Ecossistemas Comunicacionais:mídias na contemporaneidade Orgs.: Renan Freitas Pinto Maria Emilia de Oliveira Pereira Abbud Rosimeire de Carvalho Martins Wilson de Souza Nogueira
Copyright© 2017 Universidade Federal do AmazonasReitorSylvio Mário Puga FerreiraEditorSérgio Augusto Freire de SouzaRevisão GramaticalRenan Freitas PintoRevisão TécnicaWilson de Souza NogueiraNúcleo de Apoio à Produção CientíficaComissão Permanente de Produção EditorialCoordenadora Maria Emilia de Oliveira Pereira AbbudAdriano Silva Rodrigues (Fapeam)Daiana dos Santos Gualberto (Capes)Elizabeth da Costa Cavalcante (Capes)Hanne Cristhine Assimen Caldas (Fapeam)Suellen de Freitas Máximo (Fapeam)Rafael de Figueiredo Lopes (Capes)Projeto GráficoSuellen de Freitas Máximo (Fapeam)DiagramaçãoAndriele Oliveira de SouzaJuan Lira Cintrão Catalogação na FonteE19 Ecossistemas comunicacionais: mídias na conteporaneidade / Renan Freitas Pinto, Maria Emilia de Oliveira Pereira Abbud, Rosimeire de Carvalho Martins e Wilson de Souza Nogueira, organiza- dores – Manaus: EDUA, 2017. 197 p.; 16 x 22,5cm.Vários autores.ISBN 978-85-526-0030-5 1. Comunicação. 2. Educação - Comunicação 3. Tecnologiaseducacionais I. Pinto, Ernesto Renan de Freitas II. Título CDU 316.77 Editora da Universidade Federal do AmazonasAvenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos, n. 6200 - Coroado I, Manaus/AM Campus Universitário Senador Arthur Virgilio Filho, Bloco L, Setor Sul Fone: (92) 3305-4291 e 3305-4290 E-mail: [email protected]
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS CONSELHO EDITORIAL Presidente Henrique dos Santos Pereira Membros Antônio Carlos Witkoski Domingos Sávio Nunes de Lima Edleno Silva de Moura Elizabeth Ferreira Cartaxo Spartaco Astolfi Filho Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel COMITÊ EDITORIAL DA EDUA Louis Marmoz Université de Versailles Antônio Cattani UFRGS Alfredo Bosi USP Arminda Mourão Botelho Ufam Spartacus Astolfi UfamBoaventura Sousa Santos Universidade de Coimbra Bernard Emery Université Stendhal-Grenoble 3 Cesar Barreira UFC Conceição Almeira UFRN Edgard de Assis Carvalho PUC/SP Gabriel Conh USP Gerusa Ferreira PUC/SP José Vicente Tavares UFRGS José Paulo Netto UFRJ Paulo Emílio FGV/RJ Élide Rugai Bastos Unicamp Renan Freitas Pinto Ufam Renato Ortiz Unicamp Rosa Ester Rossini USP Renato Tribuzy Ufam
Sumário 11 Apresentação 15 Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadania Universidade de São Paulo 35 Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicação nas experiências sociais Universidade de São Paulo 59 A interlocução social gerada no perfil do Twitter da Fundação Amazonas Sustentável (@FasAmazonas) Universidade Federal do Amazonas (Ufam) 87 Comunicação organizacional, humor gráfico e interculturalidade Universidade de São Paulo109 A textualização científica em dois discursos: jornalismo ou ciência? Universidade Federal do Amazonas (Ufam)135 Rádio: Um Sistema Autopoiético da Contemporaneidade Universidade Federal do Amazonas (Ufam)155 Um olhar ecossistêmico sobre a comunicação organizacional Universidade Federal do Amazonas (Ufam)177 Reangulação amazonida do conceito de Ecossistema comunicacional Universidade Federal de Rondônia
Apresentação Na contemporaneidade, as mídias sociais são favorecidas por ferramentasque permitem aumentar, inexoravelmente, a comunicação entre as pessoase, assim, criam uma cultura midiática e midiatizada, cujas característicasprincipais hoje são influenciadas pelas tecnologias digitais fixas e móveis. A proposta deste livro é repensar as mídias sociais a partir das diversasarticulações comunicacionais. Esse é um desafio que está posto na perspectiva dosecossistemas comunicacionais, área de concentração das pesquisas do Programade Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCCOM/Ufam). Ressaltamos, com isso, a importância de exercitarmos nossa compreensãosobre os processos comunicacionais como sistemas interconectados entresi e com o meio, e isso os consideramos partes e partícipes da formaçãosociocultural das diversas sociedades. Entendemos que uma discussão a respeito desse tema nos permiteesclarecer fenômenos midiáticos atuais, principalmente aqueles queemergem do diálogo com as outras áreas do conhecimento. Este livro consta de oito artigos. No primeiro, Políticas de mídia-educaçãocomo ferramentas de empoderamento e construção de cidadania, de DeborahFernandes CARVALHO e Leandro Leonardo BATISTA, da Universidade deSão Paulo, está em questão uma relação das estratégias de comunicação com aeducação, atentando para a responsabilidade social e inclusiva. No artigo sobre Interacionismo Simbólico e GroundedTheory: paracompreender as repercussões da comunicação nas experiências sociais,de Francisco LEITE, também da Universidade de São Paulo, há umacombinação teórica entre os referenciais enunciados, bem como sugere umametodologia qualitativa construtivista. 11
No artigo Comunicação Organizacional, humor gráfico e interculturalidade,de Ed Marcos SARRO, da Universidade de São Paulo, a abordagem versasobre o humor como facilitador da comunicação entre diferentes culturaspor meio mídias sociais, pelo acesso às tecnologias da informação. No artigo A interlocução social gerada no perfil do Twitter da FundaçãoAmazonas Sustentável, de Jonas da Silva GOMES JR e Denize PiccolottoCarvalho LEVY, da Universidade Federal do Amazonas, o Twitter éapresentado como uma ferramenta de microblog de caráter híbrido deblog, rede social e mensageiro instantâneo. Os pesquisadores analisam ainterlocução social gerada na rede social digital do perfil da ONG estudada. No artigo A textualização científica em dois discursos: jornalismo ouciência, de Cristiane de Lima BARBOSA e Sérgio Augusto FREIRE de Souza,da Universidade Federal do Amazonas, faz-se a apresentação de um estudofeito a partir da teoria da Análise do Discurso de linha francesa, sobretudo apartir dos construtos trabalhados Eni Orlandi no Brasil.. Rádio: um sistema autopoiético da contemporaneidade, de ManoelaMendes MOURA e Walmir de Albuquerque BARBOSA, da UniversidadeFederal do Amazonas, apresenta o rádio como um dos meios dacomunicação tradicional que converge para o ambiente virtual, sob umavisão ecossistêmica comunicacional, com a teoria dos sistemas sociais deNiklasLuhmann. Em Um olhar ecossistêmico sobre a comunicação organizacional, deManuella Dantas Corrêa LIMA e Maria Emilia de Oliveira Pereira ABBUD,da Universidade de Federal do Amazonas, existe uma reflexão sobre temaa partir da perspectiva da área de concentração do PPPGCCOM/Ufam.O referencial teórico teve como base as dimensões da ComunicaçãoOrganizacional sob o olhar do paradigma da complexidade de Edgar Morin. Já o artigo A reangulação amazônida do conceito de EcossistemaComunicacional, de Sandro COLFERAI, da Universidade Federal deRondônia, trata da recuperação do processo de institucionalização desseconceito da pesquisa acadêmica brasileira, o qual foi apropriado pelocampo da comunicação na Amazônia sob chaves interpretativas próprias.Aborda as perspectivas de Jesús Martín Barbero,e Ismar Soares para oecossistema comunicativo e ecossistema comunicacional respectivamente.Ambas estão presentes nas primeiras menções ao conceito como elemento12
teórico para se compreender as realidades amazônicas. A abordagemsemiótica, aponta o pesquisador, é outra chave interpretativa dos mesmosfenômenos. Ela também se volta para os esforços de reangulação presentesentre pesquisadores na e da Amazonia. Há nessa abordagem uma trilhapossível de ser seguida na prospecção dos fenômenos da comunicação porintermédio dos ecossistemas comunicacionais. Rosimeire de Carvalho Martins 13
Políticas de mídia-educação como ferramentasde empoderamento e construção de cidadania1 Deborah Fernandes CARVALHO2 Leandro Leonardo BATISTA3 Universidade de São Paulo, São Paulo, SPResumo Na busca de políticas e estratégias de comunicação,e em sua relação com a educação, mais atentas quantoa sua responsabilidade social e inclusiva, analisaremoscomo a mídia-educação pode ser uma importante fer-ramenta de empoderamento para além da “proibição”,especialmente no campo da publicidade infantil. Issoporque, na perspectiva dos Estudos Culturais, a mídia-educação implica a adoção de uma postura crítica e aomesmo tempo criadora para avaliar ética e esteticamenteo que está sendo oferecido pelas mídias, para interagirsignificativamente com suas produções, para produzirconteúdos e educar para a cidadania.Palavras-chave: Mídia-educação;Publicidade; Infantil;Políticas; Cidadania1 Artigo extraído a partir de Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCCOM) no ano 2012.2 Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, email: [email protected] Orientador do trabalho: Professor Doutror da ECA-USP, email: [email protected] 15
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniaIntrodução A concepção ocidental e contemporânea de democracia está fortementeligada ao advento da comunicação de massa e, mais recentemente, das mí-dias digitais. Os meios de comunicação passaram a ser reconhecidos comoatores fundamentais no processo de informação a respeito de temas de inte-resse público, seja na consolidação ou na reforma de aspectos centrais comopolíticas de desenvolvimento, proteção e promoção dos direitos humanos eestruturação de políticas públicas como um todo. No Brasil, essas funções tão relevantes desempenhadas pelos meios decomunicação acabam por ser impactadas negativamente pela ausência deum marco regulatório democrático e consolidado. Ainda assim, regulaçãoda mídia e proibição da publicidade destinada ao público infantil, esta últi-ma foco deste trabalho, são temas que recentemente têm conseguido algumespaço na agenda midiática e, principalmente, nas redes sociais. Entretanto,autores apontam que o caminho da regulação é importante, mas, se único,pode não surtir o efeito desejado. Com base no contexto descrito, e a partir de uma revisão bibliográfica,este artigo pretende discutir as relações entre meios de comunicação, con-sumo e cidadania à luz dos Estudos Culturais. Tratando especificamente dopúblico infantil, aqui questões como cultura, identidade, discurso e repre-sentação passam a ocupar o primeiro plano. Na busca de políticas e estratégias de comunicação, e em sua relação coma educação, mais atentas quanto a sua responsabilidade social e inclusiva,analisaremos como a mídia educação pode ser uma importante ferramentade empoderamento para além da “proibição”. Isso porque, na perspectivados Estudos Culturais, a mídia educação implica a adoção de uma postu-ra crítica e ao mesmo tempo criadora para avaliar ética e esteticamente oque está sendo oferecido pelas mídias, para interagir significativamente comsuas produções, para produzir conteúdos e educar para a cidadania. 17
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniaEstudos Culturais: dialogando consumo e cultura Em seu trabalho Apocalípticos e Integrados, Eco (1993) faz uma análisesobre os críticos e os entusiastas da cultura de massa. Mesmo que com a po-pularização da internet e das redes sociais possa ter havido um deslocamen-to dialético deste conceito, para este estudo é interessante a provocação doautor de que, na verdade, o impasse entre apocalípticos e integrados está nofato de que o problema vem sendo formulado de forma equivocada - “é bomou mau que exista a cultura de massa?” (ECO, 1993, p. 49). Desta forma, apergunta tanto subentende a desconfiança na ascensão das massas quantopõe em questionamento a validade do progresso tecnológico, fazendo comque o impasse se torne um círculo vicioso. Na verdade, o problema é: [..] do momento em que a presente situação de uma sociedade industrial torna ineliminável aquele tipo de relação comunicativa conhecido como conjunto dos meios de massa, qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais? (ECO, 1993, p. 50). O autor afirma que, na verdade, o problema da cultura de massa está nofato de ela ser manobrada por grupos econômicos objetivando o lucro eexecutada por pessoas especializadas em fornecer ao cliente o produto maisrentável. Para ele, não é utópico pensar que uma intervenção de ordem cul-tural possa mudar a fisionomia da sociedade atual. Para isso, há a necessi-dade de uma intervenção ativa das comunidades culturais no campo dascomunicações. “O silêncio não é protesto, é cumplicidade; o mesmo ocor-rendo com a recusa ao compromisso.” (ECO, 1993, p. 52) “A tendência, então, é deixar de lado as contradições, que não são consi-deradas como expressão de conflitos, e sim como resíduos de ambiguidade”(MARTÍN-BARBERO, 1997, pg. 281). As limitações dos modelos comu-nicacionais, descritos por Umberto Eco como “apocalípticos e integrados”,levou a um deslocamento do objeto de estudo dos investigadores de comu-nicação. Quando a contextualização dos processos passa a ser através da18
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadania“pós-modernidade” ou da “modernidade tardia”4, o modelo emissor/mensa-gem/receptor tornou-se incapaz de abranger questões como transnacionali-zação, democracia, cultura e movimentos populares. Há um deslocamentoem torno da imposição de um modelo econômico para a imposição de ummodelo político e, consequentemente, da luta contra a “dependência” para aluta por “identidade”. E é este o paradigma dominante dos chamados Estudos Culturais. En-tende-se por Estudos Culturais a movimentação intelectual que surge naInglaterra, em meados do século XX, em um cenário de pós-guerra, a partirdos trabalhos de Raymond Williams e Richard Hoggart no final dos anos 50.Suas principais publicações giram em torno da problematização de concei-tos complexos como cultura, popular e identidade. Imbricando-se com o popular, a cultura deixa de representar exclusiva-mente a erudição, a tradição literária e artística, para contemplar, também, ogosto das multidões. Contrapondo-se à visão elitista, para os Estudos Cultu-rais a cultura se estende às atividades e representações das pessoas comuns. Pensar os processos de comunicação neste sentido, a partir da cultura, significa deixar de pensá-los a partir das disciplinas e dos meios. Significa rom- per com a segurança proporcionada pela redução da problemática da comunicação à das tecnologias. (MARTÍN-BARBERO, 1997, pg. 285). Em verdade, com essa nova problematização do cultural, o que se traz aocentro das discussões é a questão do poder. Para os Estudos Culturais, eladeve ser discutida na linguagem, no simbólico, no inconsciente. Pois, “é naesfera cultural que se dá a luta pela significação, na qual os grupos subordi-nados procuram fazer frente à imposição de significados que sustentam os4 Segundo Stuart Hall (2006) Pós Modernidade ou Modernidade Tardia são sociedades de mudançaconstante, rápida e permanente principalmente no que tange ao conceito de tempo e espaço. Onível de fragmentação, de rapidez das mudanças, da transitoriedade e da multiplicidade de aspectosdecorrentes das transformações tecnológicas também são características da modernidade tardia. 19
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniainteresses dos grupos mais poderosos” (HALL, 1997 apud COSTA, SILVEI-RA e SOMMER, 2003, pg. 38) E nesta redefinição de cultura, segundo Martín-Barbero (1997), é fun-damental a compreensão de sua natureza comunicativa. Ou seja, do caráterprodutor de significações e não meramente de circulação de informações.O “receptor”, desta forma, não é um simples decodificador da mensagem doemissor, mas assume também o papel de produtor. A ênfase central, nos Estudos Culturais, não está nos efeitos da mídia so-bre comportamentos e atitudes, mas na construção de significações. Mais quetransmissão de mensagens, buscam considerar usos e interpretações dos meiosde comunicação e seus conteúdos como processos inerentemente sociais, ca-racterizados por formas de poder e diferença (BUCKIMGHAM, 2012).A relação criança e consumo e as novas formas de socialização É dentro desse pensamento sistêmico que este trabalho se propõe a discu-tir, especialmente, a questão do consumo. Pois, para os Estudos Culturais, a“cultura do consumo” refere-se menos aos artefatos culturais em si do que aosprocessos sociais de produção, distribuição e recepção destes artefatos. Aqui,questões como cultura, identidade, discurso e representação passam a ocuparo primeiro plano. Não se trata apenas de analisar as mensagens e seus efeitos,mas de construir uma análise do consumo de forma integral, que, para Cancli-ni, pode ser entendido como “o conjunto de processos socioculturais em quese realizam a apropriação e os usos dos produtos”. (CANCLINI, 2010, p. 60) Segundo Martín-Barbero (1997), o espaço de reflexão sobre o consumo é oespaço das práticas cotidianas. Nem toda forma de consumo é interiorizaçãode valores de outras classes, da mesma forma que o consumo pode representarjunto aos setores populares suas aspirações a uma vida mais digna; a busca pelaascensão social pode ser também forma de protesto a direitos elementares. O consumo não é apenas reprodução de forças, mas também reprodução de sentidos: lugar de uma luta que não se restringe à posse dos objetos, pois passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes dão for- ma social e nos quais se inscrevem demandas e dispo-20
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadania sitivos de ação provenientes de diversas competências culturais (MARTÍN-BARBERO, 1997, pg. 290). Desta forma, é necessário desconstruir as concepções que julgam esseconceito como um cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais. Mais doque isso, as relações de consumo que nos propomos a analisar são aquelasestabelecidas em processos sociais de produção, distribuição e recepção deartefatos culturais. Analisar, ainda, de que forma estas relações são respon-sáveis por construções de identidades e de discursos, o quanto são relaçõesde poder e como as mudanças na maneira de consumir alteraram as possi-bilidades e as formas de exercer a cidadania. E aqui cabe a ressalva de que,ao falar de cidadania, não estamos falando apenas dos direitos reconheci-dos pelo Estado para aqueles que nasceram em determinado território, mastambém das práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento.Portanto, repensar o consumo a partir do exercício da cidadania é reivindi-car o direito de participar na reelaboração do sistema, definindo aquilo deque queremos fazer parte (CANCLINI, 2010) As respostas para muitas perguntas próprias de cidadãos – a que lugarpertenço, que direitos isso me dá, quem representa meus interesses - sãoatualmente obtidas através do consumo de bens e dos meios de comunica-ção. E, diante disso, identidades são definidas a partir daquilo que se pos-sui, ou daquilo que se pode chegar a possuir. As transformações constantesnas tecnologias de produção, novos designs de objetos, novas marcas, no-vos modelos, novos desejos, criam um sentimento de insatisfação constantecom o que se tem e a necessidade de se ter mais. O descontentamento con-temporâneo provocado pela globalização vai além do sentimento de falta,mas de que o que se possui torna-se obsoleto e fugaz a cada instante. Canclini segue suas proposições com base em questões de nacionalismo,território e etnia. A partir daqui, seguimos nossa análise no que tange opapel da criança no contexto citado, bem como repensar as identidades, asrepresentações, os discursos e as relações de poder que vem sendo repassa-das às novas gerações por esta sociedade. As mídias eletrônicas, especialmente a televisão, são peças fundamentaisdo cotidiano, seja como simples pano de fundo para as atividades do dia 21
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadania-a-dia, seja como meio de entretenimento e informação, seja como “babáeletrônica”. Com a retirada das crianças dos espaços de interação social ecultural fora de casa, e isto devido a questões modernas como tempo e se-gurança - Castro (1999) usa o termo “condição urbana de enclausuramentodoméstico” - o lazer central de seu cotidiano está no contato com meios ele-trônicos. Impossibilitadas de fazer contato com o real, passam de atividadesde criação para atividades de recepção do produto cultural. Segundo Linn (2006), devido ao encontro da tecnologia da mídia eletrô-nica e a glorificação do consumismo que ocorre nos dias de hoje, no qual ascrianças são expostas constantemente ao barulho da publicidade e às coisasque ela vende, tem se tornado cada vez mais difícil propiciar um ambienteque estimule a criatividade e o pensamento original nas crianças, bem comotempo e espaço para suas próprias ideias e imagens. A longo prazo, essa imersão de nossos filhos na cultura comercial traz consequências que vão muito além do que eles compram ou não. O marketing é formulado para influenciar mais do que preferências por comi- da ou escolha de roupas. Ele procura afetar os valores essenciais como as escolhas de vida: como definimos a felicidade e como medimos nosso valor próprio. Nesse meio tempo, essas mesmas características que o marketing atual encoraja – materialismo, impulsivi- dade, autonomia e lealdade desmedida à marca – são antitéticas àquelas qualidades necessárias a uma cida- dania democrática saudável. (LINN, 2006, p. 29) O fato é que atualmente as crianças, de uma maneira geral, já nascemimersas num mundo midiático, vivendo com extrema naturalidade as maisdiversas relações com a tecnologia - apesar do desigual acesso a essa realida-de, que acabou criando uma nova maneira de exclusão. De qualquer modo,outras formas de socialização e transmissão simbólica estão sendo possibili-tadas. Ainda, as mídias participam como elementos importantes de práticassocioculturais na construção de significados da nossa maneira de enxergar22
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniao mundo. É preciso entender as mídias como uma “questão de mediaçõesmais do que de meios, questão de cultura e, portanto, não só de conheci-mentos, senão de re-conhecimento.” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 10) Assim, na relação da criança com a tecnologia, a atenção que deve serdada não é à tecnologia em si, mas à criança, seu vínculo com as formas decultura e as mediações possíveis. A ideia de infância é um processo sociocul-tural que está mudando em decorrência de inúmeros fatores: o contato comdiversas manifestações da cultura, as transformações que vem ocorrendoem relação às cidades, às famílias, e às formas de interação com as tecno-logias. Transformações estas que modificam modos de vida, bem como olugar que a criança ocupa em um cenário em que os sistemas de significaçãoe representação cultural se multiplicam.A sociedade em busca de alternativas e regulamentação Susan Linn (2006) apresenta alguns dados que embasam as reivindica-ções que vem tomando força junto à sociedade civil e aos Estados na buscade alternativas e regulamentações no que tange a comunicação que atingedireta ou indiretamente o público infanto-juvenil. Segundo a autora, imagens neurais demonstram hoje graficamente o quevinha sendo defendido por psicólogos desenvolvimentistas: a capacidade dascrianças de pensar, de ver além das próprias necessidades e de administrar suasemoções desenvolve-se com o tempo. Assim como afirma Vygotsky (2009), seusvalores e comportamentos são influenciados por suas experiências. As criançasem idade pré-escolar, por exemplo, são mais suscetíveis à influência do que ascrianças mais velhas ou os adultos (GOODMAN e AMAN, 1991 apud LINN,2006)5. Os adolescentes, embora possam raciocinar de modo mais eficaz que ascrianças de oito anos, estão em meio a uma grande quantidade de mudançashormonais e o córtex frontal, que governa os processos cognitivos complexos, in-clusive o julgamento, irá desenvolver-se totalmente apenas por volta dos 20 anos.5 GOODMAN, Gail e AMAN, Christine. Children’s Use of Anatomically Detailed Dolls to Recount anEvent. Child Development 61. 1991, 1859-1871. 23
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadania Isso levou outros estudos a concluírem que crianças em idade pré-esco-lar, por exemplo, têm dificuldade em diferenciar comerciais de programasnormais de televisão. As crianças um pouco mais velhas, embora saibam fa-zer tal distinção, pensam concretamente e tendem, assim, a acreditar no queveem nos comerciais. Até a idade de cerca de oito anos, elas não conseguemcompreender o conceito de intenção persuasiva e o fato de que cada detalhede uma propaganda foi escolhido no intuito de tornar o produto mais atra-ente e de convencer as pessoas a comprá-lo. (LINN, 2006). Segundo Linn, as crianças têm recebido muitas proteções especiais da leiem outros campos. E no que tange aos meios de comunicação e em especiala publicidade, completa, “Os pais têm um papel a desempenhar. Os profis-sionais de saúde, os educadores, os homens de negócios, os legisladores e oscidadãos conscientes também tem.” (LINN, 2006, p. 270) A concepção ocidental e contemporânea de cidadania está fortementeligada ao advento da comunicação de massa. Os meios de comunicação pas-saram a ser reconhecidos como atores cada vez mais fundamentais no pro-cesso de informação do eleitorado a respeito dos temas de interesse público.Entretanto, as empresas de mídia foram aos poucos adquirindo poderemadicionais, tornando-se peças muito importantes, seja na consolidação ouna reforma, de aspectos tão centrais como as políticas de desenvolvimento,a proteção e promoção dos direitos humanos e a estruturação das políticaspúblicas como um todo. No Brasil, essas funções tão relevantes acabam por ser impactadas negati-vamente pela ausência de um marco regulatório democrático e consolidado,que leva à lógica da concentração da propriedade no setor e a destinação deconcessões públicas de radiodifusão para grupos políticos locais. Com isso,medidas que possam alterar a atividade dessas empresas não fazem parte desua agenda, o que dificulta o debate público. (ANDI e JUSTIÇA, 2006) Uma das saídas que vêm sendo pensadas por pesquisadores e ativistassociais é a criação de uma regulamentação que possa ao menos desaceleraresse processo de assédio mercadológico a crianças e adolescentes. No Brasil, as crianças e adolescentes são protegidos perante a lei atravésda Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA), de 1990, postulando que é dever da família, da sociedade e do Esta-do, todos igualmente responsáveis, tratar a criança e o adolescente com ab-24
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniasoluta prioridade em questões como o direito à vida, à saúde, à alimentação,à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,à liberdade e à convivência familiar e comunitária No que se refere especificamente à legislação sobre a publicidade paracrianças, no Brasil, ela não é regulada na Constituição Federal, mas no Có-digo de Defesa do Consumidor (CDC) e no Código Brasileiro de Auto-Re-gulamentação Publicitária (CBARP)6 (MOMBERGER, 2002). O texto da Constituição diz: Art. 220, § 3º - Compete à lei federal: II – estabelecer os meios legais que garantam à pes- soa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 2217, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. E no CDC: Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.6 “O Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária (CBARP) foi instituído em 05 de maiode 1980, por entidades representativas do mercado brasileiro de publicidade. É um código deconduta ética dirigido aos anunciantes e serve de parâmetro para a elaboração de comerciaispara que sejam evitados abusos contra consumidores. O Código foi instituído pelas seguintesentidades: ABAP – Associação Brasileira das Agências de propaganda; ABA – Associação Brasileirade Anunciantes; ANJ – Associação nacional de Jornais; ABERT – Associação Brasileira de Emissorasde Rádio e Televisão; ANER – Associação Nacional de Editores de Revista; Central de Outdoor”(MOMBERGER, 2002, p. 70)7 “Art. 221 - A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aosseguintes princípios:I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive suadivulgação;III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidosem lei;IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.” 25
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadania § 1° É enganosa qualquer modalidade de informa- ção ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discrimi- natória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da defi- ciência de julgamento e experiência da criança, desres- peita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. (grifo nosso) Desta forma, segundo diversos especialistas, de acordo com os artigoscitados, a publicidade para crianças no Brasil vem na ilegalidade há duasdécadas. Além disso, o que é previsto na legislação brasileira é consideradomuito pouco; a falta de uma regulamentação específica na Constituição Fe-deral e a incumbência de fiscalização dada ao CONAR (Conselho Nacionalde Auto-Regulamentação Publicitária, grifo nosso), revelam a realidade deque não há um exame ou classificação dos anúncios antes de serem veicu-lados; o CONAR ocupa-se somente com o que foi ou está sendo exibido.Isso significa que, mesmo que determinado anúncio receba uma denúncia e,após análise, sofra modificações ou saia de circulação, de qualquer forma elejá foi veiculado por determinado período. Há mais de dez anos transita pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei5.291/01 que proíbe a publicidade dirigida à criança e regulamenta a publi-cidade dirigida a adolescentes. E em março de 2014, o Conselho Nacional deDireitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou uma Resoluçãoque considera abusiva a publicidade e comunicação mercadológica quandodirecionada a esse público. Apesar do documento ser considerado um gran-de avanço quanto à conceituação e abrangência da problemática, e especial-mente por ter dado visibilidade à questão perante a mídia e a sociedade, ele26
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadanianão tem status de lei. Segundo Horn e Maia (2015), “O ganho (...) é inegável,mas a Resolução em tela precisa servir de catalisador para algo maior, a re-sultar numa positivação protetiva à criança e ao adolescente combinada aum controle estatal efetivo”. (HORN; MAIA, 2015, p. 131) Para Jacquinot; Carlsson, Tayie; Tornero (2008), as abordagens no quetange a proteção quanto à comunicação que atinge direta ou indiretamenteo público infanto-juvenil resumem-se, em grande parte, a três tipos: regu-lação, autoregulação e coregulação dos meios de comunicação. Ao mesmotempo, defendem que nenhum desses instrumentos, isoladamente, é sufi-ciente. Ou seja, é com a interação entre a regulação do governo, dos própriosmeios e da sociedade civil que serão alcançados resultados satisfatórios. Entretanto, como ressaltam os autores, incluir o público nessa discussãoé fundamental. Crianças, jovens, pais, professores, profissionais de mídia,sociedade em geral, todos são igualmente importantes nesse processo. E amídia-educação torna-se crucial para o desenvolvimento da participaçãosocial, de uma cidadania ativa e de uma sociedade democrática.A mídia-educação como perspectiva Com as mudanças das características de produção, que promoveramavanços na conquista da mulher no mercado de trabalho, a família aindanão encontrou uma maneira de resolver satisfatoriamente como deve edu-car os filhos. Por sua vez, segundo Paiva (2009), a escola contemporâneatambém não conseguiu ajustar-se ou dizer não às novas demandas, esqui-vando-se em reconhecer a extensão do seu papel na problemática do ensinoe da educação. Como se não bastasse, houve no Brasil uma separação deeducação, cultura e comunicação nas esferas públicas e, com ministérios,secretarias estaduais e municipais de distintos correndo atrás de suas pró-prias verbas, a desintegração nesses setores foi inevitável. Políticas públicasde cultura associadas à educação, bem como um debate em torno da inclu-são da comunicação nesse processo, de maneira definitiva, nos ParâmetrosCurriculares Nacionais, é fundamental no atual cenário brasileiro. Mesmouma regulamentação da publicidade seria mais eficaz se as escolas fossem,ao lado de outras instâncias, formadoras de cidadãos mais críticos em rela-ção ao contexto dos meios de comunicação e do consumo. 27
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadania Nas palavras de Fantin, “o desconhecimento imobiliza, a simples conde-nação é insuficiente, e a negligência é ineficaz” (FANTIN, 2008, p. 150). Nessa visão, o espaço escolar pode e deve intensificar a reflexão crítica sobreos conteúdos da mídia ao mesmo tempo em que amplia os espaços de produçãoe difusão de novos modos de significar o mundo com o auxílio das tecnologias. Recentemente, muitos estudos vêm sendo desenvolvidos e aplicados ba-seados nos potenciais educativos dos meios de comunicação e dos meioseletrônicos de uma maneira geral. O problema para a educação na atualida-de não é onde encontrar a informação, mas aprender a ensinar a selecioná-la, avaliá-la, interpretá-la, classificá-la e usá-la, habilidades indispensáveisnum meio saturado de informação (TEDESCO, 2004) Segundo Fantin (2008) o campo educação-comunicação (nas suas pala-vras, mas aqui usaremos o termo educomunicação8) vem preocupando-sehá algum tempo com as mediações escolares e configurando-se como umcampo teórico-prático muito fértil. “Pensar em uma mediação significativa,crítica, sensível e informada em relação à cultura das mídias implica pensarem outras possibilidades para a prática pedagógica em relação aos ‘usos dacultura’ nos espaços educativos” (FANTIN, 2008, p. 156) E é no contexto daeducomunicação que se situa a mídia-educação. Para este estudo, definimos como mídia-educação a “possibilidade deeducar para/sobre as mídias, com as mídias e através das mídias, por meiode uma abordagem crítica, instrumental e expressivo-produtiva.” (FANTIN,2008, p. 153). A mídia-educação, e aqui trabalhamos a partir da perspectivados Estudos Culturais, implica a adoção de uma postura crítica e ao mesmotempo criadora para avaliar ética e esteticamente o que está sendo ofereci-do pelas mídias, para interagir significativamente com suas produções, paraproduzir conteúdos e educar para a cidadania. Reconhecer a centralidade das mediações e das linguagens no processo edu-cativo implica discutir a função cognitiva da linguagem, sobretudo admitindoque outras linguagens – além da oral e da escrita – são legítimas e fundamentais8 Segundo Soares, “a educação para a comunicação, o uso das tecnologias na educação e a gestãocomunicativa transformam-se em objeto de políticas educacionais, sob a denominação comum deEducomunicação.” (SOARES, 2002, p. 16)28
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniapara a produção, a socialização e a apropriação de conhecimentos. E educarpara as linguagens envolve uma concepção pedagógica que leve à capacidadede questionar, de elaborar metáforas, de interpretar e de produzir definições. A linguagem representa um dos quatro “conceitos-chave” em mídia edu-cação, modelo teórico já amplamente difundido. A produção, audiência erepresentação integram um quadro de “perguntas-satélites” que devem serlevantadas (MASTERMAN, 2010). No conceito de representação, por exemplo, o objetivo é o questionamen-to da forma como somos representados e como representamos nós mesmos.É analisar a forma como a mídia apresenta-se como uma janela para o mun-do, mesmo tratando-se de imagens (e sons e palavras) realmente produzi-das, selecionadas, editadas e embaladas. Ou seja, dar-se conta de que se estálidando com um sistema simbólico. Neste ponto, já entramos no campo daprodução e da linguagem novamente. A ideia é analisar imagens da formadenotativa até os níveis conotativos de significado. Quando se vê TV, um fil-me ou uma fotografia há um ponto de vista, literalmente. Denotativamente,só se pode ter aquele ponto de vista, o da câmera. Cabe, então, percebê-lo e,conotativamente, analisar o seu papel na produção de significados. Segundo Masterman (2010), o papel do professor não é incentivar osalunos a assumirem posições ideológicas, mas sim levantar estas questões,“elevar a consciência”. Por exemplo, no caso das representações novamente,então quem as estão criando? Quem está nos dizendo sob qual ponto de vis-ta enxergar o mundo? Quem está me dizendo que o mundo é desta forma?Há ainda outras questões a serem levantadas, agora no campo dos estudosda linguagem e do discurso: como estas representações são elaboradas deforma a serem tão autênticas e verdadeiras? Como aceitamos isso com aprópria realidade? O que nos leva a apreender o significado da representa-ção criada dentro do campo da linguagem midiática? Outras que envolvemestudos de recepção, ou de audiência: como o público é afetado por essasrepresentações? Como são lidas e compreendidas? Apesar da atualidade dessas questões, muitas delas remetem aos prin-cípios dos estudos de mídia-educação, quando seu objetivo era proteger ascrianças daqueles que são considerados problemas morais, culturais ou po-líticos das mídias. Nos últimos anos, a partir do crescimento dos EstudosCulturais e da visão de que a audiência não é uma massa uniforme e passiva, 29
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniaaliou-se a esse desenvolvimento de senso crítico a possibilidade de apropria-ção dos meios, como forma de empoderamento e de produção cultural pordireito próprio. (BUCKINGHAM, 2007) Desta forma, David Buckingham (20069 apud RIVOLTELLA, 2008) co-loca o desafio de repensar o sistema conceitual da mídia-educação em facedas novas mídias e das suas colocações no mundo digital. Isso não significaque a base sobre o qual a mídia-educação foi construída (representação, lin-guagem, produção, audiência) seja rejeitada, mas sim, a partir dela, repensarnovas estratégias e novos conceitos. Entre as possibilidades de transforma-ções da escola baseadas nas dimensões tecnológicas e simbólicas, algunsestudiosos tem avaliado que o modelo ideal se aproximaria de uma “peda-gogia dos bens culturais” (LANEVE10, 2000 apud FANTIN, 2008) e de uma“abordagem culturalista” (“mídias-culturas” de JACQUINOT11, 2006 apudRIVOLTELLA, 2008). Em síntese, esta nova pedagogia indica a direção deuma redefinição conceitual da mídia-educação no sentido da mídia-culturae dos Estudos Culturais. Desta forma, refletindo sobre o significado da alfabetização no séculoXXI, Fantin (2008) lista três eixos que enfatizam a abordagem da mídia-educação: “cultura (ampliação e possibilidades de diversos repertóriosculturais), crítica (capacidade de análise, reflexão e avaliação) e criação(capacidade criativa de expressão, de comunicação e de construção do co-nhecimento)” (FANTIN, 2008, p. 157). Aos três “Cs”, a autora acrescentaum quarto: cidadania. A mídia-educação pode e deve contribuir para fazerda escola um ponto de virada importante na transformação sociocultural,a partir da convergência dos conceitos de apropriação e de construção de“mundos possíveis”.9 BUCKINGHAM, David. La media education nell’era della tecnologia digitale. Paper apresentado nocongresso “La sapienza del comunicare”, Roma, 2006.10 LANEVE, Cosimo. La diddatica dei beni culturali. In: LANEVE, C. (a cura di). Pedagogia e diddaticadei beni culturali: Viaggio nella memória e nell’arte. Bréscia: La Scuola, 2000.11 JACQUINOT, Geneviève. Dall’educazione ai media alle ‘mediaculture’: Ci vogliono sempre degliinventori! Paper apresentado no congresso “La sapienza del comunicare”, Roma, 2006.30
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniaConsiderações finais As evoluções tecnológicas, especialmente com o advindo das mídias digitaise a expansão dos campos de informação que vêm com ela, vêm provocando pro-fundas redefinições de questões como identidade, cultura, poder e cidadania. Nesse contexto, a escola não pode deixar de pensar a relação da criançacom as tecnologias justamente pela possibilidade que há em refletir, des-construir, descondicionar e potencializar essa relação. Os usos dos meios decomunicação podem ser redimensionados e suas apropriações podem sermais ativas, interativas e reflexivas. É necessário caracterizar o objeto, o con-texto, o papel do adulto, os programas utilizados, bem como problematizaros processos de “metacognição” envolvidos nessa relação. Se as mídias são parte vital da nossa cultura e propiciam experiênciasúnicas e importantes, é preciso pensar em um novo conceito de alfabetiza-ção a partir das interações que essa cultura possibilita por meio de suas qua-lidades, de suas possíveis intencionalidades e de suas formas de mediação. Porém, ao transferir essas ideias para o cenário latino-americano, em quea desigualdade social muitas vezes faz com que conceitos como inclusãodigital, mídia-educação e acesso à tecnologia se confundam. Tedesco (2004)faz a ressalva de que é muito mais rápido comprar e distribuir equipamentosque mudar atitudes e padrões culturais. Portanto, deve-se ter cuidado emnão cometer o erro de pressupor que o papel da de uma política de mídia-educação perante a revolução educacional que ocorre com o advindo dastecnologias da informação baseia-se somente em distribuir aparelhos mo-dernos às escolas. Ações que apostam na renovação, na inovação tecnológicae na incorporação das tecnologias de informação e comunicação (TICs) naescola só fazem sentido se significarem uma transformação sob uma pers-pectiva cultural, articulada a uma perspectiva política, econômica e social. Estamos passando por uma ruptura de modelos e repensar as políticas pú-blicas de comunicação e de educação no Brasil torna-se urgente. Provavelmente,serão as crianças de hoje as responsáveis por essa ruptura. De que forma, então,conduzi-las, ensiná-las, empoderá-las para que as redefinições de poder e cida-dania que estão em suas mãos possam trazer à tona uma sociedade mais justa,inclusiva, social e ambientalmente responsável e verdadeiramente democrática. 31
Políticas de mídia-educação como ferramentas de empoderamento e construção de cidadaniaReferênciasANDI; SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Classificação indicativa:construindo cidadania na tela da tevê. Brasília, 2006.BUCKINGHAM, D. Crescer na era das mídias eletrônicas. São Paulo: Edi-ções Loyola, 2007.______. As crianças e a mídia: uma abordagem sob a ótica dos Estudos Cul-turais. Matrizes, São Paulo, a. 5, nº 2, jan/jun, p. 93-121, 2012.CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais daglobalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.CARLSSON, U.; TAYIE, S.; JACQUINOT, G.; TORNERO, J. M. P. Empowermentthrough media education: An Intercultural Dialogue. Suécia: Unesco, 2008.CARVALHO, D. F. A criança-adulto e o adulto-criança: a Pedagogia Wal-dorf e a media literacy como perspectivas, 2008, 67 p., monografia apresen-tada como trabalho de conclusão do curso de Bacharelado em Comunica-ção Social, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,São Paulo, 2008.______. Meios de comunicação, publicidade e infância: explorando os pa-radigmas do proibir e do ensinar. Dissertação apresentada à Escola de Co-municações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título deMestre em Ciências da Comunicação, São Paulo, 2012.CASTRO, L. R. (org.). Infância e Adolescência na Cultura do Consumo.Rio de Janeiro: Nau, 1999.COSTA, M.; SILVEIRA, R.; SOMMER, L. Estudos Culturais, educação e pe-dagogia. Revista Brasileira de Educação, v. 23, p.36-61, 2003.32
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Interacionismo Simbólico e GroundedTheory: para compreender as repercussões daComunicação nas experiências sociais1 Francisco LEITE2 Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.Resumo O objetivo deste capítulo é indicar uma combinaçãoteórica entre os referênciais do Interacionismo Simbóli-co e dos Estudos da Comunicação, bem como apresen-tar e sugerir a metodologia qualitativa Grounded TheoryConstrutivista, articulada a essa combinação teórica,como um caminho rigoroso para as investigações quetenham como objeto as repercussões das narrativas mi-diáticas no social com o propósito de construir teoriassubstantivas.Palavras-chave: Interacionismo simbólico;Comunicação; Grounded Theory.1 Artigo extraído a partir da Tese “Experiências de interação de mulheresbrasileiras com publicidade contraintuitiva: um estudo em GroundedTheory” defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências daComunicação (PPGCCOM/ECA/USP), no ano 2015, sob a orientação doprof. Dr. Leandro L. Batista.2 Doutor e Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola deComunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), comestágio de doutoramento na Università degli Studi di Trento na Universitàdi Bologna (Itália). Possui Graduação em Comunicação Social. É professoruniversitário em cursos de graduação e pós-graduação. Autor da obraPublicidade contraintuitiva: inovações no uso dos estereótipos nacomunicação (Appris, 2014). E-mail: [email protected]. 35
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicação nas experiências sociaisIntrodução Com as suas raízes na psicologia social e na sociologia, a perspectiva te-órica do interacionismo simbólico agrega fundamental aporte para a com-preensão das ações dos indivíduos e grupos nos circuitos cooperativos denegociações e produção de significados na sociedade. O conjunto de concei-tos que estrutura essa perspectiva que também pode ser aplicada como me-todologia de pesquisa delineia a possibilidade de uma sistematização analí-tica do social e do comportamento humano (ato social), considerando o seurealizar sob um processo dual, constituído reciprocamente por atividadesinterpretativas, ou seja, por um proceder interativo pautado e composto pela“designação e interpretação” (BLUMER, 1980, p.137). O aporte de conhecimentos desta corrente teórica, surgida no fim do sé-culo XIX, oferta consistentes contribuições para o campo dos estudos dasciências da comunicação, especialmente, para as investigações que buscamcompreender as repercussões dos significados elaborados na vida social peloprocesso comunicacional nos espaços da recepção de discursos midiáticos. Dessa forma, pautado por um levantamento bibliográfico, este capítulotem por objetivo indicar o Interacionismo Simbólico como uma perspecti-va teórica que pode ser articulada aos estudos da comunicação, pois comobem alerta Vera França (2007, 2008) as investigações do campo comunica-cional, principalmente os estudos da recepção midiática, devem realizar- oque ainda não foi feito- leituras mais cuidadosas acerca da perspectiva dointeracionismo simbólico, considerando com atenção especial os postula-dos de George Herbert Mead. França ainda complementa que “já há algunsanos as contribuições da corrente comumente chamada de interacionismosimbólico vêm sendo reivindicadas pelos estudos da comunicação, mas areferência a esta corrente são ainda pouco sistemáticas” (FRANÇA, 2007,p.1) nas investigações produzidas no campo. Nesse sentido, como contribuição para concatenar esse quadro teóricode referência (interacionismo simbólico e estudos da comunicação) este tra-balho apresenta e sugere a metodologia qualitativa Grounded Theory Cons-trutivista (CHARMAZ, 2009) como um caminho rigoroso para as investi- 37
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicaçãonas experiências sociaisgações que tenham como objeto as repercussões das narrativas midiáticasno social e que tenham como propósito construir teoria substantiva, ou seja,“uma interpretação racional, densa, articulada e sistemática, capaz de darconta da realidade estudada” (TAROZZI, 2011, p. 19) sobre as experiênciasdos indivíduos com as narrativas da mídia nos espaços da recepção.O interacionismo simbólico De acordo com Morgan (1980) e Schwandt (1994), é no horizonte dainvestigação social que o interacionismo simbólico deve ser posicionadocomo uma perspectiva teórica inserida no paradigma3 interpretativista. Pa-radigma este “que tem como objetivo entender o mundo das experiênciasvividas através do ponto de vista daqueles que nele vivem” (MENDONÇA,2002, p. 4). Kathy Charmaz complementa este pensar ao elucidar que o pragmatismo anunciou o interacionismo simbó- lico, [...] perspectiva teórica que compreende que a sociedade, a realidade e o indivíduo são construí- dos por meio da interação e, assim, conta com a linguagem e a comunicação. Essa perspectiva pres- supõe que a interação é inerentemente dinâmica e interpretativa, e trata de como as pessoas criam, representam e modificam os significados e as ações (CHARMAZ, 2009, p.21). Foi pelos pilares filosóficos e teóricos da Escola de Chicago que o interacio-nismo simbólico se desenvolveu, tendo como o seu principal e mais influen-te precursor, George Herbert Mead4. Ao seu lado, como fundadores do pen-3 O entendimento de paradigmas, segundo Schwandt (1994), reflete os conjuntos básicosde crenças que conduzem a ação e que lidam com princípios iniciais, ou fundamentos. “Sãoconstruções humanas que definem a visão de mundo do pesquisador” (MENDONÇA, 2002, p.3). Umparadigma articula três elementos: ontologia, epistemologia e metodologia.4 Mead nasceu em Massachusetts [1863], nos Estados Unidos da América. Estudou em Harvard,38
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicação nas experiências sociaissamento interacionista, são também apontados pela literatura: John Dewey,Charles H. Cooley e Willian I. Thomas (CARVALHO et. al., 2010, p.148). Noentanto, foi Mead quem elaborou as bases5 do pensamento que estimularam eoriginaram as interpretações sobre o interacionismo simbólico. A princípio a corrente do interacionismo simbólico proposta por Meadera identificada como “behaviorismo social”6. O entendimento de behavio-rismo social em Mead (MEAD, 1934/1982) deve ser radicalmente distancia-do do behaviorismo em Watson, de F. H. Allport e Skinner (FARR, 1998),isto porque, diferentemente desses teóricos, Mead nos seus pressupostosconsiderava a linguagem como um fenômeno intrinsecamente construídopelo ato social. Neste sentido, ao descrever o comportamento humano emseus escritos enfatizou um entendimento e uma posição distintos, tendocomo base principal o ato social produzido sob níveis de comportamentoexterno (observável) e interno (encoberto, não-observável). O interacionismo simbólico foca também nos aspectos internos ou ex-perienciais do ato humano. Dessa maneira, os indivíduos organizam o seumundo mediante um processo de negociação e renegociação da realidade,utilizando de modo reflexivo símbolos que possibilitam interpretar e criarsignificados mais do que simplesmente reagir automaticamente a eles. Para Mead( ? ) o ângulo do fenômeno da ação social deve ser consideradosob os conceitos de “mente”, “self” e “sociedade”, que articulam as perspecti-vas teóricas do seu interesse em analisar o ato social. É na construção dessaarticulação que Mead ultrapassa “a equação estímulo-resposta [...], consi-derando a especificidade humana de atribuição de significado às coisas doonde conheceu e tornou-se amigo de Willian James. Em 1894, transferiu-se para Chicago a convitede John Dewey. Nesse mesmo ano, publicou seus primeiros artigos. Permaneceu nessa universidadepor vários anos e faleceu [em 1931], ainda em Chicago, pouco tempo depois de ter aceito umconvite para trabalhar na Universidade de Columbia (BAZILLI et al., 1998 apud GOSS, 2006, p.155).5 Segundo Silva, Mead “não chegou a sistematizar suas propostas em vida, o que foi realizadopostumamente, quando seus alunos e discípulos compilaram uma série de anotações de aulas(taquigrafadas em sua maior parte) do curso de psicologia social que ministrava, de palestras e dealguns de seus artigos e editaram a obra Self, Mind and Society (1934)”. (SILVA, 2007, p.83).6 A identificação de behaviorismo social para a descrição do comportamento feita por Mead foirealizada por Morris, um filósofo que editou a transcrição do curso de psicologia social oferecidopor Mead na Universidade de Chicago (FARR,1998 apud CARVALHO et. al., 2010, p.150). 39
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicaçãonas experiências sociaismundo” (BRAGA e GASTALDO, 2009, p. 81), ou seja, mediante a interven-ção ativa dos indivíduos no social. Neste ponto, antes de seguir com o exame mais próximo dessa tríade con-ceitual elaborada por Mead, que organiza as bases mais expressivas de seupensamento, cabe abrir um parêntese e enfatizar que o termo “interacionismosimbólico” foi cunhado apenas em 1938, por Herbert Blumer, discípulo deMead, que após a morte desse último em 1931, assumiu a continuidade desuas pesquisas, estabelecendo mediante os seus escritos7 esclarecimentos so-bre os pressupostos teóricos de seu mestre (sendo também fiel ao aporte teóri-co de Dewey e Pierce), bem como articulou como desdobramento dessas ati-vidades um proceder metodológico que consolidaria a corrente interacionista. Posto isso, retoma-se o exame conceitual do ato social organizado porMead no seu modelo triádico produzido nos circuitos da ação social. Em Mead o conceito de “mente” pode ser compreendido como ação sim-bólica que os indivíduos fazem em relação ao self. Ela é uma atividade in-terna que o indivíduo se empenha em produzir ao auto-interagir consigofazendo uso de símbolos significantes. Os significados e os sentidos pro-duzidos pela interpretação desses símbolos são de origem social, conformeindica Haguette (1987). A mente, enfim, é o que se entende por pensamento, isto é, a inteligênciareflexiva do ser humano. A ação que o indivíduo faz por meio de si numprocesso de intracomunicação ou auto-interação8, que “aparece quando oorganismo é capaz de apontar significado aos outros e a si mesmo” (MEAD,2006, p.205 apud FRANÇA, 2007, p.4).7 A maioria dos postulados de Blumer está contemplada na sua mais importante obra SymbolicInteracionism: Perspective and Method (1986).8 Mesmo ciente, que Mead foi contemporâneo dos estudos de Freud sobre o psiquismo humano,Blumer esclarece que esta auto-interação articulada no interacionismo simbólico “não se apresentasob a forma de um processo interativo entre duas ou mais partes de um sistema psicológico, comoentre necessidades, entre emoções, entre ideias ou entre o id e ego na sistematização freudiana.Antes, esta interação é social – uma forma de comunicação, com o indivíduo dirigindo-se a si mesmocomo a um indivíduo e a isto reagindo”. (BLUMER, 1980, p.130).40
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicação nas experiências sociais Ao considerar os indivíduos em termos de processo social e comunicati-vo, Mead pontuou que a mente só é produzida e “surge através da comuni-cação, por uma conversão de gestos9 em um processo social ou contexto deexperiência – e não a comunicação através da mente”. (MEAD, 1934/1982,p. 91). Com efeito, a mente ainda deve ser compreendida como a relaçãodo organismo com a situação, que se estabelece mediante a articulação deum conjunto de símbolos. Logo, ela é ação simbólica para o self e surge dainteração com outros, numa dependência mútua de respostas (via interpre-tações) de selves e símbolos articulados em ações cooperativas e flexíveis designificados compartilhados. A mente também não deve ser confundida com cérebro, pois este últimoé a estrutura fisiológica que armazena e possibilita a manipulação de símbo-los, mas o cérebro não forma a mente. Ela, como se observou, é construídana situação da interação social. Isto é, “o aparato fisiológico é indispensávelpara a formação da mente, mas é a sociedade e a interação social (processossociais de experiência e comportamentos) que, utilizando o cérebro, for-mam e desenvolvem a mente”. (MENDONÇA, 2002, p.12). Portanto, como se observa, para Mead a interação humana não é respos-ta a estímulo fixado e automático ou simplesmente evidente e físico. Ela éacompanhada de atividade mental, de um processo cooperativo de interpre-tação e produção para a edificação de símbolos significantes. Desse modo,como elucida Carvalho et al., com base nas orientações de Blanco (1998), O que Mead queria demonstrar era que a ação de cada um só obteria seu sentido através da ação do outro. Durante o processo de qualquer ato social, os objetos do ambiente percebido se definem e se rede-9 O conceito de gesto “consiste em qualquer parte ou aspecto de ação contínua que traz consigoo ato global de que faz parte. [...] transmitem aos que os reconhecem uma ideia da intenção edesígnio do ato a ser realizado pelo indivíduo que o expõe”. (BLUMER, 1980, p.126). Vera Françacomplementa ao indicar que “os gestos, [...], são estímulos que devem provocar uma resposta doorganismo ao qual eles se dirigem, mas os gestos significativos têm uma particularidade: essaconsciência da significação faz com que eles afetem não apenas o outro ao qual se dirigem, masigualmente aquele que o produz. (FRANÇA, 2007, p.3). 41
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicaçãonas experiências sociais finem. De tal dinamismo consiste a interação sim- bólica, a qual não se dá por reação direta às ações e gestos do outro, mas mediante uma interpretação dessas ações ou gestos com base no significado que lhes é atribuído. Para explicar esse processo de inte- ração que envolve definição e redefinição de objetos do ambiente percebido, Mead introduz as noções de Self, Eu e Mim. (CARVALHO et. al; 2010, p.150- 151). O self10 pode ser observado como a representação de um processo so-cial interiorizado nos indivíduos. A sua origem é inerente à natureza dosindivíduos, que mediante a sua inteligência reflexiva (a mente) constrói asuas estruturas. O self é um objeto social edificado na interação e que podepermanecer estável ou ser continuamente definido e redefinido. Em suma,“o self é um produto da comunicação e tem, portanto, um caráter social”(NUNES, 2005, p. 18). Já a mente, “por sua vez, é essencial na construção do self, isto é, da per-sonalidade social do indivíduo, este que pode se colocar no lugar do outroe se tornar um objeto para si mesmo”. (FRANÇA, 2007, p. 5). Ou nas pala-vras de Mead, “quando não só se escuta a si, mas também se responde [...]tão realmente como se responde a outra pessoa, então temos uma condutaem que os indivíduos se convertem em objetos para si mesmos”. (MEAD,1934/1982, p.171). O self surge e se desenvolve nos contextos do ato individual e da açãosocial, isto é, “ele emerge da comunicação significante com os outros” (NU-NES, 2005, p. 49). Ele tem a sua origem na infância e se desenvolve median-te três fases: imitação, brincadeira e jogo.10 As teorias do Self articuladas no interacionismo simbólico são originárias dos estudos de James(1890), “que distingue os ‘aspectos discriminados’ do self, designando-os como Eu e Mim; nenhumaspecto pode ser analisado adequadamente sem que o outro seja considerado”. (NUNES, 2005,p.48-49).42
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicação nas experiências sociais A primeira fase, da imitação, refere-se a quando as crianças não possuemainda a capacidade de elaborar ou fazer uso de símbolos que signifiquemo seu cotidiano, logo são carentes do self. Dessa maneira, é neste estágioque a criança faz uso simplesmente da imitação ao interagir com os outros(pais, familiares, professores, etc.) em suas mediações, porém neste estágioa criança não entende os objetivos e efeitos que direcionam os seus atos, ela/apenas os reproduz. No entanto, é ao exercer a imitação que a criança vaisendo gradativamente inserida no universo dos símbolos e a partir dessaatividade o self inicia o seu desenvolvimento. A fase da brincadeira realiza-se quando do processo de aquisição da lin-guagem. Neste ínterim, a criança apreende para si as visadas dos indivíduosque respeita (por medo ou identificação). Tais indivíduos são denominadoscomo “outros significantes” e são considerados pela criança como modelosde comportamento. Eles geralmente são seus pais, parentes ou indivíduosmuito próximos. Jordão Horta Nunes ressalta que os outros significantes também podemser “quaisquer personagens, reais ou fictícios (super-heróis, artistas de cine-ma ou televisão etc.). Tais indivíduos ou personagens são responsáveis pelaemergência do self, e isso ocorre com um significante de cada vez (NUNES,2005, p. 52). Nesta direção, no contexto da sociedade midiatizada, é perti-nente considerar os discursos praticados e os personagens das narrativasmidiáticas (publicidades, telenovelas, etc.) como “outros significantes” compapel de relevo na situação de desenvolvimento do self no contemporâneo.É nessa atividade complexa que o self social emerge e se estrutura. A terceira fase do desenvolvimento do self refere-se ao estágio do jogo,que desafia a criança a assumir concomitantemente diferentes perspectivasdos seus “outros significantes” e direcionar adequadamente os seus atos so-ciais, articulando esse mosaico de diversificados papéis e posições sociais. Éo resultado desse jogo organizativo que Mead denomina de “outro genera-lizado”, “que acompanha e controla a conduta e que faz emergir o self na ex-periência do indivíduo” (MEAD, 1925, p. 269-70 apud NUNES, 2005, p. 52). O self representa um “processo social no interior do indivíduo que en-volve duas fases analíticas distintas: o Eu, que é a tendência impulsiva doindivíduo, e o Mim, que representa o outro generalizado” (CARVALHO et.al., 2010, p.151, grifo das autoras). 43
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicaçãonas experiências sociais De um lado, o Eu é a resposta do organismo às atitudes dos outros; é oindivíduo como interagente que, como tal, não se sujeita às regras social-mente impostas. O Mim por outro lado é o self social, porque se trata dasatitudes organizadas que o indivíduo assume com o resultado da interiori-zação da vida social que o constitui como objeto. Em síntese, o Eu impulsio-na o indivíduo e o Mim representa a incorporação do outro no indivíduo,direcionando as suas ações. Este outro, como indicado, trata-se do “outrogeneralizado” que é observado como um processo no qual o self é edificadomediante a internalização das expectativas dos outros sobre os indivíduos,ou seja, é o jogo de autodefinição e enquadramento pelo olhar dos outros nasituação da interação social. Completando o modelo de Mead tem-se o conceito de sociedade, que édefinida como qualquer tipologia organizacional, sem distinção. Portanto,ela deve ser observada como uma conjunção de ações cooperativamente re-ferenciadas pelos indivíduos que a integram. A sociedade é formada, reafir-mada e alterada pela interação social. Ela é construída quando os indivíduostrabalham reciprocamente. A outra característica da sociedade é o desenvolvimento da cultura, umavez que a interação social simbólica cooperativa a produz. Assim, toda a socie-dade possui uma cultura, que é a perspectiva compartilhada ou de referênciapara a realidade. A cultura no interacionismo simbólico significa o consensodo grupo, a concordância, o entendimento, a linguagem, o reconhecimentocompartilhado e as regras que orientam a ação do self e suas modulações. Pela sua perspectiva compartilhada, é pela cultura que os indivíduos eminteração elaboram e reelaboram a sua realidade, bem como ela também re-flete os ditames do outro generalizado, por cujo viés os indivíduos cooperati-vamente condicionam-se e fiscalizam as próprias ações. Com a compreensão do modelo triádico de Mead, é pertinente preencher al-gumas lacunas de compreensão, ao elucidar a concepção de alguns termos queatravessam as suas articulações, como os símbolos, os objetos e a linguagem. O símbolo é o conceito cerne na perspectiva interacionista, tendo emvista que é somente mediante o seu uso que os indivíduos podem interagircooperativamente, socializar-se, compartilhar cultura, bem como compre-ender sua posição social frente ao outro. Os símbolos são objetos utilizados44
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicação nas experiências sociaisnas atividades de reflexão, representação e comunicação simbólica, pois ésomente mediante o processo recíproco de interpretação dos símbolos que acomunicação pode ocorrer. Logo, é nessa troca de compreensão, isto é, pelacapacidade interpretativa dos significados de símbolos entre os indivíduosque a interação social se estabelece. No interacionismo simbólico, os produtos construídos pela interação so-cial com os símbolos são denominados objetos. Segundo Blumer, objeto é“tudo o que for passível de ser indicado, evidenciado ou referido – uma nu-vem, um livro, uma legislatura, um banqueiro, uma doutrina religiosa, umfantasma, etc.”. (BLUMER, 1980, p.127). Os objetos podem ser classificados sob três categorias: físicos (cadeiras,árvores, entre outros), sociais (estudantes, presidentes, mães, etc.) e abstra-tos (princípios morais, doutrinas filosóficas, ou conceitos como justiça, pre-conceito, estereótipos, compaixão). Eles podem ter significados divergentespara os indivíduos dependendo dos seus universos de convívio e repertóriossociais, ou seja, da sua cultura. Os objetos não possuem qualquer status fixoe são criados e estabelecidos na interação social. O significado dos objetospara cada indivíduo é produzido basicamente no processo cooperativo e in-terpretativo com quem interage para a produção dos seus sentidos. Já a linguagem11 no interacionismo simbólico deve ser compreendidacomo um tipo especial de símbolo usado para realizar descrição, precisaro que se apreende, observa e pensa em referência à vida social. Em outraspalavras, ela organiza a ordem da experiência e do comportamento. “O usoda palavra nos diálogos e outros símbolos, como gestos, comportamentos,ações, têm significados sociais, que são construídos nas interações e queapenas passam a ser símbolos quando adquirem sentido para quem os uti-liza”. (CARVALHO et. al., 2007, p.121). Isto é, “nesta proposta, a linguagem,o símbolo, os sentidos partilhados ocupam um papel central: é o lugar dajunção, o fator-chave na constituição dos indivíduos e na aglutinação da so-ciedade” (FRANÇA, 2004, p. 9).11 “A contribuição da linguagem consiste em um conjunto de símbolos comuns que,correspondendo a certos conteúdos, são idênticos na experiência dos diferentes indivíduos.”(MEAD, 2006, p.141 apud FRANÇA, 2007, p.1). 45
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicaçãonas experiências sociais Desse modo, é com esta expectativa que é profícuo abordar algumasconexões entre o interacionismo simbólico e os estudos da comunicação,considerando, especialmente, as orientações organizadas por Vera França(2004, 2007, 2008) que, ao fazer leituras da clássica obra de Mead Mind, Selfand Society, estimula o exercício de aproximação desses estudos para pensaras repercussões dos produtos midiáticos no social.O interacionismo simbólico e os estudos da comunicação A tradição do interacionismo simbólico indica que é no proceder da mú-tua afetação que os significados se estabelecem, produzindo sentidos pelainteração dos indivíduos consigo e com os outros. Isto é, o seu realizar é ope-rado quando os indivíduos relacionam-se buscando abstrair e interpretar asmensagens que produzem e recebem frente ao outro e que podem modificarou não contextos e esquemas sociais mediante a reflexividade deste proces-so. Tal dinâmica articula-se concomitantemente também pela recepção demensagens e pela produção de respostas de sentido a estas. Verifica-se nessa atividade, “a extrema importância da comunicação nopensamento de Mead; ela é inseparável do ato social que ajuda a realizar. Comocomponente do ato, a comunicação intervém na construção [da mente], doself e da sociedade” (FRANÇA, 2007, p. 10 grifo da autora), tendo em vista,como já elucidado, que é pela interação social, a comunicação entre indiví-duos e a intracomunicação, que as estruturas e os repertórios de significadosdesses objetos são edificados e promovidos em escalas de efeitos de sentidos. No entanto, França ainda enfatiza que “nem toda interação, como apon-tado anteriormente, é comunicativa. [...] as interações comunicativas [...] seutilizam de gestos significativos. É a presença da significação, da linguagem,que delimita nosso terreno – embora os limites entre os dois campos sejamtênues”. (FRANÇA, 2007, p. 8). É neste contexto que se pode manifestar um entendimento sobre a midia-tização12, seus discursos e o seu alcance nas mediações sociais, ou seja, é pos-12 Segundo Andreas Hepp, a midiatização deve ser entendida “como o conceito usado para analisara inter-relação (de longo prazo) entre a mudança da mídia e da comunicação, por um lado, e a46
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicação nas experiências sociaissível pensar em “interações comunicativas” e em “interações mediatizadas”(FRANÇA, 2007, p. 9), sendo que a primeira seria o processo de interaçãodireta entre os indivíduos e a segunda seria uma rede interpretativa e coope-rativa que se forma na sociedade integrando entre outros objetos o merca-do, os profissionais de comunicação e os indivíduos receptores, produzindoafetações mútuas entre eles pela midiatização de produtos mediáticos ela-borados (p.e. publicidade, telenovela, etc.) em torno de uma determinadatemática, que também busca estimular interações comunicativas ao alcançara interpretação do outro. A situação de interagir mexe com todos os sujeitos envolvidos no ato; interagir através de gestos signifi- cativos faz intervir na ação em curso um mundo pa- ralelo – um mundo de possibilidades, de escolhas; uma temporalidade condensada – em que passado e futuro são acionados e intervêm na ação presente dos atores. (FRANÇA, 2007, p. 9). Esta intenção fortalece-se ao considerar o pensamento de Adriana Bragae Édison Gastaldo quando discorrem que o interacionismo simbólico naperspectiva Mead demonstra que a comunicação é interação simbólica e“pesquisar as dinâmicas comunicacionais no local onde ocorrem é tambémcompreender a vida social na sua dimensão mais elementar, relacional, avida social em processo” (BRAGA e GASTALDO, 2009, p. 78). Assim, na perspectiva indicada por Mead, uma aná- lise da comunicação é antes de tudo uma análise si- tuacionista: a situação como um todo – [...] o quadro geral de uma campanha política ou publicitária [...] – deve ser nosso ponto de partida e nossa referência ao recortar um objeto específico. [...]. Não é possível numa perspectiva interacional, analisar o receptormudança da cultura e da sociedade, por outro, de uma maneira crítica” (HEPP, 2014, p. 51). 47
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicaçãonas experiências sociais separado dos estímulos que lhe foram endereçados e que o constituíram como sujeito daquela relação. [...]. E não se trata aí de simplesmente [...] querer analisar todos os ingredientes do processo comu- nicativo, mas de pensá-los em articulação e mútua afetação. (FRANÇA, 2008, p. 85-86). Nessa direção, como bem elucida Charon (2009), ressalta-se que o inte-racionismo simbólico deve também ser compreendido pela sua potenciali-dade de atravessar a realidade humana e a sociedade de modo amplo. Nesteviés, tal aporte teórico pode também ser articulado considerando os pres-supostos dos estudos da comunicação, especialmente da midiatização, quedelibera sobre a compreensão de um horizonte de regulação social influen-ciado pelos discursos da mídia e suas negociações de sentido. Dessa maneira, ambas as perspectivas teóricas (interacionismo simbólicoe estudos da comunicação) coadunam-se e se complementam para direcio-nar análises e compreensão de resultados de pesquisas oferecendo ferramen-tas conceituais para a edificação de um enquadramento interpretativo quepossibilite direcionar reflexões que elucidem as experiências de interaçãocom os produtos midiáticos nas dimensões sociais. A articulação dessas perspectivas também é indicada por Andreas Heppe Uwe Hasebrink (2013) como complementares. Segundo eles, uma dasvertentes da pesquisa de midiatização fundamenta-se expressivamente nainteração simbólica, que como se explicitou anteriormente considera e posi-ciona a “comunicação” no primeiro plano para se compreender os desdobra-mentos sociais operados pela sua realização na situação interacional. Aindaneste sentido Friedrich Krotz agrega que Se seguirmos Berger e Luckmann (1980) e tam- bém George Herbert Mead (1934), o interacionis- mo simbólico e as posições teóricas relacionadas, nós podemos assumir que a sociedade, a cultura e todas as outras entidades sociais e culturais são socialmente construídas pelos indivíduos. Assim,48
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicação nas experiências sociais podemos concluir que a comunicação é a relevante conexão entre a mudança das mídias e as mudan- ças na cultura e na sociedade. (KROTZ, 2014, p. 82, tradução nossa). No entanto, para Hepp e Hasebrink (2013), se fez necessário e urgenteedificar um conceito de médio alcance que abarcasse com expressividadeas nuanças dialógicas e as potencialidades dessas perspectivas consonantes,isto é, que conseguisse fundamentar a ideia geral da midiatização na inte-ração simbólica e que tivesse o potencial de viabilizar pesquisas científicasnesta direção. Com isso, com base nas propostas de Norbert Elias13 (1978),eles vêm sugerindo o termo “configurações comunicativas” (2013, p. 18)para abarcar a amplitude reverberada pela realização de enquadramentoscontextuais produzidos pelo realizar dessas perspectivas nas mediações so-ciais. Segundo Hepp, as configurações comunicativas devem ser entendidascomo “padrões de processos entrelaçando o que existe ao longo de váriasmídias e em um “enquadramento temático” que orienta a ação comunicati-va.” (HEPP, 2014, p. 56). A potencialidade de sua abordagem nos estudos da comunicação “é quese pode usá-la para analisar diversos fenômenos em diferentes níveis [...]micro, meso e macro” (HEPP e HASEBRINK, 2013, p.18, tradução nossa),considerando assim que é pela compreensão da midiatização localizada nasconfigurações comunicativas, que se viabilizaria a edificação dos mundosmidiatizados. Com base nesses enquadramentos, “tal conceitualização tornapossível reteorizar a pesquisa da midiatização a partir de uma perspectivadiacrônica e sincrônica”. (HEPP, 2014, p. 46).13 De acordo com Hepp, foi Elias que cunhou o conceito de “configurações”, que na sua perspectivadeve ser entendido como “‘redes de indivíduos’ (ELIAS, 1978, p.15) que constituem uma entidadesocial maior através da interação recíproca – por meio, por exemplo, da participação em um jogo,ou numa dança. Essa entidade pode ser uma família, um grupo, um estado, ou sociedade: em todosesses casos, essas entidades sociais podem ser descritas como diferentes redes complexas deindivíduos” (HEPP, 2014, p.55). 49
Interacionismo Simbólico e Grounded Theory: para compreender as repercussões da Comunicaçãonas experiências sociais Como se observou, a perspectiva teórica do interacionismo simbólicoproposta por Mead oferece relevante ferramental para as reflexões do campodos estudos da comunicação. Conforme França, “Mead não foi um teóricoda comunicação, mas esta ocupa sem dúvida um lugar muito importantena questão central de sua reflexão, que é a correlação entre a experiênciae as condições onde ela se produz, entre o indivíduo e o mundo comum”.(FRANÇA, 2007, p. 2). Apesar de não apresentar um aporte teórico que responda todos os de-safios impostos pela comunicação no contemporâneo, de acordo com VeraFrança, o interacionismo simbólico é uma frutífera perspectiva, que dis-ponibiliza uma contribuição teórica insubstituível para apropriadamentese “pensar o processo comunicativo, a dinâmica relacional, a configuraçãodas interações” (FRANÇA, 2008, p. 90), sendo uma relevante corrente paraapoiar o avanço dos estudos de recepção e as discussões do campo sobre osreflexos da midiatização nas mediações sociais. Com a introdução desse referencial teórico de pesquisa, no próximo tópicoapresenta-se a metodologia qualitativa Grounded Theory Construtivista parainvestigações em comunicação. Os resultados de pesquisa que utilizam essametodologia podem ser analisados sob as óticas teóricas apresentadas, tendoem vista que o raciocínio e o proceder dessa metodologia também têm suasbases articulados nos pressupostos teóricos do interacionismo simbólico.A Grounded Theory construtivista: conceito14 A Grounded Theory15 foi elaborada e proposta, originalmente, pelos so-ciólogos norte-americanos Barney Glaser e Anselm Strauss e publicada naclássica obra The Discovery of Grounded Theory, de 1967. Ela é identifica-da como “um método geral de análise comparativa [...] e um conjunto deprocedimentos capazes de gerar [sistematicamente] uma teoria fundada nos14 Para aprofundamento sobre os procedimentos e técnicas da Grounded Theory ver CHARMAZ(2009), TAROZZI (2011) e LEITE (2014) LEITE e BATISTA (2014).15 Termo traduzido em português como “Teoria Fundamentada em Dados (TFD), Teoria Enraizada ouTeoria Emergente” (TAROZZI, 2011, p.12). No entanto, neste trabalho será utilizado termo originalGrounded Theory.50
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