um
giro
pela
Europa 3a
edição Paulo
MS
Coelho
Santos
Não
importa
quanto
tempo
vivemos,
o
importante
é
a
maneira
como
gastamos
o
nosso
bem
mais
precioso.
Diante
dos
desafios
que
encaramos
todos
os
dias,
é
muito
fácil
nos
perdermos.
A
vida
é
cheia
de
sutilezas
e
cabe
a
você
decidir
o
rumo.
Vivemos
tempos
controversos
em
nosso
país
e
no
mundo.
Ainda
assim,
podemos
nos
considerar
privilegiados
por
estarmos
vivenciando
todas
essas
mudanças. É
um
prazer
poder
estar
hoje
aqui,
após
trinta
e
três
anos
e
compartilhar
nossa
experiência
com
vocês.
Mostrar
que,
com
iniciativas
simples
e
muita
pró- atividade
você
também
pode
ter
sucesso
em
qualquer
área.
Mais
do
que
uma
viagem
de
bicicleta,
os
seis
meses
que
passamos
na
Europa
em
1986
mudaram
completamente
nossas
vidas,
valores
e
maneira
pela
qual
nos
relacionamos
com
nossos
semelhantes.
A
medida
em
que
durante
a
aventura
e
a
cada
dia,
tínhamos
que
resolver
problemas
básicos
do
tipo,
onde
dormiríamos
e
comeríamos.
Gráfica e Editora Copiart Rod. Norberto Brunato, 2818 - Km 02 - São João - Margem Direita, Tubarão, SC, CEP 88702-803 | Telefone: (48) 3626-4481 [email protected] www.graficacopiart.com.br
© 2020 Paulo MS Coelho Santos 1a (1988) e 2a (2006) edições publicadas pela Editora da UFSC, Florianópolis-SC. (48) 99911-9041 [email protected] Projeto gráfico, diagramação e capa Paulo Roberto da Silva Revisão: Maria Geralda Soprana Dias Ficha Catalográfica S237 Santos, Paulo MS Coelho Ciclismo : um giro pela Europa / Paulo MS Coelho Santos. 3. Ed. – Tubarão : Gráfica e Editora Copiart, 2020. 165 p. : il. ISBN 978-85-8388-169-8 1. Ciclismo. I. Título. CDU: 796.6(4) CDD: 796.6094 Índice para o catálogo sistemático (CDU) 1 – Ciclismo: Europa 796.6(4) 2 – Europa: Ciclismo 796.6(4) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia permissão por escrito do Autor. Impresso no Brasil
À Luísa pela dedicação, parceria e amor!
AGRADECIMENTOS Muitas pessoas contribuíram para a concretização, tanto do giro ciclístico, como da publicação deste livro. Não poderia aqui, sem o risco de cometer injustiças, citar uma a uma, as muitas que direta ou indiretamente contribuíram, pessoas que mal conhecíamos e que se tornaram amigas. Por isso, dedico nossos agradecimentos, tanto àqueles que nos ajudaram nas tarefas complicadas, como por exemplo, construir equipamentos especiais para nossas bicicletas e o material necessário ao giro, como aos que garantiram com seu estímulo, apoio, credenciamento, patrocínio, receptividade e amizade a realização de nosso objetivo. Na certeza de que suas atitudes foram fundamentais para nosso êxito. O Autor
Sumário Prefácio / 13 Prólogo Em Clervaux, uma sopa especial / 15 Capítulo 1 Sonhando no Brasil / 21 Capítulo 2 Em Lisboa, o início da aventura / 37 Capítulo 3 Espanha: uma travessia agitada / 47 Capítulo 4 Paris, a chegada triunfante / 63 Capítulo 5 Novamente na estrada / 85 Capítulo 6 Em Amsterdam, um contato inesperado / 95 Capítulo 7 Suíça, uma cômoda passagem / 109 Capítulo 8 Em Roma, um encontro com o Papa / 125 Capítulo 9 Cruzando a Riviera com Yasuaki / 145 Capítulo 10 O retorno a Lisboa / 155 Anexo / 165
Prefácio Nove mil quilômetros em bicicleta, disso um obstáculo, mas sim um estímulo ou seja, nove milhões de metros para esforçar-se ainda mais e conquistar pedalando. Você imagina a expressivos feitos também no esporte. Este magnitude deste feito? Aproximadamente entusiasmo, aliado à persistência, faz com três milhões de pedaladas, com chuva, sol, que se diferencie da grande maioria. O calor, neve. Uma pessoa não atleta, porém mesmo ocorre com seus companheiros de que se exercita regularmente em bicicleta, viagem. chega aproximadamente a quatro mil pedaladas. Isso sem o peso das bagagens, Não foram poucos os comentários e as dificuldades adversas dos terrenos conselhos desestimulando-os a prosseguir desconhecidos, os vários idiomas e a com tal “loucura”. Comentários do tipo alimentação irregular, fora de seus hábitos. “são loucos”, ou ainda “vão perder seis meses de suas vidas” eram constantes. Ao lermos este livro de linguagem Bem, de louco todos nós temos um pouco. agradável, somos estimulados cada vez Porém estes saudáveis jovens estudaram, mais a virar a outra folha, para sabermos o planejaram, pensaram e mediram tudo (ou que irá acontecer na próxima. Temos a melhor quase tudo) e se prepararam para sensação de que as dificuldades não são tão enfrentar as adversidades que a aventura grandes e possíveis a qualquer um de nós. requeria. Porém, a meu ver, isto se deve a dois fatores principais: a simplicidade e Realizaram durante seis meses o sonho modéstia do autor, aliada a sua condição e o planejamento de mais de um ano. de ex-ciclista de competição. A superação Viveram, viram e conferiram situações das das dificuldades e a determinação que mais diversas. Mais do que uma viagem, o transparecem constantemente são marcas giro foi uma verdadeira aventura cultural, registradas de Paulo, que apesar de ter uma que supera qualquer curso da melhor pequena desvantagem física, nunca fez universidade. Então ganharam muito mais,
pois aprenderam tudo in loco com grande esforço e admirável garra. Mostrando que o ser humano é ímpar, mesmo entre os três aventureiros, Paulo poroisssaepgrueinudeerfoami retauldmoeinntleoactoé coofmimgdraensedue pesrfoojreçto,eesacdremviernávdeol egsatrerlai.vro e dando-nos a opoMrotusntriadnaddoe equoeporaszeerrhduempaarntiociépíamrmpaors, dmeesstaminoéednittareavoesntturêras saevmenstauirrmeiroossd,ePcaauslao, dperoixsasengduoi-uneosfoaiermeaolmçãeondteeactaédoafpimeddaelasdeau, oprcoajertinoh, eoscdroevceonndvoíveiostedloivsraodemdiaranddoor-ensoes aaionpdoarutumnirdoatedieroetourpírsatizceorfdaenptáasrttiiccoip. Eanrmtãoos, vdaemstaoisnaédeiltea! aventura sem sairmos de casa, deixando-nos a emoção de cada pedalada, o carinho do cMoinltvoívnioCadrolossaDdemlliaraGdioursetisnae ainda um roteiro turísticoCfaamntpáesãtoicbora. Esilnetirãooe, vamos a ele! panamericano de ciclismo Milton Carlos Della Giustina Campeão brasileiro e panamericano de ciclismo 14
Prólogo Em Clervaux, uma sopa especial
B– résiliens! Exclamou a velha senhora A senhora que nos atendeu parecia com ar de espanto. Sim, somos bastante velha. Vestida de negro, com um brasileiros, respondi em francês. lenço na cabeça e um avental de um tecido cinzento, tinha uma aparência cansada e Perguntei-lhe, em seguida, se tinha um pobre. Falava, entretanto, francês e alemão. quarto para alugar. Respondeu que sim e Como falava mais sozinha do que conosco, fez um gesto para que entrássemos logo. A pareceu-nos que não batia muito bem da senhora nos indicou um canto onde bola. Talvez fosse a idade... poderíamos deixar as bicicletas e a seguir mostrou-nos o quarto. Este possuía uma A casa era pequena e antiga. Nesta cama de casal, uma cômoda e espaço para região da Europa é costume as pessoas que estender no chão os sacos de dormir. têm um quarto vago colocarem um Achamos excelente. O preço pedido por anúncio na porta, indicando “Zimmer uma noite era meio caro, mas aceitamos. Free”, isto é, quarto livre. Com isto obtêm Estávamos cansados demais para sair uma renda extra e resolvem o problema procurando outro local para dormir. de muitos viajantes que carecem de Tínhamos pedalado cerca de 145 km, uma alojamento. de nossas maiores etapas, por estradas sinuosas, cheias de vales e pequenas serras. Tomamos um banho e perguntamos Era hora de descansar, por isso tratamos à senhora onde poderíamos comer. de desmontar as bicicletas e levar as bagagens para o quarto. Eram 19 horas e Ela indicou-nos um restaurante, no já estava escuro. centro da cidadezinha. Saímos. Tudo estava deserto. Até o restaurante indicado não 17
apresentava nenhum sinal de vida. Nossa Famintos e cansados, resolvemos voltar fome era grande, pois havíamos nesse dia para a casa onde havíamos alugado o partido cedo de Aachen, na Alemanha. quarto na esperança de conseguir alguma Viajamos por uma região montanhosa, coisa para comer. Chegando, tratamos de entrando na Bélgica e seguindo em direção explicar à velha senhora a situação que a Luxemburgo. Esse é um pequeno país, com enfrentávamos. Éramos ciclistas e pouco mais de 100 km entre seus extremos estávamos fazendo um giro pela Europa, norte e sul, espremido entre a França, visitando vários países. Nossas energias Alemanha e Bélgica. precisavam ser refeitas e era fundamental A região era linda. Programamos termos uma boa alimentação. dormir numa cidadezinha encravada entre Perguntamos se ela poderia nos montanhas, junto a um vale muito bonito, preparar algo para comer. A princípio a cheio de pequenos rios e cachoeiras, senhora relutou. Resmungou algo em chamada Clervaux. francês que não compreendemos bem. Nossa pretensão era chegar no dia Parecia nos dizer que tudo já estava seguinte a Luxemburgo, capital, situada a fechado e que não havia o que comer. Após cerca de 70 km do local onde nos insistirmos, ela respondeu meio a contra encontrávamos. A temperatura nesse gosto que poderia preparar uma sopa, começo de noite, já em pleno outono, pois indicando que cada porção, uma pequena estávamos no mês de outubro, era baixa, tigela que tinha nas mãos, custaria cerca cerca de 10 a 12 graus. de 46 francos belgas, um absurdo, mas 18
como nossa fome era grande, topamos. A cerimônia, sentamos. O cheiro era muito senhora foi para a cozinha, enquanto nós gostoso. A mulher voltou para a cozinha, ficamos na sala de visitas da casa. mas ficou observando como tomávamos a sopa com rapidez. Num curto espaço de As paredes eram cobertas de fotos, tempo as tigelas estavam vazias. A senhora, algumas pinturas e diversas cabeças então, num gesto para nós surpreendente, espallhadas de animais selvagens. A luz era foi ao fogão, pegou a panela com o resto fraca. Os móveis eram velhos e de sopa que preparara, tomou uma concha desgastados, porém conservados. Enfeites e trouxe para nós. Sirvam-se, disse com um antigos e variados espallhavam-se sobre os sorriso encantador. Rapidamente limpa- poucos móveis. O ambiente assustava um mos a panela e comemos todo o pão. pouco, mas logo um cheiro animador Depois desta sopa, que para nós parecia inundava a casa. A sopa prometida, um jantar, estávamos recuperados. misturada com nossa fome, já nos fazia Agradecemos à senhora, desejando-lhe sonhar. Estávamos em silêncio, Murilo e boa noite e fomos para o quarto. Hercílio, meus companheiros, pareciam que cochilavam. Enquanto estendíamos os sacos de dormir, ligamos o toca-fitas, som do Brasil A mulher entrou na sala com uma (Milton Nascimento). Conversamos um bandeja nas mãos onde estavam três tigelas pouco, mas rapidamente o cansaço e o de sopa fumegante e três pães de trigo sono nos invadiram. Deitado, comecei a pequenos. Ela colocou a bandeja sobre a rever diversas passagens de nosso giro pela mesa e convidou-nos a sentar. Sem 19
Europa. Recuperei na minha mente muitas etapas do projeto. Não sei se sonhava ou se estava consciente. Com o passar do tempo, adormeci... 20
Capítulo 1 Sonhando no Brasil
E stávamos iniciando mais um um giro de bicicleta pela Europa. Acho que semestre letivo na Universidade nossa primeira conversa sobre o assunto Federal de Santa Catarina, em 1985. aconteceu num domingo à tarde, quando Um semestre louco, fora de época. Isto lanchávamos, no meio de uma sessão de porque, em 1984, a Universidade havia estudos. Falei, na ocasião, sobre a ficado paralisada durante três meses. A oportunidade e a conveniência do giro, recuperação de aulas durante 1985 pois na Europa o ciclismo é bastante envolveu os meses de fevereiro, julho e valorizado. É comum pessoas viajarem de dezembro, tradicionalmente ocupados por bicicleta, fazendo o que se chama de ciclo- férias. Para os estudantes, a continuidade turismo, ou usar a bicicleta para visita aos das atividades escolares quase sem locais turísticos das cidades. O ciclismo, interrupção dificultava bastante a como esporte, é avançadíssimo. Seus aprovação nas matérias mais difíceis. A astros e competições mais importantes são greve também havia desesperançado populares. Hercílio escutou com bastante muita gente, e o clima na Universidade era atenção e comentou ao final que era uma de crítica e de aborrecimento. Volta e meia, boa idéia, apesar de achar difícil surgiam ameaças de novas paralisações. concretizá-la, e que topava. Foi nesse quadro que comecei a Voltamos a falar diversas vezes sobre conversar com Hercílio, meu companherio a idéia do giro. Isso entremeando as horas de estudos e parceiro em minha equipe de de estudo, pois tínhamos tarefas e mais ciclismo, sobre a possibilidade de fazermos tarefas para vencer. Os momentos de 23
devaneio sobre o giro quase nos apareciam pelo Mediterrâneo. Calculamos que um como descanso ou sonho. O Brasil roteiro como este significaria pedalar cerca atravessava uma fase difícil. A população de nove a dez mil quilômetros. Imagi- estava bastante desesperançada, após a namos que o tempo mínino para isso seria morte de Tancredo Neves. As lutas pela uns cem dias. Isto significava ter que trancar redemocratização, as passeatas, os grandes um semestre letivo. Aí começamos a levar comícios, pareciam ter perdido seu mais a sério nosso propósito. Parar a sentido. Talvez por isso, também sonháva- Universidade significava atrasar nossos mos. Ou será que tentávamos nos estudos, mas em compensação teríamos enganar? Aos poucos, porém, a idéia do mais tempo para cumprir o roteiro que giro foi se transformando no único assunto estávamos traçando. Significava também que tínhamos prazer em conversar. uma decisão mais pensada, amadurecida. Começamos, então, a procurar alguns Seria isto um sonho impossível, ou uma mapas da Europa e traçamos a volta que loucura, como já diziam alguns de nossos nos parecia possível. Decidimos partir de amigos? Que diriam nossos pais? Antes, Portugal, mais precisamente de Lisboa, sempre tomávamos conhecimento de terra de nossos ancestrais. Daí iríamos para aventuras pelo mundo afora através dos a Espanha, França, Bélgica e Holanda, livros, notícias de jornais e revistas. Gente ponto extremo-norte de nosso giro. que dava a volta ao mundo e ao país de Cortaríamos a Alemanha de norte a sul, moto, bicicleta, a pé, de barco... Que atravessando a Suíça e chegando à Italia, motivos levavam tais pessoas a tomarem até Roma. Daí regressaríamos a Lisboa, tais iniciativas? 24
Tínhamos muitas dúvidas. Qual o Olhamos amigos e parentes vivendo uma nosso objetivo ao decidir fazer um giro vida considerada normal. Crescem, ciclístico pela Europa? A troco de que estudam, arrumam emprego, casam, têm queríamos fazê-la? Afinal, tínhamos, filhos, vivem uma rotina. Um saco... Hercílio e eu 20 anos; freqüentávamos uma Universidade considerada elitista; nos Libertação, essa é a palavra, indepen- dávamos ao luxo de sermos ciclistas, dente de sermos ou fazermos parte de um utilizando equipamentos importados; país cuja sociedade impõe regras e roupas. enfim, tínhamos um padrão de vida que Com o giro, romperíamos a rotina, ou pelo poderia ser considerado de classe média menos a adiaríamos. Teríamos um espaço alta. Por que não irmos a uma companhia de tempo para fazer coisas diferentes e de turismo e acertar um roteiro turístico novas, conhecer e conviver com outras para visitar a Europa? Por que tentar fazê- pessoas, outros povos. Nossa determi- lo de bicicleta, onde enfrentaríamos nação, a essa altura, nos parecia fora do milhares de quilômetros confiando apenas comum. Às vezes, tínhamos a sensação de na força motriz de nossas pernas e estarmos sendo apoiados por alguma força equipamentos? interior, que em nenhum momento nos abandonava e sempre fazia com que nos Enfrentar chuva, frio, montanhas, sentíssemos mais seguros. Nossa vida trechos praticamente desérticos e muito estava mudando. A rotina a que estávamos calor? Em nossa idade é comum a acostumados havia acabado. De uma hora interrogação, a reflexão sobre a vida. para outra, acordamos para uma nova 25
forma de olhar a vida, encarando a história Pintamos um projeto esportivo-cultural que de nosso país e o progresso tecnológico de julgávamos inédito. Sem falsa modéstia, uma maneira nova. Víamos tudo através defendemos muito bem a proposta que da proposta que tínhamos em mente. estava desenhada em nossas mentes. Meu Um dado fundamental para que pai se empolgou, fez comentários e levantou pudéssemos prosseguir com nosso algumas questões. Mas tudo em função da propósito era a aprovação de nossos pais. execução da proposta. O sonho começava Hercílio e eu combinamos conversar com a se tornar realidade. meu pai num final de semana. Queríamos Tratamos de falar com “Lélico”, pai de apoio para prosseguir; caso contrário, tudo Hercílio, e sua esposa, Dona Marli. Pelo fato ficaria reduzido ao sonho. Confiantes e um de Hercílio ser filho único, a idéia de ficar tanto formais, apresentamos ao meu pai a seis meses fora de casa certamente proposta, tal qual havíamos discutido. assustaria seus pais. Ao encontrarmos o Falamos da aventura, destacando a melhor momento para essa conversa, oportunidade de contatos com ciclistas entramos no assunto com entusiasmo. A europeus, com clubes e federações de princípio Dona Marli não se interessou ciclismo. Colocamos a possibilidade de muito, mas “Lélico”, com um sorriso visitas às diversas universidades européias, irônico, que eu não sabia se gozava Hercílio ampliando nossa visão de estudantes e ou contrariava sua mulher, disse: “Estou de estimulando o intercâmbio entre essas acordo; pago pra ver!”. instituições e a nossa Universidade. 26
Isso aconteceu em meados de maio de teríamos mais tempo de convívio, e ele 1985. Motivados pela aceitação da idéia por maior entrosamento com o projeto. Meu parte de nossos pais, tratamos logo de fazer pai e “Lélico” também achavam que o um cronograma, distribuindo o tempo em número adequado seria três. Em caso de função dos contatos e providências que acidente com um membro do grupo, havia logo deveríamos começar a tomar. A idéia a possibilidade do terceiro elemento ir deveria ser concretizada com o máximo de buscar socorro. Nós concordamos, patrocínio, já que, de acordo com um pensando mais na distribuição de tarefas, grosseiro orçamento que fizéramos, em tanto na fase do projeto, quanto durante o que calculamos tudo o que gastaríamos de próprio giro. Começamos então a contatar acordo com o tempo que passaríamos lá, com nossos companheiros de ciclismo, teríamos que ter uma boa grana. Isso imaginando que não teríamos dificuldades implicava correr atrás de empresas em encontrar um novo parceiro. patrocinadoras, definir a proposta e seus Enganamo -nos. Talvez por falta de custos, manter dezenas de contatos para credibilidade em nossos propósitos, obter as informações de que precisávamos. somente quatro meses após é que Murilo Mas, acima de tudo, era essencial definir a Krüger se juntou a nós. equipe, pois assim seria mais fácil distribuir as tarefas, fazer o orçamento, enfim, dar Em uma noite, quando na casa de continuidade ao projeto com maior Hercílio comemorávamos nossa vitória nos segurança. Além disso, com o rápido Jogos Abertos de Santa Catarina, Murilo se engajamento do terceiro integrante, aproximou e começou a me perguntar 27
como ia o projeto. No decorrer da conversa mos a contatar com diversas empresas de seu interesse foi aumentando, e algumas São Paulo. Em outubro, junto com o nosso semanas depois ele se integrava como técnico e amigo, Milton C. Della Giustina, terceiro membro da equipe. viajamos para São Paulo, com o objetivo A esta altura tínhamos mantido contatos de manter algumas entrevistas com com diversos setores da UFSC, em particular empresas potencialmente colaboradoras. com o Escritório de Assuntos Internacionais, Procuramos na ocasião o então presidente objetivando obter apoio para a troca de da Confederação Brasileira de Ciclismo e correspondência com universidades diretor-presidente de importante empresa européias e federações de ciclismo. do setor de ciclismo, que entretanto achou Havíamos definido nosso projeto com o projeto inviável. Outros contatos o título Giro ciclístico visitando também se mostraram improdutivos. Na universidades européias, incluindo o melhor das hipóteses, tivemos respostas currículo de cada um e o roteiro a ser como: “Bem, vamos estudar”. Regressamos seguido, com respectivas quilometragens, a Florianópolis abatidos, mas não calendário, programa e objetivos. Esse desanimados. projeto era fundamental como meio de Na verdade, à medida que discutíamos apresentação e venda de nossa idéia para a proposta, que aprofundávamos nas futuros colaboradores. sutilezas, que definíamos o roteiro e o Tínhamos um longo caminho a equipamento, a necessidade de concretizá- percorrer. Com o apoio da UFSC, começa- la se fortalecia cada vez mais. Começamos 28
então a efetivar reuniões semanais com Assim o projeto foi tomando sua forma 29 todos os membros da equipe, com o definitiva. Discussões enormes relativas a objetivo de trocar idéias e de começar uma certos problemas foram superadas. convivência mais profunda. O projeto Algumas cartas, em resposta às mensagens dependia muito da harmonia de seus enviadas pela UFSC, chegaram. Quatro participantes. Apesar de sermos amigos, universidades estavam dispostas a nos tínhamos a consciência de que, durante o receber e apoiar. Algumas federações de dia-a-dia e enfrentando situações adversas, ciclismo também nos responderam, teríamos motivos para possíveis desen- fazendo indicações preciosas. Como início tendimentos. Sabíamos que a partir do de conversa, dava para manter o ânimo. início do giro, dependeríamos um do Insistimos, novamente, junto à Confede- outro, e as decisões teriam que ser obtidas ração Brasileira de Ciclismo, conseguindo por consenso ou na base da maioria um contato com o Conselho Nacional de democrática. Sempre deveria ter alguém Desportos, que manifestou interesse na que servisse como mediador. Começamos, proposta. A partir daí, a imprensa começou também, uma vez por mês, a fazer reuniões a se interessar. As entrevistas com as conjuntas com nossos familiares, onde empresas potencialmente patrocinadoras acertávamos alguns detalhes e podíamos começaram, pelo menos, a ficar mais comer algo diferente, pois passaríamos seis fáceis. Através da CBC, chegamos à meses sem essas regalias. Aos poucos, Secretaria de Educação Física e Desportos também nossas famílias foram assumindo do MEC, que enquadrou nossa proposta parte de nossa proposta. num programa de aproximação esportivo-
cultural, desenvolvido por aquele órgão. A muito caro importá-las. Restava-nos agora UFSC reforçou essa aproximação, fazendo descobrir quem as fizesse. Após algum a solicitação de três passagens aéreas Fpolis- tempo pesquisando em diversas fábricas, Lisboa-Fpolis. A IBM do Brasil nos deu uma sem sucesso, percebemos que devido ao pequena, mas muito importante, contri- ineditismo de nossa proposta as coisas não buição financeira. A empresa de proprie- seriam tão fáceis. dade de nosso técnico e colaborador, Cicle Por meio de um amigo, chegamos a Della Giustina, concordou também em Juan Carlos Iudice que possuía um pequeno financiar parte do projeto. Em seguida, Doll atelier em Coqueiros – Cormoran Artigos Produtos Naturais, empresa local, Esportivos – e era especialista na confecção assegurou uma parte ponderável dos de produtos emborrachados e impermeá- recursos necessários para a compra de veis. Entramos em contato com ele e, após nossos uniformes e roupas especiais. muita conversa, o mesmo aceitou o desafio Precisávamos, ainda, resolver o problema de fabricar as bolsas, achando que seria das bolsas que utilizaríamos durante o giro ótimo como meio de divulgar seu trabalho. e que iriam acopladas às bicicletas, já que Ao mesmo tempo, estávamos no Brasil não existem equipamentos do estudando uma maneira de adaptar às gênero. Após uma troca de correspodência nossas bicicletas de corrida os suportes com uma loja especializada em materiais necessários para fixar as bolsas que Juan para cicloturismo nos EUA, recebemos prometera confeccionar. Nossas bicicletas diversos catálagos com modelos e preços. tinham que ter auto-suficiência para 30 Decidimos copiá-las, já que nos custaria
transportar a nós e a todo o nosso com uma fábrica de São Paulo a sua equipamento. Muitas discussões tivemos confecção. Mais algumas viagens foram feitas com alguns companheiros de ciclismo e nelas outras tentativas de patrocínio foram sobre a resistência e futuro desempenho realizadas. O CND comunicou à UFSC, em de nossas bicicletas. Concluímos que as abril de 1986, que o auxílio para nossas mesmas agüentariam. Todas eram passagens estava aprovado. Dia de glória! O importadas e apesar de serem próprias tempo voava e os quesitos básicos estavam para competição, eram resistentes e tendo respostas positivas. Em resumo, a IBM funcionais. Além disso, teríamos a do Brasil, juntamente com o Doll Produtos vantagem do baixo peso. Com base nos Naturais e o Cicle Della Giustina, entravam catálogos americanos, fabricamos os com uma ajuda financeira. A Olímpico suportes onde seriam colocadas as futuras Tubulares entrava com um estoque de pneus bolsas. Os mesmos foram feitos com perfis e a Cormoran Artigos Esportivos entrava com de alumínio. Um suporte exclusivo. as bolsas, equipamentos de emergência e capas impermeáveis. Um mês antes da Através de nosso técnico, entramos em partida, prevista para o início de julho, o contato com a Olímpico Tubulares, Governador do Estado, Esperidião Amin, fabricante de pneus de competição. recebeu-nos em audiência e autorizou a Obtivemos o compromisso do fornecimento concessão de um auxílio financeiro, para de quarenta pares de pneus (tubulares), fazer frente à parte das despesas de necessários ao giro. Definimos nossos manutenção. O resto, o principal que faltava, uniformes e roupas especiais e acertamos 31
seria por conta dos “paitrocinadores”. E não iríamos enfrentar. Estudamos a história da era pouco: cerca de 2.500 dólares para cada Europa e nos aprofundamos em sua um. Calculávamos, por alto, que no mínimo geografia. Havíamos entrevistado diversas nossas despesas diárias com alimentação e pessoas que conheciam a Europa. O pernoite ficariam em torno de 15 dólares por equipamento já estava pronto e as bicicletas pessoa. estavam pintadas e revisadas pelo pessoal Através do setor de Comunicação do Cicle Della Giustina. Começamos a Social da UFSC, confeccionamos um folder pensar num teste. O tempo voava. sobre o nosso giro, apresentando em Conseguimos montar todo o equipamento português, francês, alemão e italiano a e circular até Santo Antônio de Lisboa, uma nossa proposta. A divulgação na imprensa pequena comunidade da Ilha, distante cerca ficou facilitada e no futuro, durante nossa de 15 quilômetros do centro. Ali montamos viagem, esse folder seria muito útil como nossa barraca e testamos os sacos de dormir. meio de apresentação nas universidades, Havia entusiasmo, mas o peso do federações de ciclismo e embaixadas. equipamento e a falta de equilíbrio das Havíamos feito um grande avanço no bicicletas nos deixaram bastante assustados. que se referia ao projeto. Podíamos falar Faltavam poucos dias para a partida, horas e horas sobre o roteiro que iríamos quando conseguimos fazer um seguro cumprir. Tínhamos feito um curso intensivo saúde. Há meses, procurávamos em vão de francês e meu inglês estava afiado. informações para efetivar o seguro. Sabíamos quase tudo sobre o trajeto que Acabamos resolvendo a questão a partir de 32
um contato com a Sra. Leonida, da Emcatur. tação para o Vaticano; visitas de familiares Ela ligou para Blumenau e lá acertou com e amigos. Os dias foram passando e a outra empresa de turismo o nosso seguro confusão aumentando. Começamos a saúde por seis meses. Fizemos mais um preparar nossas bagagens, separando exame médico completo. Tudo ok. roupas e equipamentos. Os problemas de equilíbrio com as bicicletas já haviam sido No último final de semana, antes da resolvidos. partida, houve uma confraternização com nossos colaboradores, amigos, compa- O dia que precedia ao embarque foi nheiros de ciclismo e nossos familiares. A reservado para uma confraternização mais Federação de Ciclismo local também íntima com a família, pois tínhamos patrocinou um churrasco, precedido de uma passado as últimas semanas numa agitação missa na Igreja da Boa Viagem. Os incentivos muito grande e não tínhamos tempo foram muitos, acompanhados de mensagens suficiente para nos dedicar aos nossos de garra e força. parentes mais próximos. Na segunda-feira, última no Brasil, a Manhã de oito de julho. Acordei às sete agitação aumentou. Contatos com a horas, o dia estava nublado. Minha imprensa; com o Governo do Estado para ansiedade era grande. Mal acabei de tomar receber o prometido auxílio financeiro; café e a Kombi da UFSC, que estava recebimento de uma bênção especial do programada para pegar minhas bagagens Arcebispo Metropolitano, Dom Afonso e as bicicletas em minha casa, chegou. Niehues, acompanhada de uma apresen- 33
Acabei de me arrumar, carregamos a determinação, era isso que sentíamos nesse Kombi e segui para o aeroporto. Murilo e momento. Hercílio seguiam direto de suas casas. Ao subirmos as escadas do Boeing da Conversando com o motorista, respondi Varig que nos levaria a São Paulo, num algumas perguntas sobre nossa viagem. gesto de otimismo, vitória e união, Falei confiante, dando detalhes do paramos de mãos dadas, erguemos nossos equipamento e do longo planejamento que braços, saudando a todos os amigos e havíamos feito. Mas acho que meu parentes, que da sacada do aeroporto nos entusiasmo escondia muitos temores. acenavam. Às nove horas da manhã o Chegando ao aeroporto logo fui avião sobe, cruzando minha querida envolvido por amigos, familiares e toda a Florianópolis. Passam imagens incríveis em turma do ciclismo. O clima era de euforia minha cabeça. Desde que conversei com e de controle. Ninguém queria se deixar Hercílio pela primeira vez, mais de um ano levar pela emoção. Queríamos mostrar que se passara. Percebi que nossa passagem na havíamos mudado. Após tantas barreiras terra é bem mais rápida do que até então vencidas, queríamos parecer seguros, pensara. O avião também era rápido. maduros e determinados a concretizar a Chegamos a São Paulo, pegamos as aventura. bagagens e fomos para o balcão das Linhas Dá-se a chamada para o embarque. O Aéreas Paraguaias para despachá-las. Os volumes eram grandes, pois nossas último abraço cada um de nós reservou bicicletas estavam acondicionadas em 34 para nossos pais. Ternura, firmeza e
caixas de papelão. As bolsas de cada um Assunção, Recife, Ilhas Canárias, Madrid e estavam reunidas em três sacos de viagem. Lisboa. A previsão era de trinta horas de Entramos na fila. Apesar de cada um de nós vôo. ter uma bolsa de mão, onde estavam as peças de reposição, objetos pessoais e a Encontramos no aeroporto o barraca, ou seja, os objetos mais pesados, Alexandre Füllgraff, nosso companheiro de quando fomos fazer o despacho, ciclismo, que treinava em São Paulo. Por verificamos que tínhamos excesso e isso, tivemos um almoço que nos pareceu teríamos que pagar uma boa grana. Saímos uma nova despedida. Apesar de ansiosos da fila e discutimos a questão. Resolvemos com a partida, o clima era de descontração então comprar uma outra bolsa de mão e e otimismo. Uma sensação estranha nos transferir dos sacos de viagem uma parte invadiu quando foi dada a chamada de ponderável de carga. Escolhemos o que era embarque para o nosso vôo. Despedimo- menos volumoso e mais pesado. Depois nos de Alexandre. Tudo ao nosso redor voltamos para a fila. Agora, conseguimos fazia-nos pensar: chuva, frio, Brasil. Era o o despacho sem ter que pagar excesso. nosso último momento no país, pisando Primeiro “drible”. em solo brasileiro. O que viria depois, não cabia a nós saber. Poderíamos somente O avião partiria às treze horas, via esperar... Assunção. A LAP foi escolhida porque oferecia o preço mais vantajoso. O roteiro, entretanto, era tortuoso; São Paulo, 35
Capítulo 2 Em Lisboa, o início da aventura
E ram aproximadamente dezenove tralha. Foram sete quilômetros até a rua horas do dia nove de julho quando Andrade Corvo, local do Albergue. Em aterrissamos em Lisboa. O sol ainda nossas cabeças uma sensação de vitória estava alto, pois estávamos em pleno verão por termos chegado até ali, ultrapassando europeu. A temperatura era de 37’2 oC. tantas barreiras, que nem se comparavam Havíamos feito escala em Madrid, viajando às que teríamos que passar no decorrer do em conexão com a Ibéria. giro. Mas assim mesmo o astral era altíssimo. No aeroporto, fomos recebidos por Mauro Bueno e Cristina. Mauro era amigo Chegando ao Albergue da Juventude de Murilo e agora encontrava-se em (A.J.), uma antiga casa de dois pavimentos, Lisboa, realizando um estágio na Cruz fomos atendidos pelo responsável que nos Vermelha. Os dois haviam trocado algumas indicou o número de nossos beliches e correspondências e Mauro, juntamente colocou-nos a par das normas do mesmo. com sua amiga Cristina, nos aguardava. Atualmente o número de jovens freqüen- Após pegarmos as bagagens e conferir se tadores desses Albergues na Europa é tudo estava em ordem, montamos as muito grande, existindo inclusive uma bicicletas no saguão do aeroporto e associação internacional que congrega partimos em direção ao Albergue da todos os Youth hostels do mundo. Juventude, onde tínhamos reserva. Mauro nos acompanhou de carro e, para facilitar, Pegamos nossas bagagens com Mauro levou os sacos de viagem com toda a nossa e combinamos um contato para o dia seguinte. Estávamos cansados e famintos, 39
pois havíamos viajado cerca de 29 horas. entrevista marcada com a administração. Por isso tratamos logo de organizar nosso Visitamos boa parte da instituição, falamos equipamento, para então podermos comer com diversos professores e estudantes e e dormir. almoçamos no restaurante universitário No dia seguinte, saímos passeando pela (RU). Somente durante o almoço, em meio cidade logo pela manhã. Lisboa é uma a uma conversa, é que lembramos do cidade de tamanho médio. Avenidas bem aniversário do Murilo. lsto foi motivo de sinalizadas cortam a parte nova da cidade. comemoração e de brindes, com suco de A parte velha, chamada cidade alta, tem laranja, pois era a única bebida disponível. ruas estreitas e casarões antigos. É uma No final da tarde, regressamos ao A.J. cidade agradável, localizada às margens do Mauro havia deixado um recado, avisando rio Tejo, tendo praias famosas como que nos esperava para jantar. Murilo ligou Cascaes e Estoril. Como era verão, o para ele e não acreditou: Mauro estava no movimento turístico era grande. Alemães, Sheraton Hotel com Cristina e para lá nos franceses, belgas, entre outros, costumam convidava. O Hotel era vizinho do vir a Portugal, principalmente para a região Albergue, a distância era de luxo, conforto do Algarve, ao sul, sobre o Mediterrâneo, e preço. Mauro havia lembrado do porque o custo de vida é bastante acessível. aniversário e Cristina, que era hóspede do Pelas dez horas, chegamos à Universi- Hotel, logo sugeriu o convite. Foi uma bela dade Técnica de Lisboa, que mantém comemoração para nosso primeiro dia em convênio com a UFSC. Ali tínhamos uma Lisboa. Teve até parabéns a você, acompa- 40
nhado de torta de morangos. Um sarro, compromissos já estavam cumpridos. mal acreditávamos... Segundo nosso calendário, estava na hora da partida. Começamos a nos despedir dos Nos dias seguintes, tivemos oportuni- amigos que recentemente fizéramos, de dade de conhecer os principais pontos da Mauro e Cristina, e a arrumar nossas cidade: Mosteiro dos Jerônimos, a Torre de bagagens. Resolvemos partir à tarde, pois Belém, Monumento dos Descobridores, com o sol se pondo às nove e meia da Rossio e Forte, entre outros. Fomos “noite”, enfrentaríamos uma temperatura também aos balneários de Cascaes mais amena, e também por ser esta e Estoril. E a cidadela de Sintra. primeira etapa, até Vila Franca de Xira, bastante curta. Já estávamos adaptados ao Paralelamente, tivemos um contato clima, ao A.J., e à alimentação. No dia com o Prof. George Agostinho da Silva, seguinte, quatorze de julho, após horas amigo de meu pai e respeitado intelectual. arrumando e distribuindo as bagagens nas Ofereceu-nos um jantar, oportunidade em bolsas, partimos em direção à Vila Franca que muito nos incentivou. Fizemos uma de Xira, cerca de 35 quilômetros de Lisboa. grande amizade e com ele deixamos algumas roupas e equipamentos que, A temperatura era alta, beirava os 38o, então, julgávamos ter trazido em excesso. e tínhamos pela frente mais ou menos Demos também algumas entrevistas para cinco horas de sol forte. Não tivemos muita a imprensa local. dificuldade para sair de Lisboa, pois nos dias que passamos ali, havíamos dominado Já se haviam passado cinco dias desde a nossa chegada, e todos os nossos 41
o trânsito. As bicicletas, agora equipadas preço, comer alguma coisa e ir direto com as bolsas, estavam bastante pesadas. dormir, pois o cansaço era grande. Em média, cada de um de nós transportava Já deitados, conversamos um pouco a cerca de 12 quilos. O trecho foi vencido respeito da sofrida etapa. Discutimos com dificuldade, pois esse era o primeiro bastante, pois teríamos que começar a nos que percorríamos equipados. Logo de superar para não nos abater mais daquele início já tivemos o nosso primeiro pneu jeito e prometemos a nós mesmos nos furado. Atravessamos toda a zona esforçar ao máximo para manter o astral industrial de Lisboa, região muito sempre alto. Tínhamos um longo caminho movimentada e poluída. Como o calor era a percorrer e não podíamos iniciar assim. forte, chegamos à Vila Franca de Xira Dormimos logo, pois na manhã seguinte abatidos e chateados. teríamos uma longa etapa a cumprir. Procuramos, logo de início, um local Demos uma pequena parada na para armar nossa barraca. Tentamos armá- estrada a caminho de Leiria. O calor era la em um parque da cidade, mas fomos terrível, mas estávamos irreconhecíveis se avisados por um senhor, que era comparados ao dia anterior. Era uma etapa responsável pelo mesmo, que ali não longa, cerca de 85 km. Passaríamos ainda poderíamos acampar. Por isso, a única em Fátima onde pretendíamos rezar um opção que nos restava era procurar uma pouco e descansar. pensão. Após muito procurar, chegamos a A chegada a Leiria se deu no tinal da uma e, sem demora, tratamos de acertar o tarde, fomos direto para o A.J. e consegui- 42
mos vaga sem problemas. O mesmo estava Ficamos aí por dois dias, tempo praticamente vazio e logo fizemos amizade suficiente para descansar e conhecer a com Ilda, a responsável. cidade. Leiria é uma cidade pequena, mas Partimos cedo de Leiria em direção a bastante agradável. É extremamente Coimbra, querendo evitar o calor. tranqüila, com o castelo de Dom Diniz localizado no centro, ponto mais alto da Triste ilusão. Nossa chegada a Coimbra cidade. Ela é bastante antiga e conta muito foi dramática, pois chegamos cerca de da história de Portugal e da expulsão dos treze e trinta com uma temperatura de mouros. 44 oC, a mais alta de todo o giro. Por sorte, logo na entrada da cidade encontramos Lá conhecemos Carlos Vieira, um ex- indicações da Cantina Universitária e em ciclista que há algum tempo havia ido até seguida a achamos. Chegamos quinze Roma de bicicleta. Durante a conversa o minutos antes de seu fechamento e mesmo nos perguntou onde estava o nosso comemos a valer. Como não havia A.J. em carro de apoio. Falamos que não tínhamos, Coimbra, tratamos logo de nos informar que viajávamos sozinhos. Ele nos olhou sobre uma pensão de bom preço. Um espantado!. Quando lhe mostramos nosso funcionário da cantina nos deu uma boa folder indicando a volta que daríamos, orientação. Observamos que nossa disse: – Vocês são malucos... Tenham uma receptividade era ótima entre os Boa Sorte! portugueses. Talvez pelo fato de estarmos realizando tal giro, acho até que muitos se 43
sensibilizavam por verem nossa disposição com quem ir, já que o Palácio São Marcos, e também por sermos brasileiros. local do jantar, distava vinte quilômetros Lá chegando, uma surpresa: o dono da do centro de Coimbra. Respondi que não, pensão era um brasileiro. Garantimos um pois viajávamos de bicicleta. Fátima se bom quarto e um ótimo desconto. surpreendeu e, tal qual Carlos Vieira em Leiria, nos chamou de malucos. Ali tínhamos um encontro com Ana Ganhamos a carona. Hercílio falou para Mendes, nossa amiga e tia do Alexandre Ana que tudo estava resolvido e que já que, como juíza de Direito, estava em sabíamos como ir. Coimbra realizando um curso naquela famosa Universidade. Por telefone O encontro com Ana foi ótimo. Ela nos contatamos com ela, que nos convidou apresentou a diversas pessoas, inclusive ao para participar, à noite, do jantar de reitor da Universidade. Conversamos encerramento do referido curso. muito. Todos nos incentivavam. O jantar Paralelamente, enquanto Hercílio foi servido por volta das 22 horas. Estava prolongava a conversa com Ana, próximo, excelente. Foi o melhor bacalhau já uma jovem com prováveis 25 anos, saboreado por nós. Sem dúvida, comentava que também iria àquele jantar. sentiríamos saudades. Começamos a conversar. Tratava-se de Tarde da noite, nos despedimos do Fátima, uma brasileira que também reitor, dos professores, de Ana e seus participava do mesmo curso. Durante a amigos e regressamos, novamente de conversa, ela me perguntou se tínhamos carona, com Fátima para a pensão. 44
Na manhã seguinte, após uma breve Chegávamos tão cansados e loucos por passagem pela Universidade, pois lá não uma cama que não tínhamos condições de tínhamos nenhuma visita oficial, procurar um lugar para montá-la. Sem seguimos para a cidade de Gouveia. falar nos fatores de conforto, segurança, Estávamos em pleno interior de Portugal etc. [...] Resolvemos vendê-la na primeira a caminho de Espanha. Pedalamos oportunidade que pintasse. praticamente durante todo o dia. A região é muito bonita, com vales e Partimos para Guarda, distante vilarejos tranqüilos e calmos. cinqüenta quilômetros da fronteira com a Espanha. A chegada foi comemorada. Nos lugares onde parávamos para Era a nossa última noite em Portugal e pegar água, todos nos saudavam e estávamos felizes, porque o roteiro que cumprimentavam. tantas vezes percorremos através de mapas, no Brasil, começava agora a se Isso era para nós muito importante, concretizar. As cidades e vilas por onde pois mantinha a moral elevada. passávamos nos pareciam familiares e materializavam nosso sonho. Sabíamos Ao chegarmos a Goveia, dividimos o que teríamos saudades de Portugal e de pequeno quarto que alugamos com nossas seu povo, não só pelo idioma, mas inseparáveis bicicletas. Após comermos, também porque tínhamos certeza de que apagamos... esse era o país com o custo de vida mais baixo da Europa. Entretanto, o fato de Já estávamos pensando em nos desfazer de nossa barraca, pois era um peso 45 extra que não estávamos utilizando.
estarmos conseguindo cumprir o roteiro Partimos rumo a Ciudad Rodrigo, já na erá compensador. Espanha, num bonito e escaldante dia... As bicicletas estavam agüentando Bye, bye, Portugal, até a volta... bem. Todos os dias, após cada etapa, nós as revisávamos e regulávamos. Os bagageiros e as bolsas também estavam se portando bem. O único fato que nos deixava um pouco intranqüilos era o alto índice de pneus furados. Tínhamos pedalado até aqui 450 quilômetros e estávamos furando mais pneus que o previsto. Isso era plenamente explicável devido às altas temperaturas, aliadas ao peso das bicicletas. E também pelo fato das estradas nessa região, apesar de serem asfaltadas, terem muitos buracos. Esperávamos que a temperatura, assim como as estradas, a partir da França melhorassem [...] E nossos pneus também. 46
Capítulo 3 Espanha: uma travessia agitada
Chegamos na fronteira ainda cedo. mos e a mesma não mudava. Em meio a Era uma pequena vila. Carimbamos tal cenário, com um sol a pino, apesar de nossos passaportes e em seguida já estarmos perto das quinze horas, nos recebemos as boas vindas dos espanhóis. demos conta de que estávamos sem água. Após trocarmos nossos escudos por Deveríamos ter abastecido nossas algumas pesetas numa casa de câmbio ali caramanholas na fronteira, porém, na existente, prosseguimos em direção a empolgação, esquecemos, e com o alto Ciudad Rodrigo. calor nosso consumo foi além do normal. Mesmo assim, continuamos, na esperança Restava-nos ainda uns trinta de encontrar mais adiante alguma casa ou quilômetros, entretanto queríamos chegar coisa parecida. Ficamos só na esperança, cedo, pois nos últimos dias estávamos pois nada apareceu. Nossa chegada a dormindo muito tarde. A estrada, apesar Ciudad Rodrigo foi dramática; por um de asfaltada, era ruim, com muitos buracos, momento pensamos que morreríamos de além de não haver acostamento, o que nos sede na estrada deserta. Passamos um dificultava um pouco, quando da passagem grande susto. de um caminhão ou algum veículo maior. Mas o movimento era fraco. A região era Nós nos hospedamos em uma pequena extremamente seca. Não havia nada. Nem pensão em cima de um posto de gasolina. casas, nem animais, um verdadeiro Partiríamos já no dia seguinte. Sabíamos da deserto. Hercílio era o que mais reclamava existência de um A.J. na cidade de Ávila e lá da paisagem, pois pedalávamos, pedaláva- pretendíamos descansar por mais tempo. 49
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