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Published by Papel da palavra, 2022-09-05 19:46:07

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Ciência, Sistema, Teoria e Filosofia do Direito Wissenschaft, System, Theorie und Philosophie des Rechts CE Luciano Nascimento Silva (UEPB/UFPB) Jorge E. Douglas Price (UNCOMAHUE) Antônio Roberto Faustino da Costa (UEPB) Diego Duquelsky (UBA) Fabio Saponaro (Unitelma Sapienza, Roma) Raffaele De Giorgi (UNISALENTO) Celso Fernandes Campilongo (USP/PUC-SP) Vincenzo Carbone (UNINT) Giovanni Girelli (Universitä degli Studi Roma Tre) CC Afrãnio Silva jardim (UERJ) Gustavo Barbosa Mesquita Batista (UFPB) Anne Augusta Alencar Leite (UFPB) Heloisa Estellita (FGV/SP) Carlos Wagner Dias Ferreira (UFRN) Jonas Eduardo Gonzales Lemos (IFRN) Dimitre Braga Soares de Carvalho (UFRN) Juliana Magalhães Neuewander (UFRJ) Eduardo Ramalho Rabenhosrt (UFPB) Maria Creusa de Araújo Borges (UFPB) Fernando José Ludwig (UFT) Pierre Souto Maior C. Amorim (ASCES) Germano Ramalho (UEPB) Rodrigo Costa Ferreira (UEPB/UFRN) Glauber Salomão Leite (UEPB) Rosmar A. R. C. de Alencar (UFAL) Gonçalo N. C. S. de Melo Bandeira (IPCA/PT) Vincenzo Milittelo (UNIPA/ITA) Artur Stamford da Silva (UFPE) Sergio Pignuoli Ocampo (FCS-UBA)



Copyright © 2022 Jonas Lemos & Luciano Nascimento Silva Todos os direitos e responsabilidades, reservados e protegidos pela Lei 9.610. É permitida a reprodução parcial desde que citada a fonte. Editor literário: Linaldo B. Nascimento Coedição: NUPOD Publicações Capa, projeto gráfico e diagramação: Plural Editorial Revisão de texto: Os autores Linha editorial: direitoplural Produzido e registrado por © 2022 Plural Editorial. Prefixo na Agência Brasileira desde 2015. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) R122 Raffaele De Giorgi e os Observadores / Jonas Lemos; Luciano Nascimento Silva. (Organizadores) -- 1. ed. -- Campina Grande, PB : Plural, 2022. -- (Trilogia dos Observadores; 2) 180p. - Vários autores ISBN 978-65-84621-31-2 | Físico ISBN 978-65-84621-32-9 | Digital 1. Direito. 2. Construtivismo. 3. Raffaele De Giorgi. I. Título. 1. ed. CDD 340 | CDU 340

Mondo: una imprecazione cristiana, ha scritto una volta Nietzsche: un concetto di confine al quale indirizzare ogni nostra necessaria ignoranza. Che il mondo abbia a che fare con il non-sapere, che costituisca un concetto di confine, che segni confini, appunto, tutto questo sembra senz’altro plausibile. Ma é questo il mondo della “società del mondo”? A cosa serve un’idea di mondo? Raffaele DE GIORGI Temi di Filosofia del Diritto. Collana Scienza del Diritto. Lecce: Pensa MultiMedia, 2006, p. 13.



SUMÁRIO APRESENTAÇÃO, 11 LIMITES DO DIREITO, 17 Raffaele De Giorgi DIREITO, TRANSIÇÃO, ESQUECIMENTO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O FILME ANISTIA DE BUJAR ALIMANI, 37 Adriana Prizreni OS LIMITES DO DIREITO: OBSERVAÇÕES DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO NA JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS, 45 Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos

O PODER JUDICIÁRIO COMO OBSERVADOR DECISÓRIO, 59 Carlos Wagner Dias Ferreira CULTURA VISUAL, VISIBILIDADE E DIREITO, 75 Eduardo R. Rabenhorst AUTONOMIA MORAL E CAPACIDADE LEGAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: UM DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ITÁLIA, 89 Glauber Salomão Leite SISTEMA PENAL BIFURCADO: AS JUSTIFICATIVAS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO, 103 Gustavo Barbosa de Mesquita Batista

CULTURA E OUTRAS ARTES, 119 Hipólito de Sousa Lucena Maria Cezilene Araújo de Morais A SOCIEDADE MODERNA COMO SOCIEDADE DE RISCO, 133 Jonas Lemos O OBSERVADOR E A TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS – ENTRE SOCIOLOGIA E DIREITO, 145 Luciano Nascimento Silva MEMÓRIA DO DIREITO E SUPREMA CORTE DO BRASIL – OBSERVAÇÕES A PARTIR DO PENSAMENTO DE RAFFAELE DE GIORGI, 161 Tiago Medeiros Leite SOBRE OS AUTORES, 175

RAFFAELE DE GIORGI

APRESENTAÇÃO Aideia da construção de uma trilogia na forma de homena- gem a autores que são observados como Construtivistas, nasce das comunicações e debates de um grupo de pesqui- sadores, professores, teóricos e observadores brasileiros que usufruíram da oportunidade de anos de pesqui- sas no Centro di Studi sul Rischio dalla Facoltà di Giuripsrudenza dell`Università del Salento, Provincia de Lecce, sul da Itália, sob a orientação acadêmica de um deles, o filósofo do Não-Saber, o Professor Émerito Raffaele De Giorgi. A trilogia, portanto, é a tradução de um elogio ao jovem de Vernole, Raffaele De Giorgi; ao Professor da Universität Bielefeld, o sociólogo Niklas Luhmann; e, ao cientista cibernético, o Professor Heinz von Foerster. A trilogia é publicada em italiano pela Casa Editrice Pensa MultiMidia da cidade de Lecce, Itália. E a versão em língua portu- guesa do Brasil fica a cargo da Plural Editorial & NUPOD Publicações. O volume I, que recebe o título Luhmann e gli Osservatori, foi publi- cado no ano 2015, pela Coleção Teoria della Società, organizada pelo Professor Raffaele De Giorgi; enquanto o vol II, intitulado Raffaele De Giorgi e gli Osservatori, tem publicação prevista para o ano de 2023. As versões em língua portuguesa do Brasil, dos vol I – Luhmann e os Observadores; e, vol II – Raffaele de Giorgi e os Observadores, são publi- cadas no ano presente de 2022. Quanto às versões em italiano e português, do vol III, que serão intituladas Heinz von Foerster e gli Osservatori e Heinz von Foerster e os Observadores, os Organizadores

12 trabalharão nos textos a partir do segundo semestre do ano de 2023. A coleção em forma de trilogia enfatiza a expressão Observador, pois esta surge para espelhar a posição teórico-científica presente em diversas construções dos autores homenageados. A coleção, também, pode ser intitulada Autores e Observadores, pois compreende os contributos de diversos pesquisadores, professores, juízes que desenvolvem pesquisas e investigações à luz de uma diversidade de matrizes de pensamento que o Professor Raffaele De Giorgi tem construído individualmente e nos 20 anos de parceria acadêmica com o sociólogo de Bielefeld, o Professor Niklas Luhmann, assim também referente às comunicações com o pensador da cibernética, o Professor Heinz von Foerster. Mais ainda, a coleção é uma homenagem ao Centro di Studi sul Rischio fundado em 1989 por Raffaele De Giorgi e Niklas Luhmann, Locus da produção do saber e do conhecimento asso- ciado aos estudos desenvolvidos no curso de Direito da Facoltà di Giurisprudenza dell`Università del Salento, Lecce, Itália. Ao Professor Raffaele De Giorgi, especificamente, as letras de reconhecimento pelos esforços e desenvolvimento teórico dos estudos sobre a Teoria dos Sistemas Sociais, dentre as inumerosas construções teóricas a da Teoria da Sociedade em co-autoria com seu maestro, o sociólogo Niklas Luhmann. Um dos sentidos da coleção se encontra na expressão Observador. A ideia do Observador é aquela de uma construção teórica (congni- ção e linguagem), que é a tradução de um processo formulador de um olhar (observação) sobre o Saber e o Não-Saber, isto é, acerca da teoria do conhecimento. A construção teórico-científica traduz uma estrutura metodológica da Teoria dos Sistemas identificada na cons- trução do paradigma Sistema/Ambiente como sendo os espaços de elaboração do conhecimento. Inegavelmente, o olhar do Observador

13 sobre o Sistema Social (sociedade) e os diversos Subsistemas (direito, política, economia, arte, religião, ciência etc). À luz desse sentido, o saber e o conhecimento são cons- truídos a partir do olhar do Observador, que identifica nas relações comunicativas[1] a origem daquilo que a frente será nominado de conhecimento teórico-científico. Por outra parte, a posição do Observador reflete os sentidos metodológico e teórico-científico construídos nos espaços da sociologia, neurociência, cibernética, filosofia e teoria da comunicação. A máxima traduzida nos estudos e escrituras de Raffaele De Giorgi, Niklas Luhmann e Heinz von Foerster, é a de que o observa- dor que observa é observado, mas não se auto-observa. É o Observador que constrói a definição, a conceituação dos fenômenos sociais (intera- ção, organização, sistemas), com base no critério da individualização das diferenças. À luz dessa metodologia surgem as construções teóri- co-científicas denominadas de Teoria dos Sistemas Sociais e Teoria da Sociedade. A questão a observar é que o Observador, que observa e é observado, não consegue observar a si mesmo, não observa tudo. Na sequência das letras complexas de Raffaele De Giorgi pode-se identificar a lição de que o Observador só vê aquilo que vê, não vê aquilo que não vemos. Explicação: à luz das letras do autor, a razão pela qual o nosso mundo do saber é sempre menor do que o nosso mundo do não-saber. Portanto, o olhar do Observador é a tradução de um processo teórico-científico intitulado Análise Sociológica, através da qual se torna 1    Para a teoria dos sistemas a comunicação não transfere significados, mas sim é a tradução de uma operação que produz sentido. E o produz sempre, porque a comunicação é uma operação que acontece sempre. A comunica- ção se revela o elemento indispensável da estrutura e construção do sistema social, em que a expressão Auopoiesis é a estética da operação que se nomina de comunicação. A produção de comunicação substitui a ideia de fato, que é só um produto da comunicação.

14 possível construir distinções, conceitos, definições, plataformas que representam as bases científicas dos estudos acerca das fenomeno- logias sociais, sobre produção comunicativa de pessoas que fazem surgir o espaço comunitário e social, a fórmula da delimitação. A referida produção comunicativa formula, por exemplo, as observa- ções de inclusão e exclusão. O que dirige à questão teórica para a lição sociológica do estrutural-funcionalismo de Niklas Luhmann, quando organiza o discurso pelas afirmativas de que a complexi- dade não é uma operação, mas sim um conceito de observação, descrição, auto-observação e autodescrição. E a observação é construída pelo Observador. E, a constatação, é de que na observação, produto da construção de um Observador, existe sempre um ponto cego. Cada Observador tem seu ponto cego na observação, portanto, faz-se necessário reconhecer as limitações na construção daquilo que virá observado como saber e conheci- mento. E a construção cognitiva de Heinz von Foerster, traduzida como traformação epistemológica, afirma que só podemos ver aquilo que podemos explicar. E a explicação? Esta aparece pelas letras que traduzem o pensamento de que o cérebro não tem uma estrutura apta a perceber luz, cores, sons, imagens. E a lição se expande, de um lado a mente humana captura só ondas eletromagnéticas, isto é, as intensidades. Atinge-se a conclusão de que, por outro lado, é o sistema nervoso que avalia essas percepções. Portanto, no que se refere ao fenômeno da comunicação, à luz da lição cibernética de Heinz von Foerster, pode-se dizer que palavras, símbolos ou mensagens não fazem parte da comunicação, são apenas suas tecnologias. O que implica reconhecr, por essa lição, que a infor- mação não é uma realidade, mas uma probabilidade, um processo relacional, uma atividade. Os autores do presente vol II (Raffaele De Giorgi e os Observadores), pelas letras de Niklas Luhmann, são os Observadores que constroem, através da distinção, a partir do ponto de vista daqueles que

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 15 observam a Teoria articulada e complexa. E que, portanto, nas suas letras, são Observadores que conseguiram romper com o esquema clássico de obser- vação do mundo. Assim fecha-se uma janela, ao mesmo tempo em que se observa um universo de possibilidades. Primavera de 2021 Praia dos Surfistas, Intermares, Cabedelo, Paraiba, Brasil Jonas Lemos Luciano Nascimento Silva



LIMITES DO DIREITO[2] Raffaele De Giorgi Caríssimos colegas, agradecemos à Sociedade Italiana de Filosofia do Direito pela honra de conceder à Università degli Studi di Lecce, o seu XXX Congresso. Agradecemos aos presen- tes que aceitaram o convite, e que com sua vinda, nos manifestam apreço e consideração. Destaco também, que faz sentido que um Congresso sobre os “Limites do Direito”, aconteça aqui, neste local que geografica- mente também é um limite. Então pergunto: esta terra é o limite da Europa frente ao mundo ou o limite do mundo diante da Europa? É o limite de quê? Daquilo que está fora ou do que está dentro? E como limite diante do mundo o Direito prossegue, fica suspenso, se intimida ou se conclui? É importante refletir sobre isso. Mas antes, devemos fazer uma observação. Esta terra é limítrofe por que em sua costa geográfica está O2    texto foi apresentado em uma conferência aos participantes do XXX Congresso da Sociedade Italiana de Filosofia do Direito, em setembro de 2016. Recebe a traduão para língua portuguesa por Aloísio KROHLING, Pós Doutor em Filosofia Política. Doutor em Filosofia pelo Instituto Santo Anselmo, em Roma. Professor da Faculdade de Direito de Vitória, e Dirce Nazaré de ANDRADE FERREIRA, Doutora em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória. Doutora em História pela Universidade Federal do Espirito Santo. Professora na Universidade Federal do Espírito Santo.

18 | Raffaele De Giorgi o Mar Mediterrâneo que há muito tempo lança em outras águas, a língua, a religião, cultura, rumores de guerra e sinistros silêncios de paz. Mas esta terra é limítrofe também por que aqui as experiências europeias se alçam, se suspendem, paralisam-se diante do mundo em uma terrível incerteza de perspectivas, enquanto o mundo urge e o tempo se contrai. Na verdade, as experiências e vivências que se suspendem são propriamente o Direito, que opera como se o mundo – precisamente em oposição a ele - pudesse aguardá-lo ali, onde está temporariamente inerte. Enquanto, de outro lado, a política opera a partir da razão em Kant cujos limites “pressupõem sempre um tema que se encontra fora de um delimitado local, mas que o inclui”: também a polí- tica permanece nos seus limites, mas ocupa espaços e assim rejeita o mundo e adquire sua segurança. O Direito se esvanece, então o rumor do mundo o penetra e ambas as partes de seu limite encaram a violência. De um lado, a violência da guerra, e na outra parte, o clamor violento pela paz. Isto significa que os limites do direito se encerram? Significa que consideraríamos o direito como violência? Ninguém duvida da identidade do direito. Não é isso que queremos discutir aqui. E ninguém hesita que temos a ciência do direito e que ela tem individualidades. Aqui tratamos de outros temas. Tratamos do fato que, o direito não é uma tautologia; ao contrário ele é uma forma lógica, uma observação empírica, é construto de um observador, considerado como premissa de característica onto- lógica: nela se condensa a certeza que o direito é um objeto com existência determinada, que, portanto, é objeto de conhecimento, objeto de reflexão filosófica e sociológica. Esta premissa se transforma em pressuposto racional, encontrado em todas as manifestações do pensamento jurídico: um pressuposto que opera em modo latente, não declarado, e que é próprio de sua técnica permanecer oculto, subjacente, não questionado em suas

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 19 consequências, ele próprio tem demarcações e age continuamente sobre o plano da técnica da construção filosófica, teórica e socio- lógica do direito. Este pressuposto está presente no pensamento pós-ilumi- nista, nos trabalhos de reflexões sobre o direito, mas também sobre a justiça, pois ele é fruto da racionalidade e estabilidade do grande patrimônio semântico do iluminismo. Este patrimônio de certeza semântica tinha como referência o sujeito de direito e permitiu tratá-lo como indivíduo, como pessoa racional, que é capaz de agir segundo uma lógica de orientação jurídica. Este patrimônio ainda continua a fornecer conteúdos, com os quais a sociedade moderna se representa e descreve a si própria em seu contexto, o qual encon- tra no direito uma estável e racional forma de ordem. De qualquer modo, é necessário adequar a mais antiga carac- terística ontológica da premissa da ordem social - que operava na sociedade estratificada – ajustando-a aos requisitos de ontologia das novas premissas que acontecem na sociedade moderna. Em outras palavras, destacamos que, a identidade afirmativa do direito enquanto direito é imanente à certeza que, o direito tem uma exis- tência própria que o torna peculiar e idêntico a si mesmo. Mas, questiona-se: o que há de congênere nesta identidade? Uma pergunta dessa natureza, foi posta no manuscrito Grundisse, de Karl Marx, a respeito do contrato. Importante questionar se: no século passado a doutrina consi- derava a demarcação histórica do Direito? O que pensava Jhering quando afirmava que o Direito já é concluso e perfeito de per si? O que pensava Jhering quando destacava que deveríamos deixar simples- mente o Direito emergir? Se trata de uma estabilidade que resiste ao tempo embora diante de sua continua transformação? E o que resiste ao tempo? Se trata da imanência natural do Direito ou sua imanência à razão? Mas que imanência e de que natureza? Aquela

20 | Raffaele De Giorgi divinatória ou aquela dos homens brancos que ocupavam a América? E qual a razão? Aquela universal dos racionalistas ou a burguesa? O caráter ontológico da premissa do pensamento jurídico moderno é tão enraizado que, por resistir a sua contrafactualidade, contagia também os conceitos de natureza e de razão, com a conse- quência verdadeiramente redundante, que se trata o conceito de natureza como natural e o conceito de razão como racional, isto é, universal e, portanto, único. Identidade, estabilidade, resistência: esses termos têm signi- ficado referente a qualquer coisa, referem-se a termos de confronto a algo, mas não operam no conflito de si próprio. Estes conceitos, em verdade, são utilizados no sentido da obra Selbigkeit des Rechts, a demarcação do exercício do Direito, a que Hegel teria chamado de An-sich-sein, o ser de Direito. Este pressuposto de auto identificação do Direito, a sua Selbigkeit, precisamente, é tratado como requisito no qual está inclusa a estabi- lidade do Direito que permite, pois, construir reflexivamente a sua diferença. Este requisito não só está presente como característica observável do Direito, como também age com um latente sensor de si próprio, ou seja, é um autocontrole sempre ativo que orienta o Direito. Ele está presente quando se examina a linguagem do direito, quando se discute a normatividade, a completude, a positividade e a autonomia do direito. Ele se manifesta, particularmente, quando se confronta o Direito com outras coisas: neste caso a reflexão opera como se confrontasse, precisamente, identidades diferentes. Se acerta a identidade, se procede ao confronto e se observa a diferença: Direito e moral, Direito e política, Direito e sociedade. Também é difícil imaginar o que pode ser definido como iden- tidade quando este conceito se refere à sociedade, em que caso se aplica, em que medida, por exemplo, o Direito atua como regulador

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 21 ou desregulamentador e quanto o Direito se aproxima ou se afasta daquilo que se considera como sociedade. Então, aquele pressuposto da Selbigkeit, se transforma em uma espécie de pedra de sacrifício do bom senso, quando o pensamento jurídico se apropria de outras identidades, tais como: sociedade e natureza, natureza e cultura, universo animal e universo humano e elas se refletem sobre o Direito com o recurso a distinções, tais como: a diferença entre normatividade e factualidade, ou sujeito e objeto, ou até mesmo a distinção de ser e deve ser, ou de causali- dade e imputação. Grandes pensadores do século passado, tais como Kelsen, que fizeram um percurso muito refinado, não se libertaram das conse- quencias do pressuposto, que trabalha, por exemplo, a Estática do Direito, mas também a Dinâmica do Direito. Kelsen assumia algumas destas distinções como categorias, isto é, pressupunha a inevitabili- dade de seu prognóstico, por isso toda sua construção considerava a normatividade do normativo e a factualidade do factual como elemento delimitado do Direito e do mundo, e portanto, Kelsen nunca se pergutava o que poderia diferenciar precisamente aquela distinção entre normativo e factual. O pressuposto da Selbigkeit do Direito passa despercebido também quando se trabalha a diferença entre Direito Natural e Direito Positivo. Neste caso, opera a distinção entre teoria e objeto da teoria. O Direito pode ser derivado da vontade divina ou da razão, pode ser derivado do processo cognitivo ou dedutivo, em cada caso é tratado como ser delimitado, como objeto. Ou melhor dizendo, como objeto da teoria ou da reflexão filosófica, ou da observação sociológica. Por outra vertente, também a construção da dogmática trata a estrutura jurídica de modo seletivo, os resultados da qualificação jurídica, são identificados como objeto. A qualificação do Direito,

22 | Raffaele De Giorgi de fato, não vem tratada como construção de sentido, mas como atribuição na qual se produzem manifestas imanências de defini- ções, não exterioridades de explicações. Estamos diante de distinções com as quais foram construídas a teoria que dá essência ao nosso objeto. Um esquema tradicional: se trata sempre do esquema de um sujeito que confere sentido, che interpreta; e de um objeto no qual o sentido é sedimentado: duas distintas objetualidades, ainda que uma tenha um certo grau de notoriedade e mais repeito que a outra. Mesmo que se reduza a Ciência do Direito à: Linguagem ou a uma rede de conceitos, à uma relação, à uma estrutura de qualifi- cações de sentido que se distancia ou se conecta com este Direito, à natureza da natureza, à sociedade da sociedade, à uma razão que não tenha mais razão de continuar a ser considerada racional; o Direito será tratado sempre como uma objetividade a qual é definida, é determinada, é uma identidade que pode ser distinta e confrontada. Se considerarmos o Direito em relação à sua duração e esta- bilidade, diremos que é um ordenamento, uma estrutura, Bestand, julgada a partir de sua consistência, embora não descartamos a possi- bilidade de sua mutabilidade, imperrupção, extinção e reinvenção. Esta faculdade, destacamos, é objeto da reflexão filosófica ou socioló- gica sobre o Direito. Mas, por que a qualificação que o pensamento jurídico atribui ao direito, reflete-o como ele mesmo se pressupõe na tautologia de sua autonomia empírica, parece mais apropriado dizer que o pensamento sobre o Direito é objeto do Direito. Sobre o que pode ser observado em sua identidade, sobre o que pode ser distinto em virtude de sua demarcação, sobre seu Dasein, sobre ser delimitado, Hegel tinha ideias muito diversas, as quais passamos a dissertar. Ele trata do tema tanto no segundo capítulo da Wissenschaft der Logik, quanto na Enzyklopadie der Philosophischen. No parágrafo

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 23 92, desta última, o autor diz que “o ser, conceituado como distinto da demarcação, o ser em si, seria somente a vazia abstração do ser”. No ser delimitado, a demarcação é una com o ser, e está junto. Posta como negação, é limite, barreira. Hegel destacava que uma demarcação é somente uma parte de uma distinção e sem a outra parte é pura abstração. Mas ele dizia também que a delimitado é tal, por que pressupõe balizamentos, que é também uma barreira impeditiva à confusão de uma parte com a outra. Anche Batenson, na famosa apologia na qual a criança pergunta por que as coisas tem contornos, outlines, responde que as linhas servem para que as coisas não se confundam, mesclando-se. Hegel, na obra Zusatz, explica que “no ser delimitado a nega- ção é imediatamente idêntica com o ser e ela é o que se denomina de fronteira”. Isto significa que o limite concede forma ao ser em sua demarcação, e ao mesmo tempo o diferencia, enquanto gera uma barreira que opõe resistência. Como consequência, “o limite não pode ser considerado como qualquer coisa externa ao ser, pois ele o atravessa”. O limite não é um confinamento externo, pois está dentro e delineia a possibilidade da negação como diferença. Então o limite é uma diferença na forma da identidade: “se consideramos algo vizinho e identificamos seu limite”, diz Hegel, “então vemos que isso contém uma contradição em si”, conclui o autor. Em outras palavras, isto que tratamos como delimitado é tal somente o limite, aquilo que atravessa e que tem uma contradição em si. O limite não só demarca, mas transpõe a demarcação. Por isso é uma contradiçao, insiste Hegel. O limite de uma parte constitui a realidade do ser delimi- tado e quanto à outra parte, é a sua negação. Alem disso, o limite como negação de algo “não é um nada abstrato, mas um nada que simplesmente é, ou aquilo que denominamos de outro”. “Este outro

24 | Raffaele De Giorgi não é, de tal modo, solitário e subjetivamente afastado, portanto, no outro o limite se transforma em objetividade”. Considero interessante essa consideração de Hegel sobre limite e sua complexa estrutura. Este conceito é o primeiro signi- ficado de limite e traz uma simultânea coexistência ou ligação de dois conceitos binários: a contradição em si; e a função constitu- tiva do limite. Esta função se manifesta não somente na constituição da demarcação, mas por conseguinte, na conservação da diferença e em sua separação e superação, e mais ainda na ineludível dupli- cidade que Hegel trata como contradição. Mas há também outro aspecto importante, a indiscutível função do limite na constituição do presente: o fronteiriço, de fato, é e não é. É presença e ausên- cia. O presente é o lugar do limite e daquilo que é absolutamente real, este presente enquanto presença do limite em sua duplicidade traz em si mesmo uma inquietação que Hegel chama de “Unruhe des Etwas in seiner Grenze” , “inquietação da coisa no seu limite”, é ao mesmo tempo algo frenético do que é delimitado e da nega- ção, é portanto, a agitação da contradição que contém o que Hegel denomina de “ihre gemeinschaftliche Unterschiedenheit” ou a nossa ator- mentada e comum diversidade. Em seu famoso artigo Différance, Derrida reproduz um texto de Koyré, no qual consta longa citação de Hegel. Derrida destaca uma passagem hegeliana (Lógica de Jena), na qual o autor define o limite como o momento do presente, “uma conexão absoluta- mente diferente do simples”. E cita outra passagem na qual Hegel escreve: “esta ligação está presente como vinculação diferenciada”. A questão filosófica do limite é, então, o presente e sua cons- tituição: o presente é o lugar no qual se produz uma contradição e que não oferece refúgio: tempo e espaço coincidem e se negam, presença e ausência se envolvem e se recusam, enquanto no inter- valo que dá forma ao presente, o espaço se faz tempo e o tempo se

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 25 faz espaço. Como para Sausure a linguagem é um sistema di diffe- renze, também para Derrida o presente é o lugar do differire, o lugar da ausência e portanto, o espaço da dessemelhança, é o limite do tempo que se difere para manter a identidade com ele próprio. Para Derrida é importante nomear a antologia do ser, obser- var a história de seu desenvolvimento e construí-la como narrativa de sua diferença. A nós, interessa o movimento do presente como tecido da diferença. A Derrida interessa pensar a diferença libertan- do-a do horizonte do ser presente para conectá-la à temporalidade como horizonte transcendente da questão do ser, como fora posta por Heidegger. A nós, importa o limite como lócus da diferença do presente. Como lugar da constituição do presente. A questão onto- lógica da falta e da ausência se transforma, para nós, na questão da alteridade e de seu existir, de sua presença. Assim, para esta temá- tica não trabalhamos o conceito de limite na perspectiva kantiana – segundo a qual a metafísica se porta ao limite. Aqueles limites são espaços que a razão concede a si mesma para justificar sua supera- ção. Segundo Odo Marquard, isto é para reconhecer a si mesma uma competência que compense sua incapacidade. A questão não é [saber]: até que ponto uma demarcação formal dos limites de nosso uso da razão, isto é, até que ponto uma demarca- ção que trata de seus próprios princípios, se permite avalizar a razão. Ao invés do problema acima, a questão é [saber]: se a razão, quando se coloca outros limites, pode reconhecer as diferenças que existem e que são negadas pela unidade abstrata de seus prin- cípios que estão entre os limites. Em outros termos, se a razão fora de si, supera a contradição que tem em si. A filosofia kantiana, diz Hegel, “consigna como ponto mais alto da resolução da contradi- ção a razão dever-ser, que ao contrário, não é a posição de persistir na finitude, e portanto, na contradição”.

26 | Raffaele De Giorgi As considerações desenvolvidas até agora nos permitem refle- tir sobre alguns conceitos: A delimitação do direito, o exercício do direito, a sua confi- guração histórica não é nem proposta, nem manifestação daquilo que se chama identidade do Direito. Ela não pode ser confundida com aquilo que a tradição do pensamento jurídico chamava de autonomia e que considerava como uma determinação analitica- mente necessária da reflexão sobre o objeto. Assim como o Direito não pode ser considerado como objeto de conhecimento, não é adequado a concepção da ciência jurídica como objeto do Direito, como resultado do trabalho de sistematização conceitual das opera- ções de construção,interpretação, elaboração decisional do próprio Direito ou como o resultado do trabalho metafísico sobre o Direito, que o Direito usa para tornar possível sua atuação. A delimitação do direito, a essência determinada de seu conteúdo é resultado da manutenção da diferença entre aquilo que é Direito e o que não é, e a diferença se constrói no interior do Direito pois consiste na contínua redeterminação do limite do Direito. É ali que ela age como diferença. Ou melhor dizendo: a diferença é o limite do Direito. Ou melhor ainda: o Direito é a dife- rença. Se ela não se mantém, se não reconstituimos o limite, o ser determinado, o objeto se torna evanescente, segundo Hegel. E mais ainda: o limite é também ao mesmo tempo, característica interna e externa, ele é conceitualmente o endógeno e o exógeno: então, significa que o extrínseco é ao mesmo tempo intrínseco. Your Inside is Out and Your Outside is In é o título de um famoso artigo de Ranulph Ganville e Francisco Varela. Em outros termos, o exterior não tem uma concretude objetiva, uma existência real, isto é, ele não é qualquer coisa que possa ser empiricamente observável. Melhor dizendo: a verificação do exterior depende do observa- dor usar como critério a distinção entre interno ou externo se ele

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 27 deseja analisar como o direito se constrói, isto é, o que ele usa como realidade. O Direito que está dentro do limite opera a diferença e é uma parte dela. O observador verá que a diferença é reintrodu- zida no Direito, que o trata como uma diferença sua, interna. O Direito, em outras palavras, reproduz seu interior, como diferença referencial, ou seja, a diferença interna e externa. O limite, que para um observador de segundo nível é a unidade da diferença, não é aparente ao Direito. Por via contrária, para o Direito, aquilo que é externo, que está além do limite, é ausente. Para Derrida o Direito é a presença que interage com o exterior sem vê-lo, já que o considera afastado. O limite, então, permite ao Direito não se confundir com a reali- dade e não sucumbir a ela. O externo existe somente como extensão cognitiva, como espaço cognitivo do que é interno. O Direito se comunica somente com si mesmo através de dois Códigos: conforme ao Direito/não conforme ao Direito. Todavia, por que esta é uma comunicação jurídica e interna ao Direito, também o ilícito é Direito, assim como o agir conforme o Direito, também o é. Em outras palavras: se o observador para poder observar usa a distinção entre interno e externo, o limite é a unidade dessa distinção. Por isso o limite não é visto, já que sua função é manter a diferença, então tanto o interno quanto o externo não existiriam sem ele. Podemos concluir, então, que o Direito se constrói no seu interior, pois este é seu referencial, podemos destacar também, que ele considera o mundo externo ausente, portanto, inobservável. Além disso, a Selbigkeit do Direito, o seu ser determinado, não apresenta consistência, já que essa é resultante de uma diferença na qual se condensam as dessemelhanças entre coisas continuamente diferentes que o Direito produz na construção daquilo que usa como realidade. Mas o Direito não pode ver a diferença nem o limite que gera a sua dessemelhança. De fato, o Direito pode observar a

28 | Raffaele De Giorgi si próprio como Direito, mas a ele não é possível se ver como dife- rente. Deste modo, o Direito como todos os sistemas sociais, opera sempre no presente, se constrói enquanto trabalha. Na verdade, a questão do limite, é a questão da temporali- dade do Direito. O limite, isto é, a unidade da diferença, é o que a constrói, o diferir reabre continuamente a forma da diferença entre a própria identidade e dessemelhança. Não observar a diferença, de fato, é também não ver o presente, por que o nexo dessemelhante se produz somente no presente. Então o presente é o limite, por que ele é a dimensão da temporalidade na qual se atualiza o potencial de elaboração interna da expansão cognitiva do Direito. Este, não pode ir além de si mesmo, como pensava a razão kantiana. O Direito não deve ser, pois ele é. Então, somente a contínua reconstrução do limite torna possível ao Direito ter o seu próprio, isto é, reedificar-se como Direito. Mas no limite, o Direito se reconhece ser em si mesmo, segundo Hegel: isso traz consigo, precisamente, uma negação com seu limite. Então o limite é o paradoxo constitutivo do Direito. O Direito e a sociedade que é seu limite externo; a sociedade e o mundo que é seu limite externo. O Intervalo que os separa é o mesmo intervalo que os une, isto é paradoxal: segundo Luhman, o paradoxo é o indicador visí- vel da invisibilidade, e a forma é a unidade da diferença. Segunda uma tradição da Metafísica, o pensamento jurídico continua a se ocupar da identidade do Direito, de sua determinação histórica, portanto, dos limites do Direito. Logo o pensamento jurí- dico trata os limites a partir do [conceito] aristotélico, que significa “extremidade de algum objeto, ou seja, o primeiro ponto [para fora] além do qual não é possível mais tocar o objeto, o primeiro ponto aquém [para dentro] do qual contém todas as partes do objeto”. Diz Aristóteles que limite é “a substância e essência própria de cada coisa.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 29 Sendo limite também do conhecimento, é também do objeto”. Segundo esta tradição o limite indica uma demarcação constitutiva do objeto, estabelecendo seu espaço lógico e ontológico. O pensamento sobre o Direito encontra aqui a justificativa de seu interesse para: observar o que está além do limite do próprio Direito, avaliar os marcos lindeiros do direito, ver a sua capacidade de ocupar o espaço de ação social, analisar os limites de adequação do Direito à natureza das coisas, à natureza do homem, à natureza da razão ou da ação. Portanto, a mesma tradição em sua variante moderna, buscará técnicas que lhe permitam: ultrapassar os limi- tes da adequação que indicam “o fim de cada coisa”, ou como diz Aristóteles “o ponto de chegada do movimento e da ação”, verificar a possibilidade de superar os limites. Essa ação encontrará recur- sos no “dever-ser”, na ideia da filosofia prática que o pensamento kantiniano deu novo vigor. A teoria da justiça atuará no horizonte. Sob essa perspectiva, o legado jusnaturalista, a moral, a religião, se executarão como materiais semânticos e temas intercambiáveis no Direito. Os princípios serão fontes inexauríveis de inclusão nos limites, eles funcionarão não somente por sua riqueza de sentido, mas pela completa ausência de determinação do próprio sentido, ou seja, sua elasticidade, pois eles são conteúdos universais semantica- mente vagos – conforme estudos do século passado – essa propriedade permite tanto incluir como excluir e, de fato, isso somente faz sentido através de sua aplicação. Marshal destacava que a cidadania tornou possível realizar uma grandiosa arquitetura de desigualdade, mas a própria cidadania depois conseguiu reduzir as dessemelhanças que ela mesma tinha legitimado. A isso o Direito pode somente ter as mesmas reações: evolu- ção e reestabilização, as quais, tem como resultado adquirir elevada potestade, potencializar sua seletividade e reconstituir seu limite por meio da reflexão dele mesmo: é uma tautologia que não pode ser

30 | Raffaele De Giorgi negada por que a qualificação de sentido através da qual o Direito reconstitui o seu interior é o único patrimônio semântico de que o Direito dispõe na sua atividade de construção. Neste patrimônio de sentido se condensa a memória do Direito e sem ela o direito não existiria, por que ele é a memória refletida no limite. Memória, naturalmente, não é pensada aqui como meras recordações, memória é a unidade da diferença de recordar e esque- cer. Portanto, é a presença do Direito a si mesmo em cada operação sua. Então, o patrimônio semântico pode inclusive ser desconstruído e reconstruído, pois essa é a linguagem com a qual o direito fala com o mundo. E essa linguagem, conforme vimos, é um conjunto de diferenças. Perceber de que modo se produzem e se reproduzem as dife- renças de linguagem do Direito, entender quais são essas diferenças é fundamental para compreender como se constituem e como agem os limites do Direito enquanto barreiras e o quanto confinam, tanto do lado externo, quanto interno. Benjamin estudou as diferenças constitutivas do Direito tratan- do-o como unidade de dessemelhanças. Ele pesquisou o poder destrutivo de sua força que é um meio, uma ação não violenta de poder, do Estado: a violência que se impõe pelo Direito. É certo que a ideia jusnatural messiânica do Direito, traz pré-julgamentos solicitando autorização para entrar na lei, pedindo para atravessar a porta da lei. Mas o ingresso é negado pela luz da justiça. Muito mais realístico e dramático é Keist, o qual materia- liza no seu herói, il paradosso del limite – que é, neste caso, a justiça do reconhecimento do próprio Direito e a simultânea condena- ção à morte, do herói. Então, é muito mais plástica a imagem da indistinguibilidade da diferença de Deus com barba e de Deus sem barba no Vale del Caos de Durrenmatt: a unidade impenetrável de uma diferença na qual se realiza a drammaturgia del limite do Direito.

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 31 O limite interno do Direito se torna perceptível na sua lingua- gem, em cujo tecido de diferenças ele junta, em cujo tecido de diferenças está impressa a seletividade da aplicação dos princípios. Estas diferenças são resultantes da transformação: de antigas natu- ralidades em artificialidades, de necessidades de contingências, de desigualdades naturais em desigualdades artificiais, da homologa- ção de todas as desigualdades e da negação de tudo aquilo que não é juridicamente construído. Então, o limite interno do Direito é o limite da inclusão, isto é, o limite da atribuição jurídica de sentido, o limite da linguagem do Direito. Mas o limite é também externo: ele toca o mundo, mostra-se ao mundo como uma janela aberta ao ambiente, que é a sociedade. Para o lado exterior o limite demarca a diferença entre o sistema de Direito e sua semântica, de um lado a sociedade, e do outro lado, o ambiente interno do Direito. O espaço social contíguo ao Direito é ocupado pela polí- tica, em virtude do acordo evolutivo que se chama Stato di Diritto. Uma contiguidade ameaçadora, pois ao confrontar-se com ela o Direito deve exercitar continuamente seu potencial de aprendiza- gem e ao mesmo tempo reforçar a tela protetiva de sua memória. De um lado, há qualificação de sentido já sedimentada, do outro, há material constituído de decisão conflituosa sobre distribuição de modalidade de acesso aos bens socialmente disponíveis; o primeiro já estabilizado, o segundo sempre contendo um caráter de provisó- ria definitividade. Outra contiguidade ameaçadora é a economia, que motiva reinvindicações inexauríveis no confronto do Direito, por que a condição periférica fixada pela política, a materialidade do sentido dos conflitos é deslocada na distribuição e circulação do símbolo da escassez, que é o dinheiro.

32 | Raffaele De Giorgi A estas condições o sistema de Direito está sujeito a uma inexaurível abertura cognitiva que o torna frágil, instável, exposto às ameaças de um ambiente que não pode controlar as consequên- cias de seu funcionamento. O potencial de controle social de que o direito dispõe é sempre mais escasso, por que ele depende da capacidade do Direito, de elaborar no presente, as informações do ambiente, confrontando-lhe com a sua memória, mas a contínua instabilidade política desta memória expõe o direito à sua própria incerteza. Contingência e elevação de sentido debilitam a eficácia técnica da conceitualização do Direito. Então, o limite externo do Direito é ameaçado continuamente por que o caráter das decisões políticas dá sustentação a uma econo- mia de incerteza que por sua vez sublima no símbolo da escassez as expectativas dos cidadãos, e por conseguinte, ativa uma econo- mia de ação conflituosa que pretende obter do Direito uma decisão orientada à estabilidade do futuro e a certeza de resultados. Mas os resultados vinculam um futuro que se conhece: o Direito, ao invés disso, afronta o futuro com o seu não saber, enquanto também em relação ao seu potencial de construção do presente, requer alta tole- rância para lidar com a incerteza. Então, nesses confrontos o direito é exposto ao não-saber do ambiente e o não-saber de si próprio. Logo, o Direito é um para- doxo de seu limite. E de fato, o recurso que o Direito pode distribuir para contro- lar o presente e adentrar ao futuro, é o risco. Risco como vínculo ao futuro, no qual se satisfaz tanto a política da economia, quanto a economia da política, e no qual se tem, ao invés, a inquietação de algo no seu limite, conforme destaca Hegel. Ora, esta turbulência que se agita aos limites do Direito consu- miu os pressupostos de natureza racional-iluminista do sistema de tutela, que constituía uma sólida rede de elaboração da informação

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 33 sobre a qual a memória do Direito mantinha a sua auto identi- dade: da esfera privada à forma de auto-organização da opinião pública, do universo do trabalho à representação da forma de vida, das referências de igualdade aos espaços de diferença – a semântica do Direito se transforma segundo orientações políticas à gestão do símbolo da escassez. A forma contratual do trabalho, por exemplo, a economia lógica da desigualdade, a economia lógica da ordem pública, a moda- lidade de experimentar mecanismos reflexivos de confiança na relação entre indivíduos e administração pública, trazem a consequência do exaurimento daqueles pressupostos da semântica iluminista da ação e da racionalidade orientada ao Direito. Isto significa que o ilumi- nismo está concluso em suas premissas, assim como estão exauridos os pressupostos da representação do Direito como técnica social a estabilização das expectativas de comportamento. A sociedade expe- rimenta no Direito a primeira manifestação da sua modernidade, isto é a complexidade na sua forma tipicamente moderna. O direito não pode sair de si próprio, nem pode ultrapassar seus limites, como na razão kantiana. A inquietação de algo que se realiza no interior do limite do Direito, na verdade, é a agita- ção da negação que a determinação do Direito traz em si mesmo, é a desconstrução que o Direito pratica consigo mesmo, é a contí- nua reconstrução da desconstrução que caracteriza sua memória. Porém, há ainda mais no limite esterno do Direito: existe a tensão contínua da presença do mundo como limite da sociedade. Diferente do Direito, outros sistemas sociais são universalizados e toleram a presença do mundo em razão de seus limites que evolu- tivamente o ligam ao território e ao espaço. O mundo é duplamente ameaçador para o Direito. Seja por que pressiona por reconhecimento, seja por que sua complexidade é muito alta em relação ao potencial de elaboração de que dispõe

34 | Raffaele De Giorgi o Direito. Resta, em seguida, a diferença entre interno e externo. Mas para o Direito, os conceitos de interno e externo estão dentro de seus limites, sendo que, o que está fora dos limites é a outra parte da diferença, aquela que o Direito como parte da distinção, e como observador, não vê: no externo foi depositado tudo aquilo que está excluso, isto é, absolutamente, o outro. A isso se denomina a margem, o confino, o lugar do banimento, banlieus da sociedade. Mas se pode dizer também – como destacamos antes – que isto é a antecâmara do Direito. Ela se chama ilegalidade tolerada, difusa, de massa, se chama violência da exclusão; se chama escravidão: nenhuma sociedade teve tantos escravos quanto essa na qual vive- mos: se chamam migrantes, se chamam minorias: somente este ano na Itália, cinco mil desapareceram. Na exclusão não se é capaz de fazer conexões, não se é capaz de olhar a diferença, não se está somente fora, mas também hierarqui- camente em baixo, portanto, não se tem voz; isto é, o que está fora é negativo, somente. O que está externo a partir da razão kantiana e por sua linguagem é a não-sexualidade, é a cor não-branca da pele, é a não-cidadania, é a não-segurança, a não-estabilidade, é não-vida ou não-morte, é o espaço da não-competência do Direito ou seja, é o perigo em potencial, a precariedade, é simples irrelevância sem conteúdo de sentido, simples ausência. Então, a exclusão, a ausência, se faz sentir como Unruhe: como negação do tumulto, dentro do seu limite, negação de conflitos. Diante disso, o Direito reage a qualquer rumor, incrementando sua seletividade e ativando a diferença da diferença no seu interior, excluindo também aquilo que estava incluso. Todavia, como esta Unruhe se coloca no espaço externo, no intervalo entre Direito e Política, ela vem filtrada, amplificada, carregada de conteúdo moral, ou econômico, ou científico e refletida no espelho da opinião pública, a qual fornece ou subtrai reservas de consenso ao sistema da política,

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 35 mas também ao sistema da economia em virtude da sua sensibili- dade a alegados fatores motivacionais ou expectativas. Então, onde não reina o símbolo da escassez, se ativa a miséria simbólica da mise- ricórdia ou a barbárie do ressentimento. O que pode construir uma Filosofia do Direito que deseja ser também filosofia do limite? Como pode o Direito ir além do limite? Como pode o Direito sair fora de si? Nesta sociedade o Direito é afiliado a si mesmo, portanto não há suportes externos, tampouco garantias exteriores. E com relação ao futuro? Como pode o direito se defrontar com o futuro em virtude de seu não-saber? Menos direito? Aumenta a violência da diferença. Portanto, o Direito é o seu limite e o seu limite, é seu paradoxo.



DIREITO, TRANSIÇÃO, ESQUECIMENTO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O FILME ANISTIA DE BUJAR ALIMANI Adriana Prizreni 1 O filme que recentemente assistimos pode ser interpretado por diferentes pontos de vista. Também a possível conexão do filme com o tema o qual tratamos nesta sessão do Seminário por ser inter- pretada por diferentes pontos de vista. Permito-me de propor um possível percurso, que tenho como útil e que gostaria de seguir: gostaria de analisar o filme e tratar o tema do Seminário refletindo sobre isto que chamarei a dramaturgia da família na ditadura e no seu “depois”, isto é, sobre aquilo que o Seminário intitula de transição. Creio que o filme convida a escrever a dramática história do “antes” e do “depois”, inequivocamente. Penso, de fato, que se analisamos o filme deste modo, esse pode nos fornecer elementos úteis para refletirmos em particular sobre o “depois” da ditadura, isto é, sobre o presente e pode auxiliar na utilização de muita cautela no uso de conceitos complexos, como democracia, inequivocamente.

38 | Adriana Prizreni Em todos os regimes políticos, a família tem uma função espe- cífica. Cada regime constrói a sua forma elementar de estabilidade sobre a família. Esta afirmação é válida não só para as ditaduras conse- vadoras ou do tipo fascista, mas também para àquelas que deviam realizar a sociedade socialista. Mas vale também, para aquelas orga- nizações políticas que é comum serem chamadas de democracia. A afirmação vale a tal ponto que lá se encontra como descrição generalizada também nos manuais de sociologia nos quais se diz, inequivocamente, que as relações nucleares do tipo familiar cons- tituem a sociedade. É normalmente admitido, por exemplo, o fato que se expresse que deve salvar a família para salvar à sociedade, que a família moderna está sendo destruída, que se deve reconstruir a família. E posso continuar. Ora, também parece ser difícil pensar que afirmações deste gênero sejam fornecidas sem sentido, é seguro, em vez, que essas afirmações tenham firmimente juntas formas de legitimação do “antes” e do “depois”, isto é, formas de legitimação dos regimes e das transições as quais não são outras que os percur- sos temporais que conectam estreitamente os regimes entre eles. O filme tem como contexto político a Albânia: esse faz com que se veja um país desgatado pelo esmagamento do regime, um país que vive o incerto significado do presente e que, com o grave cansaço da renúncia, abre-se ao horizonte da democracia. Trata-se de um horizonte sobre o qual tem a Europa, a terra da democracia ocidental moderna: uma terra a qual se pode ascender desde que se prove que no novo contexto político os direitos humanos são plena- mente respeitados. E no catálogo destes direitos, finalmente, tem também a livre determinação dos sujeitos individuais, a liberdade de manifestar os próprios sentimentos e o respeito aos sentimen- tos dos outros: trata-se de sentimentos ideais, religiosos, políticos, afetivos. Ora esta liberdade é sempre recíproca, exige, isto é, que o seu respeito seja reconhecido e se expresse também em confronto

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 39 com o outro, qualquer outro. Esta reciprocidade tem o seu funda- mento na dignidade de cada um. Sem “dignidade” não se pode ser livre, não se pode fngir reciprocidade, não se pode obter o reconhe- cimento de si como titular dos direitos. Por consequência, também a dignidade daqueles que violam o direito deve ser respeitada: na linguagem do direito penitenciário este conceito se chama trata- mento humana da pena. O regime na Albânia havia soterrado estas questões. As havia reprimido, as havia sacrificado sobre o altar de uma sociedade livre de necessidade, de uma sociedade de iguais, de uma sociedade na qual o sujeito indivíduo deveria negar a sua individualidade e a sua singularidade e devere deixar-se tratar , inequivocamente, como igual, como indiferente, como universalidade, como se dizia para expressar o conceito de destruição de si próprio. Ora, porém, àquelas questões ressurgiram com as ruínas do regime. A Europa pretendia que, no “depois” do regime essas questões fossem seriamente consi- deradas. Mas, sobre o horizonte do “antes” e sobre o horinzonte do “depois” havia um caminho camum, um significado originário comum: era a família. O filme nos colocar a analisar a dramaturgia deste caminho, deste significado. 2 Para o socialismo real, na sua versão albanesa, a família era uma unidade simples, uma unidade essencialmente destinada a produção e a reprodução. Como era na tradição, geralmente a mulher vinha destinada pelo pai a um futuro esposo e a tratativa matrimonial vinha regulada entre os chefes de família. Mas, para o regime, isto não era relevante: ao contrário, em vez, era um fator de estabilidade social, era uma técnica de controle dos riscos que poderiam esca- par a uma escolha que fosse ligada a incontrolável mometaneidade

40 | Adriana Prizreni da paixão. Era uma técnica de controle econômico do comporta- mento dos indivíduos, mas também de controle político: não se podia de certo afidar a própria filha a qualquer um que fosse “deson- rado” ou que viesse de uma família “desonrada”. “Desonrado” era o homem conhecido sob o signo dos inimigos do regime, os quais deveriam ser moralmente desacreditados. Porque ser inimigo do regime significava ser inimigo do povo, isto é de todos, isto é, da universalidade. Significava serem insignos de serem tratados como todos. Significava, isto é, qualquer coisa de diferente, de diverso, de desigual. Hoje, podemos dizer, significava serem indivíduos. Ora, a técnica da escolha era uma técnica que mantinha unida a famí- lia na hierarquia de expectativas e de funções que era ao mesmo tempo uma hierarqui da estabilidade política e moral da sociedade ou, melhor, do povo. Na esterita conexão dos seus membros, a família reproduzia a íntima fusão da totalidade dos sujeitos (particulares) e do partido, do povo e da nação. O homem, o homem mais velho tinha nas suas mãos o poder sobre os membros da família, isto é sobre as coisas, seus corpos e seus sentimentos, sobre o ser e o dever ser(sull’essere e sul divenire), e reproduzia a imagem e a função do chefe supremo, que pelas suas maõs tinha unido o povo, que era o povo do partido, que era o partido da nação. Como o partido era o partido dos traba- lhadores, assim o povo era um povo de trabalhadores, e assim a família era feita de trabalhadores. Mulheres ao trabalho, homens ao trabalho: um trabalho socialista, de todos, para todos, o povo que trabalhava para o povo. As individualidades deste povo não eram indivíduos sujeitos, eram núcleos de hierarquias, eram as famílias, inequivocamente. Isto que acontecia aos sujeitos indivíduos era estreitamente individual, era, isto é, qualquer coisa de singular, não-universal e era uma forma de negar, não de afirmar o próprio ser. Isto significa: era irrelevante, inexistente, pertencente a isto que

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 41 deve ser ocultado. Se emergia, era infamante. Não podia restar ao longo exposto à observação dos outros, podia infectar, contaminar o corpo sã do povo. Quem arriscava de fazer manifesta a própria individualidade devia ser tratado como qualquer coisa de repug- nante, de ameaçador; devis ser afastado, devia ser escondido para alguma parte, eliminado socialmente e comumente fisicamente. Por outras palavras, devia ser excluído, mas esta exclusão devia ser realizada de maneira visível, em modo, isto é que todos soubessem que o corpo do povo havia sido limpado, havia retornado ao dese- nho de si próprio. 3 Cinema, arte, literatura reproduziam realistamente este povo sem indivíduos, sem sigularidade, sem diferenças. O reproduziam, isto é, na dura luta pela sobrevivência, no trabalho quotidiano, no quotidiano esquecimento de si próprio, na igual fusão coletiva e na igual sublimação do presente na expectativa do futuro. Na arte o realismo socialista era a dramaturgia da negação do ser, da unifica- ção do sentir coletivo, da repressão das diferenças; era a técnica de representação da harmonia disso que é igual, disso que concorre à segurança, a certeza, a felicidade coletiva. Certo, não havia o prota- gonista, não havia a singularidade. Havia o héroi. O héroi era hério do povo, na sua figura se encarnava povo; a sua individualidade era a sublimação da unidade do povo. O héroi não era um indivíduo: é a individualidade da coletividade. Para isso se apresentava o héroi como héroi nacional. A arte, agora, pode representar o presente na sua unitária tensão à construção da felicidade coletiva. Só nesta função de sublimação são possíveis as representações da materialidade do sentir, do sofrer, do alegrar, do viver e do morer. Ou, na função

42 | Adriana Prizreni pedagógica do passado. Que se apresenta, isto é que se faz presente como horizonte da história que começa com o futuro do presente. A família era o núcleo unitário da coletividade, a qual podia ser representada como a totalidade de seguimentos iguais. Mas esta igualdade havia em si mesma sólidos, estáveis e irremovíveis dife- renças. As únicas diferenças justificadas eram aquelas que resultavam da hierarquia, perque a igualdade socialista havia ao seu interno hierarquias: eram hierarquias que podemos chamar naturais: aque- las do chefe de família sobre outros membros do núcleo familiar, aquela do homem sobre a mulher, aquela do partido sobre o povo, aquela da função política sobre todas as outras funções, aquela do chefe supremo que reunia em si próprio partido e povo. Aquelas hierarquias derivavam das diferenças no grau de identificação com a natureza e com a verdade, as quais encontravam a convergência na verdade do socialismo, isto é do partido, isto é do poder de reali- zar o socialismo, isto é na justiça da igualdade. Ora, a arte, o cinema reproduziam este caráter natural das diferenças justificadas: esses não podiam, de ccerto, reproduzir as diferenças contagiosas, aquelas que haveriam de infectar o corpo do povo. Quando a incorruptível estabilidade do regime se estilhaça, quando a compacta harmonia da coletividade cai aos pedaços, agora se rendem manifestos também os caminhos de sua corro- são subterrânea. Como rivoli sottili as individualidades negadas, as singularidades reprimidas, as diferenças sublimadas, afloram na superficie e fluem ao longo dos vazios que se abrem entre os detri- tos do regime. Reaparecem os sujeitos indivíduos, reaparecem as diferenças, iniciam-se a manifestarsem as interioridades reprimidas, as desigualdades procuram obter o reconhecimento que antes era negado, o povo torna novamente a isto que sempre foi, um peri- goso conceito político; a coletividade torna novamente o horizonte

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 43 de inumerosas divergências, de pontos de vista incongruentes, de construções do mundo entre suas contradições. Por outras palavras, rende-se possível aparecer ao mundo arris- cando de portar a luz o próprio sentir. Finalmente tem a possibilidade mesma de sentir, a possibilidade mesma de saber a própria interio- ridade e de saber que essa não deve ser publicamente expressa ou sublimada, ou ocultada. Mas tem a possibilidade de render mani- festa a própria identidade, de comunicá-la, de compartilhá-la. Tem a possibilidade de sentir de modo diferente, de arriscar singularmente. Tem a possibilidade de recusa, de negar, isto é tem a possibilidade de vontade: podem ser sujeitos indivíduos que tentam afirmar a singularidade do seu sentir. Mas isto significa só que agora os sujeitos indivíduos são confiados a si mesmos, são abandonados a si mesmos: as antigas proteções, as antigas estabilidades não funcionam mais: essas são só gaiolas de ferro. Continua a operar só a unidade elementar da sociedade, como dizem os manuais de sociologia e os catecismos de muitas religiões: continua a operar a família, a concha protetiva das individualida- des abandonadas a si mesmas. A família tem a mesma estrutura, a mesma hierarquia, a mesma natureza que o regime lhe havia reco- nhecido sublimando-a como núcleo da vida do povo; agora, de fato, a família, sendo o núcleo primario da sociedade, assumirá a função de fazer possível a integração dos sujeitos. Não tem mais o povo, como símbolo da unidade da coletividade: agora tem a sociedade, como símbolo das diferenças que devem ser integradas. E esta famí- lia não pode ser ela mesma destruída. Deve continuar a ser uma unidade. Estas estruturas e a sua função são a continuidade que conecta os regimes. E os sujeitos indivíduos? E o seu sentir? E as suas paixões? Aquelas forças que, depois da queda do antigo regime, parecia que podiam tornar-se finalmente explosivas? Atuam-se de

44 | Adriana Prizreni forma subterrânea, restam-se ocultadas, podem explodir. Se amea- çam a estabilidade da família, se podem romper a gaiola de ferro, agora, como sempre na história da família de um pais que viveu uma interminável noite do tempo, isto que deverá explodir, será um tiro de fuzil.

OS LIMITES DO DIREITO: OBSERVAÇÕES DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO NA JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos INTRODUÇÃO Analisando os julgamentos do Supremo Tribunal Federal Brasileiro nos últimos 10 anos, pode-se observar o órgão máximo do sistema jurídico brasileiro passando a julgar questões atinen- tes ao controle de políticas públicas, ampliando demasiadamente os limites do direito, e adentrando arriscadamente na seara polí- tica. Arriscadamente porque assumindo esse papel, não se sabe se as decisões judiciais, terão de fato, efetividade. Sob a alegação de não estar entre as atribuições do judiciá- rio como um todo a intervenção em políticas públicas, o Supremo excepcionou, no julgamento da Arguição de Descumprimento de preceito fundamental ADPF45, a possibilidade de atribuir a incum- bência aos ministros, desembargadores e juízes quando o legislativo

46 | Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos e o executivo não cumprirem seus papéis colocando em risco os direitos individuiais e coletivos previstos na Constituição Brasileira. Entretanto, ao atribuir a função ao judiciário, que é do sistema Político, cria-se uma incerteza e instabilidade no próprio sistema social, especialmente quando não se possui mais a noção da dimen- são espacial e temporal que fazem parte da construção dos limites do direito. Os julgamentos dos Tribunais estão indo além de decisões apenas para evitar excessos, e concedendo direitos a cidadãos, em casos individuais, quando não se trata do mínimo indispensável a todos, e na ausência de previsão orçamentária. Pode-se constatar tal fato especialmente nas questões da saúde. Os Tribunais Superiores estão buscando solucionar as demandas através de construções legais a partir das consequências. E, orientar-se pelas consequências não é outra coisa que um indicador da positividade do direito: compe- tência de decidir segundo a própria valoração. Em uma sociedade funcionalmente diferenciada, como a cons- truída por Luhmann, assumir a função do sistema político, traz, por óbvio, um risco para todo o sistema. O papel do sistema político é exercer a sua função e encontrar mecanismos para a resolução dos problemas que vão surgindo. Transferir ou assumir esse papel, que não faz parte da função do sistema do direito, não é a solução, pelo contrário, gera ainda mais incerteza. Primeiro quanto a efetividade da decisão numa dimensão futura. Segundo quanto a incerteza do próprio sistema político que não possuiria mais o controle de seus atos, pois estariam agora sendo realizados por outro sistema. OBSERVAÇÕES DE OBSERVAÇÕES Acerca da função do direito na modernidade da sociedade moderna, escreve Raffaele de Giogi em seu artigo Referenza e

RAFFAELE DE GIORGIO E OS OBSERVADORES 47 Ostacolo, no livro Temi de Filosofia del Diritto, que: “o sistema do direito opera as condições estruturais da modernidade da socie- dade moderna. O sistema do direito não se é especificado em base a um valor ou a um princípio. O direito, em outros termos, não se fecha na realização de uma ideia, não para em base a justiça. Isso não significa que o sistema opere em um modo arbitrário. Significa que o direito é determinado pela estrutura, não por referência externa. O direito não tem a função de realizar o controle social, de resolver os conflitos ou de produzir a paz. É certamente possível observar o direito sob este ponto de vista, ou da perspectiva da integração social. Isto, entretanto, significaria impedir de observar a real poten- cialidade do sistema jurídico e de consequência a sua real função. Esta função consiste na construção de vínculos para o futuro e nas suas condicionalizações simultâneas. (DE GIORGI, 2006: 229). Segundo o renomado Professor, uma análise mais detalhada poderia demonstrar como se comporta o direito em relação aos problemas sociais: pode-se ver que aquilo que caracteriza o direito não é a solução destes problemas, mas as suas canalizações. Se trata de aspectos ligados a sua temporaneidade e só através deste critério a intervenção do direito se estende ao nível social e ao nível mate- rial de produção de sentido. Analisando internamente o sistema, Raffaele de Giorgi pode observar, também, que a justiça não é um ideal, nem um valor, mas uma condição do sistema que descreve um nível de consistência do decidir. E, ao citar Luhmann, aponta que a justiça não é fórmula da perfeição ou da necessidade, mas formula da contingência. O direito é só um dos componentes do código, o outro componente é o não-direito. Quanto mais se produz direito, mais se produz o não-direito. Ainda segundo De Giorgi em seu artigo Stato e diritto alla fine del secolo, este século há condensado a idade dos direitos,

48 | Ana Claudia Secundo da Luz e Lemos Enquanto se alternavam as gerações dos novos direitos, as especi- ficações do sistema do direito produzia sempre maior necessidade de legalidade, enquanto um número sempre maior de pretensões relativas a igualdade e dignidade, a autodeterminação e a liberdade de ação, encontram reconhecimentos constitucionais, se poderia observar a prática da violência legítima e a produção de desigualdade através do exercício do direito. Enquanto se afirmava o reconheci- mento político dos direitos das futuras gerações, as especificações dos sistemas do direito alargava os espaços das exclusões até restar evidente os paradoxos constitutivos do operar deste sistema que a grande arquitetura dos princípios havia tornado invisível. (DE GIORGI, 2006 :218). O SUBSISTEMA DO DIREITO De acordo com a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, o processo de modernização da sociedade se caracteriza por ser um processo de diferenciação funcional, onde uma série de subsiste- mas ou sistemas parciais cumprem uma e só uma função com um código e um programa próprios. Mediante o processo de diferenciação dos subsistemas parciais de funções, e, em especial, o sistema do direito, cada sistema regula, ele mesmo, os temas que trata, as regras com as quais se comunica e a posição que atribui as pessoas. A diferenciação do sistema jurídico é um logro evolutivo, uma conquista pela qual, parcela de comunicações, que se seleciona sob a imposição do código binário direito/não direito ou lícito/ilícito, é utilizada para a sua autopoiese e seu fechamento operativo. Assim, surge o subsistema do direito, que como todo sistema social é formado por comunicação, também realiza sua autopoiese, é autorreferente e fechado operativamente.


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