seu colo mais uma folha manuscrita. Ia amassar, a raiva brotando. Recuou. Alisou a folha: seus sentimentos ali estavam presos a lápis. Mais uma vez voltou a fevereiro, quando tudo ainda era começo, quando principiavam a se tecer as dobras do seu querer.

Querido Amigo, (desculpa-me, mas é assim que sinto nossas almas...). Agora pensei em ti e senti saudades. Saudades de quê? Vimo-nos tão ligeiramente, estivemos tão pouco tempo juntos... Um aperto de mão, leves (e raros) toques de braço enquanto caminhávamos... Então, de onde esta saudade? Esta vontade de estar contigo, de fazer coincidir os nossos horários de entrada e de saída do hospital? Ultimamente tudo tem se precipitado: o coração que dispara, a vontade de estar com Lúcia, porque sei que a vais medicar, a consulta à Internet – teus e-mails me confortam –, as mensagens rápidas escritas com pressa e apreensão (não estaria eu sendo ridícula, deixando florescer um sentimento tão avassalador como o que está aparecendo?)... Medo de escrever o que ainda não tem forma, a frieza do teclado... A família à volta, irmãos e sobrinhos, curiosos, tentando ler por sobre os meus ombros. Medo do que se pode originar com um relacionamento só virtual, tudo, tudo me leva a trazer-te mais próximo a mim. Juntinho, como se já fôssemos um par. Olhou o relógio, ele estava atrasado. Impossível ser só impressão. Como das últimas vezes, ele não viria. >> 66 << O telefone tocou. Um sobressalto. Um esgar amargo, a mão Açores: da memória à ficção que novamente se crispa, dificultando o gesto de erguer o telemóvel recém comprado. As duas folhas amassadas caem aos seus pés. Não, não era ele: Cíntia convidava-a para as festas joaninas, afinal, haviam comprado a fantasia juntas, especialmente para aqueles dias. Camile se acalma, junta as folhas, guarda-as na pasta e procura entre outros papéis o cartão recebido em meados de março. Lá estava, ele havia prevenido: “Te amo, mas estou em dúvidas: há uma outra pessoa, romance antigo que teima em não acabar. Não posso fazer mal a vocês duas, estaria traindo a mim mesmo porque amo as duas, amo vocês duas com a mesma intensidade só que de maneira diferente. Se escolhesse uma, estaria indo contra os meus sentimentos. Não escolhendo, também traio os meus princípios. O que fazer? Me ajuda... Te amo. Muito”. Dessa vez, Camile alisou o cartão sem amassá-lo. Descansou a mão sobre o texto. Abaixou de leve a cabeça e roçou os lábios pela assinatura: Paulo. Apreensiva, Camile buscou o seu diário: estava ali, em resumo, o relato dos seus dias desde que se iniciara aquele possível relacionamento com Paulo. Começou a ler em voz alta, buscando

nos fatos a força para, mais uma vez, acreditar na sinceridade do namorado. Não podia ser por minha causa. Mas parecia que era. Todas as noites quando eu deixava o quarto de Mabel, a última paciente que visitava, e me dirigia ao elevador, o homem de branco se apressava em apertar o botão de chamada. A princípio nem me olhava. Numa noite chuvosa e muito fria entramos no elevador ao mesmo tempo. Não me cumprimentou, nem um gesto de cabeça na direção dos dois funcionários que desciam exatamente como nós, ávidos pelo descanso noturno. Não me virei. Fiquei de frente ao espelho e tentei observá-lo no que me era possível. De costas para mim, ele ficou próximo à porta. Entre os corpos das outras duas pessoas pude ver: era alto, moreno; cabelos abundantes e ondulados deixavam aparecer uma nuca forte, propícia a um toque de carinho. Ri quando pensei nisso e tive de segurar a minha vontade de virar-me e, com a mão direita, fazer-lhe um cafuné. O pullover de cashmere não escondia a forma dos braços rijos de homem cinquentão. Costas ainda eretas... E o elevador chegou ao térreo antes que eu pudesse >> 67 << continuar a inspeção. Nos dias seguintes, a cena se repetiu com pouca variação nos movimentos. Ele, sempre de branco, agora me sorria. Seus olhos Vilca Marlene Merizio verdes, extremamente translúcidos, olhavam-me com carinho. A partir de então, encontros sucessivos e inesperados aconteciam: no cinema, no teatro, no supermercado, na sinaleira, no parque a caminhar e até na feira do bairro. Coincidência? Não sei, mas desconfio que não. Quando levantou a sua mão em cumprimento descobri: estávamos destinados um ao outro. E um dia conversamos (a luz dos seus olhos me incendiaram). Ele era psiquiatra. Já estava aposentado, mas não podia deixar de atender aos velhos clientes. Agora mesmo um amigo agonizava na mesma ala em que Mabel estava internada. Paulo, ele se chamava Paulo, se acostumara a passear pelo hospital. Há uns dois anos me via pelos corredores... Até conhecia a minha rotina. Eu sempre absorta não o pressenti. E ele já me olhava, diz ele, com muita atenção. No outro dia, conversamos mais um pouquinho. Soube da morte da sua mulher, do casamento dos seus três filhos, de

algumas das suas aventuras amorosas. Caminhávamos até o meu carro. Despedíamo-nos com um certo calor. Um dia, ele me convidou para caminharmos à beira do mar. Com o coração aos saltos (Com que roupa eu iria? Meu cabelo estaria bem? O tênis combinaria com a bermuda azul?), e me esforçando para não parecer cansada (ah, como de vez em quando os meus pés arrastavam-se pelo chão!), acompanhei-o, feliz da vida, por alguns metros de praia. Ao seu lado, minha alma se expandia em volutas de felicidade. Outras caminhadas vieram por caminhos diferentes. Fomos às Furnas, ao Parque Terra Nostra, à Caloura, à Praia da Ribeira Grande. Na volta, sentávamo-nos para conversar como se quiséssemos estender o tempo conforme a nossa vontade de estar juntos. Nossos sonhos se pareciam. Ambos, há muito sozinhos, ansiávamos por uma companhia alegre, saudável, aberta ao diálogo e que admirasse a natureza. E por dias e dias, caminhamos juntos, e juntos ficamos no mesmo banco da praça deserta próxima ao Hospital, bem em frente ao Santuário do Senhor Santa Cristo, por horas seguidas. Depois, os encontros foram se estreitando, as caminhadas >> 68 << na Avenida quando o dia mal amanhecia, a gentileza dos Açores: da memória à ficção pequenos gestos, a flor oferecida, o chocolate degustado junto... Fixado em mim, seu olhar dizia da sua paz, do seu tirocínio, do seu jeito calmo de viver. E uma onda de bem-querência, formado no mais profundo do meu ser, avolumava-se na direção desse desconhecido que eu já, tinha certeza, amava. Mas seus olhos, em momentos, também me soltavam como se de mim dependesse a frutificação daquele relacionamento que não se esclarecia. Mal chegava em casa, após o jantar, os e-mails se multi- plicavam e os telefonemas foram se sucedendo. Voz extremamente envolvente seduzia todas as minhas células e hormônios. Até que veio o convite para o passeio numa tarde ingenuamente aquecida pelos primeiros raios do outono. E fomos. No meu carro, eu dirigia com os nervos à flor da pele. Ele estava grande no banco, sentado à minha direita. Mesmo assim, uma sensação de culpa impedia que eu usufruísse aquele momento. Noutro dia, sugeri para que ele pegasse a direção. Não o fez. Explicou-me: há anos não dirigia, desde um acidente em Lisboa, em que perdeu a irmã mais nova. Não insisti. Estacionei o carro sob um plátano frondoso, numa

viela que desembocava no porto. Chuviscava, do mar só se via a orla branca circundando as pedras do calhau. E aquela mão forte, macia, carinho só, a mim se ofereceu aberta, amiga, amante... E com ela, o abraço apertado, o corpo cheiroso, o beijo tão esperado. E o amei mais que a tudo no mundo. Como se ainda o ar úmido daquela tarde entrasse poros adentro, Camile, em meio ao nevoeiro mental – há mais de duas horas estava estacada, esperando Paulo –, recusa-se a ir adiante nas suas recordações. Nem os prazerosos momentos de sua última noite com Paulo quer lembrar. Num relâmpago, voltam cenas desconexas para o espectador alheio ao seu sofrimento; lógicas, para ela que as viveu: um quarto de hotel de luxo, o nervosismo seu e de Paulo, a sensação exultante de manter-se segura nos braços dele, a cabeça envolta pela ternura das mãos que passeavam pelos seus cabelos, o toque leve e quente pelo corpo, o cuidado, a atenção, o carinho, o amor... E, num relance, a cama acolhedora, os lençóis suavemente brancos, a preocupação com ele, a melhor posição e... num jaz, o cansaço consternando-o, as desculpas, o levantar-se atônito, a necessidade de banhar-se. >> 69 << E Paulo, que antes lhe apaziguava os sentidos, emudeceu, Vilca Marlene Merizio tornou-se outro. Esquivou-se. Um copo caiu. Quebrou. Calou o canto e todos os encantos daquele amor de outono. Antes do encontro marcado para a noite seguinte, Camile deixava registrada na sua agenda: Tão bom saber que são quase dez horas da noite. Daqui a pouco estarei com ele. Repassaremos, então, os nossos últimos sonhos, sentiremos novamente o mesmo calor enrugando as veias. E nos abriremos em flor na dança do vento. Nossas mãos entrarão umas nas outras, reatando um laço que não sei há quanto tempo foi interrompido. Sinto-me cheia. Redonda. Completa (Re)Encontrei-o. Sou feliz. Paulo foi pontual desta vez, desta última vez porque, a partir deste encontro, sua palavra nunca mais foi a mesma. Aliás, neste mesmo dia, ele não parecia mais o mesmo. Chegou na hora combinada, trazendo uma grossa pasta de couro azul escuro. Dentro uma montanha de papéis, de todos os tipos e formatos, onde se acumulavam poemas, contos e crônicas. E aí veio o pedido:

– Querida, podes me ajudar a organizar os meus escritos? Uma editora garantiu-me a publicação... E Camile, pacientemente, de amante tornou-se secretária. Depois mestra. Meses de trabalho incessante: discussão dos temas, pesquisa, revisão, digitação. Não havia mais tempo para o pessoal. A caminhada, o passeio à beira-mar, os jantares, tudo ficava para amanhã, quando o livro estivesse mais adiantado. Depois, a preparação para o lançamento, os convidados, o coquetel. E no dia do lançamento, a surpresa: quem entrou de mãos dadas com ele foi Ângela, a outra: uma jovem de 21 anos, recém-formada em Jornalismo. Despedaçada, Camile deixou o clube. Não sentiram a sua falta. Paulo, depois disso, marcara um encontro: queria agradecer a ajuda. Não compareceu. Marcou outro e outros. Voltaram os e-mails. Voltaram as flores e os cartões. Dizia-se arrependido. Agora, sim, sabia que estava realmente apaixonado por ela. Ângela recebera uma bolsa e estava no exterior. >> 70 << E Camile acreditou. Mais uma vez, estava ali, hipnotizada, Açores: da memória à ficção esperando por ele. Súbito uns passos, um leve toque no braço, um sorriso... Um olhar alegre e amistoso: – Então, ainda aí? Estou com duas entradas para o teatro, a peça é muito boa. Queres ir comigo? Não, não era Paulo. – Depois poderemos jantar ou simplesmente sair para conversar um pouco. Há tempos que estou para te convidar... Hoje estou saindo mais cedo, afinal a ala dos queimados está quase pronta para a inauguração. Era o Engenheiro Eduardo, homem fino, ligeiramente mais moço que ela. Ainda surpresa consigo mesma, aceitou. Saíram os dois, ele um pouco à frente, puxando-a pela mão. Nem notaram que das floreiras do hospital os jasmins exalavam o perfume da primeira floração. Chegara a primavera. E Camile acreditou. Mais uma vez, acreditou. Partiria para mais uma jornada... de amor. Talvez desse certo. Ela merecia. Não custava nada tentar.

Flores de tília cordata



Notas para um romance Negou-se me o poema, e a cortina dos meus olhos baixou em calmaria. Hoje colho cristais em fragmentos para que me volte a Poesia. >> 73 << *** Vilca Marlene Merizio A garoa gelava os cabelos. As mãos afogadas em luva de pele buscavam o calor perdido. Eu só. *** Amo-te, amo-te, cada dia em lembrança renovada. Mas... que destino dar à desgraça da distância? *** A nossa respiração... essa sim!... a cavalgar as lombadas da serra, lambuzadas de neve e sol. *** O essencial é que eu te amo excessivamente. Estou a enlouquecer de tanta saudade. ***

E, então, bem longe, muito longe, o iceberg começou a encolher. Nascera Oma, a personagem maior do romance. Título do romance: Os assassinos não merecem flores. *** A luz foi embora. Clotilde e eu ficamos à espera. Desde a madrugada da noite anterior, radio e televisão repetiam o aviso: a tempestade atingiria o norte do Arquipélago ao cair da tarde de 18 de dezembro. Hoje é dezoito. Nós estamos no sul da ilha maior, longe da rota do vendaval. São dezenove horas e não temos notícias sobre o que acontece nas outras ilhas, nem do outro lado de São Miguel. Nada. Silêncio completo. Nem um inseto no ar. Tudo parado e morto. De repente, um uivo corta a noite. O vento forte chega, assobiando fino, levando de roldão tudo o que está fora, solto, contorcendo-se entre os vãos da casa, para vencer as frinchas da casa e os vãos entre as telhas vermelhas. Gordo e com pressa desvairada, comprime-se para vencer ruidosamente os espaços, devorando tudo na sua viagem desmedida. >> 74 << Não sabemos o que fazer. Não esperávamos que a tempestade nos atingisse, afinal estamos a seiscentos quilômetros do corredor Açores: da memória à ficção do ciclone. O melhor é abrigarmo-nos sob a arcada da porta conforme sugerem os manuais de orientação à população durante os grandes flagelos sísmicos. Ou será melhor preparar um farnel com alimentação suficiente para não se sabe quantos dias? Temos enlatados, leite, pão, sardinha, alguns enchidos... Torresmo. Queijo. Vou procurar um saco para as joias de Clotilde, não posso misturar isso aqui. Ah... “dinheiro, é pouco, mas ajuda”. Vou levar. Mais essas peças de lã, o relógio... vai tudo para o saco. Não posso esquecer os remédios do Nando. O que mais levar? Meu Deus, para onde ir? Não pensei mesmo que a tempestade pudesse nos atingir! Todos na Ilha estavam vivendo o mesmo drama. E se viesse a onda gigante? Armei-me de coragem e fui até a janela. Afastei com a mão trêmula algumas folhas do estore. Tudo escuro. A poeira grudada no vidro não permitia distinguir muita coisa lá fora. Só dava de sentir a agonia das plantas massacradas pelo vento. O zunido aumentava. Os troncos das árvores arrancadas,

rolados morro abaixo, chocavam-se contra o muro atrás de casa. Vilca Marlene Merizio No jardim, um reboliço só. O vento parecia seguir a correnteza de um rio invisível, arrastando consigo parte da montanha. Estávamos sozinhas. Clotilde e eu, naquele fim de mundo. O furacão arrebentava com tudo. Um barulhão fez-me crer que a parede da garagem tombara sobre o automóvel, o nosso único meio de locomoção naquele povoado distante da cidade. Logo, logo o teto da casa poderia vir abaixo. Precisávamos fazer alguma coisa: a tempestade aumentava. Enfiarmo-nos embaixo da cama, talvez... Mas ela era baixa demais para abrigar os meus oitenta quilos. A única solução era sair e procurar abrigo em outro lugar. Talvez sob a arcada da porta da cave: teríamos, então, que encarar o vento, descendo os velhos degraus até chegarmos à adega escura. Clotilde e eu não nos olhávamos nos olhos. Confessar o medo seria perder a resistência. Apertávamo-nos as mãos. Pequeninhas, as dela. Grossas e molhadas, as minhas. Os pensamentos iam e vinham sem se fixar em alguma solução. Era preciso agir, mas o pavor paralisava toda a iniciativa... O toco de >> 75 << vela teimava em apagar. Era preciso encontrar a lanterna, pegar o rádio portátil, vestir a gabardine. E as pilhas? Onde estariam as pilhas? Achamos o estojo de primeiros socorros, a lanterna e um pacote de rebuçados. E as pilhas onde estariam as pilhas? Clotilde escutara rádio a tarde toda, as que estavam disponíveis já haviam se esgotado. Na parede, nossa sombra se extinguira. A vela apagara de todo. Clotilde apertou entre os seus dedos magros e compridos o fiapo escuro que antes fora pavio e que agora boiava dentro da poça de cera quente. A escuridão era completa. Não havia mais vela nem coragem para sair. Desistimos de ir à cave. O vento continuava em convulsão. O telhado rangia. Agachámo-nos sob a mesa da sala de jantar. Era de pinho. Iria resistir. De repente, a acalmia. Silêncio absoluto. O vento se fora. Ficara apenas um cheiro de poeira e a impressão de morte a rondar-nos a alma. Abandonamos a nossa posição incômoda; saímos abraçadas de debaixo da mesa e, às apalpadelas, fomos em direção ao quarto de dormir.

Deitamo-nos agarradinhas sobre a colcha. Puxei o cobertor xadrez dos pés da cama e cobrimo-nos. Ficamos quietas: nossos sentidos estavam lá fora. O que viria agora? Por que os cães não latiam? Onde se esconderam as aves, os insetos e os animais do pasto? Nem um mugido, nem um grito de dor. Por que tudo voltara a ser tão silencioso quanto antes do furacão? Estaríamos a um passo do abismo? A chuva grossa começou a cair. Voltou o vento. Um vento moderado, daqueles que já conhecíamos. Era forte também, só não tão ameaçador quanto o de há pouco. Ficamos mais tranquilas, aliviadas até. Fui novamente à janela. Agora mesmo é que não se via nada. O vidro todo embaçado só deixava escutar o som da goteira grossa do telhado, esborrachando-se nas pedras da calçada. Voltei para a cama, para Clotilde. Ela me olhava, olhos arregalados, apoiada nos pés da cama, sem saber se deveria ficar ou ir até a janela também. Deitamo-nos novamente. Clotilde queria sentir-se no colo, cabeça e pés coladinhos >> 76 << aos meus: era um só fôlego, uma só apreensão. Aquecêramo-nos. Açores: da memória à ficção Aos poucos, senti o seu corpo de menina-moça desprendendo- se do meu. Uma moleza invadiu lhe os músculos. Estava quieta. Tinha adormecido. Sozinha com os meus fantasmas, também eu não quis mais ouvir o vento. A chuva amainara a fúria do dragão. Aos pouquinhos, meus pés adormeceram e Nadianara tomou vulto. Aproximou-se gigante na sua voz fingida, doce... angelical. *** Eu, Nadianara, a narradora deste romance, sinto qualquer coisa esquisita tomando conta de mim, afastando-me do trabalho de pesquisa... Sei que, no fundo, o que deveria ter feito, logo cedinho, era ter anotado o sonho terrível da noite passada. Minhas ideias estão cada vez mais confusas. Pulo de um assunto a outro, não consigo escrever. Não me fixo em nada que possa gerar lembrança. As primeiras horas da manhã foram de fuga, assim como estão sendo estas linhas, as primeiras deste apontamento.

Esforçar-me-ei, no entanto, para retomar o fio da meada, relatando o sonho que tive. Estávamos na cozinha. Um facão – não. não chega a ser um facão –, uma faca grande, bastante comprida e uma machadinha eram os brinquedos preferidos de Aliatar, que nos ameaçava de morte, sempre com os dois instrumentos cortantes ao alcance de suas mãos. Eu não olhava para aqueles objetos. nem deles me aproximava. Olhava nos olhos dele: um olhar furioso. Daqueles olhos azuis, as chispas de ódio queimavam a minha alma. Clotilde e Nando deveriam sentir a mesma coisa quando ele os olhava. Meus filhos sofriam comigo o mesmo desespero. Só que não me diziam nada. Viviam tristes. Apenas tristes. Houve a tragédia. Eu estava machucada, muito machucada, sem poder respirar (um pouco antes, num automóvel, eu havia socorrido alguém – uma mulher: eu a levara, desmaiada, ao hospital da comunidade). Nisso, chega a minha cunhada acompanhada por um homem ruivo, também médico. Diz-me: – Nara, olha como estás! Isso não pode continuar assim. Precisamos dar um jeito, ajudar o Aliatar. Ele está completamente >> 77 << ensandecido. Vilca Marlene Merizio Mais pessoas estão ao redor de uma mesa. Alguém canta. Canto junto: “Minha fé de cristão no batismo./ meus padrinhos juraram por mim”... A música era a mesma da minha infância, mas a letra tomara outro sentido, não era mais igual. O médico não era mais o médico. Aliatar não era mais o mesmo: os dois passaram a ser uma negra vestida de branco. Acordei angustiada, com medo de olhar no espelho. Uma multidão, só olhos, me observava. E, mais uma vez, me encolhi. *** Estou a enlouquecer (escrito poucos instantes antes do teu telefonema de 19 de maio). Pediste-me que escrevesse como homem e não como poeta. Por quê? ***

Açores: da memória à ficção18 de junho Tudo começou numa sessão de massoterapia, voltada para a revelação de vidas passadas. Na verdade, começou bem antes, e bem antes eu já deveria ter começado a registrar todo o acontecido, mas só agora, depois da vivência com a Dra. Ana, é que estou sendo impelida a escrever, missão a que não tenho sido fiel desde que a recebi do Mestre Lilah, numa noite de tempestade, quando eu ainda era aprendiz de escritor. Inúmeros foram os começos deste registro nos últimos cinquenta anos. E todos ficaram por aí... extraviados... esquecidos. Hoje, perto dos oitenta, quando a velhice já tomou do meu braço e me acarinha a fala, lembro-me das madrugadas insones em que, mentalmente, povoei de histórias o meu plano mental, inscrevendo na consciência o que trazia de mais profundo no meu viver. Depois de reprisadas e revividas, as histórias permanecem como se a base de fogo sobre a qual foram inscritas ainda crepita sob a bênção dos raios violetas da cura. Agora não vou buscá-las: >> 78 << há pressa no meu dizer, há esperança no meu olhar... *** O olhar sorridente do Jango, o meu bisneto mais velho, estimula-me à escrita. A tosse que me vem direto do coração tenta distrair-me; no entanto, sigo segurando firme esta lapiseira de ouro que me acompanha, desde um passeio pelas Furnas, quando a recebi junto com a caneta-tinteiro da qual nunca me separei. O mimo foi-me oferecido num estojo de veludo vermelho-granada. Foi com ela, com a caneta Parker, que o meu Amado assinou todos os seus processos jurídicos e todos os seus grandes momentos, inclusive o seu diploma de doutor em Ciências Médicas, o seu Prêmio Valdir Chagas e as primeiras cartas da correspondência que mantém comigo há mais de cinco décadas. Relanceio o meu olhar pela sala. Está faltando alguma coisa. Reluto em admitir que meus sentidos estejam cansados. Preciso de tempo... Preciso de espaço... Preciso de fé. Esta sala não ajuda. Esta casa não me contém. Estou toda noutro lugar. Além. Além- mar.

O material de Jarbas está jogado pelas poltronas. A guitarra Vilca Marlene Merizio no chão, e isso me incomoda. Miriam deixou o Latino solto pela casa. O cachorro se achega à minha perna e lambe a minha mão. Repuxo-a. Ele desiste e deita-se ao pé da minha poltrona. Tento me concentrar. Realmente, viver com Clotilde e as crianças neste apartamento minúsculo não me agrada. Preciso de ar. E de calor. Não de um calor abafado, mas de uma ternura infinita que me fizesse novamente sonhar. Volto a pensar na minha firme decisão de retomar a tarefa primordial da minha apagada existência: escrever. Escrever todos os dias, desligada de preocupações, de compromissos, de exterioridades, sem preconceitos e com todos os direitos que a minha idade outorga. Escrever alegrias e lamentos; enfim, escrever a vida assim como David, o poeta Mourão-Ferreira, ensinou: “escrevivendo”. Ontem eu dizia para um amigo que agora me divirto juntando os meus caquinhos. Cansei de ter desalinhada a coluna vertebral do meu sentir. Escolhi juntar os pedacinhos num grande e único painel. E, embora ainda incompleto o vitral, sinto-me forte para navegar em direção ao meu porto interior em busca da >> 79 << inteireza de todo o meu ser. *** Ponta Delgada, Minha querida, Lembro-me de ti como uma nuvem... Sinto que a esperança me foge! Pelo amor de Deus (ou daquilo em que acreditas. diz duma vez: optas pelo teu trabalho ou por um compromisso comigo. Se esse compromisso não for possível. não voltes a interferir na minha vida. Fica com ela, fica com o que quiseres, mas não me obrigues a uma fidelidade (que aliás nunca te prometi), mas que eu seria capaz de respeitar no caso de vivermos conjuntamente. Digo que sim, que eu seria capaz disso. Não sou. porém, capaz de viver em estranhas ondas transatlânticas. Sabes que não acredito– nem um mínimo na tua onda de pensamento. Sabes como te vou dia a dia expulsando do meu ser... para que não obtenhas a vitória da minha destruição. E comprei selos e vou sobrecarregar a carta (para ti) de selos... e nunca mais. no entanto se apagará na minha memória o

Açores: da memória à ficçãoefeito (começo a ficar nervoso, nota-se) daquele maldito telefonema de 10 de abril. Foi às cinco horas da manhã. O choque foi imenso. Disseste-me que não virias ao meu encontro. Eu, que já arrumara tudo para as nossas núpcias, destruí toda a tua correspondência. Senti-me ludibriado, o que não significa grande coisa. E, ludibriado por ludibriado, fui cair direitinho na cama duma certa pessoa que, segundo a mexeriquice a que estás atenta, é uma morena. Não tenho papel suficiente para te explicar este caso – se é que ele tem explicação. Foi uma estupidez minha... Mas eu tinha plena consciência dessa estupidez. [...] Aconteceu-me conhecê-la por solidão... E sensualismo desprovido de qualquer interesse espiritual. Aliás. no passado, isso já me tinha acontecido várias vezes. Quer dizer: uma forte atração física que não tem nenhum complemento no plano do convívio das almas. Que me importa ter conhecido mais um corpo desprovido de projeção anímica? O que importa é a absoluta renúncia a tal ser. Acreditas? E por que perguntar-te isso? Amo-te tanto que me transformava, por Ti, num ser absolutamente diferente do sedutor medíocre e desaparafusado, que >> 80 << me julgam... que me julgam por não avistarem mais nada... Mas, afinal, o que te peço? Creio que o impossível: vem, meu Amor, vem para junto de mim. Sinto-me sem forças... Meu Amor, meu Amor, não há papel que chegue. É horrível amar-te e perder-te! Amo-te em excesso... Beijo-te e detesto-me. Nunca mais acabaria! Vem... Vem!. *** Uma música suave, a certeza de um amor correspondido! A voz cálida da terapeuta leva-me longe, longe... Luzes profusas; profusas e brilhantes. Luzes suaves, definidas. Luz divina que expande o meu ser e vivifica o meu Eu Superior. Tudo em mim vazio, um vazio total e imensamente iluminado. Fértil. Lembro o vazio fértil de Weill, Leloup e Crema. Volutas coloridas descortinam formas conhecidas e minha Mãe-Luz aparece em seu esplendor. Graciosa. Leve. Bênção. Eu estava perdoada. Tinha feito bem em não ter ido.

Acordo. A terapeuta sorri. A sala de um azul-prateado recende à rosa e a jasmim. Ou será a dama da noite a exalar o seu perfume? Não, aí seria noite, e não quero o luto, o pranto, a saudade. A voz da terapeuta é luar que encanta. Volto à claridade. Retornam formas, cores e faces. Perfis fluídos. Estou bem. Sim tinha sido bom eu não ter voltado. *** Amo-te em excesso... Beijo-te... Vem! Amo-te em excesso... Beijo-te... Vem! Amo-te em excesso... Beijo-te... Vem! Amo-te em excesso... Beijo-te... Vem! O toque da terapeuta é macio. A melodia embala meu sonho. Penso em tílias azuis. Cheiros e sons acariciam a minha alma. E o sussurro, há anos abafado. revigora-se no vórtice da lembrança: Quero-te, quero-te presente na minha vida. “Quero-te presente, escrevias-me... Quero-te presente repeti eu em todos os segundos desta minha vida dividida desde quando te deixei, em frente ao Hotel Dom Carlos, em Lisboa. (Enquanto >> 81 << escrevo, algumas ideias perturbam esta escrita: a vontade de Vilca Marlene Merizio terminar o almoço, a certeza de que não devo dar este manuscrito para a Nine digitar, a premência de deixar os meus documentos em ordem antes da minha última viagem a Portugal, tudo, tudo me leva a postergar esta confissão.) *** Lisboa. Minha Querida, meu Amor, Retomo esta escrita por ti, para ti, em teu nome, neste dia 21 de Maio, precisamente um ano após o teu regresso. Não me peças que recorde o meu sofrimento de então. Também não me peças palavras sobre o momento que vivo (?) – vivo ou morro? – nesta data. É tudo tão estranho, tão condicionado por não sei quê!... Por vezes sinto que não existem factos na minha vida. Que será isto? Vencido? Batido? Sei lá!... Mas não existem factos. Tu não és um facto. E perco-me nesta deambulação palavrosa, perigosa, que só posso romper pela violência... Não entendas mal esta palavra.

Violência é desespero, não estar para esperas, não querer suportar uma fidelidade imposta por princípios que respeito, mas que sou capaz de varrer do meu horizonte... Por quê? Por raiva? Não, por desprezo. Sabes que a minha desgraça é ser incapaz de ódio! Que posso fazer? Contar-te misérias do meu cotidiano? Talvez. Escuta, então, meu Amor... *** Tão bom saber que são quase dez horas da noite. Em algumas horas o avião decolará. Mais uns dias e estaremos, finalmente, juntos. Repassaremos, então, os nossos últimos sonhos, sentiremos novamente o mesmo calor enrugando as veias. E nos abriremos em flor na dança do vento. Nossas mãos entrarão uma na outra, reatando o laço que não sei há quanto foi interrompido. Sinto-me cheia. Completa. Esperançosa. Feliz, estou! *** >> 82 << Lisboa, 23 de maio Meu, Amor, minha Vida, Açores: da memória à ficção Meu Amor: a necessidade que me obriga a escrever-te, às dez horas da noite deste Domingo triste, inqualificável, cheio apenas de solidão e lágrima reprimida – este ímpeto de te dizer umas palavras não me anuncia nada de bom. Tenho a alma saturada deste estar sozinho. Não creias nunca que alguém me valeu nesta infinita desolação. O que poderia expor-te narrativamente não vale grande coisa. A tua figura – a tua interposição – sempre me impediu, desde Dezembro passado, qualquer arremedo de vida. Acabo de fechar e de colocar os selos em mais uma carta endereçada para ti [...]. De repente, perco a noção do meu (da minha) interlocutor(a). De que é que eu me lembro de ti?... Se Deus existisse, eu apenas Lhe pediria um lenitivo para a minha angústia. Um ano atrás, apesar do que possas imaginar, eu ainda era um homem razoavelmente saudável. Hoje, que direi? Recuso. Recuso pagar com a minha destruição uns escassos momentos de VIDA. E o resto?...

Nada. Quase nada. Um horror doentio. Uma fuga e um retorno abúlico. Meu Amor, chego sempre ao fim da página quando a garganta se me aperta. Fiz mal a muita gente, julgando que era por amor. Mas fiz-te mal, a ti principalmente, julgando ab initio que não podia surgir entre nós o Amor. Que te dizer desse tempo? Creio já ter-te dito da angústia e do remorso... Creio que já falamos o suficiente do nosso estranho (e casto) encontro. Amaldiçoa-me pelos anos desperdiçados. pela ternura encoberta, pela minha desgraçada cobardia. Lembra-te de mim como de alguém que não quis entrar na tua vida... por não ter direito a isso. De resto, podes imaginar o meu emprego dos minutos quotidianos: subir, descer rasgar os sapatos (e os pés) nas miseráveis ruas de Ponta Delgada, olhar sem ver, não encontrar uma palavra. Um silêncio total à minha volta, a impressão de que este cativeiro é já o meu inferno... Peço-te: não me julgues um aventureiro feliz à custa da tua >> 83 << ausência. Isso não! E se o meu sofrimento puder atenuar alguma triste leviandade... Então, perdoa-me. Vem ao meu encontro. Eu Vilca Marlene Merizio hei-de então beijar-te com toda a fidelidade. E desculpa, penso que não me resta vida suficiente para isso. Como eu te amo! Sim! Como eu te AMO! Amo-te, amo-te, cada dia em lembrança renovada. Mas... que destino dar à desgraça da distância? Eu te amo excessivamente. Tenho beijos e beijos para ti. Estou a enlouquecer de saudade. Vem! *** – Dona Nara, a senhora está bem? Vem, Dona Nara. Volta para esta sala. Sou a sua terapeuta, a Ana. Sinta o seu corpo. Devagarzinho. Volta. Movimente as mãos, os pés. Abra os olhos. Sem pressa. Isso, passe a língua pelos lábios. Sinta-se à vontade para espreguiçar. Isso! Está pronta para se levantar? Vire-se de lado. Tome esta água, por favor! Era a Dra. Ana devolvendo-me ao mundo real, aquele para o qual eu não desejo voltar. Teria eu tido uns momentos de

Açores: da memória à ficçãoampliação de consciência? Teria eu ido a um mundo paralelo? Eu queria mais. Queria viver o outro lado (tão apagado) da minha memória. Então alguém me amara perdidamente? Teria eu amado apaixonadamente? Um aperto no coração, uma vontade de ir mais fundo naquela descoberta regressiva fez-me deitar novamente, mal tinha me refeito do primeiro passo. Meus lábios, ainda molhados da água solarizada que a terapeuta acabara de me oferecer, abriram-se num sorriso quando ela concordou que eu ficasse mais um pouquinho, descansando. Voltei a deitar-me naquela maca branca e cheirando a alecrim e lavanda. Sem música, sem voz, sem toque da terapeuta. A maca esfriara. O quarto escurecera. Longe e sozinha senti um esgar de sofrimento rasgar-me a boca, tensionando a nuca e a garganta. Os pulmões se fecham. Um muro de pedra aperta o meu peito. *** A preguiça me consome. Há minutos, era só madrugada. >> 84 << O relógio despertou e eu fingi não ouvir. A vontade de sentir-me amparada pelas cobertas embala-me em outros sonhos. Em todas as manhãs cinza-escarlate é sempre a mesma resistência... quero continuar deitada, jazendo em sonhos. Mesmo agora, os soluços engolidos com a tua carta dão- me voltas ao estômago. Viro e reviro-me na cama. Penso que é da carne seca e do pirão branco mal digeridos durante a minha insônia e acalmo-me. Mas o embrulho aumenta. Quero anotar as minhas sensações, mas não consigo. Espirro. Respiro e suspiro mais profundamente. Dão cabo de mim estes suspiros. Apaixonados. Apaixonados? Há suspiros que não sejam de paixão? *** A orelha ainda me dói. A parte da cabeça em direção à nuca lateja-se nos montes dos edemas. Contudo, o cabelo oleoso e a minha aparente inércia escondem o verdadeiro drama provocado pela ira daquele braço de bronze. Mal consigo escrever. Não sei se o bloqueio vem da presença do gigante que ronroneia à minha

frente ou da covardia de expressar a minha verdade. Ontem, sozinha em casa, tudo parecia mais fácil de ser dito. A dor da alma, maior do que se espadas me perpassassem o corpo, refrescava a memória mergulhada em ódio e pranto. Hoje, tudo é diferente, e a moleza da minha vontade nega a necessidade de expurgar a violência recalcada. O embucho continua. À noite sempre vem, principalmente na hora de me deitar. Agora são vinte e três horas e o embucho está tal e qual como ontem, como na semana passada, como no princípio do século. Estarei testemunhando o evoluir de um mal maior? Não sei. Talvez mesmo nem gostasse de saber. Li a minha mão. Quanto à saúde, é clara e tenebrosa a linha do estômago. Cortes, ilhas, traços bem definidos entre o Monte de Vênus e o de Mercúrio. Complicações físicas à vista. Intrigou-me um pouco a linha da vida. Sempre pensei que fosse morrer muito velhinha. Mas, pelo que tudo indica, terei graves complicações de saúde (e tudo relacionado ao aparelho digestivo...). Não seria a saúde periclitante do meu espírito a principal responsável por tal presságio? >> 85 << *** Vilca Marlene Merizio Há cinco dias os lençóis azuis da minha cama não haviam sido trocados, e o cheirinho de açucena continuava lá... Mas estava tudo gelado. Minha fome de afeto pedia flores de laranjeira. Nas cinco noites anteriores dormíamos juntas, Clotilde e eu. Hoje o cenário é outro. Clotilde dorme no quarto ao lado. Ele voltou. Pensei que fosse dormir no quarto de hóspedes. Sinto que, sorrateiramente, um ventre mole e vazio cola-se às minhas nádegas. Dois joelhos pontudos quase me furam a dobra das pernas. Pensei num jacaré que se houvesse virado de lado e agora me espeta o corpo com a intenção de me penetrar. Branco mole, pesado. Os três solavancos seguidos, a cócega da geleia, escorrendo quente sobre a minha pele, deram-me a certeza: estava sendo possuída sem ser penetrada. E as mãos ficaram lá, para além do meu corpo, na prisão feita de pseudo-afeto. A voz rouca, ainda não saciada, pedia que ficasse um pouquinho mais assim, do mesmo jeito, que ainda era cedo... que Clotilde

Açores: da memória à ficçãodormia... que logo, logo, iria de novo viajar. Que precisava da minha companhia... Que... Fiquei. Olhos arregalados... Não fosse o sono me pegar desprevenida... Não queria continuar ali. Não podia sair dali. Uns minutos a mais talvez não fizessem diferença. Até ele dormir. Ele há muito perdera o seu ardor. Agora nem sei o que sentia: pena, raiva, medo? O sono começou a vir. Era tão bom entrar naquela onda, deixar o corpo escorregar macio em sintonia com o pulsar que, fora de mim, arrastava-me para o terreno em que os perfumes são magia. Oh, sim, José estaria lá com certeza: redondo, de veludo, a olhar para mim, a cuidar de mim. Na parede, o papel pardo estendia-se do teto quase ao chão. As letras eram miúdas demais. Eu tentava ler, mas não entendia nada. Estava escrito em português. Eram versos. Dalva e Lídia viraram-se, uma em direção à outra, testa com testa, para melhor disfarçarem o sorriso. Riam porque eu não conseguia entender o texto, e estava ali, o texto preso à parede, letra após letra, sentido >> 86 << sobre sentido, mas eu não podia... não conseguia distinguir os símbolos, compreender a mensagem. Um barulho vindo do alto do barranco fez-me esquecer as duas primas: a criança, um menino, estava a cair, rolando, vindo contra mim ou para mim. Amparei-a. Logo outra criança, uma menina dessa vez, caía também na minha direção. Uma mulher, presa à mão da segunda criança escorregava junto, batendo violentamente no barranco. Meu braço não os alcançou e, rolando, caíram todos na água. Uma água amarelo-esverdeada! Verde como as garras do caranguejo que surgia no exato lugar onde o menino afundara, entre as vitórias-régias ( ou seriam nenúfares?). E de todas as pias da escola – como se fossem chafarizes – escorria água ferruginosa. A certeza de que faltam detalhes neste sonho me deixa angustiada. Queria lembrar. Crianças, escola, água... Que símbolos seriam esses? Até me lembro de ouvir a música de algumas orações. Aquelas que eu deveria ter escrito, aquelas outras que eu deveria ter recitado... Aquelas que me faltam dizer para minha vida voltar ao normal.

*** Voltei ao mim e ao meu quarto. O verme dormia. Nem dera pela minha ausência. Dos quartos ao lado, chegava ao meu coração o ressonar pesado dos meus outros filhos. Clotilde dormia tranquila. Não fossem eles perceber que novamente eu estava sozinha. E agora, escuro ainda, entre a coberta gelada e as molas do colchão a machucarem-me o corpo macerado, lia, no écran da minha consciência, a resposta para a pergunta tantas vezes formulada: “Nara, como podes amar um monstro?” *** Há uns poucos centímetros do espelho, eu só enxergava o contorno da boca onde se desenhava o réquiem sufocado. Os cabelos encaracolados a direção do rosto emolduravam a expressão de incredulidade. Impossível imaginar que tantos anos se haviam passado. Impossível crer que aquelas sardas agora pouco perceptíveis eram as mesmas sardas lavadas, esfregadas, quase esfoladas pela água do arroz e pelo xixi quentinho: “ovo >> 87 << de perua”, “ovo de perua”… Era um coro? Ou uma voz enrolada Vilca Marlene Merizio pelas águas da enchente? “Ovo de perua”, “ovo de perua”... E a gola da blusa branca do uniforme escolar, muito engomada, a ferir o cangote. “Os primeiros seis meses que vocês estiveram aqui, sem mim, foram de completa depravação”, rosnou ele. E as costuras laterais da blusa engomada a machucarem a pele fininha dos sete anos de idade. “Sua cadela!”. “Sua vaca!”. O sentido da injustiça a queimar o estômago, a impedir o pulsar do coração. *** “Ovo de perua”. Outra vez a voz em eco. ponta de faca a remoer a lembrança. E a mancha escura ali, a lembrar o ovo de perua, a água barulhenta, as farpelas do camiseiro de mangas curtas naquele frio de endoidar. Só que a mancha não ficava só nas bochechas pelo rubor dos seios apontando, alastrava-se olho acima até perder-se na carne escarpelada do lado esquerdo da testa, aquele lado que tantas vezes pendeu para o beijinho de boa noite. Clotilde passa rente ao corredor, pássaro fofinho no par de patins

Açores: da memória à ficçãonovo. Volta atrás, espia para dentro do quarto. Faz uma careta de desagrado e sugere: “pinta o outro olho da mesma cor. Se queres, te empresto meu estojo de guache”. Acho que ela tem razão. A máscara assim grudar-se-ia mais à pele e, tão cedo, não precisaria de ser renovada. Mas, fiz de conta que não a escutei. Afinal, já me acostumara com as manchas roxas... Já estava treinada em inventar desculpas para as ausências nas aulas de bordado. Observo com resignação o olho direito, coitado, tão sofrido! E lá já se vão meio século de vida mal vivida. “Sua puta. É aqui que trazes os teus amantes? É aqui que os recebes na frente dos teus filhos? E eles, os teus filhos, esses sem-vergonhas, o que vieram fazer aqui, se deixaram entrar nesta casa quem bem entenderam? Eles também são culpados!” E o olho direito me espreitava calmo, até doce no seu brilho. Ele, o olho direito, quase cego, não tem ouvidos, só entende de paixão. E como lhe matar um pouco mais a alegria, sobrecarregando-o de luto, se o que ele pedia era somente vida, somente sol e luar? Mesmo se uma sombra colorida pudesse apagar as marcas roxas e negras do soco bem aplicado, na semana >> 88 << seguinte, as manchas também já estariam amarelecidas como as marcas do fumante inveterado. Por outro lado, precisaria ser artista para repetir o modelo: o roxo violentamente enegrecido deveria cobrir toda a pálpebra superior, escorrer pelo flanco do nariz e, acompanhando a linha inferior do globo ocular, descadeirar-se olheira abaixo até quase o meio da face. Não podia esquecer: próximo aos cílios superiores, uma faixa estreita de pele deveria continuar ao natural, virgem, para que, quando os olhos se fechassem (baixos há muito já se encontravam e talvez para sempre assim se mantivessem) dessem a impressão de que quem olhasse não via: o olhar branco engolira também a menina dos olhos. E assim, a dor trincada entre o desalinho do pensamento e a lágrima comprida não anularia o efeito do “hirudoid”. Amo-te em excesso... Amo-te. Vem! Amo-te em excesso... Amo-te. Vem! Amo-te em excesso... Amo-te. Vem! Amo-te em excesso... Amo-te. Vem! ***

Os olhos eram ternamente azuis. Era Olavo. Chamava-se Vilca Marlene Merizio Olavo. Tão loiro! Tão gentil no jeito de carregar os meus cadernos da 4a classe. E a história nem começada terminou num sorriso esticado pelos anos. Sorria também a Professora Maria Lúcia, minhas mãos entre as suas a me pedir que sempre honrasse aquela escola – Só tu, minha menina, entre tantos filhos de operários, irás para o colégio particular continuar teus estudos. Vê lá a tua responsabilidade! Não podes envergonhar teus companheiros que daqui só têm um destino: a fábrica, serão todos operários, a mesma profissão dos pais deles. Eu não teria a mesma profissão do meu pai, seguiria a carreira das mulheres da minha família, da minha mãe. Ela, sim, nasceu para ajudar. Ou, educar? Nasceu, sim, para servir. O ovo de perua já nem pesava mais tanto, o tempo da ponte pênsil já havia passado, as pernas a tremer, o coração descompassado, os fios de arame a contorcerem-se em ondas vertiginosas, e as mãozinhas trêmulas dos sete/oito anos, sem força para desprenderem-se do fio grosso e deixarem-se tragar, >> 89 << como ao corpo apetecia, pelo espaço entre o rio e a ponte que de tão vazio, acolchoava-se como um sonho. E o Valdir, não fosse o Valdir, as águas negras me teriam levado. Era corajoso e bom o meu irmão mais velho. Entendia que eu precisava de cuidado e proteção. Mas ele tinha de trabalhar, não poderia abandonar tudo pela irmã medrosa. E lá ficava eu sozinha, presa à ponte, com nuvens nos olhos para não tê-los cheios da correnteza do rio. E os quilômetros que diariamente precisava suplantar, por duas vezes, iam cada vez mais sendo palmilhados entre passos de pavor e a agonia dos gritos dos meninos: “ovo de perua”. “ovo de perua”, “ovo de perua”. Era penoso atravessar aquela ponte de arame: mesmo sem a brincadeira mal-intencionada dos meninos, quando a balançavam freneticamente, ela se corcovava em ondas compassadas. Um passo à frente e o chão de tábuas estreitas e com espaço de separação entre elas maior do que o meu pé, vergava-se no espaço em direção ao rio. Um pé em falso e a certeza do mergulho naquelas águas profundas do Itajaí Mirim...

Açores: da memória à ficçãoUma tortura aquela ponte pênsil, toda de arame prateado, a balançar e eu a tremer. Tenebrosos aquele rio, aquele balanço sufocante, aquele medo a se enraizar goela abaixo. Mesmo sufoco senti criancinha ao ser atirada, dos braços do irmão da minha tia, para o alto: riso nervoso não de contentamento, mas de desespero porque as mãos vigorosas que me impulsionavam para cima, na verdade, empurravam-me não para que me mantivesse no alto, risonha e feliz, mas para que caísse amolecida em seus braços. E a intuição dessa certeza gerava, já naquela época, a mais profunda desconfiança, a mais terrível insegurança da qual nunca mais pude me afastar quando sinto que, sob os meus pés, a terra humana é movediça. *** Jaime era uma criança. Treze anos morenos de alegria na casa cheinha de mulheres. A tarde de verão convidava para um banho no rio. A porta do quarto de banho tinha sido trancada por fora. Até hoje ainda não sei o que motivou o castigo. O Jaime, >> 90 << menino bom, obediente, divertido, estava lá, sozinho, trancado no banheiro, numa tarde de 40 graus à sombra. A janela não era muito alta. Jaime era esperto. Maroto. Passou pela janela basculante o corpo magrinho. Foi refrescar-se no rio. A roupa secaria logo. Os pais nem notariam a sua ausência. Deixara a janela só encostada. Foi ao rio e de lá voltou, dias depois, pela metade. Com a outra parte os peixes ficaram. Carne tenra. Inocente. Lírio? Cheiro de ausência. De saudade. Ó querido Jaime, que Deus te tenha acolhido! *** Ao lado da sua, encostada, a outra cama, a de ferro, balançava na cadência da mão que ia e vinha sem parar. Uma respiração sufocada pelo travesseiro na cara escondia a vergonha da outra mão a procurar a mãozinha de oito anos que dormia ao seu lado. E a mãozinha finge-que-dorme, com medo de se dizer acordada, é levada até aquela boca redonda que cospe uma gosma quente. A mãozinha se retesa enquanto as garras de aço soltam seu pulso.

Enegrece mais o porão. A mãozinha, encharcada, ainda traz entre Vilca Marlene Merizio os dedos pegajentos uns fios de cabelo. Domingo à tarde. Muito sol. Quase nada a ser feito para além da sesta. Na cama, três pessoas. A mais velha. virada para a parede do lado esquerdo. As outras duas, uma de frente para a outra. E a mãozinha, quando a mão grande e magra agarra-lhe o pulso, já sabe o que fazer para a boca rasgada vomitar. Os pais dormem no andar de baixo. No sótão, na cama de ferro (tão estreita!). a menina de nove e o rapagão de quinze fabricam o seu pesadelo. E agora não é mais a mãozinha que vai, é a boca que se retesa. Não quer. É forçada. Gosma amarga, nojenta... E as garras de abutre largam a nuca e descansam no seu próprio regaço. (Tão pequenos... não conhecem o pecado...). Até onde isso foi? Não sei. As luzes estão apagadas. É noite. Morta a inocência, morreu para sempre o assassino! *** Daqui da sala, ouço o ressonar do meu homem e pergunto- >> 91 << me onde sua essência congelou-se na minha vida. Se não erro, poderia até arriscar uma data, e quem sabe, até dizer a hora em que deixou de pronunciar o seu nome e o instante em que aprendi a balbuciar o meu. E agora perguntam “tantos anos, tantos anos, como aguentaste?” *** Aguentei fazendo-me de adormecida. E a mão da estrangeira, mão leve, sabia procurar a umidade dos sulcos proibidos. Mas eu não sentia mais nada além do prazer de fingir que dormia. Minha respiração era normal, meu sangue alimentava meu corpo franzino. Nem Gema. Nem Débora. Acordada mesmo, só Mirtes. E dessa vez, o sótão era arejado. Também domingo. Mas o sol queimava nossa pele. Gosto esquisito, os beijos de Mirtes. Eu gostava mesmo era quando brincávamos de vaquinha, Mirtes era sempre o bezerro. Eu não precisava beijar ninguém. No sótão das outras casas, o cheiro de mofo e as camas empoeiradas faziam acabar muito cedo as brincadeiras. Só no sótão de Mirtes morava

Açores: da memória à ficçãoo Sol. Não gostava também quando sugeriam fazer o rodízio entre os pares. Aí eu não queria mais brincar. Com um par desfeito, acabava a brincadeira até o domingo seguinte... Engraçado, nós, as seis meninas, de doze a treze anos, estávamos proibidas de brincar com a Nicete Brumes, ela já tinha quinze. Tinha namorado desde os 14. *** Desta ponta da Ilha, onde o silêncio magoa os ouvidos cansados dos insultos. entro infância a dentro e procuro a razão da tolerância diante de tantas calúnias. No mais distante da memória, vou em busca daquele único momento em que tive a coragem de tomar uma iniciativa até agora inexplicável para mim. E se fui eu a incentivadora, o que me levou a desvendar o segredo? Como aprendi? De onde tal conhecimento? Como surgiu tal curiosidade? Que prazer precoce era esse? Não sei quantos anos tinha. Talvez nem mesmo estivesse na escola. Lembro-me só da figura da minha mãe– estaria ela de cócoras ou de joelhos? Com >> 92 << os olhos à altura dos meus, quase neles entrando, a me falar com voz rouca e séria que eu não devia... que eu não deveria JAMAIS repetir o que fizera há pouco na casa da vizinha. Que ainda bem que o primo se recusara... Que por sorte o garoto tivera juízo. Que a dona Jacira havia chegado na hora certa, mas que ainda me surpreendera de calcinha na mão, sentadinha, com pernas abertas e os joelhos dobrados, a chamar o Laurinho para que se aproximasse. E a minha mãe a pedir, com o dedo roçando o meu nariz: “Nunca mais. Ouviu? Nunca mais”. Realmente nunca mais. Nem Mirtes. Nem Laurinho. Ninguém. *** Como pude aguentar por tantos anos? Anos de luta, de uma projeção sendo substituída por outra projeção. De trabalho ou de amor, não importa, tudo são projeções. Minha mãe, olhos dentro dos meus, preconizou: “Nunca mais. Ninguém. Nunca mais”. Mas aos dezessete anos eu esqueci de Laurinho, de Mirtes e dos olhos da minha mãe.

Apaixonei-me. Queria casar Santo Antônio ajudaria. Já Vilca Marlene Merizio havia feito promessa. A sorte também confirmara na noite fria de São João. Eu ia casar-me. E as mãos de Estefânio pouco a pouco foram subindo, subindo, até chegar a um passo do paraíso. E pararam aí. Hoje ainda lá estão, suspensas. Como suspensa ficou a ordem: “Nunca mais”. Mas a melodia do coração embriagava-me a vontade. Se não fosse eu a buscar, poderia fechar os olhos e dizer: agora não, logo mais. E continuaria fingindo que dormia. E dormi, dormi décadas a fio até escutar aquela voz que me chamava montanha acima: Nara, meu Amor. Vem. Volta para tua casa. Vem que te amo excessivamente. Volta, meu Amor. *** – Dona Nara! Dona Nara! Tudo bem? Descansou bastante? Como está se sentindo? Revigorada? Deixei-a dormir mais um pouco para que amanhã a senhora esteja muito bem. São quase dezoito horas. A senhora já está com tudo pronto para a viagem? – Sim, estava. Depois de mais de três décadas, eu estaria >> 93 << retornando à Ilha. Era setembro. Ainda estariam floridas as hortênsias? E na alma, a alegria a renascer em esperança: Amo-te em excesso... Beijo-te... Vem! Pensei: Quem sabe? Talvez até, em frente ao Hotel Dom Carlos, em Lisboa, as tílias ainda florescem. E por mais que eu saiba que não estarás lá, porque há muito já é outra a tua morada, irei sim, renovada, esperando, com alegria, os frutos desta última floração no verão de Lisboa, como que tanto sonhei.







E tudo isso é fado Vilca Marlene Merizio Deitada de costas, com os joelhos para cima, a mulher agonizava. Entre as pernas, sob o sexo adormecido, pulsava ainda o seu instinto de defesa. Seus braços levantaram-se em direção ao topo da cabeça. A pedra, grande, lisa e escura, estava ali, onde os dedos, tal qual garras de aço, alcançavam o último instrumento >> 97 << daquela batalha insana. E as mãos dela, em busca da dignidade perdida no ataque antropofágico que vinha acontecendo paulatinamente nos últimos anos, ergueram o pesado fardo em direção da cabeça cuja boca novamente se punha em posição de ataque. Mas não foi preciso. O indígena, certeiro, impunha a lança. O violentador cai antes que a pedra esmigalhasse a sua cabeça. Lígia ainda vê o carijó sumir na mata. Com força redobrada, empurra o corpo do velho e asqueroso patrão, que rola penhasco abaixo. Foge. No chão, as flores que colhera naquela trilha, esparramam- se, pisoteadas... Salva, mais uma virgem nas terras do silvado. Anos passados, em novo espectro dimensional, vítima e salvador encontram-se e novamente despertam para o amor. Mais séculos passando, outros orbes habitados, outras vidas repetidas, e os três, disputando, vencendo uns, defendendo-se os outros vivem a saga em existências programadas. Dois deles continuam ser de etnias distintas, possuem pele de cor diferente e humores antagônicos, mas novamente se (re)conhecem e se amam. Divina, a roda cósmica!



Beiramar de São José, Santa Catarina, Brasil (Foto: Nilberto Vieira)


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