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MdeMemória

Published by Paroberto, 2020-10-08 12:26:26

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Se, ao invés de consultarmos os dicionários para buscar definições de “enciclopédia”, abríssemos uma enciclopédia à procura dessa mesma palavra, teríamos acesso não apenas à sua definição linguística, mas também a uma rede de informações que inclui a etimologia completa do termo, dados sobre as primeiras enciclopédias do mundo, descrições e dados históricos das mais importantes, diferenças entre o modelo enciclopédico renascentista e o moderno, além da exposição dos vários tipos de enciclopédia de acordo com a área de conhecimento. Dessa forma, teríamos acesso a datas, categorias, citações, enfim, diversos conhecimentos extralinguísticos, a partir dos quais passaríamos a saber que a célebre Enciclopédia Francesa, por exemplo, foi publicada em 28 volumes, tendo o primeiro aparecido em 1751 e o último em 1765. Poderíamos ainda saber, se tivéssemos sorte de consultar a pág. 432 (vol. 22) da edição de 1952 da Encyclopaedia Britannica, que uma outra enciclopédia, de nome Anglo-american cyclopaedia (Nova York, 1917), é a única que traz (ou não), entre as páginas 918 e 921 do volume XLVI o verbete “Uqbar”, referente a um país imaginário pertencente a um planeta fantástico que, por sua vez, só existe nos tomos de uma outra grande enciclopédia. Isso evidencia, sem dúvida, a multiplicidade aberta, móvel e inesgotável desse modelo de livro, mesmo que esteja regido pelas leis taxonômicas. E é nessa medida (ou desmedida) que, nela, tudo pode ser continuamente “reordenado de todas as maneiras possíveis”, o que – de certa forma – justifica o fascínio de muitos escritores, artistas e teóricos contemporâneos por essa ideia. Foi Borges quem me conduziu ao estudo do modelo enciclopédico. Depois dele, veio Italo Calvino, que me ofereceu uma via literária interessante para abordar os autores que adotam esse modelo para suas obras. Na proposta “Multiplicidade”, do livro Seis propostas para o próximo milênio, encontrei a ideia de enciclopédia como rede de conexões e vi, com novos olhos, que Flaubert também já tinha exercitado no seu Bouvard e Pécuchet esse modelo “conjetural e multíplice” (CALVINO, 1990, p. 117-138) Conheci, também, as obras monumentais de Carlo Emilio Gadda e Robert Musil. Assim, com Calvino, passei a pensar a noção de enciclopédia no mundo contemporâneo e percorrer suas variações ao longo dos tempos, desde o mundo antigo. Mesmo antes de incursionar teoricamente nesse campo, eu já nutria um grande interesse pelo exercício enciclopédico, graças a autores como Octavio Paz, que apresenta esse viés multíplice em sua obra. Haroldo de Campos também me interessou pelo entrecruzamento de múltiplos saberes e referências em sua poesia e seus ensaios. Tanto, que escrevi um artigo em que aproximo Paz e Haroldo sob esse prisma, Maria Esther Maciel 49

não sem antes percorrer toda uma linhagem de autores tentaculares que fizeram de suas obras uma combinatória de saberes de toda ordem. Esse artigo foi publicado no dossiê “O Brasil, a América Hispânica e o Caribe: abordagens comparativas” da Revista Iberoamericana (Universidade de Pittsburgh), em 1998. Quando iniciei a pesquisa sobre o cineasta Peter Greenaway, o meu campo de investigação se ampliou para além da literatura, envolvendo o cinema, a ópera e as artes plásticas. Isso, pelo fato de o cineasta britânico ter demandado essa abertura maior de fronteiras, haja vista o enorme leque de linguagens artísticas, referências culturais, tecnologias e campos disciplinares que constitui o seu trabalho. História da Arte, Literatura, Música, Arquitetura, Culinária, Cartografia, Mitologia, Cultura Eletrônica, Informática, Teatro, Dança, Zoologia, Botânica, Paisagismo, Psicanálise, História, Caligrafia, Engenharia, Geometria, Anatomia, Astronomia e Filosofia, entre outros campos de saber, compõem esse cinema que, a cada momento, tem se furtado aos limites da tela para se expandir em vários outros espaços artísticos. Foi nesse sentido que ele redimensionou, para mim, a noção de enciclopédia. Tanto, que o livro que organizei e publiquei sobre ele, em 2004, recebeu o título de O cinema enciclopédico de Peter Greenaway. Nesse mesmo âmbito, publiquei um artigo na revista Theory, Culture & Society, em 2006, com o título “Peter Greenaway’s Encyclopaedism”, o qual exploro um pouco mais no verbete/capítulo “G de Greenaway”. Para dar conta de tal complexidade do tema, vali-me não apenas dos estudos de Umberto Eco sobre enciclopédias e dicionários, como também dos textos da pesquisadora portuguesa Olga Pombo, autora do livro Enciclopédia e hipertexto (2006). Ambos problematizam as configurações contemporâneas da noção de enciclopédia à luz da noção de rede e rizoma, em que cada ponto pode ter conexão com qualquer outro ponto, com a função, como explicou Eco, de “mapear a vida de uma cultura como um sistema de sistemas intersemióticos interligados” (ECO, 1991, p. 336-337). A partir daí, incursionei em variados trabalhos do artista/cineasta britânico, em articulação com obras literárias de Borges, Calvino, Perec e Pávitch. Dessa forma, encontrei na enciclopédia o dispositivo taxonômico mais adequado para o contexto cultural do mundo contemporâneo, no qual as fronteiras entre culturas, línguas, gêneros, artes e campos disciplinares se entrecruzam, abrindo-se cada vez mais ao híbrido, ao heterogêneo. Um contexto em que a rapidez e a multiplicidade de informações desautorizam e desestabilizam explicitamente a própria ideia de classificação, demandando uma reconfiguração do 50 Maria Esther Maciel

conhecimento a partir de uma perspectiva mais aberta, dialógica e, até mesmo, paradoxal. A entrada do artista brasileiro Arthur Bispo do Rosário na minha coleção de autores deu-se por vias mais alternativas. Tendo já escrito sobre o seu universo criativo, identifiquei em sua obra algumas afinidades dissonantes (e involuntárias, obviamente) tanto com a tradição enciclopédica do Renascimento e do Barroco, quanto com a moderna. Para tanto, tive que percorrer os enciclopedistas dos séculos XVI e XVII, com incursões também no enciclopedismo antigo e medieval, até chegar à Encyclopédie, lançada em 28 volumes entre os anos de 1751 e 1765, sob a coordenação de Diderot e D’Alembert, a qual teve como função reunir, num espaço delimitado, uma miríade de conhecimentos nos campos da história, das ciências, da filosofia e das artes, a partir de três divisões ou propriedades de conhecimento humano: a memória, a razão e a imaginação. Interessante que Greenaway também possui uma forte base enciclopédica extraída dos séculos XVI e XVII, mas com diferentes propósitos de Bispo, como tentei evidenciar num estudo comparativo que escrevi sobre os dois, intitulado “Inventários do mundo: Arthur Bispo do Rosário e Peter Greenaway”, dentro das atividades do meu projeto de pesquisa do CNPq, Poéticas do Inventário, desenvolvido entre 2007 e 2010. Nele, propus-me a mostrar como, no vasto campo das artes visuais, os dois artistas fazem das ordenações taxonômicas a base de praticamente todas as suas criações, compondo – cada um à sua maneira – verdadeiros “inventários do mundo”, de caráter enciclopédico e de difícil interpretação. Mas foi no artigo “A enciclopédia de Arthur Bispo do Rosário”, publicado em 2009 na revista Outra travessia, da UFSC, que desenvolvi a leitura do universo desse artista em relação ao dos enciclopedistas antigos e modernos, como Kircher, Aldrovandi, Giulio Camillo e D’Alembert. Esse artigo foi, depois, ampliado e incluído, como capítulo, no livro de minha autoria As ironias da ordem: inventários, coleções e enciclopédias ficcionais, de 2010. Nesse texto, tento evidenciar como, ao construir o seu “inventário do mundo”, Bispo também compôs uma espécie de enciclopédia visual alternativa, ordenada com rigor taxonômico e, ao mesmo tempo, aberta à desordem criativa da memória e da imaginação. Uma enciclopédia que não exclui referências afro-brasileiras, elementos da cultura popular do Nordeste (com nítidas recorrências às folias de reis de Sergipe), motivos náuticos extraídos da experiência do artista como marinheiro e alusões à cultura contemporânea do descartável. Assim, ao tomar a obra de Bispo como enciclopédica, optei por reconhecê-la Maria Esther Maciel 51

como uma rede de saberes alternativos e não canônicos sobre as coisas do mundo. Busquei mostrar também, valendo-me de um ensaio de Barthes, algumas similitudes instáveis entre as “vitrines” de Bispo e as pranchas da Encyclopédie. Porém, com a ressalva de que, à diferença dos enciclopedistas do Iluminismo, que foram movidos pelo “excesso de razão”, as “pranchas” de Bispo são marcadas por um transbordamento poético dos sentidos e uma mistura de referências culturais, entrando na ordem do dispêndio e do híbrido. Outro trabalho que escrevi a partir da noção de enciclopédia foi o “Enciclopédias da noite: Dante, Borges e Joyce”, também inserido no livro As ironias da ordem. Por vias mais metafóricas, tentei atestar que, como escritores enciclopédicos, os três transitaram em múltiplos campos do conhecimento, valendo-se também dos sonhos para criar seus mundos imaginários e, assim, embaralhar realidade e ficção. Dante criou toda uma taxonomia do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, a partir de rigorosas (e delirantes) simetrias e pautado nos princípios de verdade e totalidade. Borges, por sua vez, evidenciou a ilusão desses princípios, e Joyce encenou a fragmentação da totalidade na própria linguagem. Cada um, com sua relação particular com o mundo onírico. Por fim, vale lembrar também o meu vínculo com o projeto internacional The New Encyclopaedia Project – Problematizing Global Knowledge, conduzido por um grupo de pesquisadores internacionais, sob coordenação do Prof. Mike Featherstone. Minha participação como colaboradora deu-se entre 2004 e 2010. O projeto integrou pesquisadores de várias universidades do mundo, com a finalidade de repensar os sistemas de classificação do conhecimento no contexto contemporâneo, a partir dos impactos da globalização e da informatização. Para tanto, estavam entre seus objetivos a elaboração de uma nova enciclopédia, composta de verbetes mais reflexivos e dialógicos, a partir de uma nova perspectiva taxonômica. Outro propósito foi a organização de colóquios em instituições de vários países, com vistas à discussão das questões voltadas para o processo de classificação do conhecimento no mundo globalizado, além da elaboração de números especiais da revista Theory, Culture & Society Journal. Na primeira etapa de minha participação no projeto, elaborei dois artigos, ambos incluídos em números sucessivos da referida revista, e integrei a comissão editorial do primeiro volume da enciclopédia, intitulado “Problematizing Global Knowledge”. Depois apresentei – ainda dentro das atividades do grupo – um trabalho sobre os últimos trabalhos de Peter Greenaway, no evento The University of Tokyo/Theory, Culture & Society 25th Aniversary Conference-Ubiquitous Media, realizado na cidade de Tóquio, entre 13 e 16 de julho de 2007. 52 Maria Esther Maciel

Em interlocução com esse grupo de pesquisadores, tive a oportunidade de discutir muitas questões relativas à noção contem- porânea de enciclopédia e concluir que esta deixou, definitivamente, de se pretender um inventário completo de todos os saberes sobre as coisas do mundo para se tornar um espaço móvel de articulação, combinação e invenção. Assumindo um caráter menos totalizante que cartográfico e instaurando uma circulação livre e descentrada dos conhecimentos, esse modelo acabou por confirmar, segundo apontou a pesquisadora Olga Pombo, que a compilação dos conhecimentos do nosso tempo só pode funcionar “por blocos e fragmentos”, pautados nas noções de “multiplicidades, bifurcações, mediações, irradiações e derivas” (POMBO, 2006, p. 14). É esse modelo que ainda instiga minha imaginação. Maria Esther Maciel 53



F de FORMAÇÃO correlatos: D de Docência; M de Memória; Q de Quando; V de Viagem; Et Cetera [Do lat. formatione] S.f. 1. Ato efeito ou modo de formar, constituir (algo); criação. 2. Conjunto de conhecimentos e habilidades específicos a uma atividade prática ou intelectual. 3. Conjunto dos cursos concluídos e graus obtidos por uma pessoa. 4. Preparação, construção e aperfeiçoamento de um ofício.



Se a palavra formação, como se verifica nos dicionários, condiz com o “ato ou efeito de formar-se”, a palavra forma poderia ser entendida como o que confere a algo ou alguém um feitio, um delineamento particular, fazendo com que adquira uma identidade própria, em constante processo de aprimoramento. E é sob esse prisma que a forma se distanciaria da fórmula, visto ser esta a mera padronização/cristalização de procedimentos e moldes preestabelecidos. Formar-se, portanto, não implica uma adesão à fixidez e à previsibilidade das fórmulas, mas se configura como uma abertura a novas modulações e aprendizagens. Ou seja, um ato sempre em movimento, que não prescinde do erro e, tampouco, do acaso. Afinal, errar não se circunscreve apenas ao sentido negativo de falha, desacerto, equívoco, e pode ter também uma função dinâmica no processo de formação. O acaso, especialmente, permite-nos a experiência da surpresa, dada a sua potencialidade de nos desviar dos caminhos predefinidos e nos lançar ao inesperado. É um elemento que reinventa nossas certezas e projetos. Portanto, ao falar aqui de minha formação, ressaltando as escolhas, os trilhos e os acertos nesse processo, não vejo como não falar também dos erros e acasos que compuseram a construção de meu percurso acadêmico-profissional. Quando, no início dos anos 1980, terminei meus anos de colégio em Patos de Minas, eu não tinha dúvidas quanto ao que queria para a minha vida adulta: ser professora e escritora. No entanto, motivada pela carreira diplomática de alguns parentes do lado de minha mãe, fiquei tentada também a me formar no campo da Diplomacia. Tanto, que não apenas passei a me dedicar com afinco ao estudo independente das matérias necessárias para um futuro concurso no Itamaraty, como também resolvi fazer dois cursos simultâneos: o de Letras, na UFMG, e o de Direito, na PUC-Minas. Dessa maneira, poderia me preparar melhor para cumprir os meus intentos. Como fui bem-sucedida nos dois vestibulares, logo iniciei os dois cursos superiores, um de manhã e outro à noite. Foi em fevereiro de 1981, um dia após completar 18 anos de idade, que me mudei para Belo Horizonte com o fim de enfrentar essa empreitada. Ao chegar, fui direto para o apartamento localizado na parte baixa da Rua da Bahia, onde moraria com mais oito estudantes que eu ainda não conhecia pessoalmente. O processo de adaptação não foi muito fácil, exigindo de mim bastante desprendimento interno diante de um cotidiano até então desconhecido. Meus companheiros de apartamento eram quase todos de Patos de Minas, e a maioria tinha acabado de iniciar seus cursos, que iam de medicina a geologia, engenharia e psicologia. Maria Esther Maciel 57

Tão logo iniciei meus cursos, comecei também a me envolver com o movimento estudantil de Belo Horizonte. Na época, eu estava filiada ao Partido Comunista Brasileiro (o velho PCB), como outros amigos de minha cidade que moravam em BH e em Brasília. Foi em Patos, no último ano de colégio, que entrei para o “partidão”, incentivada por amigos militantes. Vivíamos, na época, os anos finais da ditadura militar. O interesse pela prática político-cultural já havia me levado a criar um jornal chamado Correio Estudantil, de acentuado viés crítico em relação ao “estado de coisas” do país e com um explícito perfil literário. Foi nesse jornal que comecei a publicar, com assiduidade, artigos, crônicas, poemas e resenhas de livros. Na época, eu já colaborava eventualmente com dois jornais da cidade, nos quais pude publicar alguns contos e poemas, graças a dois professores que haviam sido também editores desses periódicos. O Correio Estudantil, que durou dois anos, teve o essencial apoio de outro professor, Salvador Rodrigues de Souza, que na ocasião coordenava o curso profissionalizante de jornalismo e redação, que tive a sorte de frequentar no Colégio Marista, entre 1978 e 1980. Em Belo Horizonte, meu ativismo político se intensificou, o que me causou alguns problemas no curso de Direito que fazia na PUC. Ao contrário do curso de Letras da UFMG, onde eu encontrara um ambiente bastante aberto e flexível, o da PUC ainda estava nas mãos de um corpo docente mais afinado com os princípios conservadores da política nacional. Lembro-me de pelo menos dois professores que, em dissonância com o que eu pensava e defendia, começaram a me hostilizar em sala de aula. Pelo menos, eu contava com a solidariedade de outro professor, Joaquim Salgado, que também lecionava “Filosofia do Direito” na UFMG e me levou a conhecer a obra de Kant e Hegel. Seu apoio, entretanto, não conseguiu impedir que eu decidisse abandonar o curso de Direito um ano após iniciá-lo e desistir de tentar a carreira diplomática em Brasília. A partir de então, passei a me dedicar exclusivamente ao curso de Letras, bem como a frequentar algumas aulas no Departamento de Filosofia. Era o último ano da Letras no prédio da antiga FAFICH, no bairro Santo Antônio. Eu tinha terminado as disciplinas do “básico” e queria dar sequência aos estudos de lógica com o Prof. Ricardo Fenatti e de filosofia política com o Prof. Luís Bicalho, com quem fiz um belo curso sobre o pensamento de Antonio Gramsci. Ao longo desse tempo de ligação com o Depto. de Filosofia, pude frequentar algumas “semanas de estudo” da Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos (SEAF). Participei de quatro delas, dedicadas a quatro filósofos: Hegel (1981), Marx (1981), Maritain (1982) e Nietzsche (1983). Estive presente também no V Simpósio Nacional da SEAF, em novembro de 1981. 58 Maria Esther Maciel

Sempre interessada em novos campos de conhecimento, comecei a estudar grego em 1982 e a ter aulas de literatura clássica com um novo e brilhante professor, depois meu colega, Jacyntho Lins Brandão, que me introduziu ao mundo das tragédias gregas e dos poemas épicos. Seduzida pelos estudos helênicos, matriculei-me também numa disciplina sobre filosofia grega da saudosa Profa. Sônia Viegas, com quem me iniciei nos pré-socráticos e em Platão. Nesse período, ainda acompanhei as aulas de Estética do Prof. Moacyr Laterza, que me fez conhecer o lado dionisíaco da filosofia. Em conjunção com essas atividades mais acadêmicas, fundei com duas colegas – Carolina Marinho e Maria Inês de Almeida – o jornal literário Expresso, que durou pouco, mas serviu como um interessante exercício literário-cultural naquele momento. Acrescente- se a isso o prêmio que recebi no concurso de poemas da Revista Literária do Corpo Discente da UFMG, em 1984, além de uma menção honrosa na categoria conto. Já no início de 1983, eu já havia me distanciado da militância política e me desvencilhado de qualquer vínculo partidário, convicta de que minha liberdade de criação e pensamento era necessária ao exercício do trabalho crítico-literário. No curso de Letras, as tentações eram muitas. Graças aos meus inesquecíveis professores desses anos, desdobrei-me em três ao mesmo tempo: a aspirante a helenista, a interessada em linguística e a apaixonada pelos estudos literários. Além de Jacyntho, atuavam também no curso alguns professores fundamentais para a minha formação: Mário Alberto Perini, um dos meus professores mais queridos, que me introduziu aos estudos linguísticos; Lúcia Castello Branco, que me encantou com suas belas aulas de literatura portuguesa; e as inesquecíveis professoras de Teoria da Literatura, Ângela Senra, Eneida Maria de Souza, Graça Paulino, Ivete Camargos Walty, Maria Helena Rabelo Campos, Maria Nazareth Fonseca, Maria Zilda Ferreira Cury, Nancy Maria Mendes, Vera Casa Nova e Vera Lúcia Andrade. Para não mencionar os meus queridos mestres de literatura brasileira, Antônio Sérgio Bueno, Ana Maria de Almeida, Letícia Malard, Melânia Silva Aguiar, Ruth Silviano Brandão, Tarcísio Ferreira e Wilton Cardoso – este, prestes a se aposentar compulsoriamente, e com quem tive inesquecíveis aulas sobre Machado de Assis. Por fim, consegui uma das vagas de monitoria de Teoria da Literatura, juntamente com Marcus Vinícius de Freitas, que se tornaria também professor da Letras/UFMG no mesmo período que eu. A partir de então, comecei a conviver de maneira mais intensa com as referidas professoras do Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura, pelas quais passei a nutrir uma grande admiração e com quem, até hoje, mantenho laços de afeto e amizade. A esse rol de professoras somou-se, Maria Esther Maciel 59

depois, a grande mestra Maria Luíza Ramos, que, já aposentada quando ingressei no curso, voltou a oferecer disciplinas eventuais e palestras na nossa faculdade. Vale mencionar, ainda, que a minha estreia em um evento acadêmico foi nesse período de graduação, mais precisamente em maio de 1984, no I Congresso Nacional de Estudos Clássicos, sediado em Belo Horizonte. Estimulada pelo Prof. Jacyntho – que se empenhava na criação da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC), fundada oficialmente em 1985 –, apresentei a comunicação intitulada “A sedução do silêncio: o mito das sereias em Homero e Kafka”, escrita a partir das aulas do próprio Jacyntho e as de um recém-contratado professor, Flávio René Kothe, que permaneceu por pouco tempo na UFMG e de quem fui assistente por um semestre, tendo assumido algumas de suas aulas na graduação. Também em 1984 tive meu primeiro artigo publicado numa revista acadêmica: “O ser e o nada em Álvaro de Campos”, que saiu no antigo Boletim do Centro de Estudos Portugueses da FALE. Foi uma tentativa de fazer uma leitura existencialista do heterônimo de Fernando Pessoa. Formei-me em meados de 1985, depois de um último ano bastante turbulento por causa de uma série de abalos em minha vida pessoal. E, no mesmo ano, resolvi submeter-me ao exame de seleção para o mestrado em Literatura Brasileira. Fui aprovada com um projeto sobre a poesia inclassificável de Augusto dos Anjos e iniciei o curso em março de 1986, sob a orientação de Maria Zilda Ferreira Cury. Na minha turma de mestrado estavam colegas que, um pouco mais tarde, também ingressariam na Faculdade de Letras como professores: Maria Cecília Boechat, Marcus Vinícius de Freitas e José Américo Miranda. Foi nessa ocasião que conheci Maria Clara Versiani Galery, também aluna do curso, e hoje professora de literaturas de língua inglesa na UFOP. Com ela iniciei, naquela época, uma parceria intelectual e uma grande amizade – que continua viva e intensa até hoje. Muitas mudanças aconteceram naqueles anos: casei-me em 1987 e, no ano seguinte, tive meu filho Ricardo. Fui levada, assim, a conciliar o exercício de mãe com o trabalho acadêmico, o que me exigiu bastante lucidez e flexibilidade. Tais mudanças não impediram, entretanto, que eu apresentasse, em uma mesa-redonda na FALE, uma comunicação baseada no trabalho de conclusão de uma disciplina sobre o romance O nome da rosa, de Umberto Eco, ministrada por Eneida Maria de Souza no primeiro semestre de 1988. Intitulado “A mídia-Idade-Média de Umberto Eco: o pós-moderno em O nome da rosa”, esse trabalho foi publicado, no final desse mesmo ano, na Revista do Departamento de História (UFMG). 60 Maria Esther Maciel

Defendi minha dissertação O cemitério de papel: sobre a atopia do Eu de Augusto dos Anjos em março de 1990, depois de passar três meses com o pequeno Ricardo na casa de meu pai, em Patos de Minas, quando pude me dedicar com mais tranquilidade ao processo de escrita do trabalho. A defesa aconteceu no dia 6 de agosto de 1990. Na banca examinadora, estavam a minha orientadora, Maria Zilda, e as professoras Melânia Silva Aguiar e Lúcia Castello Branco, que aprovaram o trabalho com louvor. Nesse mesmo ano, iniciei meus estudos de doutorado em Literatura Comparada, após ter sido aprovada em 1o Lugar no exame de seleção, com um projeto sobre a conjunção poesia/crítica na obra de Octavio Paz, do qual a Profa. Ruth Silviano Brandão Lopes assumiu a orientação. Esse tema surgiu não apenas a partir de minha “paixão crítica” pela obra de Paz, como também do fascínio pela linhagem dos poetas-críticos modernos. Uma disciplina sobre João Cabral de Melo Neto, oferecida pela saudosa Profa. Melânia no mestrado, foi essencial para que eu seguisse esse viés no doutorado. Lembro-me, inclusive, de ter escrito um trabalho final para essa disciplina sobre o livro Agrestes, de Cabral, em que enfatizei exatamente esse viés da conjunção criação/ reflexão. Esse trabalho foi apresentado no 2o Congresso Brasileiro da ABRALIC, em Belo Horizonte, 1990, com o título “As vertigens da lucidez em Agrestes, de João Cabral de Melo Neto”. Tão logo comecei a frequentar as disciplinas do doutorado, surgiu a notícia de um concurso para o cargo de Professor Assistente de Literatura Portuguesa na FALE. Eu, que já assumira aulas de literatura brasileira na FAFI-BH e no Pré-Vestibular Pitágoras, fiquei entusiasmada com a possibilidade de lecionar na UFMG. Incentivada por amigos e professores, resolvi, então, candidatar-me à vaga. Meu interesse por Portugal e sua literatura era grande, graças, sobretudo, às incríveis aulas de Lúcia Castello Branco e ao meu precoce contato com as obras de alguns autores portugueses, como Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Florbela Espanca e Cesário Verde. O que se deveu, aliás, a um erudito livreiro de minha cidade natal, que sabia de cor partes de Os Lusíadas e me orientou na leitura dos clássicos portugueses quando eu era ainda uma adolescente. Decidida a me submeter aos exames, procurei a Profa. Lélia Parreira Duarte, então diretora do Centro de Estudos Portugueses da FALE, e pedi-lhe ajuda bibliográfica para a preparação dos pontos do concurso. Generosamente, ela me sugeriu leituras e emprestou várias obras importantes, o que me possibilitou uma preparação adequada. Como relato no verbete/capítulo “D de Docência”, os pontos sorteados para a prova escrita e a didática foram, respectivamente, “Poesia 61: a textualização da palavra no poema” e “Nas bordas da Maria Esther Maciel 61

ficção e da história: José Saramago”. No caso da aula, abordei o romance A História do cerco de Lisboa. Para minha surpresa, passei em 1o Lugar no concurso e ganhei a vaga de professora, sendo contratada no dia 30 de abril de 1991, menos de um mês antes de conhecer José Olympio Borges, meu segundo marido e grande parceiro intelectual, cuja cumplicidade seria fundamental ao longo de toda a minha trajetória acadêmica, até seu falecimento em julho de 2013. Com José Olympio, minha formação ganhou um novo impulso e um novo sentido, pelo vívido diálogo que sempre mantivemos em torno da literatura e das artes, pelas viagens que fizemos juntos pelo mundo, pelos livros raros que me apresentou, os autores que, graças a ele, conheci, e o trabalho de escrita a que me entreguei graças ao seu incentivo. Não à toa, dediquei-lhe todos os meus livros publicados desde então. Assim, aos 28 anos de idade, comecei uma nova e longa etapa de minha vida pessoal e profissional. Digo que a preparação para o concurso docente me deu uma base considerável para que eu pudesse avançar em novas trilhas nos estudos e pesquisa de literatura portuguesa. Como meu projeto de doutorado era na área de Literatura Comparada e centrado na conjunção poesia/crítica, passei a focalizar a poesia portuguesa também sob essa perspectiva. Foi assim que me enveredei na obra dos poetas-críticos portugueses, chegando até as vanguardas da segunda metade do século XX. Não mudei, contudo, o foco de minha pesquisa de doutorado sobre a obra de Octavio Paz, mesmo tendo resolvido ampliar a abordagem da tradição dos poetas-críticos a que se filiava o autor mexicano. Fernando Pessoa, nesse período, mereceu uma atenção especial de minha parte, sobretudo porque havia um elo entre ele e Paz, visto que foi este quem o divulgou no México e em outros países de língua espanhola, tendo escrito pelo menos dois ensaios de grande relevância sobre o poeta português e seus heterônimos. Eu sabia que estava irremediavelmente “condenada” ao comparativismo e à interdisciplinaridade, e não me esforcei para me especializar em uma literatura nacional. Pelo contrário, o desejo era abrir cada vez mais o leque de autores, obras, nacionalidades, culturas e campos do saber. No doutorado, tive professores que foram extremamente importantes para esse meu exercício de pluralidade e interseções: Wander Melo Miranda, de quem fui aluna numa disciplina sobre comparativismo na América Latina; minha orientadora Ruth Silviano Brandão, que atuava na interface literatura/psicanálise, e, como sempre, Eneida Maria de Souza, com quem aprendi a ser contemporânea do meu próprio tempo e assumir uma visão prismática das teorias críticas do passado e do presente. Meus colegas de curso (hoje meus colegas de profissão) também contribuíram para que eu pudesse afirmar esse perfil: 62 Maria Esther Maciel

Georg Otte, Eliana Lourenço Lima Reis, Teodoro Rennó Assunção e Luis Alberto Brandão Santos. Em janeiro de 1993, tendo já cumprido os meus créditos no doutorado, fiz, com José Olympio, uma viagem ao México, com fins de pesquisa para a tese. Foi minha primeira viagem internacional. O impacto que a Cidade do México me causou foi enorme. Hospedamo- nos na casa de parentes de meu marido, num lugar muito lindo, chamado Lomas del Recuerdo. Já nos primeiros dias de nossa permanência, percebi que havia várias cidades dentro da Cidade do México. Cada esquina contradizia, desdobrava ou reinventava as demais. Aos poucos, fui me dando conta de que passado e presente, tradição e modernidade, pobreza e riqueza se mesclavam num espaço de múltiplos cenários, cores, formas, aromas e ruídos. Isso me fez entender um pouco mais Octavio Paz. Do centro histórico (onde se veem vestígios de culturas pré-colombianas e coloniais) à fervilhante Zona Rosa e ao elegante bairro de Polanco, passando pelo Bosque de Chapultepec, com seus imperdíveis museus, tudo me fascinou naquela viagem. Hoje, não tenho dúvida de que a Cidade do México continua sendo uma de minhas pátrias íntimas, e que descobri essa minha “nacionalidade oblíqua” quando conheci o Museu Nacional de Antropologia e me emocionei diante da “Piedra de Sol” – a célebre escultura circular, conhecida como calendário asteca, mas que na verdade representa a cosmologia de uma das mais esplendorosas civilizações pré-colombianas que já existiram. Antes de partir para lá, Haroldo de Campos, com quem eu estava em diálogo a propósito de Paz, sugeriu-me que procurasse o escritor e professor da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM) Manuel Ulacia, que poderia me ajudar na pesquisa. Assim o fiz. Ulacia, que era casado com um brasileiro, Horácio Costa, de quem eu me tornaria amiga meses depois, recebeu-me com generosidade e solicitude em sua casa. Além de ter me oferecido livros e artigos de sua autoria, pôs-me em contato com Aurelio Asiain, secretário de Paz e também editor da revista Vuelta, fundada pelo poeta mexicano. Passou-me, ainda, o contato do escritor Alberto Ruy-Sánchez, também editor da belíssima revista Artes de México, que tinha escrito o livro biográfico Una introducción a Octavio Paz (1990). Não apenas consegui, por intermédio do editor da Vuelta, um encontro com o meu poeta mexicano, como também pude visitar Ruy-Sánchez, de quem me tornei amiga e com quem mantive uma interessante interlocução após minha volta ao Brasil. Cheguei, inclusive, a entrevistá-lo, tempos depois, para a revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional. Maria Esther Maciel 63

O encontro com Octavio Paz, que na época já tinha recebido o Prêmio Nobel de Literatura, deu-se por ocasião de um jantar na Embaixada do Japão no México, quando ele lançou sua tradução dos poemas de Matsuo Bashô e proferiu uma palestra sobre o tema. Segundo me informou seu secretário, Paz conversaria comigo e José Olympio após o jantar, o que de fato aconteceu. Digo que o que mais me chamou a atenção na palestra do poeta foi a firme e suave sonoridade de sua voz. Discorrendo com desenvoltura sobre as particularidades da poesia japonesa do século XVII, Paz deixava transparecer nos silêncios e modulações de sua fala uma cumplicidade amorosa com as palavras, como se as afagasse pela voz. Com isso, conseguiu criar no ambiente uma atmosfera poética, quase religiosa, que a todos contagiou. Nesse momento, tive a certeza de estar diante de um poeta verdadeiro, um poeta em permanente estado de lucidez e vertigem, capaz de sustentar um pacto de vida e morte com a poesia. Nossa conversa foi breve, mas intensa. Falei-lhe da tese que escreveria sobre sua obra, e ele, com gentileza, disse que gostaria de ler o trabalho quando estivesse pronto. Deu-me seu endereço particular para que eu lhe enviasse um exemplar do trabalho e sugeriu que eu entrasse em contato também com o embaixador Celso Lafer, de quem era amigo e que havia escrito sobre sua obra. Recebi, ainda, seu autógrafo num volume de sua Poesia Completa, que eu havia comprado numa livraria mexicana, um dia antes. Após quatro semanas de pesquisa na Cidade do México, voltamos ao Brasil. Eu estava pronta para iniciar a escrita da tese, que ficaria concluída no final de 1994. Dois meses após o retorno ao Brasil, procurei Haroldo de Campos, que tinha se prontificado a me conceder uma entrevista sobre a obra paziana. A conversa foi realizada em sua casa, em São Paulo, e publicada, após a defesa, na revista Nossa América/Nuestra América, do Memorial da América Latina. Ainda tive a chance de voltar ao México nas férias de janeiro de 1995, já que a defesa só ocorreria no dia 10 de março. Fui até o apartamento do poeta, no Paseo de la Reforma, e deixei com sua funcionária um exemplar da tese, acompanhada de um cartão. A defesa ocorreu no dia 10 de março de 1995, com uma banca formada pelos professores Lucia Helena, Amálio Pinheiro, Eneida Maria de Souza e Maria Zilda Ferreira Cury, que aprovaram a tese com louvor e a recomendaram para publicação – o que se consumou naquele mesmo ano, pela antiga editora Experimento, de São Paulo. Com o título de doutora em Literatura Comparada, entusiasmada com a literatura latino-americana e disposta a investir cada vez mais no comparativismo, decidi, no ano seguinte, solicitar minha transferência 64 Maria Esther Maciel

para o Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura. Aceito o meu pedido, iniciei, assim, uma outra etapa, rumo ao processo de afirmação e solidificação de minha vida acadêmica. Mas, como foi dito no começo deste capítulo, sem abrir mão do acaso, dos desvios e das surpresas. Maria Esther Maciel 65



G de GREENAWAY correlatos: C de Cinema; E de Enciclopédia; I de Inventário; L de Livro; S de Sei Shonagon; T de Trans Peter Greenaway nasceu no País de Gales, em 1942, tendo passado a maior parte de sua vida em Londres. Hoje, vive na Holanda. Formou-se em artes plásticas e depois passou a fazer trabalhos de montagem e edição de documentários para o governo inglês. Aproveitou as técnicas usadas na confecção dos filmes oficiais para a feitura de seus primeiros curtas – documentários ficcionais, com nítida relação paródica com os filmes do governo. Realizou vários filmes de repercussão internacional. Nos últimos anos, passou a se dedicar também a óperas e instalações, além de expor seus trabalhos como pintor. Tem, ainda, atuado como curador de grandes exposições em museus da Europa, escrito livros de contos e ensaios.



Descobri o cinema de Peter Greenaway quando vi, em Belo Horizonte, o filme O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989), que não tem, explicitamente, nenhum vínculo com a literatura. Mas fascinou-me, nesse trabalho, a plasticidade, a estrutura seriada, em forma de catálogo, e a profusão de referências culturais. Só mais tarde descobri os vínculos que o cineasta mantinha com a literatura, mais precisamente quando assisti ao filme A última tempestade (Prospero’s books, 1991), que tem como base a peça A tempestade, de Shakespeare. Em seguida, vi O livro de cabeceira (The pillow book, 1996), que toma como base o diário de uma escritora japonesa do século décimo, além do vídeo A TV Dante (1989), que reinventa por vias radicais oito cantos do “Inferno” de Dante. Com isso, comecei a me interessar mais efetivamente pela obra do cineasta e decidi torná-lo objeto de minha pesquisa de pós-doutorado, à luz dos artifícios de Jorge Luis Borges. (Ver o verbete/capítulo “A de Artifício”.) Em Londres, para onde me mudei para desenvolver essa pesquisa, entrei em contato com o cineasta e obtive dele a autorização para consultar seus arquivos no escritório que mantinha em Hammersmith, região centro-oeste de Londres. Lá, tive acesso aos seus filmes mais antigos, como os curtas realizados nos anos 1970 e 1980, bem como a roteiros de diversos filmes e catálogos de exposição que ele tinha realizado em diferentes países europeus. Desde então, meu projeto de pesquisa passou a incorporar outras obras do cineasta-artista, o que me possibilitou avançar consideravelmente no tema da pesquisa. Quando voltei para o Brasil, eu dispunha de um rico material, sobre o qual pude preparar artigos, cursos e palestras, com ênfase nos artifícios ficcionais do cineasta, bem como nos jogos taxonômicos usados por ele. Vale lembrar que a primeira fase de Greenaway foi toda experi- mental e voltada para os procedimentos paródicos de ficcionalização de artifícios burocráticos usados pelos órgãos oficiais. Foi também nesse período que ele teve contato com a literatura de Borges e Calvino – uma descoberta fundamental, sobretudo no que tange ao uso criativo dos sistemas de classificação. Outro aspecto importante desse contato de Greenaway com a literatura diz respeito aos artifícios autorais. Sabe-se que nos primeiros filmes ele já lidava como o jogo das identidades falsas, mas isso se acentuou nos últimos trabalhos, em especial naqueles que trazem à tona seu antigo personagem e alter ego, Tulse Luper – surgido nos anos 1970 e caracterizado como cineasta, escritor, artista, falsário e viajante, que sai pelo mundo todo colecionando objetos e passa por uma série de prisões. O que evidencia o ainda vivo interesse de Greenaway pelas estratégias ficcionais da literatura, potencializadas pelo uso das tecnologias de ponta do nosso tempo. Maria Esther Maciel 69

Se, num primeiro momento, o foco central de minha pesquisa recaiu nas afinidades entre Greenaway e Borges, na medida em que fui tendo acesso a outros trabalhos do cineasta dei-me conta da necessidade de um estudo mais detalhado e mais abrangente sobre as relações entre Greenaway, a literatura e outras artes. Borges, sem dúvida, continuou sendo a principal referência para esse estudo, mas achei pertinente também investigar as estratégias utilizadas pelo diretor para lidar com obras literárias de outros autores, como Dante, Shakespeare, Sei Shonagon, Carroll e Joyce (este apontado pelo cineasta como um dos seus “heróis” literários). Além disso, como eu dispunha de vários textos literários do próprio Greenaway, considerei relevante uma avaliação de seu trabalho como escritor. Tudo isso, sem dúvida, associado ao tema principal de minha pesquisa, que foi a “estética do artifício”. O filme O livro de cabeceira, a partir daí, tornou-se um dos principais focos de meus estudos e me conduziu aos aspectos poéticos da linguagem cinematográfica do cineasta. Isso, por se tratar de um filme que não apenas tem como referência principal uma obra poética da literatura medieval japonesa, mas também problematiza a própria questão da literatura, do ato de escrever, do texto enquanto materialidade e experiência erótica. Retoma, inclusive, a proposta ideogramática de Eisenstein, ao conjugar a linguagem do cinema com a linguagem dos hieróglifos orientais e extrair daí uma visualidade concentrada e sinestésica. Não à toa Greenaway escolheu, como base, uma obra literária sem enredo, cheio de listas poéticas e apontamentos sobre a natureza e o mundo prosaico, criando, a partir disso, um enredo para o filme e transformando a escritora Sei Shonagon em uma personagem contemporânea. Foi esse filme, aliás, que me levou às investigações sobre a presença da poesia no cinema, detalhadas no verbete-capítulo “C de Cinema”. Entre os trabalhos que realizei sobre a obra do cineasta britânico, eu destacaria a organização e publicação do livro O cinema enciclopédico de Peter Greenaway, que inclui ensaios de colaboradores nacionais e estrangeiros de áreas distintas, que enfocam os filmes, óperas, trabalhos de artes plásticas, textos literários e instalações do diretor britânico a partir de uma perspectiva aberta e transdisciplinar. Anos depois, preparei uma seleção de ensaios, contos e roteiros ficcionais de Greenaway, traduzidos em parceria com Myriam Ávila e Maria Clara Versiani Galery, que foi publicada em 2011, na coleção “Viva Voz” da FALE, sob o título Textos em movimento: narrativas e ensaios de Peter Greenaway. Nesse caderno, que teve circulação interna, tentei evidenciar como o artista, na escrita literária e ensaística, desvia-se do caráter barroco-experimental dos seus filmes, compondo textos 70 Maria Esther Maciel

límpidos e lineares, de fácil compreensão, sem deixar de se valer de inventivos recursos de composição. Dois dos ensaios-roteiros de Greenaway, em tradução minha, foram incluídos também no catálogo da Mostra Peter Greenaway, organizado por Pedro Nogueira, com apoio do Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro, em 2016. Entre o início de minha pesquisa e o ano de 2016, escrevi e publiquei ainda uma série de artigos sobre o cinema e outros trabalhos criativos do diretor, dentre os quais destaco cinco: “Peter Greenaway, lector de Jorge Luis Borges”, na revista Variaciones Borges (Aarhus, 2000), “Os infernos de Peter Greenaway”, na revista Devires – Cinema e Humanidades (Belo Horizonte, 2003); “Greenaway’s Encyclopaedism”, em Theory, Culture & Society Journal (London, 2006); “Corpo, imagem e escrita”, na Revista da UFMG (Belo Horizonte, 2012) e “A enciclopédia experimental de Peter Greenaway”, no catálogo da Mostra Peter Greenaway (Rio de Janeiro, 2016). Ministrei algumas disciplinas na graduação e na pós-graduação, além de ter oferecido pelo menos cinco cursos de extensão sobre a obra do cineasta, em diferentes cidades brasileiras. Curioso como meus estudos sobre Greenaway possibilitaram-me uma interlocução com pesquisadores de outras áreas que não a de Letras e levaram-me a atuar em diferentes instituições acadêmicas e culturais do Brasil e do exterior. Além disso, posso garantir que foi graças a esses estudos que passei a trabalhar de maneira mais efetiva com cinema e artes plásticas, numa perspectiva mais transdisciplinar. A isso se soma ainda a abertura, para o meu trabalho, de um novo campo de pesquisa: a dos usos crítico-criativos dos sistemas de classificação do mundo e do conhecimento em obras literárias, fílmicas e artísticas de vários autores, épocas e culturas, objeto de meu primeiro projeto de pesquisa apoiado pelo CNPq, Poéticas do Inventário. A pesquisa sobre Greenaway possibilitou-me, ainda, retomar a tradição enciclopédica desde o mundo antigo até o presente, de forma a problematizar o que chamei de “enciclopédias ficcionais” criadas por escritores e artistas modernos e contemporâneos. Sobre isso, ver o verbete “E de Enciclopédia”. Estou certa de que Greenaway continua a instigar meus interesses, por ainda ser um dos poucos cineastas contemporâneos que ousam na experimentação de novas formas e linguagens, sem que isso signifique uma recusa do passado. Ele tem levado, cada vez mais, o cinema a transbordar seus próprios limites e a expandir-se para além da tela, como atesta o seu projeto multimídia As maletas de Tulse Luper (The Tulse Luper Suitcases) – um work in progress iniciado em 2000, que inclui três filmes, sites, livros, exposições, óperas e instalações, e sobre o qual tive a oportunidade de fazer algumas palestras. Maria Esther Maciel 71

Entre outros temas abordados na obra do cineasta, cito o das viagens e dos mapas imaginários, das biografias apócrifas, das estatísticas absurdas e dos livros fantásticos. Muitos deles aparecem, com mais detalhes, em outras partes deste memorial, visto que a obra do cineasta, artista e escritor se dissemina em vários campos de reflexão. Digo que a erudição criativa de Greenaway – que, por muito tempo, possibilitou-lhe trazer para um mesmo topos o legado cultural de diferentes tradições do passado, as experimentações da vanguarda, as inovações tecnológicas e as referências culturais do presente – continua ativa, embora, a meu ver, sem a mesma popularidade alcançada anos atrás. Talvez sua recusa radical em se submeter às demandas do mercado cinematográfico contemporâneo, bem como às exigências para o financiamento de seus projetos tenha contribuído para que seus últimos trabalhos não tenham tido a repercussão internacional de antes. O que, sem dúvida, só reforça a coerência de Greenaway com a radicalidade dos princípios estético-políticos que vem defendendo ao longo de sua trajetória criativa. 72 Maria Esther Maciel

H de HIBRIDISMO correlatos: E de Enciclopédia; G de Greenaway; J de John Coetzee; X de Xadrez; Z de Zoo, Et Cetera [Do gr. Hybris, pelo lat. Hybrida + ismo] S.m. 1. Hibridez. 2. Palavra formada por elementos tomados a línguas diversas. 3. Mestiçagem. 4. Cruzamento de diferentes espécies animais e vegetais. Condição do que participa de dois ou mais conjuntos, gêneros e estilos. 5. Fenômeno das misturas culturais.



A ideia do “inclassificável” capturou-me desde o momento em que comecei a investigar as insuficiências dos sistemas taxonômicos usados para categorizar de forma satisfatória as coisas e os conhecimentos do mundo. Graças a um intrigante livro de Georges Perec, Penser/classer (1985), comecei a pensar o lugar/ não lugar daquilo que se desvia das classificações, seja por conter características próprias de várias categorias instituídas, seja por se furtar a qualquer uma delas. A partir de minhas pesquisas sobre o tema, acabei por encontrar na figura do ornitorrinco um ponto de referência para as minhas reflexões. Como um animal híbrido, com características de mamífero, ave e peixe ao mesmo tempo, sabe-se que ele desafiou os conhecimentos dos taxonomistas ingleses quando foi encontrado na Austrália, em fins do século XVII. Dessa forma, converteu-se num símbolo daquilo que, por causa de uma condição híbrida, nunca pôde ser classificado de maneira convincente. Cheguei a escrever um ensaio, em forma de verbete, sobre o conceito de “inclassificável” para uma revista britânica, em 2006, em que detalho as configurações do animal. Interessante que, mesmo antes de ingressar como professora na UFMG, eu já tinha me ocupado da condição daquilo que é inclassificável, por meio da palavra atopos, para caracterizar a estranha poesia de Augusto dos Anjos, objeto de minha dissertação de mestrado, defendida em 1990. Uma poesia, como se sabe, que atravessa muitos estilos e escolas ao mesmo tempo, sem se circunscrever a nenhuma, permanecendo única na história da literatura brasileira. Na ocasião, vali-me de uma definição de Roland Barthes, que, nos Fragmentos de um discurso amoroso, usou a palavra atopos para designar precisamente “o inclassificável, de uma originalidade sempre imprevista” (BARTHES,1981, p. 81). Articulei-a, depois, a outras definições extraídas de um dicionário de grego, como “aquilo ou aquele que não se fixa em um lugar, o que é estranho, extraordinário, insólito e inconveniente”. Tomando esse conjunto de significados, a que acrescentei outras contribuições de pensadores contemporâneos, como Blanchot, pude converter a palavra em um conceito operacional para a leitura da obra de Augusto dos Anjos e, posteriormente, de outros autores singulares. Só muito tempo depois, ao escrever o referido ensaio/verbete sobre “o inclassificável”, retomei essa noção de atopia, articulando-a aos conceitos de ubiquidade e hibridismo. Foi aí que comecei a lidar não apenas com as misturas de gêneros textuais na literatura, mas também com os cruzamentos estéticos e midiáticos na cultura contemporânea – neste caso, via Peter Greenaway. Mas não me detive nesse ponto, já que em seguida, motivada pela obra de Arthur Bispo do Rosário, passei a incursionar também no campo das mestiçagens culturais, encontrando Maria Esther Maciel 75

no livro O pensamento mestiço, de Serge Gruzinski, uma referência teórica importante para meus estudos nesse campo. Em 2014, voltei a essa discussão das mestiçagens ao abordar uma das linhas de força da literatura brasileira contemporânea, voltada para a mistura de línguas, elementos das culturas ameríndias e afro-brasileiras, além de referências geográficas e culturais de diferentes países. Sobre isso, apresentei uma palestra na Feira do Livro de Gotemburgo, detendo- me nos escritos de autores como Wilson Bueno, Josely Baptista Vianna, Sérgio Medeiros, Ricardo Aleixo e Edimilson de Almeida Pereira. Vale mencionar, entretanto, que eu já tinha levantado esses mesmos aspectos na obra de Wilson Bueno tempos atrás, quando desenvolvi minha pesquisa do CNPq intitulada Bestiários contemporâneos, uma vez que o autor paranaense escreveu dois bestiários (Manual de zoofilia e Jardim zoológico), em que se vale do processo de montagem de elementos heterogêneos para compor tanto os seus animais híbridos, fronteiriços e transnacionais, como também os seus textos – mistura de poesia, narrativa, descrição e verbete. Como um dos objetos dessa minha pesquisa, a obra de Bueno pôde ser rastreada pela via das hibridações e abordada como um compósito de elementos mitológicos, lendas indígenas, referências literárias e diferentes espaços linguísticos e geográficos. Já no que se refere às escritas híbridas que se desviam das circunscrições de gênero literário, foram muitas as atividades que desenvolvi, desde 2005, entre publicações, palestras e condução de cursos. Num primeiro momento, interessou-me o amálgama poesia- prosa, o que me levou a uma investigação sobre essa prática ao longo dos tempos. Parti da assertiva de que as misturas existem desde que os gêneros surgiram, tendo sido elas a marca das manifestações literárias mais antigas, vide os textos bíblicos e os diálogos de Platão, dentre outros. Mesmo após o estabelecimento, a partir de Aristóteles, de uma taxonomia poética, os cruzamentos não deixaram de existir e a desafiar a “lei do gênero” (Derrida), tornando-se mecanismos de desvio e transgressão da normatividade. Outra constatação foi que as categorizações de gênero nunca se fixaram de maneira duradoura, haja vista as sucessivas mudanças de nomenclaturas e as variações taxonômicas que elas sofreram ao longo dos séculos. De Platão e Aristóteles a Horácio, Longino, Boileau, Hegel, Croce, Wellek e Warren, Emil Staiger, Jakobson e Todorov, muitas foram as tipologias, as hierarquias e as definições, o que evidencia que a classificação da literatura em gêneros sofreu as mesmas oscilações e crises dos sistemas taxonômicos do Ocidente. 76 Maria Esther Maciel

Se, a partir do final do século XVII, com os românticos alemães, a mistura de gêneros passou a ser praticada na modernidade como um valor estético, foi com Baudelaire que o cruzamento poesia/prosa converteu-se numa prática efetivamente moderna, graças ao livro Poemas em prosa, de 1862. Experiência radicalizada anos depois por Rimbaud e, sobretudo, Mallarmé, com o poema “Un coup de dés” – poetas que evidenciaram de maneira incisiva o esgotamento dos limites proibitivos que regiam a taxonomia literária de linhagem clássica. Mas como meu foco era a literatura contemporânea, parti para a pesquisa sobre essas hibridações ao longo da segunda metade do século XX e início do século XXI, com ênfase na literatura hispano- americana e, sobretudo, brasileira. Octavio Paz, Haroldo de Campos, Paulo Leminski, Ana Cristina César, Armando Freitas Filho e vários outros autores entraram, assim, no meu repertório de investigação sobre o tema. Escrevi alguns artigos voltados para obras híbridas desses escritores, partindo de O mono gramático, de Paz – em que o autor mescla narrativa, poesia, relato de viagem e ensaio –, passando pelas Galáxias, de Campos – prosa poética experimental –, até chegar às heterogêneas composições poéticas dos poetas brasileiros dos anos 1980, que misturam em sua poesia distintos registros textuais: de fragmentos de diário íntimo a listas, verbetes, anúncios etc. Sobre isso, publiquei três artigos: “Travessias de gênero na literatura contemporânea”, na revista Poesia Sempre (2006); “Escritas híbridas na poesia brasileira dos anos 70 e 80”, incluído no livro Experiencia, cuerpo y subjetividades (2007), organizado por Florencia Garramuño, Gonzalo Aguilar e Luciana de Leone, e “Poéticas do inclassificável: hibridismo textual na literatura contemporânea”, um dos capítulos do meu livro As ironias da ordem. Ao desenvolver esses trabalhos, encontrei um referencial teórico bastante instigante sobre a questão, principalmente em textos de Derrida (em especial o ensaio “A lei do gênero”) e de Marjorie Perloff (Postmodern Genres) – pensadores que discutiram a pertinência da taxonomia de gêneros literários, propondo sua reconfiguração sob parâmetros consonantes com o estado de coisas atual. À medida que fui avançando em minhas leituras e reflexões sobre as diversas formas de hibridismo na literatura contemporânea, bem como sobre os híbridos no campo da zoologia e da botânica, cheguei a um outro termo que, aos poucos, converti também em um conceito: o de escrita “transgênica”. A primeira vez em que o utilizei foi numa palestra no Itaú Cultural (SP), quando fui convidada a falar sobre os rumos da literatura brasileira contemporânea. Maria Esther Maciel 77

Para chegar a essa noção, parti da própria complexidade da palavra gênero, que possui vários sentidos e usos conceituais em campos disciplinares diferentes. Derivada do latim genus/generis (família, espécie), associa-se ainda, por homofonia, com as palavras gene e genética (do grego génesis: geração, criação). Entre as acepções do vocábulo, encontramos o gênero enquanto genre (em inglês), pertinente ao campo da taxonomia literária e que aponta para uma modalidade de texto. É uma designação moderna, surgida no século XVII. Existe também o gênero no sentido de gender, que significa uma subclasse dentro de uma classe gramatical (nome, pronome, adjetivo, verbo) e que demanda uma flexão. Acepção esta largamente usada no campo dos estudos culturais contemporâneos para designar as diferenças de ordem comportamental, psíquica e cultural associadas ao sexo (masculino/ feminino). Acrescente-se ainda a noção de gênero enquanto genus, classificação biológica. Assim, considerando as inegáveis afinidades entre essas noções, não achei descabido o uso do adjetivo transgênico – que, na biologia, significa “o animal ou o vegetal híbrido, que contém material genético tirado de outras espécies, através de técnicas da engenharia genética”– para designar o texto híbrido que se compõe de cruzamentos, enxertos, mesclas, justaposições de diferentes gêneros textuais. Do que poderia advir outra nomenclatura, “escrita transgênica”, certamente insuficiente e provisória como as demais. Talvez, mais do que nunca, neste tempo em que as fronteiras entre culturas, línguas, artes, estilos, espaços geográficos e campos do conhecimento se entrecruzam, abrindo-se cada vez mais à multiplicidade e à heterogeneidade, o termo “transgênico” – também indicando algumas “manipulações genéticas” – possa ter uma validade interessante e funcional. Vale acrescentar, por fim, que mesmo na minha escrita literária o exercício do hibridismo textual passou a se evidenciar de maneira explícita. Nos dois livros de ficção que publiquei, essa foi uma das linhas de força. O livro de Zenóbia é uma espécie de romance “transgênico”, em que se misturam vários tipos de texto: narrativa, poema, aforismo, verbete, lista, receita culinária e catálogo. Essa experiência de escrita híbrida repetiu-se em O livro dos nomes, em que procurei inserir a linguagem dos dicionários, das enciclopédias, das coleções, dos inventários, além de outros registros que sempre me fascinaram. O livro é uma espécie de dicionário ficcional, composto de várias narrativas avulsas que, entrelaçadas, formam um romance ou uma história desmontável. 78 Maria Esther Maciel

Outra prática a que me dediquei entre 2011 e 2014 foi a da escrita de crônicas, modalidade híbrida por excelência, que me possibilitou mesclar ensaio, narrativa, poesia e conversa prosaica. Tendo publicado esses textos semanalmente no jornal Estado de Minas, resolvi reuni-los, no final de 2014, no livro A vida ao redor. Assim, com essas experiências no campo acadêmico e no literário, pude, ao mesmo tempo, investigar, pensar e exercitar esse hibridismo que tanto me fascina. Não à toa, tenho cada vez mais me envolvido com obras contemporâneas que desafiam as classificações, como as de George Perec, W. G. Sebald, Lydia Davis, J. M. Coetzee, Enrique Vila-Matas e Anne Carson, que evidenciam o hibridismo como um valor de nossa época e, em suas formas mais radicais, o devir possível da literatura. Maria Esther Maciel 79



I de INVENTÁRIO correlatos: B de Borges; E de Enciclopédia; G de Greenaway; M de Memória; P de Poesia [Do lat. tard. inventariu.] S.m. 1. Relação dos bens deixados por alguém que morreu. 2. O documento ou papel em que se acham relacionados tais bens. 3. Lista discriminada, registro, relação, rol de mercadorias, bens etc. 4. Descrição ou enu- meração minuciosa. 5. Na poesia, pela afinidade sonora com as palavras “invento” e “invenção”, pode designar uma coleção de invenções poéticas.



Sempre fui fascinada por listas, coleções, enciclopédias e dicionários. Assim como sempre me instigaram os escritores e artistas capazes de incorporar em suas obras esses procedimentos de classificação por vias inusitadas e imprevisíveis. Foi o que me motivou a desenvolver a pesquisa sobre os usos crítico-criativos dos sistemas de classificação do mundo e do conhecimento, feitos por alguns autores contemporâneos. Apoiada pelo CNPq, iniciei essa investigação em 2004, com um projeto intitulado Poéticas do Inventário, a princípio centrado nos trabalhos de Jorge Luis Borges, Georges Perec, Peter Greenaway e Arthur Bispo do Rosário, mas com incursões em outros nomes da literatura, das artes e do cinema, como Italo Calvino, Milorad Pávitch, Carlos Drummond de Andrade e Eduardo Coutinho. A proposta foi investigar como esses autores reinventaram os modelos taxonômicos legitimados – na forma de enumerações, listas, catálogos, mapas, verbetes, bulas, receitas e dados estatísticos, entre outros – muitas vezes por meio de subversões da lógica ordenadora que os define. Esse tema passou, desde então, a incidir em praticamente todo o meu trabalho acadêmico. Ofereci disciplinas de graduação e pós- graduação sobre tais autores, orientei alunos, ministrei diversas palestras e publiquei livros e artigos. Mais uma vez, Borges deflagrou essa investigação, visto ter sido ele o primeiro autor em quem identifiquei esses recursos de maneira atenta. Inicialmente, o foco foi em sua poesia. Basta lembrar que, só no livro A cifra (1981), há pelo menos vinte e dois poemas pródigos em listas. Um aspecto que me chamou atenção em sua obra foi o uso da lista a serviço da memória, ou seja, como inventário de imagens, reminiscências e referências recolhidas ao longo da história de vida e de leituras do escritor. Poemas como “Elegia da lembrança impossível”, de A moeda de ferro, ou “Things that might have been”, de História da noite (1976), são alguns exemplos de coleções de lembranças. Para não mencionar as listas de objetos inseridas em poemas como “Inventário”, de A rosa profunda (1975), entre outros. O uso desse recurso em contos e ensaios também me mobilizou a atenção, a exemplo da lista que constitui a descrição do Aleph, que não deixa, também, de ser uma prosa poética ou um poema em prosa. Essa articulação entre poesia, inventário e memória levou-me, ainda, à obra de Carlos Drummond de Andrade, na qual me detive por um tempo e escrevi dois artigos temáticos: um deles, “A memória das coisas na poesia de Drummond”, publicado na Revista da Biblioteca Mário de Andrade em 2004, e o outro, “As ironias da ordem em Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa”, publicado na Revista Maria Esther Maciel 83

Brasileira de Literatura Comparada, em 2006. A inserção de Pessoa no artigo foi breve e pontual, mas possibilitou-me ler a poesia pessoana com um olhar que até então não me ocorrera. Ainda na esfera dos inventários poéticos, trabalhei com a poesia de Leminski e Ana Cristina César, compondo o artigo “El inventario poético de Paulo Leminski”, incluído no livro Leminskiana, organizado pelo professor argentino Mario Cámara e publicado em Buenos Aires, em 2006. Se a poesia foi para mim um campo fértil para a abordagem das poéticas do inventário, o romance, o cinema e as artes plásticas não foram menos produtivos. Perec, Greenaway, Eduardo Coutinho e Arthur Bispo ocuparam, durante um longo tempo, as minhas reflexões. Com relação ao cineasta britânico, eu já havia realizado uma pesquisa sobre ele, a qual explicito nos capítulos/verbetes “A de artificio” e “G de Greenaway”. No caso dos inventários, ative-me especialmente na ópera 100 objetos para representar o mundo, do cineasta, a que tive a oportunidade de assistir no Rio de Janeiro. Uma ópera multimídia, com estrutura serial, na qual o artista buscou inventariar as coisas que poderiam ser apresentadas a possíveis alienígenas como resumo do planeta Terra. Foi nessa ocasião que me ocorreu aproximar Greenaway de Bispo. Eu tinha visitado uma exposição do artista sergipano no Rio de Janeiro e identificado, no seu inventário de coisas para representar o mundo, similaridades com o projeto de Greenaway. Escrevi, então, um texto intitulado “Inventários do Mundo”, articulando os dois e evidenciando, é claro, suas diferenças. Estas, aliás, se inscrevem principalmente na maneira (subjetiva e cultural) como cada um realizou o seu intento – para Greenaway, um projeto; para Bispo, uma missão. Se a subjetividade de um é a da consciência irônica, atravessada por um excesso deliberadamente barroco, a do outro advém de uma cumplicidade visceral com a experiência e a realidade. Como pontuei no texto, enquanto um busca sua matéria-prima no espaço canônico da cultura ocidental, o outro recolhe a sua da precariedade material de sua existência cotidiana. Minha admiração por Bispo surgiu em 1990, quando vi pela primeira vez, em Belo Horizonte, uma exposição de sua obra, organizada pelo crítico de arte Frederico Morais. Dez anos depois, motivada por outras mostras do artista, resolvi pesquisar mais e escrever sobre ele. Reconheço que esse envolvimento com o trabalho de Bispo tem sido, até hoje, uma experiência extremamente gratificante. Graças a essa pesquisa, procurei o antigo diretor do Museu Bispo do Rosário na Colônia Juliano Moreira, no Rio – Ricardo Aquino –, que me permitiu visitar todo o acervo do artista. Cheguei a entrevistá-lo na ocasião para uma matéria publicada no jornal Estado de Minas. Mantive contato também 84 Maria Esther Maciel

com outras pessoas que pesquisavam a vida e obra de Bispo, como sua biógrafa Luciana Hidalgo (autora do livro O senhor do labirinto), que hoje é uma amiga e interlocutora. Por meio dela, inclusive, mantive um diálogo com o cineasta carioca Geraldo Motta Filho, que, na época, preparava um roteiro cinematográfico a partir do livro de Luciana. Tive o prazer de colaborar com ele, mesmo que informalmente, nesse processo. O filme demorou em ficar pronto, mas foi lançado em 2010 e premiado no Festival de Cinema do Rio. Foi também em função dessa pesquisa sobre Bispo que participei de um seminário sobre outro artista plástico, o cearense Leonilson, cuja obra tem afinidades com a do artista sergipano. O evento, chamado Arquivo e Memória – O Legado do Artista, aconteceu em maio de 2011, no Itaú Cultural, onde havia uma grande exposição de seu trabalho. Dividi uma mesa com os curadores da exposição, Ricardo Resende e Bitú Cassundé, e o crítico de arte Carlos Eduardo Riccioppo. Meu trabalho, “O inventário dos dias: notas sobre a poética de Leonilson”, foi posteriormente incluído num livro com reproduções dos principais trabalhos do artista, editado pela Fundação Iberê Camargo. Quanto ao cineasta Eduardo Coutinho, o meu enfoque de sua obra circunscreveu-se a dois de seus documentários – Edifício Master (2002) e Jogo de cena (2007) –, com ênfase não apenas no que chamei de “arquivo de vidas” que os constitui, mas também no jogo entre realidade e ficção. A leitura de Edifício Master foi apresentada, a convite da Profa. Eneida Maria de Souza, numa mesa sobre “cinema e biografia”, no Colóquio Internacional A Invenção do Arquivo II, realizado na Faculdade de Letras da UFMG em 2006. Na palestra, analisei as relações entre biografia, arquivo e coleção, detendo-me nesse documentário, que apresenta serialmente uma coleção de relatos de moradores de um prédio de Copacabana. Tentei mostrar como a série, o arquivo, o catálogo e o inventário foram reinventados nesse processo fílmico de construção de um arquivo vivo de pessoas anônimas que habitam o prédio. Em 2009, essa palestra, transformada no artigo “Vidas entrevistas: a biografia no filme Edifício Master, de Eduardo Coutinho”, foi publicada no livro Modernidades alternativas da América Latina, organizado por Eneida e Reinaldo Martiniano Marques. Em 2010, ampliei esse texto, incluindo o documentário Jogo de cena, para publicação no livro As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias ficcionais. Esse livro, aliás, foi o segundo com os resultados de minha pesquisa Poéticas do Inventário. O primeiro, A memória das coisas, saiu dois anos antes, pela editora Lamparina, do Rio de Janeiro. Todos os artigos que tinham sido esparsamente publicados em revistas ao longo da pesquisa foram reescritos e incluídos nesses dois volumes. O primeiro ficou, Maria Esther Maciel 85

inclusive, entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti (categoria teoria/ crítica literária) em 2005. Ainda dentro desse campo de investigação, surgiu a oportunidade de organizar, em parceria com Flora Süssekind, um evento na Fundação Casa Rui Barbosa sobre o tema. Ao longo de quase todo o ano de 2006, mantivemos um estreito diálogo em torno do evento, que ganhou o nome de Seminário Internacional Poéticas do Inventário: coleções, listas, séries e arquivos na cultura contemporânea e contou também com a colaboração do Prof. Jeffrey Schnapp, da Universidade de Stanford, EUA A questão dos inventários tornou-se tão relevante para a minha vida acadêmica e literária que não resisti à tentação de voltar a ela em diversas crônicas escritas entre 2011 e 2014. Nesse caso, obviamente, sem preocupações de ordem teórica e por uma via mais literária. Bispo, Borges, Greenaway, Perec e Coutinho estiveram presentes nesses escritos. O romancista turco Orhan Pamuk, com seu Museu da Inocência, também mereceu uma crônica. Assim como a artista gaúcha Elida Tessler, igualmente afeita a listas e coleções de objetos. Elida, a propósito, tem sido uma interlocutora preciosa nesse campo de estudos. Como é professora de artes visuais na UFRGS, chamou-me várias vezes para atividades relacionadas à pesquisa, seja em bancas de tese, seja em eventos e cursos. Além disso, esteve algumas vezes na UFMG para atividades semelhantes. Isso possibilitou uma rica troca de experiências, interesses e contribuições. Não há como não mencionar, ainda, a incidência dessa poética do inventário nos meus dois livros de ficção, nos quais me vali de alguns dos recursos explorados na pesquisa. Se as listas ocupam uma das partes de O livro de Zenóbia, os verbetes de dicionário são a base de O livro dos nomes. Em ambos, a ideia de “arquivo de vidas” está muito presente, assim como a de coleção. O que evidencia, mais uma vez, a indissociabilidade entre o acadêmico e o literário em minha trajetória de vida. 86 Maria Esther Maciel

J de JOHN COETZEE correlatos: A de Artifício; H de Hibridismo; L de Lucidez; Z de Zoo John Maxwell Coetzee, sul-africano de ascendência holandesa, nasceu em 1940. Desde 2002, vive na Austrália, onde leciona literatura na Universidade de Adelaide. Autor de vários livros de ficção e ensaios, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2003. Coetzee é vegetariano convicto, defensor dos direitos animais e não gosta de dar entrevistas. Quis candidatar-se, em 2014, a uma vaga no Parlamento Europeu pelo Partido dos Animais, da Holanda. Porém, sua candidatura foi rejeitada por ele não ter residência legal na União Europeia.



Quando, em 2003, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, J. M. Coetzee apresentou em Estocolmo um discurso em forma de narrativa ficcional, assumindo a persona literária de Robson Crusoé. Numa inversão de papéis, Crusoé – na condição de um homem velho, acostumado à solidão e à escassez de palavras – é quem discorre sobre seu autor Daniel Defoe – convertido, assim, em personagem. Afeito a estratégias ficcionais como essa, Coetzee já havia realizado outras palestras em forma de ficção, sob a máscara autoral de uma personagem, Elizabeth Costello, criada por ele como uma espécie de alter ego. Além disso, jogou com sua própria condição de autor, ao usar os recursos da autoficção já em seus primeiros romances, muito tempo antes de essa estratégia entrar em evidência na literatura atual. Como explicito no verbete/capítulo “A de Artifício”, ele chegou mesmo a escrever uma autobiografia em terceira pessoa, com diferentes narradores. Esse gosto do escritor sul-africano pelos embustes literários foi um dos motivos que me levaram à leitura de sua obra, em 2000, quando eu ainda residia em Londres para conduzir minha pesquisa sobre “estéticas do artifício”. Foi também nesse ano que adquiri seu então mais recente livro, Desonra (Disgrace), contemplado com o Booker Prize. A partir daí, não parei mais de ler os livros do escritor, que acabaria por se tornar o meu preferido entre os ficcionistas contemporâneos. Um dia após serem divulgados os nomes dos ganhadores do Prêmio Nobel 2003, recebi o telefonema de um dos editores da revista Ciência Hoje, Roberto Barros de Carvalho, perguntando se eu teria condições de escrever uma apresentação da obra de Coetzee para o especial que estavam preparando sobre os premiados do ano. Embora eu nunca tivesse escrito nada sobre o autor, topei o desafio e preparei um breve ensaio sobre ele, que saiu em dezembro de 2003. No texto, discuti o sentido político e cultural da escolha do nome de Coetzee para o prêmio, enfatizando suas peculiaridades no trato dos problemas raciais e sociais na África do Sul pós-Apartheid. Marquei também sua opção por uma abordagem que se desvia dos imperativos do ‘politicamente correto’ e dos dogmas da chamada literatura engajada, já que ele – avesso aos clichês e adepto de uma visão mais matizada das coisas – prefere ater-se às contradições dos fatos e acontecimentos, abordando os infernos da realidade a partir de experiências singulares de seus personagens, sem com isso deixar de compor um amplo e intrincado quadro do contexto em que vivem. Por causa desse texto, outras oportunidades para escrever sobre sua obra surgiram, e acabei por entrar de forma mais efetiva no universo do escritor. Maria Esther Maciel 89

Ao iniciar meus estudos sobre animais na literatura, em 2007, converti o seu A vida dos animais em um dos eixos de minha pesquisa. O livro, que reúne duas conferências atribuídas a Elisabeth Costello e discute as relações entre homens e animais não humanos na nossa civilização, não só chamou-me a atenção para outros pensadores, como Peter Singer e Marjorie Garber, como também despertou minha sensibilidade para a poesia “animal” do inglês Ted Hughes, que passou a integrar o meu corpus literário sobre o tema. A maneira polifônica com que Coetzee lida com as questões apresentadas nas “palestras” contribuiu para que eu também optasse por um enfoque mais aberto e plural de meu objeto de reflexão na pesquisa. À medida que fui percorrendo outras obras do autor, vi que a maioria delas abordava, explícita ou obliquamente, as questões do animal e das relações entre humanos e outros viventes, além de levar a discussão também para os campos da ética e da política. Desde o romance No coração do país (1977), diário ficcional de uma mulher insana e solitária que vive no meio rural da África do Sul entre insetos e em contato diário com os animais que cria (ou deixa morrerem) na sua decadente fazenda, essa é uma das preocupações do escritor. Dentre os demais livros, vale mencionar Foe (1986), em que Coetzee explora as interfaces entre domesticação e hominização, natureza e cultura, por meio da figura de Robinson Crusoé; Infância (1997), romance autobiográfico em que as relações entre humanos e animais no mundo rural são tratadas a partir dos primeiros impactos de uma criança diante da exploração e da matança cruel de animais no campo, e Diário de um ano ruim (2007), que apresenta algumas inserções ensaísticas do protagonista sobre a situação dos animais nas fazendas industriais de produção de carne e sobre outros temas de feição bioética. Mas é o romance Desonra que se revela o mais denso no trato dessa problemática e com a mesma complexidade com que são discutidas as relações entre brancos e negros, homens e mulheres no contexto da África do Sul pós-Apartheid. Não à toa, foi o livro dele que elegi para a fase final de minha pesquisa e sobre o qual pude escrever dois textos, como aponto na parte “Z de Zoo”. Tive, inclusive, a oportunidade de ver o escritor ao vivo, em 2012, em um congresso na Universidade de Utrecht, Holanda, do qual ele fez a abertura com uma impressionante conferência sobre gatos. No dia seguinte de manhã, encontrei-o – sozinho e folheando um livro – num dos corredores da universidade. Emocionada e surpresa, parei para cumprimentá-lo e falar-lhe de minha admiração por sua literatura. Ele, discreto e com uma voz em tom menor, agradeceu e perguntou-me de onde eu era. Ao saber de minha nacionalidade, disse que visitara o 90 Maria Esther Maciel

Brasil havia pouco tempo. Perguntou-me, ainda, se eu ia fazer alguma apresentação no evento, e confirmei. A conversa ficou nisso, pois eu sabia de seu comportamento reservado e não quis importuná-lo mais. De qualquer modo, foi um encontro inesquecível. Em 2015, os professores Kathrin Rosenfield (UFRGS) e Lawrence Flores Pereira (UFSM) organizaram um livro sobre o escritor, com os artigos de vários autores que haviam sido publicados na revista eletrô- nica Philia&Filia, em 2011. Participo do livro, que se intitula Lendo Coetzee, com o texto “Cenas da vida animal em J. M. Coetzee”. Como o autor só entrou na minha vida acadêmica nos últimos anos, minha produção sobre ele ainda é escassa. Entretanto, tentei incluí-lo nos meus cursos sempre que possível. Nas disciplinas sobre literatura e animalidade, ele foi uma presença obrigatória. E ainda esteve presente em uma optativa de graduação, “O romance contemporâneo”, que ofereci no 2o semestre de 2007. Para não mencionar que a epígrafe de meu livro O livro dos nomes foi extraída de um de seus romances. Estou certa de que, assim como Octavio Paz e Jorge Luis Borges, Coetzee continuará sendo uma presença luminosa no meu trabalho. Se ele, pela voz de sua dublê Elizabeth Costello, já disse que “os escritores ensinam mais do que sabem”, fico me perguntando o que mais poderei aprender com ele. Maria Esther Maciel 91



L de LUCIDEZ correlatos: J de John Coetzee; O de Octavio Paz; P de Poesia; R de Ruptura; X de Xadrez [Do lat. Lucidu + ez] S.f. 1. Qualidade ou estado de lúcido. 2. Luminosidade emitida por um corpo; brilho; claridade. 3. Capacidade de conhecer, compreender e aprender; inteli- gência, consciência, razão. 4. Clareza de ideias e expressão; acuidade para o que é relevante; perspicácia, precisão. 5. Segundo João Cabral, “tanta lucidez dá vertigem”.



O exercício da lucidez, aliado a uma licença poética à vertigem, foi o mote de meus primeiros trabalhos acadêmicos desde o momento em que passei a pesquisar a obra de Octavio Paz para a minha tese de doutorado. Já contratada como professora de literatura portuguesa da UFMG, comecei a prestar atenção nos poetas modernos que, sem prescindir dos poderes da imaginação e da intuição, adotaram a lucidez crítica como princípio importante de seu trabalho criativo. Tanto, que chamei de “poéticas da lucidez” o conjunto de obras selecionadas para essa reflexão. Partindo dos românticos alemães, com ênfase em Novalis e nos irmãos Schlegel, pus-me a ler os principais poetas modernos, de várias nacionalidades, que privilegiaram a consciência do fazer poético em detrimento à espontaneidade, além de terem se dedicado ao trabalho crítico, na forma de ensaios, manifestos e teorias poéticas. Sem dúvida, eu estava bastante impregnada, nessa época, da teoria formalista de Roman Jakobson e dos princípios estéticos das vanguardas poéticas do século XX. Meu diálogo com Haroldo de Campos, iniciado por volta de 1993, também incidiu nessa opção pelas poéticas lúcidas, a qual me conduziu também às chamadas estéticas da ruptura no campo das artes em geral. Parti, assim, para uma ampla pesquisa sobre o tema, encontrando nos textos de Haroldo de Campos, Leyla Perrone-Moisés e João Alexandre Barbosa os subsídios crítico-teóricos iniciais para o trabalho. Depois, passei a incursionar mais efetivamente em obras de críticos e poetas-críticos de outras nacionalidades e tradições, como Baudelaire, Mallarmé, Valéry, Pessoa, Pound e Eliot, além, é claro, do próprio Paz. O primeiro capítulo de minha tese foi exclusivamente voltado para os “poetas da lucidez”. Posteriormente removido a pedido do editor (que preferiu um livro exclusivo sobre Octavio Paz) da versão da tese publicada no final de 1995, esse capítulo foi publicado avulsamente na Revista de Estudos de Literatura (futura revista Aletria), tornando- se o ponto de partida para outros trabalhos, na mesma linha, sobre Mallarmé, Sóror Juana Inés de la Cruz, Fernando Pessoa, Haroldo de Campos e Laís Corrêa de Araújo. Quase todos, reunidos no livro Voo transverso: poesia, modernidade e fim do século XX. Registro também minha participação nas Jornadas Internacionales de Homenaje a Sor Juana Inés de la Cruz, realizadas na Faculdade de Filosofia e Letras da UBA, em novembro de 1995, sob a coordenação do Prof. Noé Jitrik, da Universidade de Buenos Aires. Eu conhecera o mestre Jitrik nesse mesmo ano, na capital argentina, e ele, após assistir a uma apresentação minha sobre Paz e os poetas-críticos modernos, chamou- me para participar do evento. Desde então, tenho mantido uma profícua Maria Esther Maciel 95

interlocução e uma consistente amizade com o Prof. Jitrik, também um poeta-crítico, estudioso da literatura argentina e das modernidades ocidentais. Meu trabalho sobre a monja mexicana do século XVII foi elaborado a partir da obra de Octavio Paz, mas com incursões em outros poetas que lidaram com a ideia de constelação e viagem interestelar, incluindo Haroldo de Campos e Severo Sarduy. (Ver o verbete/capítulo “U de Universo”.) Esse trabalho foi apresentado também – com um acréscimo sobre a atuação “feminista” da poeta mexicana – no Smith College, em Northampton (EUA), em 1998, a convite de Marina Kaplan, professora de literatura hispano-americana dessa instituição. O que enfatizei nessas duas versões do trabalho foi o exercício lúcido de uma poeta que pôs seus dons intelectuais a serviço da análise de si mesma e de seu tempo, levando às últimas consequências a tarefa de investigar não apenas as possibilidades formais da linguagem poética, como também a sua própria condição de mulher num contexto de forte repressão moral e intelectual. Polemista, discutiu ideias avançadas para a época, nos campos da religião, da moral, da política e da literatura, além de ter se interessado por múltiplos campos do conhecimento, incluindo a astronomia e as ciências ocultas. Outra autora sobre a qual escrevi, sob a perspectiva da lucidez crítica, foi a mineira Laís Corrêa de Araújo, uma das raras vozes femininas da vanguarda poética brasileira dos anos 50 e 60, que aliou o ofício de poeta ao trabalho de reflexão crítica e de tradução. Além disso, soube conjugar, de maneira engenhosa, as potências criativas da linguagem e as experiências extraídas de sua própria vida pessoal. Sobre a autora, apresentei uma palestra, a convite da Profa. Constância Duarte, no Seminário Nacional Mulher e Literatura, em agosto de 2001. Trabalho que, logo depois, foi incluído no livro Laís Corrêa de Araújo (2002), que organizei para a coleção “Encontro com Escritores Mineiros”, do Centro de Estudos Literários da UFMG. Não à toa, intitulei meu ensaio sobre ela de “O pathos da lucidez: sobre a trajetória poético-intelectual de Laís Corrêa de Araújo”. A palavra pathos, aí, funcionando como referência paradoxal a uma lucidez que não prescindiu da paixão e da experiência vital. Em 2016, fui convidada a fazer uma palestra sobre a poeta no Festival de Literatura de Belo Horizonte (FLI-BH), ao lado da poeta Thaís Guimarães, quando retomei alguns aspectos de sua poética e me detive nas contribuições dadas por Laís à geração atual das mulheres poetas de Minas Gerais. Como sempre fui adepta dos paradoxos, não podia deixar de tratar da lucidez sem passar também pela paixão e a vertigem. Isso, como foi dito neste memorial, já estava presente na minha tese de doutorado sobre Paz, a que dei o título de As vertigens da lucidez: poesia de crítica 96 Maria Esther Maciel

em Octavio Paz. Não à toa, também me detive na obra do artista gráfico holandês E. M. Escher, que fez do rigor matemático um exercício de imaginação, a partir do que chamei de “lógica da vertigem”. Como se o artista se valesse de uma espécie de delírio consciente no seu ato de criação. Interessante que, mesmo ao me deter nas obras de Arthur Bispo do Rosário, formalmente considerado um louco, e que nada tem a ver com Escher, usei um paradoxo semelhante: rigor do delírio. Mesmo no exercício da desmedida, ele criou uma obra de impressionante rigor construtivo, extraindo da loucura uma espécie de lucidez involuntária. Nesse sentido, como mostrei na parte “I de Inventário”, estaria numa relação de simetria inversa com Peter Greenaway, que fez emergir o delírio e a desmedida dos limites de uma obra rigorosamente construída sob as leis de simetria e da ordem taxonômica. Assim, apesar do meu grande apreço pelas construções do pensamento, os jogos matemáticos, a razão crítica e a experimentação da linguagem, as minhas referências nunca se limitaram ao cânone formalista. Ademais, o que de fato me interessa em relação a isso é identificar no exercício do rigor os pontos em que o delírio ou a vertigem emerge, conduzindo a lucidez da construção aos seus próprios avessos. Daí que minhas verdadeiras referências sejam escritores e/ou pensadores que conseguem praticar habilmente esse jogo paradoxal. Na mesma proporção em que me interesso pelos formalismos, também me deixo fascinar pelo trágico, pelo insólito, pelo estranho. Para mim seria muito difícil (para não dizer impossível) adotar aquilo que Paul Valéry elogiou em Leonardo da Vinci: “um abismo o faria pensar em uma ponte”. Talvez por isso eu tenha escrito, um dia, num dos meus cadernos de anotação: Nada de lucidez decantada de toda cumplicidade com as coisas ou com os acontecimentos. Nada de lucidez que se incompatibiliza com o exercício da respiração. Aliar o lúcido ao lúdico, ao lírico, ao úrico. Permitir-me à vertigem. Maria Esther Maciel 97


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