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MdeMemória

Published by Paroberto, 2020-10-08 12:26:26

Description: MdeMemória

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M de MEMÓRIA correlatos: Prólogo; B de Borges; I de Inventário; Q de Quando; Et Cetera [Do lat. memoria] S.f. 1. Faculdade de reter as ideias, impres- sões e conhecimentos adquiridos anteriormente. 2. Lembran- ça, reminiscência, recordação. 3. Relação, relato, narração. 4. Exposição escrita ou oral de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos sequenciados. 5. A memória não deixa de ser também uma forma de imaginação.



Sempre fui meio desmemoriada na vida prática. Costumo anotar tudo num caderninho que carrego na bolsa, como uma estratégia possível contra o esquecimento: desde frases ou ideias que me ocorrem de repente, até listas de tarefas importantes para os próximos dias e coisas imediatas para resolver. Às vezes, costumo escrever bilhetes para mim mesma e deixá-los sobre a escrivaninha, preocupada com os prazos e compromissos. Por outro lado, gosto de coleções de objetos e textos que me trazem lembranças de um período da vida, de pessoas que fizeram parte de minha história, de acontecimentos prosaicos, mas relevantes. Vasculhar gavetas e arquivos, de quando em vez, faz parte desse exercício memorialístico que procuro cultivar para me manter viva em meio às urgências do agora. Tenho boa memória para as leituras feitas ao longo dos tempos, para a ordem dos livros na estante, as viagens que me gratificaram, as histórias que as pessoas me contam. Mas sei o quanto se perde também em meio a esses registros. Em janeiro de 2012, quando passei algumas semanas incons- ciente por causa da ruptura de um aneurisma cerebral, seguida de complicações de ordem vascular e uma meningite contraída nas próprias dependências hospitalares, minha memória quase se foi. Ao sair, quase por milagre, desse estado inerte e voltar para o mundo das coisas vivas, fui levada para um quarto individual. Eu não sabia o que tinha acontecido. E na confusão mental em que me encontrava, achei que aquele quarto do hospital fosse o de um hotel, e que eu estivesse em Lisboa. Ao chegar à janela e ver a larga Avenida Barbacena, com seus canteiros e árvores frondosas, não tive dúvidas: estava hospedada na Avenida da Liberdade, em Lisboa, onde já estivera outras vezes. Eu não me lembrava de absolutamente nada do que tinha acontecido comigo. E, nessa desmemória, permaneci por muitos dias. Aos poucos, fui me dando conta de onde estava e, graças à memória das pessoas próximas que tinham me acompanhado ao longo desse tempo imóvel, consegui entender um pouco do que se passava. Ainda assim, minha capacidade de lembrar não retornou enquanto estive por lá. Houve quem achasse que minha memória estivesse definitivamente perdida. José Olympio, meu companheiro, foi quem mais me ajudou a lidar com a rasura do passado remoto e imediato, que tinha se apoderado de mim. Ele não acreditava que o esquecimento tinha se tornado uma condição irreversível em minha vida e tentava me reabilitar desse estado, segundo ele, provisório. O fato é que minhas lembranças tinham sido substituídas, naquele momento, por imagens fictícias do que nunca acontecera. Por exemplo: quando uma tia me perguntou o que eu estava fazendo em Maria Esther Maciel 101

Portugal, respondi que tinha ido participar de um colóquio literário só de escritoras, organizado pelo escritor angolano José Eduardo Agualusa. O mais interessante é que eu tinha lido, meses antes do acontecido, um romance de sua autoria, As mulheres de meu pai, que fazia parte do corpus literário da tese de minha orientanda Fabrícia Walace, prevista para ser defendida no início de 2013. Mas eu estava convicta de que estava em Lisboa para participar de um evento literário só de mulheres. E até hoje me divirto com essa história. Uma vez em casa, e com o passar das semanas, minha memória foi voltando. Em menos de dois meses, eu já conseguia me lembrar de quase tudo de que me lembrava antes. Só falhava-me a memória dos dias imediatamente antes do episódio que me havia me levado a tal estado. E até hoje esses dias são uma lacuna em minha existência. Por tudo isso, vejo o exercício da memória, que este memorial agora me exige, como uma dádiva. O tema da memória, em minha vida acadêmica, sempre foi meio fragmentário. Apenas lidei com ele de forma um pouco mais contínua quando iniciei a pesquisa sobre as poéticas do inventário. Pude, em meus estudos sobre listas e coleções, deter-me um pouco mais demoradamente nesse território, valendo-me, sobretudo, de Drummond e Borges, como explicito no verbete/capítulo “I de Inventário”. Ocupei-me, igualmente, da ideia de memória como um processo de inventariar/reinventar a vida, nos textos que escrevi sobre os filmes de Eduardo Coutinho e a arte de Leonilson. Arthur Bispo do Rosário foi outro artista que me proporcionou reflexões sobre o tema. O personagem Funes, de Borges, nunca deixou de ser uma presença viva nesses estudos. Evoco-o, inclusive, num ensaio sobre a imaginação taxonômica de autores como Borges, Calvino, Perec, Greenaway e Bispo. Numa crônica que escrevi em agosto de 2013, em homenagem a José Olympio, falecido um mês antes, também me referi ao personagem borgiano para manifestar minha admiração pelas pessoas memoriosas. Mas reconheço que tenho também grande apreço pelos que sabem esquecer o que deve ser esquecido. Afinal, o que seria de nós sem o esquecimento? É exatamente onde falha a memória que a imaginação se manifesta. E o que sobra só passa a existir na condição de cacos, como mostra Drummond no seu poema “Coleção de cacos”, ao falar da condição das coisas que perduram para além de um tempo irremediavelmente perdido ou destruído. Lembro-me aqui do romance O museu da inocência, do escritor turco Ohran Pamuk, que relata uma história de amor passada na cidade de Istambul, entre a primavera de 1975 e o final do século XX. Sobre ele escrevi uma crônica, em 2013. O personagem, apaixonado por 102 Maria Esther Maciel

uma prima distante e impossibilitado de realizar efetivamente esse amor, passa a colecionar objetos pertencentes à mulher ou que, de forma direta ou indireta, evocam a existência dela no mundo. Brincos, copos, prendedores de cabelo, bilhetes de cinema, objetos de porcelana, utensílios domésticos, roupas e centenas de pontas de cigarros são alguns dos inúmeros itens dessa coleção que funciona não apenas como memória de um desejo e de um fracasso, mas também de consolo para o homem em estado de perda. A partir dessa recolha diária de coisas e cacos capazes de evocar imagens, experiências e acontecimentos, o homem constrói um museu, de forma a contar, por meio dos restos, a sua história de amor perdida no tempo. O romance evidencia, assim, que o ato de colecionar pode ser considerado também um trabalho melancólico de inventariar perdas e ruínas. Um trabalho que se afirma, como já mostrou Walter Benjamin, como uma “forma de recordação prática”, por meio da qual a coleção reúne (ainda que precariamente) os fragmentos das coisas perdidas num determinado espaço de intimidade, passando a funcionar duplamente como o registro de um passado perdido e o atestado da existência imediata (e dolorosa) de quem o perdeu. Todo memorial, nesse sentido, não deixa de ser uma tentativa de converter os fragmentos de uma história passada em uma narrativa ou um relato. Ao escrevê-lo, empreendo uma luta contra a dispersão e faço das palavras um antídoto possível contra o esquecimento ou a desmemória. Maria Esther Maciel 103



N de NÃO correlatos: E de Ensino; F de Formação; Q de Quando [Do lat. non] Adv. 1. Partícula negativa oposta à afirmativa sim. 2. Recusa; negação; renúncia; repulsa. 3. De modo ne- nhum. 4. Segundo o escritor Enrique Vila-Matas, mal que acomete escritores e os levam a renunciar à escrita. Existiria, portanto, um labirinto do Não, o da “pulsão negativa” em re- lação ao ato de escrever, bem como uma literatura tomada por esse Mal: a de Bartleby, personagem de Herman Melville, e companhia.



Há um poema de borges, “Things that might have been”, do livro História da noite, que apresenta um rol das coisas que poderiam ter sido e não foram, como estas: “O amor que não compartilhamos. / O dilatado império que os Vikings não quiseram fundar. / O orbe sem a roda ou sem a rosa. / O juízo de John Donne sobre Shakespeare. / O outro corno do Unicórnio. / A ave fabulosa da Irlanda, que está em dois lugares a um só tempo. / O filho que não tive.” (BORGES, 2009, p. 277) Não pretendo, à feição do escritor, falar aqui apenas das coisas que poderiam ter sido realizadas no meu percurso acadêmico e não foram, mas também (e sobretudo) das que não foram feitas por não terem sido desejadas, ou por não terem sido compatíveis com minhas possibilidades de fazê-las. Ao longo de meus 26 anos como professora da Faculdade de Letras da UFMG, acho que fiz quase tudo o que quis, embora não tenha feito algumas outras coisas que talvez pudesse ter feito. Isso porque, para realizar o que me propus a realizar, tive que me negar ao que não queria ou ao que não me convinha, embora certas faltas em minha trajetória não tenham sido voluntárias, e sim decorrentes de contingências, como, por exemplo, as que me impediram, a partir de 2012, de assumir a chefia da área de Teoria da Literatura, contrariando a escala feita um ano antes. Dentre os “nãos” de minha trajetória, ressalto os seguintes: 1. Não me candidatei a cargos administrativos influentes, embora tenha assumido representações no Colegiado de Graduação, na Câmara Departamental do antigo Departamento de Letras Vernáculas e no Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, além de ter sido subchefe do Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura, por dois anos, e diretora, por um ano, do Centro de Estudos Literários da UFMG. As coordenações institucionais, as representações em órgãos externos à Faculdade de Letras, as comissões burocráticas (apesar de ter assumido algumas) nunca condisseram muito com minhas habilidades acadêmicas e pessoais. Por esse motivo, não me empenhei muito em assumi-las nesses anos de atuação na universidade. 2. Não me vinculei, propriamente, a um grupo específico de cole- gas na Faculdade de Letras da UFMG, o que não me impediu de transitar em alguns deles e de colaborar, sempre que possível, com suas atividades. Nesse ato de transitar (errar) por vários grupos e lugares, preferi não me confinar em nenhum. 3. Esquivei-me, sempre que possível, das polarizações aca- dêmicas e das querelas particulares com as pessoas de minha Maria Esther Maciel 107

convivência no trabalho, embora, em certos casos, algum atrito ou dissonância explícita tenha sido inevitável. 4. Evitei adotar as teorias da moda apenas pelo fato de estarem na moda, assim como escrever sobre temas e autores que não faziam parte de meu campo de interesses intelectuais e/ou afetivos. Ainda que acompanhando as linhas de pensamento em circulação, minhas escolhas foram todas decorrentes de paixões literárias, teóricas e estéticas. Procurei caminhar ao sabor de minhas demandas internas, de meus impactos intelectuais, de minhas descobertas felizes de autores e textos. 5. Não consegui me fixar em uma literatura nacional específica – nem mesmo a portuguesa, que foi a que me conduziu ao exercício da docência na Faculdade de Letras. Isso, por causa de uma inquieta propensão, desde o início de minha formação acadêmica, ao comparativismo literário e à ideia de multiplicidade. Nesse sentido, desviei-me também da especialização, em prol do exercício da transdisciplinaridade. Agora, seguindo um pouco a ideia do poema de Borges, faço também a lista das coisas que poderia ter feito e não fiz: 1. Ter dado sequência aos meus estudos de grego e letras clássicas, quando estudante de Letras. 2. Ter oferecido mais disciplinas de oficina literária aos alunos de graduação, de maneira a compartilhar com eles algumas experiências de escrita. 3. Ter estudado italiano e alemão, aproveitando os cursos de línguas do CENEX, para ler Italo Calvino e Thomas Bernhard no original. 4. Ter feito alguma pesquisa sobre os poetas visionários de diferentes épocas e tradições, para tentar entender um pouco o enigma das visões que prefiguram a realidade. 5. Et Cetera. O que posso depreender de tudo o que não fiz por opção ou contingência (e mesmo das coisas que não listei aqui por esquecimento ou, talvez, por reserva) é que nesse percurso pela via das Letras não há certezas nem pontos fixos. O fluir de tudo se inscreve quase sempre na ordem (ou desordem) do imprevisível. E o erro, antes de ser um desacerto a ser evitado, acaba por se tornar também um importante exercício de aprendizagem. 108 Maria Esther Maciel

O de OCTAVIO PAZ correlatos: P de Poesia; E de Enciclopédia; F de Formação; L de Lucidez; P de Poesia; R de Ruptura; S de Sedução; U de Universo; V de Viagem Octavio Paz nasceu em 31 de março de 1914, na Cidade do México. Poeta, ensaísta e tradutor, recebeu o Prêmio Nobel, em 1990. Foi diplomata e embaixador em vários países do mundo. Dentre seus livros, destacam-se O labirinto da soli- dão, O arco e a lira, Blanco, Os filhos do barro, Conjunções e disjunções, A outra voz e Sóror Juana Inés de la Cruz ou as armadilhas da fé. Dedicou toda a sua existência ao exercício e à defesa da poesia, fazendo da lucidez e da sensibilidade os ingredientes vitais de seu próprio pensamento. Morreu no dia 19 de abril de 1998.



Meu contato com a obra de Octavio Paz deu-se quando eu ainda vivia em Patos de Minas. Altino Caixeta de Castro, poeta da cidade, foi quem me mostrou, pela primeira vez, o livro Signos em rotação, em tradução de Sebastião Uchoa Leite, dizendo-me que era uma leitura imprescindível para qualquer pessoa que gostasse de poesia. Em seguida, abriu o volume numa página qualquer e leu um trecho para mim, sem deixar depois de improvisar um poema a partir do que tinha lido. Tomei-lhe o exemplar das mãos e comecei a folheá-lo. Estava todo marcado pela caneta “altiniana” e coberto de anotações e poemas. Eu devia ter por volta de 17 anos e me considerava poeta. Ao ler vários dos trechos do livro e ver que ainda havia uma pequena seleção de poemas do autor no final, não hesitei em ir, logo em seguida, à livraria do “seu” Josias e encomendar um exemplar para mim. E assim nasceu minha paixão poética por Paz, mais tarde transformada também em paxão crítica. Quando ingressei na graduação de Letras da UFMG, estava disposta a conhecer mais sobre a obra do poeta mexicano, mas ele ainda não era muito estudado no curso. Só a partir de 1982, quando saiu uma tradução de O arco e a lira, seus textos sobre poesia passaram a integrar os programas das disciplinas de teoria poética. Se não me engano, foi a Profa. Ivete Camargos Walty quem primeiro falou de Paz em sala de aula, evocando um outro livro, O labirinto da solidão. Assim, aos poucos fui entrando no universo paziano, ao mesmo tempo em que me iniciava também na obra de Roland Barthes, graças às aulas de Eneida Maria de Souza e Ângela Senra. Não à toa, destinei – muitos anos depois – uma seção de minha tese de doutorado à comparação (aparentemente improvável) entre os dois autores. O livro Conjunções e disjunções, que, como o Signos em rotação, tinha saído pela Editora Perspectiva no final dos anos 1970, foi a minha descoberta seguinte. Na época, eu já me interessava pelo Budismo, mas não conhecia a linha tântrica. Com Paz, tive acesso a essa vertente místico-erótica, que muito me fascinou e me levou a uma pesquisa informal sobre o tema. Ou seja, à medida que eu descobria os livros de Octavio Paz, descobria também outros campos do conhecimento até então inexistentes na minha vida. A antropologia foi um deles; os estudos culturais latino-americanos, também. Só em 1990, após ter lido boa parte dos livros de Paz disponíveis no Brasil, resolvi que queria me dedicar à sua obra no doutorado. Preparei, assim, um projeto sobre a conjunção poesia/crítica em sua obra, a partir de um estudo mais abrangente sobre a tradição dos poetas-críticos modernos. Maria Esther Maciel 111

Detalhes sobre o desenvolvimento desse projeto podem ser encontrados nos verbetes/capítulos “F de Formação” e “L de Lucidez” deste memorial. Mesmo depois de ter escrito e defendido minha tese de doutorado, continuei a pesquisar/escrever sobre o poeta e pensador mexicano. Ele tinha se convertido no meu grande mestre, ao lado de Jorge Luis Borges. E, assim, não deixaria nunca de atravessar o meu trabalho, em vários momentos de minha trajetória. Após a publicação de meu livro As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz, publiquei mais dois: um pequeno ensaio na coleção “Memo”, do Memorial da América Latina, e um volume coletivo, em homenagem ao poeta logo após a sua morte, intitulado A palavra inquieta: homenagem a Octavio Paz (Editora Autêntica). Nesse momento, eu já tinha publicado alguns artigos sobre ele em revistas nacionais e estrangeiras, bem como oferecido cursos e ministrado palestras em diversas cidades brasileiras e de outros países. Minha pesquisa sobre Paz possibilitou, inclusive, que eu fizesse amizade com algumas pessoas que se tornariam fundamentais na minha vida acadêmica e literária: os brasileiros Haroldo de Campos, Horácio Costa, Bella Jozef, Irlemar Chiampi e Reynaldo Damazio; os mexicanos Manuel Ulacia, Margo Glantz, Alberto Ruy-Sánchez e Rodolfo da Matta; o uruguaio Hugo J. Verani, o cubano Manuel Díaz Martínez, o espanhol Juan Malpartida, o alemão Meyer-Minemann e os argentinos Noé Jitrik e Gonzalo Aguilar. A maioria deles, inclusive, participou do livro homenagem que organizei e publiquei em 1999. Graças a eles, também pude colaborar em várias revistas e livros coletivos no Brasil e no exterior. Hugo J. Verani, por exemplo, que é professor da Universidade da Califórnia e organizou uma alentada Bibliografia crítica de Octavio Paz, foi um dos meus maiores incentivadores. Nossa aproximação (apenas por palavras, visto que não o conheço pessoalmente até hoje) deu-se em 1996, motivada pelo próprio Paz, que havia lhe passado a minha tese de doutorado e o meu livro de 1995, recomendando que me incluísse na Bibliografia crítica. A partir daí, iniciamos uma intensa correspondência, que perdurou por vários anos. Verani, inclusive, sugeriu meu nome para alguns livros coletivos sobre Paz, entre eles, Octavio Paz: la dimensión estética del ensayo (Siglo Veintiuno Editores, 2004) organizado pelo venezuelano Héctor Jaimes, professor da Universidade da Carolina do Norte, EUA. A professora Bella Jozef, da UFRJ, que foi amiga de Paz e uma das mais importantes estudiosas da literatura latino-americana no Brasil, foi quem publicou o meu primeiro artigo no Brasil sobre a obra do poeta-crítico mexicano. Isso aconteceu no início de 1991, na revista América Hispânica (UFRJ). O texto, intitulado “Quatro olhares sobre o poema ‘Blanco’, de Octavio Paz”, tinha sido o trabalho final de uma 112 Maria Esther Maciel

das disciplinas do meu mestrado. Ela também me indicou para escrever uma resenha da edição brasileira do livro de ensaios A outra voz, de Paz, para o antigo caderno “Ideias” do Jornal do Brasil, em 1993. Com Bella, aprendi muito não apenas sobre a vida do meu poeta-crítico, como também sobre a história da moderna literatura mexicana. Vale ainda reforçar o papel de Haroldo de Campos no meu percurso acadêmico e, sobretudo, nos meus estudos sobre a obra paziana. Além de ter me concedido uma importante entrevista em 1993 (ver “F de Formação”), Haroldo tornou-se meu maior interlocutor brasileiro nesse período e também o meu maior incentivador. Por seu intermédio, consegui um encontro com Paz no México, conheci outros estudiosos no Brasil e no exterior, publiquei na revista Cuadernos Hispanoamericanos, editada em Madri pelo escritor e crítico Juan Malpartida, e consegui grande parte das colaborações para o livro A palavra inquieta, incluindo o texto integral da longa entrevista coletiva dada por Octavio Paz a intelectuais brasileiros no auditório do Jornal O Estado de S.Paulo, em 1985. O que sempre me instigou na obra de Octavio Paz foi o seu carácter transdisciplinar, somado à presença constante da poesia em praticamente todos os seus escritos sobre qualquer assunto. Além de ter se dedicado intensamente à prática polivalente da criação, da reflexão crítica e da tradução, atuou de maneira incisiva nos rumos da modernidade latino-americana, sempre atento à diversidade cultural dos outros continentes. Conjugou, sem maniqueísmos, universalismo e americanismo, Ocidente e Oriente, ruptura e tradição, mostrando que ser mexicano ou latino-americano é também um exercício de cosmopolitismo e de abertura à alteridade. Sua obra é inesgotável, na qual se pode entrar por diferentes vias, dependendo do que nela se deseja encontrar ou enfocar. Não bastasse isso, ainda exerceu um papel intelectual bastante ativo, com intervenções contundentes (e por vezes polêmicas) no debate político sobre o México, a América Latina e outros lugares do mundo. Sua paixão crítica o levou a questionar muitas estruturas políticas, sociais e culturais do seu tempo, bem como a rever criticamente vários acontecimentos históricos do passado (do mais longínquo ao mais imediato). Com relação a esse trato paziano das questões históricas e políticas, penso, até hoje, que seu grande mérito foi desviar-se dos binarismos redutores e adotar uma visão prismática sobre tudo. Ainda que eu discorde de certos matizes de sua visão política nos seus últimos anos de vida, a ousadia e a independência com que ele exerceu seu pensamento imprimiram, a meu ver, uma marca singular nos diagnósticos e prognósticos que fez do nosso tempo. Maria Esther Maciel 113

Numa entrevista que concedi à revista Ciência Hoje, no final de 2013, sobre o poeta-crítico mexicano, cujo centenário ocorreria no início de 2014, tive a oportunidade de fazer uma reavaliação sobre ele. Ainda que com ressalvas às suas ideias políticas do final dos anos 1990, sustentei o que havia dito anos antes: Paz, com um trabalho sempre em movimento, nunca prescindiu das dúvidas e incertezas, o que fez com que seu pensamento mudasse continuamente ao longo dos anos, levando cada livro seu a ser, ao mesmo tempo, resposta, confirmação e negação dos anteriores. E talvez tenha sido a eleição da poesia e da crítica como pontos de irradiação de todo o seu trabalho intelectual o que tenha possibilitado a ele romper com as cristalizações de seu próprio pensamento e fazer um prognóstico plausível sobre o mundo por vir – em especial, no que tange ao recrudescimento do capitalismo de mercado – descrito por ele, em A outra voz, como um “processo econômico sem rosto, sem alma e sem direção”. Daí ter se empenhado em defender, nos últimos anos de vida, a reabilitação do espírito crítico, elemento vital, segundo ele, para a reinvenção do mundo. Outra grande contribuição de Paz para os meus estudos crítico- literários foi a investigação que ele fez da história da poesia moderna, do romantismo alemão às crises das vanguardas, privilegiando os pontos móveis de tensão e ambivalência que a constituíram. Ao conjugar tradição e ruptura, origem e originalidade, nostalgia e utopia, mito e história, religião e revolução, analogia e ironia, criou um jogo dialógico, adotando uma visão histórica plural, atravessada de descontinuidades, da qual emerge também um conceito múltiplo e paradoxal de moder- nidade, como tive a oportunidade de discutir nos vários artigos que escrevi e nos cursos que ofereci sobre o tema. (Para mais detalhes, ver “R de Ruptura”.) Acrescento a isso minha entrada, propiciada pela convivência com a obra de Paz, em outras literaturas modernas e contemporâneas da América Latina. Sobretudo no que tange à poesia, passei a atentar para as obras de autores como Juan Tablada, Vicente Huidobro, César Vallejo, José Gorostiza, Lezama Lima, Alfonso Reyes, Gabriela Mistral, Eduardo Milán, Gonzalo Rojas e Alejandra Pizarnik, entre outros. Comecei também a incursionar em obras de críticos como Emir R. Monegal, Hugo Achugar, Ana Pizarro, Julio Ortega, Beatriz Sarlo e Jorge Schwartz, além de alguns prosadores que eu ainda não conhecia antes de enveredar pelos estudos latino-americanos: Carlos Fuentes, Ricardo Piglia, Elena Poniatowska e Severo Sarduy. Movida por essas múltiplas descobertas, passei, sobretudo a partir de 1995, a manter um diálogo mais estreito com duas colegas hispano- americanas, recém-contratadas na FALE: Graciela Ravetti e Sara Rojo, 114 Maria Esther Maciel

com quem eu desenvolveria alguns projetos nesse campo e manteria uma gratificante amizade. A partir de nossas frequentes conversas “de corredor”, tivemos a ideia de criar o Núcleo de Estudos Latino- Americanos (NELAM), o que se efetivou em pouco tempo, levando-nos a desenvolver um projeto coletivo (com 15 docentes recém-doutores) e a realizar várias atividades nessa área de estudos. Entre elas, o lançamento de um número especial da Revista de Estudos de Literatura sobre América Latina, organizado pelos professores Georg Otte, Reinaldo Martiniano Marques e eu. Para mais detalhes sobre o NELAM, ver a parte “F de Formação”. Eu poderia somar a isso tudo várias outras descobertas. Ao debruçar-me, por exemplo, sobre os livros de Paz que tratam do erotismo, deparei-me com uma sedutora trilha de investigação, que eu tentaria percorrer a partir de então. Já tendo abordado esse tema sob o influxo de Barthes e Bataille, retomei-o à luz dos apontamentos pazianos de A dupla chama: amor e erotismo, livro sobre o qual escrevi um ensaio para a revista britânica Theory, Culture & Society, que foi posteriormente publicado em português pelo Memorial da América Latina, como mencionei na parte “F de Formação” e “D de Docência”. Ademais, dado o forte caráter comparatista de meus estudos de literatura, não podia também deixar de enfocar, em diferentes momentos, as consonâncias/dissonâncias entre Octavio Paz e outros autores: M. C. Escher, Sóror Juana Inés de la Cruz, Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes e Haroldo de Campos. Cheguei mesmo a abordar o conjunto dessas relações no ensaio “Octavio Paz: una poética de confluencias”, publicado, em 2000, no Anuario de la Fundación Octavio Paz, uma revista de estudos pazianos criada no México logo após a sua morte. Aliás, no que se refere à relação Octavio Paz/Haroldo de Campos, tive a honra de poder apresentar, no início de 2016, uma palestra na Casa da Rosas, em São Paulo, coordenada pelo diretor do acervo de Haroldo de Campos, Júlio Mendonça. Intitulada “Convergências/divergências: Octavio Paz e Haroldo de Campos em diálogo”, a palestra versou sobre as trocas intelectuais e poéticas entre os dois poetas, que culminaram na tradução haroldiana do poema “Blanco” de Paz, publicada em livro no Brasil em 1986, sob o título Transblanco, e relançado (em edição revisada e aumentada) em 1994. Busquei mostrar que, se a história de uma pessoa pode ser traçada também a partir dos encontros que teve ao longo de sua vida, o encontro dos dois poetas foi decisivo para que ambos redimensionassem seus respectivos percursos. Mesmo porque esse encontro não representou uma mera troca de aquiescências e amenidades, já que a amizade que cultivaram foi movida tanto pela admiração recíproca quanto pela inquietude crítica de um frente ao Maria Esther Maciel 115

trabalho do outro. A partir daí, explorei essas afinidades e discordâncias entre eles. Confesso que essa recente retomada de Octavio Paz reacendeu meu interesse em sua obra. Tanto, que pretendo, tão logo seja possível, escrever um artigo sobre as contribuições pazianas para o pensamento contemporâneo sobre as culturas ameríndias, tema que tem me inquietado ultimamente no trato das poéticas da animalidade e dos limites do conceito ocidental de humano/humanidade. Assim, posso dizer que meu encontro com a vida e a obra de Octavio Paz foi um marco na minha vida intelectual, profissional, poética e pessoal. Tanto, que não consigo deixar de lê-lo de tempos em tempos. Hoje mesmo, depois de percorrer alguns de seus livros para que eu pudesse reinventar a memória de minha relação com ele, resolvi abrir, ao acaso, a nova edição brasileira de Os filhos do barro, que saiu em 2013 pela editora Cosacnaify, em tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. A página que apareceu foi a 165, na qual li o seguinte fragmento: “O tempo do poema não está fora da história, mas dentro dela: é um texto e é uma leitura. [...] É um tempo que se repete e que é irrepetível, que transcorre sem transcorrer, um tempo que se volta para si mesmo. O tempo da leitura é um hoje e um aqui: um hoje que acontece em qualquer momento e um aqui que fica em qualquer lugar.” Nada mais? Nada menos. 116 Maria Esther Maciel

P de POESIA correlatos: A de Artifício; F de Formação; H de Hibridismo; I de Inventário; L de Lucidez; M de Memória; O de Octavio Paz; R de Ruptura; S de Sedução [Do gr. poíesis, ‘ação de fazer algo’, pelo lat. poese + -ia] 1. Paulo Leminski lista, num poema, vinte e duas definições diferentes e, por vezes, contraditórias de poesia, todas extraídas de textos de autores de diversos contextos e tradições. Evidencia, com isso, a dificuldade de confiná-la em conceitos específicos. 2. Poesia condiz com todas as definições que já se fizeram dela e mais outras coisas, podendo, inclusive, não se deixar definir por nenhuma definição.



Minha história com a poesia é antiga. Vem desde meus anos de pré- escola, quando ouvi pela primeira vez, na voz da professora, um poema de Cecília Meireles, “A canção dos tamanquinhos”. Foi nesse momento que descobri a dimensão sonora das palavras e a potencialidade rítmica de um verso. Anos depois, também graças a uma professora, li “O morcego”, de Augusto dos Anjos, cuja visualidade me impressionou pela força viva das imagens. Mas foi na adolescência, quando encontrei a poesia de Carlos Drummond de Andrade, que me dei conta do poder da poesia de mostrar o núcleo irrequieto das coisas e o que se esconde nas dobras da realidade visível. Desde então, quis também ser poeta e elegi o poeta itabirano como mestre. Por volta dos 15 anos de idade, conheci ao vivo o já veterano poeta Altino Caixeta de Castro, meu conterrâneo, que morava em Brasília. Foi um grande acontecimento na minha vida literária e intelectual ainda em formação. Pelas mãos de Altino, tive acesso a vários livros de e sobre poesia, de autores brasileiros e estrangeiros. Pessoa, Baudelaire, João Cabral, Safo, Eliot, Paz, Neruda, Florbela Espanca e Saint-John Perse, entre outros, entraram para o meu cânone particular a partir desse meu contato intenso, ainda que esparso, com o poeta. Foi ele, inclusive, quem me despertou para os poetas-críticos modernos e me falou dos textos críticos de Jakobson, Benedetto Croce, Roland Barthes e Adolfo Casaes Monteiro, os quais eu encomendava ao erudito livreiro de minha cidade. Digo que o mestre Altino Caixeta de Castro foi um dos responsáveis pelo meu ingresso no mundo da criação e da crítica de poesia. Quando escrevi minha dissertação de mestrado sobre Augusto dos Anjos, privilegiando o caráter atópico de seu livro Eu, passei a dedicar- me de maneira mais sistemática ao estudo da poesia moderna. Na dissertação, enfrentei o tema da morte na obra do poeta paraibano, bem como o jogo tradição/ruptura que atravessa seu trabalho poético. Para essas reflexões, vali-me de textos de Baudelaire sobre a modernidade e a relação do poeta moderno com a realidade urbana, além de apontamentos de Walter Benjamin sobre o mesmo tema, e de Maurice Blanchot sobre literatura e morte. Na mesma ocasião em que preparei o projeto de mestrado, lancei meu primeiro livro de poemas Dos haveres do corpo, montado a partir de fragmentos de Roland Barthes, no qual busquei figurar (ou transfigurar) minhas primeiras experiências nos campos do amor, da morte e da perda. Ao iniciar meu doutorado, iniciei também uma extensa pesquisa sobre os poetas-críticos de diferentes contextos, com vistas ao estudo da relação entre poesia e crítica na obra do mexicano Octavio Paz, como explicito na parte “L de Lucidez”. Nessa época, como eu lecionava literatura portuguesa, comecei também uma investigação mais específica Maria Esther Maciel 119

sobre Fernando Pessoa, não apenas para identificar essa conjunção poesia/crítica em sua obra, mas, sobretudo, para pensar a questão da subjetividade poética na modernidade. Uma pesquisa, aliás, que aproveitei num dos capítulos da tese sobre Paz, mais especificamente na parte em que enfoco o conceito paziano de “outridade”. No que tange a Pessoa, também escrevi dois ensaios sobre as relações entre poesia e teatro em sua obra. Entre 1992 e 1995 (ano de meu doutoramento), publiquei alguns artigos locais e nacionais sobre poesia, voltados para obras de Augusto dos Anjos, Octavio Paz, Fernando Pessoa e os portugueses da Geração 61. A partir da defesa da tese e de sua publicação em livro, passei a ocupar-me de outros poetas, mas sem abdicar de Paz, que continuou muito presente – sobretudo como crítico – nos meus estudos poéticos. Haroldo de Campos, Sóror Juana Inés de la Cruz, Altino Caixeta de Castro, Laís Corrêa de Araújo e alguns poetas latino-americanos de vanguarda entraram no meu repertório de então. Como já me detive na maioria deles em outras partes deste memorial, cabe falar um pouco sobre o trabalho realizado sobre Altino Caixeta (1916-1996), também conhecido como Leão de Formosa, que escreveu poemas em todos os estilos e tendências, compondo uma obra multifacetada e numerosa, na qual a tradição se entrelaça à modernidade. Ainda pouco estudado até hoje, publicou apenas dois livros em vida, embora tenha deixado dezenas de outros. Sobre sua obra, escrevi três artigos, além de tê-lo entrevistado e organizado a edição de um de seus livros inéditos. Ajudei a organizar também um colóquio sobre sua poesia no Centro Universitário de Patos de Minas, bem como um dossiê da revista Alpha (UNIPAM) sobre ele. Tenho um projeto de reunir poemas já publicados e inéditos de sua autoria em um volume representativo de sua vasta obra, para tentar publicar por uma grande editora. Dois dos artigos que escrevi sobre seu trabalho foram publicados em revistas e, posteriormente, incluídos em livros: “Altino Caixeta de Castro: o guardião das palavras” e “Do espanto da palavra e outras perplexidades: a poesia de Altino Caixeta de Castro”. Vale ainda mencionar o meu segundo livro de poemas Triz, editado pela editora mineira Orobó, em 1998, e que contou com um belo texto de apresentação da professora Maria Luíza Ramos, com quem apreendi muito sobre poesia e teoria literária em seu fundamental Fenomenologia da obra literária, cuja primeira edição data de 1969. Outro poeta de que tratei em meu trabalho acadêmico, a partir de 2002, foi Carlos Drummond de Andrade, antigo mestre. O impulso para essa retomada veio de um convite da Fundação Carlos Drummond de Andrade, de Itabira, para participar de um seminário internacional 120 Maria Esther Maciel

sobre o poeta, em outubro, por ocasião do seu centenário de nascimento. Entusiasmada com a oportunidade de voltar à poesia drummondiana, preparei uma palestra intitulada “A figuração das coisas na poesia de Drummond”, publicada, mais tarde, na Revista da Biblioteca Mário de Andrade e incluída posteriormente no livro A memória das coisas. Nesse trabalho, busquei mostrar como as coisas ocupam um topos especial em toda a poesia drummondiana, ora na acepção generalizada de tudo o que tem uma existência nomeada, ora como elementos abstratos, ora como objetos. De Alguma poesia até Lição de coisas, percorri vários poemas do autor com o propósito de identificar essa presença. Articulei, ainda, os poemas das coisas concretas e prosaicas de Drummond com a figura do “anjo necessário” de Wallace Stevens, em suas similitudes “tortas” com o anjo drummondiano do “Poema de sete faces”. A propósito da palestra em Itabira, tenho um fato curioso para contar. Como o evento foi organizado de forma a envolver a comunidade nas comemorações do centenário de nascimento do poeta, as mesas foram realizadas em diferentes espaços da cidade. A que integrei aconteceu no auditório de uma escola pública. Quando cheguei lá, surpreendi-me com o público, composto em sua maioria de crianças na faixa dos 8 e 9 anos de idade. Minhas duas colegas de mesa, que, como eu, tinham preparado textos escritos, também ficaram um pouco apreensivas. Como eu era a primeira a falar, fiquei sem saber o que fazer: ler ou não o texto que tinha escrito para o evento? Olhei, quase em estado de pânico, para as crianças à minha frente, que se inquietavam nas cadeiras, entre cochichos e risadas. Aí decidi que era melhor abandonar o papel e tentar parafrasear o que tinha preparado, de maneira a me fazer entender pelos meninos. O suor escorria pelas minhas costas. A sensação era a de estar diante do maior desafio acadêmico de minha vida: falar da “figuração das coisas” na poesia de Drummond para uma turma agitada de crianças. Suspirei fundo e comecei com a pergunta: “Quem aqui já leu a poesia de Drummond?” Mais ou menos uma dezena levantou o braço, gritando em uníssono: “eu!” Então pedi a uma menina, a mais entusiasmada do grupo, que falasse um pouco sobre o que tinha lido. Ela, sem qualquer timidez, falou graciosamente do poema “Sete faces”. Aproveitei, então, para evocar a figura do anjo e associá-la ao “anjo necessário” de Stevens. E comecei a falar das coisas prosaicas na poesia drummondiana, implorando silenciosamente ao anjo da realidade que me ajudasse na empreitada. Fui até o fim, sem saber ao certo se o que eu falava fazia sentido para os meninos. Meus colegas que estavam na plateia tentavam, a todo custo, conter o riso. Quando terminei, meu cansaço era enorme. E tive certeza de que, sim, aquela palestra tinha Maria Esther Maciel 121

sido o maior desafio de minha vida de professora. Uma experiência inesquecível. Três anos depois, convidada a apresentar um trabalho no Colóquio Internacional Pessoa & Drummond, na PUC-SP, resolvi dar sequência à abordagem das coisas na poesia de Drummond, levando-a para a esfera de minha pesquisa sobre inventários e coleções. Esse trabalho, posteriormente publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada, em 2006, foi também o ponto de partida para um minicurso que ofereci na Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará, em 2008. Drummond também esteve presente no livro As ironias da ordem, ocupando partes da introdução e um capítulo intitulado “As desordens da ordem em Drummond”. Ali, tento evidenciar como o poeta, afeito ao gesto inventariante, privilegiou em sua poesia a ideia de coleção em detrimento da “máquina do mundo” representada pela enciclopédia. Discorro, a partir daí, sobre a relação intrínseca que as coleções drummondianas mantêm com o exercício da memória, mostrando como o poeta converte a reconstituição (ainda que precária e arbitrária) de um passado disperso e em cacos, num recurso para salvar as coisas do esquecimento. Nesse sentido, suas coleções empreendem, como escreveu Benjamin (2006, p. 245) em “O colec­ ionador”, uma “luta contra a dispersão”, contra o caos do infinito. Por esse viés dos inventários poéticos, ainda enfoquei a poesia de Paulo Leminski e a do último Borges, como se pode verificar no verbete/capítulo “I de Inventário”. Um trabalho mais recente que fiz sobre o poeta itabirano foi o estudo crítico que serviu de posfácio à nova edição do livro Corpo, de 1984, que saiu pela editora Companhia das Letras, em março de 2015. Sobre ele, discorro na parte “S de Sedução”. Tendo que assumir, com frequência, uma disciplina obrigatória na graduação, sempre optei – como disse neste memorial – pela disciplina Teoria da Literatura II, voltada para a poesia. Isso me possibilitou explorar ao máximo a minha paixão poética e tentar atiçar o gosto dos alunos pela leitura de poemas. Ofereci também várias disciplinas optativas na graduação e na pós sobre poesia, em geral enfocando a modernidade e as vanguardas. Na última delas, ministrada no 1o semestre de 2015, detive-me na discussão sobre poesia e animalidade, à luz dos apontamentos de Derrida, Paz e Bataille sobre a questão. Como explicitei na parte “R de ruptura”, também desenvolvi trabalhos sobre Haroldo e Augusto de Campos, incursionei nas poéticas radicais da América Latina e de Portugal, discuti o lugar e o não lugar da poesia no mundo globalizado e defendi a poesia como voz dissonante nestes nossos tempos de capitalismo de mercado. 122 Maria Esther Maciel

Integrando diversas atividades no Itaú Cultural em São Paulo, desde 2003, pude discutir, em encontros culturais, temas bastante atuais sobre a poesia contemporânea: poesia e valor, poesia e hibridismo cultural, poesia em tempos digitais, os rumos da crítica de poesia no Brasil. No que diz respeito a este último tema, enfatizei o caráter múltiplo e cambiante do ato crítico diante das diferentes experiências poéticas da contemporaneidade, além de comparar as críticas acadêmica e jornalística no trato da matéria poética. Ressaltei ainda o trabalho crítico cada vez mais efetivo dos poetas, quer nos meios acadêmicos, quer nos cadernos culturais e revistas de poesia do país, o que tem propiciado uma interseção cada vez maior entre esses espaços. De fato, considerando essas confluências hoje, não vejo mais sentido em sustentar as exigências acadêmicas de cunho predominante- mente formalista que, por muito tempo, limitaram os estudos de poesia na universidade. Importa, mais do que nunca, um olhar flexível, capaz de estabelecer com o texto poético uma conexão dinâmica, valorizando suas qualidades intrínsecas, sem perder de vista as relações que ele mantém com o mundo e o seu próprio tempo. Tenho tentado pautar minhas reflexões atuais sobre a poesia contemporânea nessa flexibilidade. Em muitas das intervenções feitas em eventos sobre o tema, a abertura a outras linguagens e às poéticas da alteridade sempre vem à tona nas minhas abordagens. Em 2014, na Feira do Livro de Gotemburgo, falei sobre isso numa mesa sobre “as múltiplas vozes da literatura brasileira contemporânea”, ressaltando duas vertentes da poesia atual: a que se vale criativamente do cotidiano como matéria-prima, representada pelas jovens poetas Ana Martins Marques, Bruna Beber e Alice Sant’anna, e a que explora as mestiçagens culturais por meio de uma linguagem também híbrida e uma escrita que desafia os limites dos gêneros literários, a exemplo das experiências poéticas não apenas de Sérgio Medeiros e Josely Batista Viana, que buscam suas referências nas culturas ameríndias, como também de Ricardo Aleixo e Edimilson de Almeida Pereira, voltados para as culturas afro-brasileiras. (Ver “H de Hibridismo”.) Vale igualmente ressaltar minha participação, via Consulado Brasileiro em Chicago, do evento Experience Brazilian Literature in Chicago. Brazilian Authors Reading, em outubro de 2008, com atividades em três instituições: Northwestern University, University of Illinois e Harold Washington Library Center. A organização foi feita pelo referido consulado, na pessoa do diplomata e escritor João Almino, e pela Litmus Press, pequena editora americana especializada em poesia. Também participaram os poetas Paulo Henriques Britto, Sérgio Medeiros e Virna Teixeira, com a coordenação do poeta americano Raymond Bianchi. Maria Esther Maciel 123

No âmbito do meu projeto de pesquisa sobre animais na literatura, iniciado em 2007, não apenas tenho abordado as relações entre poesia e animalidade em diversos eventos, mas publiquei artigos sobre o tema em revistas e livros coletivos, como se pode verificar com mais detalhes na parte “Z de Zoo”. Um desses trabalhos – “Zoopoéticas contemporâneas: poesia e devir-animal” – foi apresentado, ainda em 2007, no Seminário Internacional Poesia Contemporânea: subjetividades e identidades em devir, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, organizado por Célia Pedrosa. Posteriormente, foi incluído no livro Subjetividades em devir (2008) organizado por Célia Pedrosa e Ida Alves. É importante mencionar que Célia Pedrosa, professora da UFF, tem sido, desde 2001, uma interlocutora importante nessa área dos estudos poéticos contemporâneos, ao lado de Maria Lúcia de Barros Camargo, da UFSC. Com elas, participei de vários encontros sobre poesia e de diversas publicações, além de manter até hoje uma relação de afeto e amizade. Por fim, tem sido um grande prazer também acompanhar a produção poética de poetas brasileiros atuais, cujos livros tive o privilégio de apresentar na forma de prefácios, posfácios, textos de orelhas e de contracapas. São eles: Alexandre Marino, Alexandre Rodrigues da Costa, Ana Elisa Ribeiro, Anelito de Oliveira, Carlos Ávila, Casé Lontra Marques, Claudio Daniel, Floriano Martins, Maria Andrada, Maria Angélica Amâncio, Nadya Maciel, Rodrigo Garcia Lopes, Rodrigo Guimarães, Sebastião Leste e Thais Guimarães. Resenhei também alguns livros de poesia contemporânea para jornais locais e nacionais. A maioria desses autores, como muitos outros poetas no Bra- sil, publicou em pequenas editoras que, desafiando o grande mercado editorial, continuam encampando projetos de poesia, numa brava de- monstração de resistência e persistência. São essas editoras alternativas que têm contribuído, ao lado dos blogs e sites especializados, para man- ter viva e em circulação grande parte da poesia brasileira contemporâ- nea, funcionando, como já disse Octavio Paz a propósito dessas peque- nas casas editoriais na América Latina, como “anticorpos para a defesa do organismo”. Mas nem só de gestos alternativos como esse a poesia contemporânea tem sobrevivido. A abertura, ainda que tímida, das grandes editoras às coleções de poesia nos últimos anos não pode ser desprezada. O que só contribui para a vitalidade do gênero em nossos dias, bem como para a sua diversidade. Uma diversidade, aliás, que não se deixa classificar facilmente. Mais do que nunca, variam as concepções do que seja poesia no nosso presente. Coloquialismos, retomadas da tradição lírica, experi- 124 Maria Esther Maciel

mentalismos, experiências neobarrocas, diálogos multidisciplinares, in- tervenções performáticas e cibernéticas, mestiçagens de gêneros, línguas e culturas, tudo isso incide no horizonte poético da atualidade. Para não mencionar a própria dificuldade de se definir o que é contemporâneo, algo que venho discutindo recentemente. Daí que à crítica empenhada em analisar a poesia do presente convenha, cada vez mais, não apenas um recorte que possibilite a análise de certos temas ou linhas de força, como também a disposição para lidar com um universo vivo, em estado permanente de movimento. Maria Esther Maciel 125



Q de QUANDO (roteiro cronológico das principais atividades e realizações) [Do lat. quando] Adv. 1. Expressa circunstância de tempo; em que época; em que ocasião; Conj. 2. No tempo em que; no momento em que. 3. Segundo Octavio Paz: “sílabas de tem- po”. 4. “[...] início e fim, nó vivo que só se desata a golpes de machado”, segundo Marina Tsvietáieva, em 1932.



1991 • Tendo ingressado no Doutorado em Literatura Comparada em 1990, com o projeto A conjunção poesia-crítica na Obra de Octavio Paz, submeti-me ao Concurso Público para Professor Assistente de Literatura Portuguesa da UFMG, obtendo o 1o lugar. Minha posse no cargo foi no dia 30 de abril de 1991. Iniciei as atividades docentes com duas turmas de Literatura Portuguesa I, ao mesmo tempo em que cumpria os créditos no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. 1992 • Em dezembro, assumi a coordenação da comissão editorial da Revista Literária do Corpo Discente da UFMG, composta por Ronald Claver, José Américo de Miranda Barros e Carlos Alberto Marques dos Reis, mas permaneci apenas dois anos nessa função. 1993 • Com fins de pesquisa para o doutorado, passei os meses de janeiro e fevereiro no México. • De volta ao Brasil, realizei uma entrevista com Haroldo de Campos sobre a obra paziana, que foi posteriormente publicada na revista Nossa América / Nuestra América (Memorial da América Latina). • Coorganizei o número 25 da Revista Literária do Corpo Discente da UFMG, publicado em dez. 93/jan. 94. 1995 • No dia 10 de março, defendi minha tese de doutorado As vertigens da lucidez: poesia e crítica de Octavio Paz, que contou com a orientação da Profa. Dra. Ruth Silviano Brandão. A banca foi integrada pelos professores doutores Lucia Helena (UFF), Amálio Pinheiro (USP), Eneida Maria de Souza (UFMG) e Maria Zilda Ferreira Cury (UFMG). • Em novembro do mesmo ano, uma adaptação do trabalho foi publicada pela Editora Experimento, de São Paulo. • Em agosto, assumi o cargo de chefe do setor de Literatura Portuguesa, no qual permaneci até junho de 1996. Maria Esther Maciel 129

1996 • Considerando a pesquisa desenvolvida no doutorado e meus interesses no campo da literatura comparada, solicitei transferência do Departamento de Letras Vernáculas para o Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura, o que foi acatado pelos colegas de ambos. • Em parceria com as colegas Graciela Ravetti e Sara Rojo, empenhei-me na criação do Núcleo de Estudos Latino- Americanos (NELAM) da FALE/UFMG, do qual me tornei coordenadora. A partir de então, passei a me dedicar de forma mais efetiva aos estudos de literatura latino-americana, com ênfase na literatura mexicana contemporânea, na obra de Jorge Luis Borges e na poesia de vanguarda do Brasil e da América Hispânica. • Organizei, em parceria com os colegas Georg Otte e Reinaldo Martiniano Marques, o número 4 da revista Aletria – Revista de Estudos de Literatura (Dossiê Literatura & Cinema), do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da UFMG. 1997 • Ingressei, como professora, no Mestrado do Programa de Pós- Graduação em Letras – Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, área de concentração Teoria da Literatura. • Iniciei um trabalho de investigação sobre as relações entre Octavio Paz e Haroldo de Campos, cujos primeiros resultados foram apresentados no Congresso da LASA e posteriormente publicados, em forma de artigo, na Revista Iberoamericana, n. 182-183, da University of Pittsburgh, em 1998. • Coordenei o projeto integrado de pesquisa intitulado América em Movimento: a literatura latino-americana em suas relações interculturais no século XX, que recebeu uma bolsa da FUNDEP e esteve vinculado ao Núcleo de Estudos Latino-Americanos (NELAM). Envolvendo quinze recém-doutores de quatro departamentos da Faculdade de Letras da UFMG (Letras Anglo-Germânicas, Letras Românicas, Letras Vernáculas e Semiótica e Teoria da Literatura), o projeto teve como proposta analisar, sob o prisma do comparativismo contemporâneo, as confluências culturais da América Latina ao longo do século XX. 130 Maria Esther Maciel

1998 • Publiquei o livro de poemas Triz (Orobó Edições) e o ensaio “A lição do fogo: amor e erotismo em Octavio Paz” (Memorial da América Latina). Foi publicado, ainda, o livro Borges em dez textos (7 Letras), do qual fui coorganizadora em parceria com Reinaldo Martiniano Marques. • Publiquei o ensaio “The Lesson of Fire: Notes on Love and Eroticism in Octavio Paz’s The Double Flame”, na revista Theory, Culture & Society, da Nottingham Trent University, o qual foi posteriormente incluído no livro Love and Eroticism, publicado pela editora Sage (London/Thousand Oaks, New Delhi). • Em outubro, apresentei a palestra “El barroco a la luz de la modernidad”, sobre Sóror Juana Inés de la Cruz, no Smith College, Northampton, EUA. 1999 • Com o apoio do Memorial da América Latina, organizei e publiquei o livro A palavra inquieta: homenagem a Octavio Paz (Editora Autêntica), que reuniu ensaios de vários especialistas na obra paziana, do exterior e do Brasil. Publiquei, ainda, o livro autoral Voo transverso: poesia, modernidade e fim do século XX (7 Letras/FALE), com ensaios escritos entre 1995 e 1998. • O livro América em movimento (FALE/7 Letras/Memorial da América Latina), do qual fui coorganizadora e que reuniu os trabalhos dos pesquisadores do projeto de pesquisa vinculado ao NELAM, também foi publicado nesse ano. • Em agosto, parti para Londres, onde realizei meu pós- doutorado, sobre “Estéticas do Artifício – Peter Greenaway à luz de Jorge Luis Borges”, com bolsa da CAPES. A pesquisa foi vinculada a duas instituições: University of London (Queen Mary College), sob supervisão do Prof. Dr. Peter Evans, e Nottingham Trent University, sob supervisão do Prof. Dr. Mike Featherstone, diretor do Theory, Culture & Society Centre. Na ocasião, assumi o cargo de Visiting Fellow Research na Universidade de Londres, mais especificamente na School of Modern Languages – Department of Hispanic Studies. Maria Esther Maciel 131

2000 • Em fevereiro, passei dez dias em Aarhus, Dinamarca, para realizar pesquisas e participar de um seminário no Centro Borges, da Universidade de Aarhus, Dinamarca. Na ocasião, apresentei a palestra “Jorge Luis Borges y Peter Greenaway” e entrevistei os diretores/fundadores do Centro – os argentinos Ivan Almeida e Cristina Parodi –, além de receber o convite para colaborar com a revista Variaciones Borges, que, no ano seguinte, publicou um artigo sobre o tema de minha pesquisa. • A convite do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford, participei do colóquio “Brazilian Cinema: Roots of the present, perspectives for the future”, com a apresentação do trabalho “An oblique gaze: notes on the film Love & Co., by Helvecio Ratton”. Esse trabalho foi, posteriormente, incluído no livro The new Brazilian cinema, organizado por Lucia Nagib e publicado na Inglaterra em 2003. 2001 • A convite do curador Michael Ashbury, apresentei a palestra “Nelson Pereira dos Santos and the rise of the Cinema Novo in Brazil”, no seminário intitulado “Rio de Janeiro: Ideals of Modernity”, na Tate Modern, em Londres. A atividade integrou uma grande exposição dedicada às cidades culturais do mundo moderno, designada de Century City. • Em agosto, tornei-me subchefe do Depto. de Semiótica e Teoria da Literatura, cargo em que permaneci até março de 2003. 2002 • Em agosto, assumi a direção do Centro de Estudos Literários (CEL) da UFMG, cargo em que permaneci até fevereiro de 2003. • Criei, em parceria com o colega Luis Alberto Brandão Santos, o grupo de pesquisa TransVerso – Fórum Transdisciplinar de Criação e Estudos Poéticos, da UFMG, do qual me tornei coordenadora. • Foi publicado o livro Laís Corrêa de Araújo, que organizei para a coleção “Escritores Mineiros”. 132 Maria Esther Maciel

• Organizei, em parceria com a colega Marli Fantini Scarpelli, o número 8 da revista Aletria – Revista de Estudos de Literatura (Dossiê Literatura & Cinema), do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da UFMG. 2004 • Entrei no grupo de pesquisa internacional The New Encyclopedia Project (NEP), coordenado pelos professores Mike Featherstone, Couze Venn, Ryan Bishop e John Philips. O projeto integrou pesquisadores de várias universidades do mundo, com o propósito de repensar os sistemas de classificação do conhecimento no contexto contemporâneo. • Como membro do projeto NEP, passei a compor o conselho editorial da revista Theory, Culture & Society, do TC&S Centre, com a função de organizar o número especial “Problematizing Global Knowledge”, publicado em 2006. A comissão foi composta pelos professores acima mencionados e pelos seguintes: Roy Boyne, Scott Lash, Pal Ahluwalia, John Hutnyk, Roland Robertoson, Bryan Turner, Shiv Visvanathan, Shunya Yoshimi e Beng Huat Chua. • Recebi a Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 2, com o projeto Poéticas do Inventário: estudo dos sistemas de classificação nas obras de Arthur Bispo do Rosário e Peter Greenaway, à luz da literatura contemporânea. • Publiquei o livro de ensaios A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas (Editora Lamparina) e meu primeiro romance, O livro de Zenóbia (Editora Lamparina). Organizei e publiquei também os livros O cinema enciclopédico de Peter Greenaway (Unimarco Editora) e Sementes de Sol (poesia de Altino Caixeta de Castro, ed. 7 Letras). Em parceria com Sabrina Sedlmayer, organizei e publiquei, ainda, o livro Textos à flor da tela: cinema e literatura (FALE). • Em novembro, fui professora visitante do Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde ministrei o minicurso “Mesclagens de gênero na poesia contemporânea”, de 15 horas. Também na condição de professora visitante, ministrei o curso “Literatura e outras linguagens: Literatura e Cinema” no Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), com duração de 30 horas. Maria Esther Maciel 133

2005 • Fui finalista do Prêmio Jabuti, categoria “teoria/crítica literária”, com o livro A memória das coisas, e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, com O livro de Zenóbia. 2006 • Publicação do número especial “Problematizing Global Knowledge” da revista Theory, Culture & Society, do qual fui coorganizadora. Nesse número foi incluído um artigo de minha autoria, intitulado “The Unclassifiable”. Em sequência, foi publicado outro artigo meu, “Peter Greenaway’s Encyclopaedism”, no número regular da mesma revista. • Coorganizei o Seminário Internacional Poéticas do Inventário: Coleções, Listas, Séries e Arquivos na Cultura Contemporânea – Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em parceria com Flora Süssekind, John Snapp e Tânia Dias. O evento aconteceu em novembro. 2007 • Passei a integrar a Comissão de Letras e Linguística da CAPES, cargo em que permaneci até 2011. • Encerrei a já referida pesquisa Poéticas do Inventário e iniciei, também com Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 1D, a investigação proposta no projeto Bestiários contemporâneos – animais na literatura. • Recebi um “Grant” do Theory, Culture & Society Centre para uma viagem ao Japão, com a finalidade de participar do colóquio Ubiquitous Media International Conference, sediado na Universidade de Tóquio, para comemoração dos 25 anos do TC&S Centre. No evento,realizadoemjulho, apresenteiapalest ra“Cinemaasacross-media Project: the experimental archives of Peter Greenaway”. 2008 • Publiquei o romance O livro dos nomes (Companhia das Letras) e o miniensaio O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea (coleção Móbile, Lumme Editora). 134 Maria Esther Maciel

• Na condição de professora visitante, ministrei o curso “Inventários Poéticos de Carlos Drummond de Andrade” no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC). • Fui selecionada para o cargo de Professor Residente do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) da UFMG, com o projeto Animais na literatura – por uma zoopoética contemporânea. 2009 • O livro dos nomes recebeu 1a Menção Especial no Prêmio Casa de las Américas 2009 e foi finalista de vários prêmios literários, a saber: Prêmio Jabuti 2009 (romance), Prêmio São Paulo de Literatura 2009 (melhor romance), Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2009 e Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura 2009. • Início das atividades como Professora Residente do IEAT- UFMG, as quais se estenderam até 2010. • Fui contemplada com um auxílio financeiro à pesquisa no Programa Pesquisador Mineiro (2009-2011) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). 2010 • Publiquei o livro de ensaios As ironias da ordem: inventários, coleções e enciclopédias ficcionais (Ed. UFMG), que inclui resultados de minha pesquisa Poéticas do Inventário e um capítulo relacionado ao tema do projeto sobre zooliteratura. • Organizei e publiquei um número especial do Suplemento Literário de Minas Gerais – dossiê Animais Escritos, v. 1332, set./out. 2010, vinculado à Secretaria da Cultura do Estado de Minas Gerais. • Em agosto, a convite dos organizadores, participei do Coloquio Internacional El Giro Animal: cuerpos, imaginarios, políticas, promovido pela New York University de Buenos Aires. Apresentei o trabalho intitulado “Animais, animalidade e os limites do humano: leituras de Machado e Rosa”. • Encerrei a pesquisa Bestiários contemporâneos – animais na literatura e dei início a outro projeto correlato, intitulado Maria Esther Maciel 135

Zooliteratura brasileira – animais, animalidade e os limites do humano, com Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq – nível 1D. 2011 • Organizei, em parceria com o colega Julio Jeha, o Colóquio Internacional Animais, Animalidade e os Limites do Humano, realizado em maio. • Publiquei o livro Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica (EdUFSC), com artigos de especialistas estrangeiros e nacionais. O livro ganhou uma reportagem de duas páginas no caderno Ilustríssima da Folha de S.Paulo, em 17/07/2011. • Fui curadora, em parceria com Selma Caetano, do II Seminário Internacional de Crítica Literária, realizado no Itaú Cultural, São Paulo, em novembro. • Fui consultora do Laboratório Online de Crítica Literária – Rumos Literatura – Itaú Cultural, 2011. • Estreei como colunista semanal do Caderno de Cultura do Jornal Estado de Minas, atividade que exerci até julho de 2014. • Prêmio UFMG de Tese 2011, pela orientação da tese A matemática em Georges Perec e Jorge Luis Borges: um estudo comparativo, de Jacques Fux. • Organizei, em parceria com o Prof. Dr. Julio Jeha, o número especial da Revista em Tese – Dossiê Animais, animalidade, publicação voltada para estudos de alunos de pós-graduação e vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG. • A convite da instituição, atuei como professora visitante no Instituto Nacional Politécnico, Cidade do México, onde integrei o seminário Diálogos literários Brasil-México, com palestra também na UNAM. 2012 • Iniciei uma colaboração com os jornais O Globo (caderno Prosa & Verso) e Folha de S.Paulo (caderno Ilustrada), escre- vendo resenhas de livros de literatura brasileira contempo- rânea. 136 Maria Esther Maciel

• Prêmio CAPES de tese 2011, concedido à tese A matemática em Georges Perec e Jorge Luis Borges: um estudo comparativo, de Jacques Fux, por mim orientado. • Coorganização e publicação, em parceria com o colega Fernando Sá, de um número especial da Revista Aletria, com o dossiê “Zoopoéticas Contemporâneas”, do Programa de Pós- Graduação em Estudos Literários. • Em agosto, iniciei uma investigação de Pós-Doutorado sobre Poéticas da Animalidade, vinculada à Universidade de São Paulo, com a colaboração do Prof. Dr. Benjamin Abdala Jr. • Em dezembro, dentro das atividades do Pós-Doutorado, realizei um estágio de pesquisa na New York University, sob coordenação do Prof. Dr. Gabriel Giorgi. 2013 • Ainda dentro das atividades do Pós-Doutorado, realizei outro estágio de pesquisa, dessa vez na École Normale Supérieure, em Paris, entre março e abril de 2013, com a colaboração do Prof. Dr. Dominique Lestel. • Em março, ministrei uma palestra intitulada “Poésie et Animalité”, no Séminaire ‘Expérimenter la philosophie’, na École Normale Supérieure, Paris. Logo em seguida, ministrei também, a convite do Prof. Dr. Jens Andermann, a palestra “Animais escritos: poéticas da animalidade na literatura brasileira” no Romanisches Seminar, Universidade de Zurique. • Em abril, a convite do Prof. Dr. Leonardo Tonus, professor de Literatura Brasileira da Sorbonne, apresentei a palestra “Literatura brasileira e alteridade animal” na Université Paris- Sorbonne. • Participei, ainda, a convite dos organizadores, do Salon du Livre de Paris 2013, com um debate intitulado “Littérature brésilienne contemporaine”, que contou também com a participação de Leonardo Tonus, Adriana Armony e Rodrigo Wrobel. • Tornei-me membro do Conselho Acadêmico Consultivo do Mestrado em Literaturas da América Latina, da Universidad Nacional de San Martín (UNISAN) – Escuela de Humanidades, Buenos Aires, Argentina. Maria Esther Maciel 137

• Em outubro, integrei a comitiva oficial de escritores para representar o Brasil na Feira de Frankfurt (Brasil – país homenageado). Lá participei de duas atividades: uma como escritora e outra como crítica literária. 2014 • Integrei a comitiva oficial de escritores para representar o Brasil na Feira Internacional do Livro de Gotemburgo, Suécia (Brasil – país homenageado). Lá participei de duas atividades: como moderadora de uma mesa sobre poesia brasileira contemporânea e como palestrante numa mesa intitulada “Brazil: a Literature Full of Voices”. • Integrei a Comissão Julgadora do Rumos Itaú Cultural 2014. • Fiz parte da curadoria do evento “Circuito Literário da Praça da Liberdade”, em Belo Horizonte. • Em dezembro, publiquei o livro A vida ao redor (Ed. Scriptum), que reúne as crônicas de minha coluna no jornal Estado de Minas. • Encerrei a pesquisa Zooliteratura brasileira – animais, animalidade e os limites do humano e dei início a outro projeto correlato, intitulado Exercícios de animalidade na literatura contemporânea, com Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq – nível 1C. 2015 • Apresentei o trabalho “Poetry and Animality” no International Conference Animals in the Anthropocene: Human-animals relations in a changing semiosphere, na Universidade de Stavanger, Noruega. • Realizei o exame para Progressão ao nível de Professor Titular, obtendo nota máxima em todos os itens, após arguição do memorial e avaliação da produção feitas pelas professoras Eneida Maria de Souza (UFMG), Lúcia Helena (UFF), Eneida da Cunha Leal (UFBA) e Maria Lúcia Barros de Camargo (UFSC). 2016 • Participei da programação principal da Festa Literária de Paraty – FLIP, integrando a mesa O Falcão e a Fênix, ao lado da escritora inglesa Helen MacDonald. 138 Maria Esther Maciel

• Ministrei, a convite da direção da ANPOLL, a conferência “Transversalidades literárias: o espaço zoo da literatura” no XXXI Encontro Nacional da ANPOLL, em Campinas. • Publiquei o livro Literatura e animalidade (Coleção Contem- porânea) pela editora Civilização Brasileira. • Fui contemplada com um edital da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte para a organização, com Dolores Orange e Thiago Panini, do evento Ciclos de Convivência Literária: o escritor como leitor da literatura, realizado no segundo semestre. 2017 • Iniciei uma parceria acadêmica com a Dra. Patricia Vieira, professora de estudos luso-brasileiros da Universidade de Georgetown – Washington, com quem organizei o Colloquium “The Environment in Brazilian Culture”, nessa universidade, e o Special Dossier “Plants and Animals in Brazilian Culture” – Journal of Lusophone Studies da American Portuguese Studies Association. • Ministrei a aula-conferência “Literatura, Animalidade e os Limites do Humano” nos Seminários Temáticos da FCHS – Universidade do Algarve. • Encerrei o projeto de Produtividade em Pesquisa do CNPq “Exercícios de animalidade na literatura contemporânea”. Maria Esther Maciel 139



R de RUPTURA correlatos: G de Greenaway; O de Octavio Paz; P de Poesia; T de Trans; U de Universo; X de Xadrez [Do lat. Ruptura] S.f. 1. Ação ou efeito de romper(-se); rompi- mento, fratura, quebradura. 2. Interrupção de continuidade; divisão, corte. 3. No campo das artes e da literatura, é uma prática inerente às vanguardas, que consiste na subversão das normas, no rompimento com uma ou mais tradições. 4. Se- gundo Octavio Paz, a ruptura transformou-se em tradição na modernidade, afirmando-se como uma sucessão descontínua ou uma descontinuidade sucessiva.



O tema da prova escrita que possibilitou meu acesso ao cargo de professora da Faculdade de Letras da UFMG foi um impulso para que eu passasse a me dedicar de forma mais resoluta ao estudo das poéticas de ruptura do século XX. Tratava-se de um ponto sorteado entre dez e, para minha surpresa, foi exatamente o que eu tinha desejado que caísse no exame. Afinal, já nessa época, início de 1991, eu já me interessava pelas vanguardas, não apenas na literatura como também no cinema e nas artes em geral. Escrever sobre a “Poesia 61: a textualização da palavra no poema” foi, assim, uma feliz contingência, pois me deu a oportunidade de retomar um dos tópicos do meu projeto de doutorado (em curso) sobre Octavio Paz: o da “tradição da ruptura” na poesia moderna ocidental. Embora os cinco autores integrantes da coletânea Poesia 61 – publicada em maio de 1961, em Portugal, como recusa de certo tipo de escrita retórica, exclamativa e já em estado de exaustão que marcara as vertentes neorrealista e surrealista da poesia das décadas de 40 e 50 – não fossem necessariamente poetas de vanguarda (no sentido radical do termo), todos tinham uma consciência crítica do fazer poético e buscavam novas possibilidades formais e temáticas para a construção do poema. Fiama Hasse Paes Brandão, Gastão Cruz, Luíza Neto Jorge, Maria Tereza Horta e Casimiro de Brito foram esses jovens poetas do tempo que reeditaram em Portugal uma praxis poética arejada e desestabilizadora do discurso poético tradicional. Não à toa, muitos críticos a tomaram como prenúncio da poesia experimental portuguesa dos anos subsequentes. Com o desenvolvimento de minha tese de doutorado, e também, como já explicitei na parte “F de Formação”, o diálogo iniciado com Haroldo de Campos por volta de 1993, meu trabalho com as estéticas de ruptura avançou e foi, aos poucos, adquirindo mais consistência. Sobretudo ao trabalhar com os livros Os filhos do barro e A outra voz, de Paz, pude me concentrar no jogo tradição/ruptura e fazer uma leitura crítica dos vários movimentos poéticos que constituíram a tradição moderna não apenas na Europa e nos Estados Unidos, como também no Brasil e nos países da América Hispânica. Tive a oportunidade de discutir os vários modernismos que proliferaram no mundo ocidental, bem como as vanguardas históricas e tardias em diferentes contextos do Ocidente. Pude ainda, estimulada pelas leituras de Paz e Haroldo, enveredar-me por algumas experiências poéticas e culturais do Oriente, de forma a estabelecer relações entre elas e algumas vertentes de ruptura da poesia brasileira e hispano-americana do século XX. Isso, até chegar à chamada crise das vanguardas, quando passei a investigar os traços de Maria Esther Maciel 143

experimentação e novidade que restaram nos tempos pós-utópicos da era contemporânea. Ao longo desse período de pesquisas sobre as poéticas de ruptura, detive-me em vários autores: Mallarmé, Joyce, Huidobro, Pound, Eliot, os irmãos Campos, Leminski, Sarduy, Lezama e Laís Corrêa de Araújo, entre outros. Mais tarde, incluí no repertório Georges Perec, Italo Calvino, Maria Gabriela Llansol, Wilson Bueno, Sérgio Medeiros e os poetas neo-barrocos da América Latina. Para não mencionar os artistas e cineastas de viés mais experimental, sobre os quais comecei a pesquisar e escrever, como Peter Greenaway, Alain Resnais, Jean-Luc Godard, Júlio Bressane, Eduardo Coutinho, Carlota Caulfield, Artur Bispo do Rosário, Leonilson e Elida Tessler. Acredito que, embora as vanguardas – enquanto movimentos programáticos orientados pelo investimento utópico no futuro – tenham deixado de existir a partir das últimas décadas do século XX, a busca do novo, a experimentação de formas e o espírito crítico continuaram a mover/estimular artistas e escritores de vários cantos do mundo. Peter Greenaway é um exemplo. Ricardo Piglia e Paul Auster, também, até certo ponto. A artista gaúcha Elida Tessler é um exemplo vivo. Na poesia brasileira, temos Josely Baptista Viana, André Valias, Sérgio Medeiros e Claudio Daniel, entre outros. Na prosa, Luci Collin e Verônica Stigger. Mas nenhum deles pode ser considerado vanguardista ao pé da letra. Lembro-me, aliás, de uma observação de Piglia sobre isso, na qual afirma que a ideia de ruptura com as normas e os valores instituídos continua vigorando nos dias de hoje, só que agora em espaços menores e menos estridentes. Daí que negar completamente a presença de traços libertários e inovadores na cultura contemporânea, como se o novo e a experimentação fossem elementos obsoletos, é uma forma de desprezar toda a potencialidade crítico-criativa que marcou artistas de todos os séculos e que ainda se faz ver nas dobras, nas frestas e no interior mesmo do sistema cultural predominante. Augusto de Campos também ressaltou isso numa conferência de 1993, em Belo Horizonte, ao dizer que é necessário distinguir “os aspectos contingentes da vanguarda, enquanto tática de combate e prorrogação de ideias novas”, das inflexões duradouras que inerem à arte/poesia de invenção de todos os tempos. Com relação aos trabalhos que escrevi sobre as estéticas da ruptura, eu poderia mencionar, além dos escritos sobre Paz, Haroldo de Campos, Laís Corrêa de Araújo, Greenaway e os cineastas da Nouvelle Vague e do Cinema Novo, alguns outros menos vinculados a projetos de pesquisa específicos. Dentre eles, eu ressaltaria um artigo sobre a poesia pré-concreta de Augusto de Campos para um livro organizado por Flora 144 Maria Esther Maciel

Süssekind e Júlio Castañon sobre o poeta, publicado sob o título Sobre Augusto de Campos, em 2004. No texto, ressaltei que o poeta paulista, dentre todos os integrantes do concretismo, foi o único que se manteve “concreto”, permanentemente revitalizando seu projeto à luz dos referenciais e demandas dos contextos posteriores à fase heroica do grupo. E após enfatizar também sua sintonia com a nova ordem cultural do presente por meio de seus experimentos cada vez mais ousados no universo digital e sua abertura a todos os dispositivos tecnológicos e midiáticos disponíveis hoje, retornei ao seu primeiro livro, O rei menos o reino, de 1951. Com essa retomada, pude sondar o processo de formação do poeta antes da publicação de Poetamenos (1953), livro caracterizado como sua primeira coleção de poemas assumidamente concretos. Por fim, saltei para a fase pós-concretista do poeta, para tentar mostrar – à luz de algumas considerações do crítico Gonzalo Aguilar – como ele permanece concreto até hoje, sem necessariamente continuar concretista, ao converter a poesia concreta – antes um programa – em um ponto de vista. Vale mencionar, aliás, minha intensa interlocução com Gonzalo Aguilar, professor e pesquisador argentino das vanguardas brasileiras, desde um colóquio sobre Sóror Juana Inés de la Cruz de que participei na Universidade de Buenos Aires, no final de 1995. Em 2001, Gonzalo defendeu sua tese de doutorado sobre o concretismo brasileiro, intitulada Poesía concreta brasileña: las vanguardias en la encrucijada modernista, sob orientação do Prof. Noé Jitrik, que me convidou para integrar a banca ao lado dos professores Beatriz Sarlo e Raúl Antelo. Foi minha primeira (e única) banca internacional, o que muito me honrou, sobretudo por integrá-la ao lado de dois eminentes representantes do que há de mais criativo e instigante na crítica literária e cultural latino- americana contemporânea. Anos depois, a tese foi transformada em livro e publicada na Argentina e no Brasil. Escrevi, inclusive, uma resenha da edição brasileira, publicada no Caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, em 2006. Outra interlocução importante que mantive desde o início dos anos 2000, quando morava em Londres, foi com a poeta e artista cubana Carlota Caulfield – professora do Mills College, Califórnia, e editora da revista Corner – an electronic online journal dedicated to the avant- garde (http:// www.cornermag.net/). Além de eu ter participado com três artigos nessa revista (sobre Peter Greenaway e Borges; Octavio Paz e Haroldo de Campos, e o artista experimental inglês Gareth Lloyd), conduzi uma entrevista com a poeta sobre o “teatro da memória” de Giullio Camillo – publicada em Brújula – Compass n. 10, Boletín Maria Esther Maciel 145

del Instituto de Escritores Latinoamericanos, New York, 2004, e posteriormente incluída, sob o título “The many poetic tatoos of Carlota Caulfield”, num livro da autora, Ticket to Ride (2005). Mallarmé norteou também alguns trabalhos que escrevi sobre as poéticas da ruptura, assim como Baudelaire. Já na minha dissertação de mestrado, lidei com as rupturas contraditórias do poeta das Flores do mal, evidenciando como ele conjugou os recursos formais da poesia tradicional com o uso inovador de temas urbanos, somados a um vocabulário prosaico e escatológico, que desafiava as leis da lírica. O que se repetiu, com outras nuances, na poesia de Augusto dos Anjos. Minhas evocações a Mallarmé deram-se não apenas, como já foi dito, nas leituras que fiz de poemas mais experimentais de Paz e Campos, como também como referência para uma reflexão sobre poesia e teatro, no texto “Teatro de palavras: Mallarmé, Octavio Paz e Fernando Pessoa”, incluído no meu livro Voo transverso. No campo das vanguardas, ainda vale mencionar as incursões que fiz na estética surrealista, com vistas a abordar não só a obra de Paz, como também a formação cinematográfica de Luis Buñuel e os elementos oníricos no cinema de David Lynch. (Ver “C de Cinema”.) Nesse campo do cinema, em suas relações com a literatura, escrevi também “O Inferno radical: Dante e as vanguardas”, que foi apresentado como conferência de abertura do Colóquio Literatura de Vanguarda e Política – o século revisitado, na UFSC, em abril de 2011, e posteriormente inserido no livro de mesmo título, que reuniu os trabalhos do evento e foi organizado por Maria Aparecida Barbosa, Meritxell Marsal e Patricia Paterle. Nesse artigo, trato das recriações do “Inferno” de Dante no cinema e na poesia de vanguarda, com ênfase nos trabalhos do italiano Giuseppe de Liguoro (Inferno, 1911), Peter Greenaway (A TV Dante, 1989), Jean-Luc Godard (Nossa música, 2004), T. S. Eliot (“The waste land”, 1922) e Haroldo de Campos (tradução de fragmentos e o poema “A máquina do mundo reinventada”, 2000). A poesia de Haroldo de Campos ainda esteve presente num artigo, “Utopias pós-utópicas”, em que relacionei seu poema experimental “O Anjo esquerdo da história” a uma fotografia de Sebastião Salgado do livro Terra, com vistas a discutir a relação entre arte, política e utopia, tendo como referência o problema social dos trabalhadores rurais brasileiros, e, mais especificamente, do chamado Movimento dos Sem- Terra (MST), surgido no final da década de 1970. Esse trabalho foi apresentado no XXI Congresso da LASA, Chicago, USA, em setembro de 1998, e depois inserido no livro Voo transverso. Entre os cursos que ofereci sobre as poéticas da ruptura e as estéticas de vanguarda, cito o de graduação, Tópicos de Teoria da 146 Maria Esther Maciel

Literatura: Poesia de Vanguarda na América Latina, em 1998, e o de pós-graduação Teorias da Poesia: Poesia e Fim do Século XX, no mesmo semestre. Nessa disciplina de pós-graduação, procurei discutir com os alunos não apenas o ocaso das vanguardas programáticas, mas a situação da poesia em tempos de globalização e mercantilização. A partir da leitura de vários poetas latino-americanos contemporâneos, identificamos a presença, ainda que atravessada pelas demandas culturais do presente, do impulso subversivo, próprio da poesia de diversos tempos e lugares, em vários dos poetas abordados. Assim, a partir desses meus trânsitos na poesia e na cultura contemporâneas, tenho me empenhado em evidenciar que a poesia e as artes continuam sendo uma poderosa arma contra a homogeneização cultural promovida pelo capitalismo de mercado imperante no nosso tempo. Isso, graças aos poetas e artistas que têm reinventado, a partir dos recursos e linguagens disponíveis no nosso tempo, o espírito crítico herdado das estéticas de ruptura, presentes em vários momentos do passado. Maria Esther Maciel 147


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